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Artigo
PREMISSAS, HIPÓTESES E EVIDÊNCIAS: UM OLHAR SOBRE O MAGREB MEDIEVAL1 Por: José Wilton Santos Fraga RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de investigação no qual é destacada a importância do estudo da história das sociedades africanas, especificamente, as que atuaram na região do Magreb entre os séculos XI e XIII. Tendo como foco um contexto no qual, a partir da entrada islâmica em solo Ibérico, em meados do século VIII, pode-se observar o contato com a África se tornar mais constante para os medievais ocidentais e como consequência, a ocorrência de trocas culturais entre o mundo cristão o islâmico. Como na historiografia existiu um debate acerca de um possível “feudalismo islâmico” e o período referido, compreendido como Idade Média Central, foi onde se deu o processo de consolidação das relações senhoriais na Península Ibérica, a investigação levanta como matéria de estudo, a possibilidade da existência de práticas senhoriais no norte da África. Desse modo, aqui se faz uma breve e simples explanação, bem como um breve panorama apontando as nossas primeiras impressões, tais como: algumas características e elementos do cenário abordado, as dificuldades em que se enquadram fontes e bibliografias (bem como alguns nomes que trabalham o Magreb na Idade Média), o caráter interdisciplinar do campo de pesquisa dentro do espaço recortado, o debate teórico acerca do feudalismo e a riqueza da problemática a ser explorada. Contudo, o mais importante é notar a necessidade de voltar-se para uma área há tempos negligenciada, convergindo assim, com o desejo da nova historiografia que se dedica ao assunto, contribuindo com a tentativa de trazer para o cenário acadêmico local abordagens desse campo. Palavras - chave: Idade Média; Feudalismo; Senhorio; Islã Medieval; Magreb.
A
sustentar esse interesse. Primeiro, as trocas intenção de investigar uma possível
culturais entre os mundos do Islã e o da
existência de práticas senhoriais no norte
Cristandade.
Segundo,
do continente africano (domínio do
historiografia
de
Império Islâmico) entre os séculos XI e XIII via
uma
a
existência
hipótese
sobre
na um
“feudalismo islâmico”.
contato com ocidente cristão pela Península Ibérica, está baseada em dois fatores que poderiam
Este artigo está associado ao projeto de pesquisa de iniciação científica Conexões entre a África e a Península Ibérica na Idade Média Central: Um estudo sobre a possibilidade de presença de relações senhoriais em território africano (262014), 1
financiado pelo Programa Jovens Talentos para a Ciência 2015 -2016 /Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Alvaro.
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Cidade Medieval no Magreb (Toscana) - Ilustração para a Oxford University Press Sabe-se
que
o
mundo
islâmico
foi
um
contraponto ao Ocidente e sua expansão implicou
muçulmanas”. Já a respeito do lado mulçumano, ele afirma:
em contados por muitas vezes conflituosos, como as Cruzadas e as guerras de Reconquista, dada a ênfase em ambas as religiões dos dois mundos. Queira quer não, o choque entres as duas culturas foi inevitável e isto deve ser levado em conta. No entanto, não devemos reduzir as relações entre o ocidente e o mundo mulçumano apenas a conflitos de ordem religiosa e/ou militar, apesar do lado cristão ter quase se limitado a isso. Segundo Will Durant (2002, p. 307), “provavelmente dos cristãos resultaram o misticismo, o monasticismo e o culto de santos do maometismo. A figura e a história de Jesus tocaram a alma islamita a apareceram de maneira simpática na poesia e arte
A influência do Islã sobre a cristandade foi variada e imensa. Do Islã, a Europa cristã recebeu alimentos, bebidas, drogas, medicamentos, armadura, heráldica, motivos e gostos artísticos, artigos e técnica industrial e comercial, códigos e métodos marítimos e muitas vezes palavras para designar essas coisas: laranja, limão, açúcar, xarope, sorvete, julepo, elixir, jarro, arcabuz, algodão, sofá, musselina, cetim, fustão, bazar, caravana, cheque, tarifa, tráfego, aduana, magazine, azeite, chalupa, gabarra, chafariz, almirante. (DURANT, 2002, p. 307). Isso apenas a título de exemplos em contextos muitos mais amplos como os da filosofia, da ciência, da literatura, língua e arte. Sem falar da relação comercial apoiada em tratados, os quais favoreciam importações e exportações e até mesmo permitiam
G N A R U S | 149 que os comerciantes ibéricos se instalassem em
Ainda se inclui aos fatores, a deteriorização do solo
albergues (funduk) nos portos e no interior do
que perdera fertilidade por ser explorado ao
território mulçumano no Magreb. Essas trocas entre
máximo e a escassez de mão de obra, a qual era
as duas culturas foram favorecidas por um período
incapaz de recuperar a produção anterior e
de grande tolerância que, de acordo com
encontrava-se escassa pelo fato das pessoas
Mohamed Talbi, tinham como motivos “uma
estarem abandonado as terras, fechando assim uma
simpatia
estratégia
espécie de círculo vicioso. Esse fato nos indica uma
espiritual” (2010, p. 78). Portanto, nenhum era
característica predominante na região no que diz
“estranho” ao outro.
respeito à mão de obra utilizada pela agricultura:
desinteressada
e
uma
essas pessoas não viviam em regime de servidão. A época em análise compreende o período de domínio dos Almorávidas (do século XI a meados do
Sobre as propriedades onde trabalhavam e as
século XII), dos Almóadas, que estenderam um
relações jurídicas do uso da terra no período após a
império de Trípoli à Sevilha entre 1147 e 1269,
queda dos Almóadas, Hady Roger Idris comenta:
constituindo uma civilização ibero-magrebina, e
ocidente cristão. Visto que um dos elementos que
Alguns indivíduos poderosos tinham grandes propriedades, mas a grande maioria dos habitantes do campo vivia e trabalhava em propriedades coletivas. Muitos lotes eram habous privados ou públicos cultivados pelos próprios adjudicatários ou por eles arrendados. Frequentemente, se não na maioria dos casos, a terra era cultivada segundo um contrato concluído com o proprietário: as plantações eram arrendadas a diversos agricultores, e havia várias formas de arrendamento e parceria, sendo o quinto a mais comum. (IDRIS, 2010, p. 118).
marcaram esse panorama foi a dissidência de forças
Por outro lado, a configuração jurídica da grande
de “membros de famílias reinantes, chefes de tribos
propriedade fundiária criada no seio da sociedade
nômades, mercenários cristãos, xeques sufi,
feudal e que no geral determinava os laços de
xarifes”, todos em busca do poder; além da
dependência de indivíduos sob outros, era um
problemática do declínio das terras cultivadas que
fenômeno íntimo do ocidente ligado ao uso da
levou à baixa densidade demográfica da região
terra, e num primeiro momento, não se assemelha à
(abandono das terras), atribuída por Ivan Hrbek
encontrada no norte da África. Pois o que foi posto
(2010, p. 111) ao que ele chamou de “regime feudal
como objeto de investigação e modelo a ser
e instabilidade generalizada”.
encontrado, foi aquela relação dada entre os ditos
posteriormente, a queda desse império e sua fragmentação dividindo o Magreb em três estados governados por dinastias diferentes (a dos Haféssidas, a dos Zaianidas, e a dos Marínidas). O interessante aqui seria tentar compreender as forças dinâmicas internas que levaram ao declínio do poderio político, militar e econômico desses estados dentro do contexto das relações com o
Esse abandono também é associado à invasão dos nômades árabes, a partir do século XI, que passaram a utilizar terras antes cultivadas como pastagens, rompendo um equilíbrio secular entre seu modo de vida e o modo de vida sedentário dos camponeses. 2
ALVARO, 2013, passim;
senhores e camponeses2 (ou “vilões”, os habitantes da vila ou da aldeia, de acordo com a concepção da época no contexto ocidental). Onde os primeiros adquirem a sua condição ao receberem de outros senhores com mais poderes que os seus (isso dentro
G N A R U S | 150 das chamadas relações feudo-vassálicas) uma
sociedade dita feudal, é um mundo muito
propriedade na forma de feudo, o qual deve ser
diferente.
considerado como “a concessão de um poder senhorial, que pode dizer respeito a uma terra e
A historiografia espanhola desde a década de 70
seus habitantes, mas pode também limitar-se a um
vem discutindo sua existência na própria Península
direito particular, por exemplo, o de exercer a
Ibérica com configurações que possam sustentar
justiça, de recolher uma taxa ou cobrar um
essa ideia e consequentemente a de práticas
pedágio” (BASCHET, 2006, p.123). Já os segundos,
senhoriais nesse território que fora tempos antes
são aqueles que habitam na propriedade do senhor
posses dos mulçumanos. Obras de historiadores e
e dependem dela para produzir, concretizando
de arqueólogos produzidas em bom número a
assim um laço que lhes atribuem uma série de
respeito da problemática de aldeias fortificadas e o
obrigações.
acastelamento
na
região
são
avanços
na
historiografia que serviram de modelo para Isso são apenas linhas gerais de intrincadas e complexas dentro
relações de
rearranjo
um sócio
trabalhar o espaço rural no norte da África, assim afirmam
Mohamed
Ouerfelli
e
Élise
Voguet (2009).
espacial (o senhorio) onde pode-se ainda
Campo
este,
destacar a figura do
mundo
castelo (e também das
ocidente mulçumano
fortificações)
no medievo, muito
como
do
carente de estudos.
elementos constituintes
rural
o
desse
Porém
as
poucas
cenário. Porque além
iniciativas
já
nos
de ser a residência, o
proporcionam a noção
castelo era também a fortaleza de um senhor3. Ele
de que se trata de uma área com possibilidades de
controlava todas as terras circunvizinhas por meio
abordagens, pois fizeram e estão a fazer o uso de
de uma tropa montada nele aquartelado4.
fontes diversificadas e agregando pontos de vistas novos com a contribuição de outras áreas do
Sendo assim, não é demais lembrar ou esclarecer que a proposta de investigação colocada aqui
conhecimento como a arqueologia, a antropologia, a sociologia, a geografia e o direito.
apoia-se na discussão do feudalismo como uma “categoria de análise”, visto que para onde se
Mesmo considerando todos esses elementos
pretende levar esse modelo teórico que define
enunciados, à primeira vista, tentar considerar que
relações entre homens e o uso da terra inserido no
puderam ter existido práticas senhoriais ou
conjunto de elementos que constituem uma
elementos de uma sociedade feudal iguais ou
ZAHAR, 1997, passim; Em Portugal, a configuração política e social não permitiu que o uso do castelo fosse o mesmo do restante da Europa. Interessante então, procurar no Magreb se
havia uma configuração própria e se havia algo que desempenhasse o papel estratégico do castelo como o reduto do senhor, de acordo com os trabalhos referidos logo à frente.
3 4
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o
ofício
do
historiador
com
credibilidade. Enquanto isso ainda não é possível, vale o intuito de buscar novas linhas de investigação promovendo o estudo de áreas negligenciadas baseando-se em trabalhos já realizados. Em virtude disso, é essencial citar um debate historiográfico iniciado na década de 30 pelo
contestada posteriormente. As pesquisas pioneiras de Claude Cahen sobre o iqṭāˁ Oriental, incluindo o Egito, têm demonstrado os limites dessa correlação. O autor distingue quatro características básicas do sistema oriental, suficientes para dissociar claramente do feudalismo ocidental. São elas: - O controle do Estado sobre a aquisição da renda do iqṭāˁ; - O aspecto não hereditário da concessão; - A raridade de concessões atribuídas a uma pessoa para toda a vida; - O fato dos muqṭaˁ-s não desfrutarem de uma autoridade local independente do governo central. (BENHIMA, 2009, p. 28-29, tradução nossa).
historiador israelense Abraham Poliak. Ele tentou um estudo comparativo avançando a hipótese de
É bem verdade que a dissolução desse equívoco
um "feudalismo islâmico". O debate não teve muito
configura um rumo diferente na investigação por
fôlego e logo foi questionado por estudos do
retirar como evidência o uso do iqṭāˁ equivalente a
historiador francês Claude Cahen na década de 60.
um feudo. Porém, sabe-se que as sociedades
Dentre outros aspectos, o interesse em torno de
mulçumanas formadas no norte da África, mesmo
uma forma de concessão territorial/administrativa
herdando
praticada pelos estados mulçumanos com o
sociedades genuínas com seus próprios interesses
objetivo de obter a lealdade das suas elites e
políticos
consolidar sua autoridade, foi um ponto em
aprofundamento nos argumentos que levaram a
questão. O termo em árabe para essa forma de
esses historiadores a defenderem essa hipótese.
concessão dentre outras é iqṭāˁ. E foi muitas vezes confundida ou mal comparada com o feudo das sociedades ocidentais.
historiográfico
e
econômicos.
do
Oriente,
Cabe
eram
então,
um
Desse modo, essa proposta que se apresentou converge com o desejo da nova historiografia que se debruça sobre o espaço rural do Magreb
Yassir Benhima simplifica a explicação do equívoco
características
cometido
por
historiadores a respeito da concessão iqṭāˁ:
O termo iqṭāˁ designa "uma forma de concessão administrativa” praticada pelos Estados muçulmanos, que foi muitas vezes confundido, injustamente, com o feudo. Esta aproximação praticamente excessiva entre o sistema iqṭāˁ e o feudalismo Ocidental, certamente motivado pelo eurocentrismo de alguns orientalistas ou até mesmo por pressupostos marxistas, felizmente foi
medieval, que é sair de uma espécie de comodismo intelectual, o qual utiliza as informações contidas nas poucas fontes existentes de maneira repetitiva e estereotipada, limitando novas abordagens, dificultando um entendimento melhor das relações que as populações locais possuíam com o uso da terra. “Se a identidade da tribo ou da aldeia se forja, por exemplo, sobre a manutenção de uma mesquita, a apropriação da terra também é crucial para a construção de comunidades rurais”, é assim
G N A R U S | 152 o pensamento de Mohamed Ouerfelli e Élise Voguet (2009). Enfim, o que esses poucos parágrafos escritos acima trazem um pequeno esforço, porém não menos importante, de trazer para o cenário acadêmico
local
abordagens
desse
campo,
reconhecendo a importância da necessidade de voltar-se para uma área há tempos negligenciada, mas que vem, cada dia mais, tomando fôlego e espaço não só na África e Europa, como também no nosso país. José Wilton Santos Fraga é graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe; Bolsista do Programa Jovens Talentos para a Ciência/ Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e integrante do Vivarium: Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste). Contato: josewilton55@hotmail.com
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Negociação: Uma análise Comparativa das Relações entre os Senhorios Episcopais de Santiago de Compostela e de Sigüenza com a Monarquia Castelhano-Leonesa na Primeira Metade do Século XII. p. 31. Tese (Doutorado em História) – Programa
de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. BASCHET, Jérôme. Ordem senhorial e crescimento feudal. In:___. A Civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 122-137. BENHIMA, Yassir. Note sur l’evolution de l’iqṬaˁ au maroc medieval. L’Institut historique allemand. Paris: 16, 2009, p. 27-44. DURANT, Will. Grandeza e decadência do Islã. In: ______. A idade da fé: História da civilização Medieval, cristianismo, islamismo, judaísmo, de Constantino a Dante. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. Cap. 24, p. 278-309. HRBEK, Ivan. A desintegração da unidade política no Magreb. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 4, p. 89-115. IDRIS, Hady Roger. A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do
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