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Coluna:

PARA LER O CINEMA Por Renato Lopes

D

esde as aberturas teóricas no seio da

outros campos do saber, como a sociologia e a

ciência histórica, que ocorreram na

antropologia.

segunda metade do século passado, o cinema, e a imagem como um todo,

deixaram de ser meras ilustrações para algum conhecimento histórico previamente expresso em palavras e esquemas. O cinema passou a constituir uma matriz teórica importante na edificação do conhecimento histórico e como tal ganhou sua devida importância, além de dialogar com vários

Com as severas críticas feitas às abordagens teóricas calcadas em um historicismo determinista e num positivismo acrítico,1 passam a ganhar espaço conhecimentos históricos realizados a partir de uma leitura cultural, onde a sociedade é uma representação coletiva, com suas estruturas socialmente construídas. O filme é tanto uma forma de representação da coletividade ou um veículo interpretante de realidades históricas específicas,

LE GOFF, J. História e Memória. Campinas;SP. Editora UNICAMP. 2013.p.24 1


G N A R U S | 161 servindo também como um suporte de linguagem para o estudo da ciência

histórica2.

social capaz de gerar e ressignificar um

A partir de uma

determinado discurso a partir das condições

leitura histórica do filme podemos alcançar o

existentes na linguagem cultural do meio onde é

entendimento acerca daquela sociedade que o

produzido.4

produziu, o recepcionou, as memórias que infiltram

Todavia

suas estruturas e até

devemos

ressaltar que o filme não

mesmo as vinculações

traz

institucionais dos agentes

somente

motivações

sociais responsáveis pela

as

ideológicas

de seus realizadores, há

sua produção.

questões tangentes a sua

O cinema é portador de

produção,

que

ficam

uma gramática própria, e

evidentes quando o filme

também

é lançado em um circuito

carrega

ou

apropriando-se de uma

de

série

espectador, a despeito de

de

códigos

referenciais.

e

exibição

Assim

qualquer

análise

imposta

e

o

ortodoxia

mescla-se

à

histórica

do

filme

também

uma

análise

liberdade de se apropriar

dos

dos temas ali levantados.5

componentes técnicos e

Supera-se a ideia de que

artísticos, que convergem

o espectador é um agente

para a elaboração do

passivo, pois a forma

estética,

pelos

realizadores,

tem

seus a

discurso fílmico, da representação encarnada pelo

como este irá receber a mensagem exerce

filme. A intenção é justamente, através de seus

influência tamanha a partir da diversidade de

arranjos técnicos e teóricos, tender a manipulação

sentidos criados pelos que assistem a obra6 [6].

de sentimentos e emoções dos espectadores, alterando suas percepções e mentalidades e, por conseguinte, até mesmo seu papel de ator social na

Em relação as suas leituras históricas podemos dividir os filmes em

cadeia dos acontecimentos históricos.3 De modo

- Filmes Históricos: englobam os filmes épicos e os

que devemos entender o filme como uma prática

de ambientação histórica. Os primeiros estetizam

BARROS. José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In: NÓVOA, Jorge & BARROS, D´Assunção (Orgs). Cinema-História: Teoria e representações sociais no cinema/Jorge Nóvoa [et al] – Rio de Janeiro, Apicuri, 2008. p. 44 3 Furhamar, Leif. Cinema a política/por/Leif Furhamar/e/Folke Isaksson. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1976. p.148 e 149 4 TURNER, Graeme. O cinema como prática social – São Paulo. Summus, 1997., p.51 e 52

5

2

NAPOLITANO, Marcos. A escrita fílmica da história e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: História e cinema/ Maria Helena Capelato [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007; USP: História social. Série Coletâneas. P.65 6 JELIN, Elizabeth, Los trabajos de La memória. Apaud: MENDES, R.A.S. Argentina e Chile – Memórias em disputa e perspectiva democrática. Revista Intellectus. Ano 7, vol.2.2008. ISSN 1676-7640


G N A R U S | 162 ou representam processos históricos conhecidos,

mera ilustração de um conhecimento prévio.

que podem representar uma versão romanceada de

Colabore para que o cinema não seja só visto, como

eventos ou vida de personagens históricos.

também lido.

- Filmes de ambientação histórica: se referem a

Até a próxima.

enredos criados livremente, mas sobre um contexto histórico bem estabelecido, tendo na condução de seu fio narrativo personagens fictícios. Há ainda os documentários históricos, que passam na clivagem de

serem

trabalhos

de

Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina, agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema e colunista especialista em cinema da Gnarus Revista de História.

representação

historiográfica, só que em formato áudio visual, e diferenciam-se das categorias anteriores devido ao rigor documental em que se apoiam. O século XX é notadamente o século da imagem e por conseguinte, do cinema também. Foi a forma de expressão artística que mais alcançou corações e mentes em todas as latitudes e longitudes do globo terrestre ao longo do século passado. Foi a ferramenta mais usada com a intenção de doutrinação e tornou-se uma prática social. Não houve um único momento do século XX onde o cinema estivesse “em baixa” ou “fora de moda”. Utilizado para fins políticos, sociais e ideológicos observa-se algumas formas de fazer cinema que caíram em desuso e algumas estéticas que acabaram superadas por outras. Toda essa dinamicidade que envolve a história e a realização do cinema merece ser estudada com cada vez mais acuidade. O cinema, enquanto expressão artística e enquanto ciência, ainda tem muito a nos dizer. E s novas tecnologias usadas para sua realização, seja em pequena, média ou larga escala, constituem um mosaico de possibilidades de leituras possíveis sobre o tempo em que vivemos. Sempre que possível usem o filme em trabalhos, em salas de aula, em pesquisa. Ajude ainda mais a desconstruir a visão arcaica de cinema como uma

PARA SABER UM POUCO MAIS: BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru – SP: EDUSC, 2004 CABRERA, Julio. O cinema pensa – uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro, Ed. Rocco CAPELATO, Maria Helena, MORETTIN, Eduardo, NAPOLITANO, Marcos, SALIBA, Elias Thomé (orgs.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007 CHARTIER, Roger. A História Cultural - entre práticas e representações. DIFEL. Lisboa FERRO, Marc. Cinema e História – São Paulo: Paz e Terra, 2010 STAM, R. Introdução a Teoria do Cinema. Campinas, SP. Papirus, 2003 (Coleção Campo Imagético) XAVIER, Ismail. O Discurso cinematográfico: a opacidade a transparência. São Paulo, Paz e Terra. 2008.


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