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Artigo
A CONSTRUÇÃO DE UM HERÓI HUMANIZADO NO SÉC. VIII-V AEC Por: Artur Vítor de Araújo Santana
Resumo: No presente trabalho, busco construir uma imagem dos heróis gregos, estes que são seres de contradição, pois ao mesmo tempo que são mortais, possuem uma maior aproximação com o divino, já que em sua maioria são descendentes dos olimpianos. Procuro delimitar quais seriam as características humanas ou imortais presentes nos heróis, estabelecendo um paralelo entre as epopeias e as tragédias, tendo principalmente Romilly e Viera como referencial teórico.
Palavras-chave: herói; mortal; divinizado; epopeias; tragédias.
Odisseu e as Sereias, de John William Waterhouse, 1891.
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A edificação de um herói e a herança homérica.
T
endo origem na palavra grega ‘hrvV (íroias), o termo herói em grego designa, de acordo com Romilly
(1970-2001,
p.87),
“homens divinizados a quem após a morte, se prestava culto” mas a partir das influências de Homero, o termo passou a transmitir o ideal de homens sem defeito “praticamente imbatível, sublime no vigor e na generosidade”, como nos traz Viera,1 em seus comentários sobre a tragédia Héracles, escrita por Eurípedes. Apesar desses semideuses persistirem na condição humana, sendo esses ideais transmitidos para o período clássico, esses heróis se tornam dessa forma, seres de contradição, pois ao mesmo tempo que estão próximos dos deuses olimpianos, através de suas habilidades grandiosas, a exemplo da coragem, força, astúcia ou ainda pela sua generosidade, se distanciam destes por não possuírem a característica da imortalidade. Por esse motivo, tentam ao máximo esconder suas fragilidades, pois destruiria-se
dessa
forma,
essa
aura
divinizada que esses heróis tentam construir em volta de si mesmos.
1 VIEIRA, 2014A, p.144
GNARUS |3
Por
Representação de Héracles numa cratera grega do século V a.C., portando o seu arco, a sua clave e a pelo do leão de Neméia. Detalhe de Nióbidas, Museu do Louvre, Paris.
estado divino, esses humanos sempre
não se restringe a um
forma honrosa, pois
divinas vão além da
apenas dessa forma
força física. Nos textos
seriam
homéricos poderíamos
Essa
citar alguns modelos
glória
seria
e nela, libertaria a sua
exemplo, a astúcia de
coragem e força total,
Odisseu, que com o constante auxílio de Atena, leva a melhor
porquanto
ao
pressentir
a
proximidade da morte,
diversos
orgulhavam-se
oponentes, a exemplo
de
matar ou de morrer,
de Polifemo2, Circe,3 as Cila
eternizados.
alcançada em batalha
desse ideal, como por
sereias ,
preparados
que ela ocorresse de
habilidades
4
estavam
para a morte, desde
perfil guerreiro, pois
sobre
esse
desejo de alcançar o
O mérito heroico
suas
possuir
desde que fosse de
e
uma maneira digna,
Caríbdis , entre outros.
que ocorreria através
5
Assim
como
a
de algum duelo com um oponente a sua
generosidade de Heitor, que por seu irmão
altura, surgindo dessa forma uma espécie de
entra em batalha contra Pátroclo, pensando
ligação com seu adversário, já que ambos
que seria Aquiles, pelo fato de estar usando
entram de corpo e alma no combate, sendo
a armadura do pélida (presente de sua mãe,
essa a concepção de bela morte presente
Tétis) tendo Heitor a vitória6. Esse fato
em Homero, onde “todos os heróis [...]
ocorreu principalmente pela ajuda de
vangloriam-se de seu feito, francamente e
Apolo, e mesmo não tendo linhagem divina,
sem reservas”.7
o troiano torna-se um grande herói.
Essa infinda coragem, se destaca entre os heróis, principalmente em tempos de
2 Odisseia, Canto IX, vv. 216-566;
guerra, quando vão defender sua pólis,
3 Idem, Canto X, vv. 275-555;
quando sedentos de sangue lutam em
4 Idem, Canto XII, vv. 156-200;
defesa de suas mulheres, crianças e pelos
5 Idem, Canto XII, vv. 223-262;
anciões, que ficam nas cidades gregas, assim
6 Ilíada, Canto XVI, vv. 581-867;
7 ROMILLY, 2001, p.93
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como todos seus bens. Nesse momento, não
participarem da aristocracia, carregam
é apenas a busca de renome ou glória que
consigo feitos grandiosos.
se destaca, mas a proteção de seus entes queridos, que dependem de sua vitória, pois ao serem derrotados, os habitantes da urbe estão sujeitos a escravidão ou a morte.
Apesar da grandiosidade presente nesses humanos, os semideuses estavam em conformidade
com
um
“código
de
conduta”11, que disseminava algumas regras,
Mesmo fazendo parte de um mundo
as quais um herói não deveria fazer. Entre
humano, já que “nem toda magnitude
esses ideais pode-se destacar características
heroica reúne forças suficientes para
como “fugir, bem entendido, mas também
enfrentar a enigmática instabilidade do
lesar outrem, faltar à sua palavra, matar
8
destino divino”, pois constituem um grupo
voluntariamente,
privilegiado,
ou
internalizado no íntimo de cada um desses
descendentes do trono, coincidindo dois
indivíduos, a ponto de que, ir contra a esse
importantes ideais, o de “nobre rei e
código os aproxima da mortalidade e do
poderoso guerreiro”.9
caráter humano, que os inferioriza dos
são
em
geral
reis
Tanto nas epopeias, quanto nas tragédias,
trair”12
que
era
deuses.
existem diversos personagens que se enquadram nessas características. Pode-se citar Odisseu (rei de Ítaca), Agamenon (rei
A divindade heroica;
de Micenas), Menelau (rei de Lacedemónia
Vernant sintetiza a aparência heroica
ou Esparta), Ájax (príncipe de Salamina),
como “homens diferentes daquilo que são
Aquiles (príncipe dos Mirmídones), Heitor
hoje: maiores, mais fortes, mais belos [...] é a
(príncipe de Troia), Telêmaco (príncipe de
raça de homens agora extinta”.13 Essa
Ítaca)10,
citação nos introduz a uma nova perspectiva
entre
outros.
Que
além
do
voltada para os heróis, em que, não apenas
8 VIEIRA, 2014A, p.150 9 ROMILLY, 2001, p.88 10 De forma sucinta, busquei identificar os personagens que mais se sobressaem tanto na Odisseia, como na Ilíada, assim como traçar sua região de origem, que também equivale a pólis que os heróis têm domínio político.
11 ROMILLY, 1970, p.92 12 Idem, 2001, p.92
Corpo de Heitor sendo levado de volta a Troia – Alto relevo em mármore, detalhe de um sarcófago romano do século II, atualmente no Museu do Louvre.
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suas habilidades os diferem da população
heroica”17 constituindo um equilíbrio entre
comum14, mas também sua aparência, já que
as adorações entre esses semidivinos e as
são em sua maioria descendentes divinos,
divindades.
levando a sociedade grega a imagina-los como uma representação dos deuses olimpianos na terra. Essa representatividade imagética que os semideuses ocupavam nas pólis gregas, criava o que Vernant denominou de “estatuto heroico”15, que seria a “promoção de um mortal a um estatuto, se não divino, pelo menos próximo do divino”, 16 o que
Nesta outra citação de Vernant, 18 pode-se observar que
“O rito aciona a mesma experiência do "divino" em geral, como potência supra –humana (to kreítton). Esse divino indeterminado, em grego tà thefon ou tà daimónion, subjacente aos deuses específicos, diversifica-se em função dos desejos ou dos temores aos quais o culto deve responder.”
diversos
Dessa forma, podemos notar que apesar
santuários dedicados aos heróis, onde eram
dos rituais destinados aos heróis não se
realizados sacrifícios e festividades. A
igualarem aos prometidos aos deuses, há
importância desses mortais chegou ao
uma ascensão do caráter mortal dos
ponto de denominar cidades e patrimônios,
mesmos, onde ao serem cultuados, vão aos
em homenagem a seus grandiosos feitos.
poucos se imortalizando.
resultou
no
surgimento
de
O culto desses heróis nas cidades, em altares ou no próprio sepulcro desses mortais, ficava sobre a responsabilidade do Estado, que possuía um caráter religioso, mas o culto heroico não se igualava aos rituais destinados ao divino, exercendo esses semideuses um papel de intercessores, onde “de um lado em relação ao culto divino, obrigatório para todos e de caráter permanente, e de outro em relação aos ritos funerários, reservados [...] a instituição
Essa “heroicização”19 parte do pressuposto de que
“Os personagens heroicos cujos nomes sobrevivem e cujo culto era celebrado em seus túmulos apresentam-se muito frequente como o fruto desses encontros amorosos entre divindades e humanos dos dois sexos” 20 E dessa hierogamia21, nasce indivíduos que apesar de sua condição mortal, estão “mais próximos dos deuses, menos separados do divino do que a humanidade atual”. 22 Podemos citar como exemplo
13 VERNANT, 2006, p.47
17 Idem, p.45
14 Homens sem nenhuma herança divina, mais distante dos olimpianos do que os heróis, que possuem uma relação com uma maior proximidade a essas divindades.
18 Idem, p.23
15 VERNANT, 2006, p. 48 16 Idem
dessas
19 VERNANT, 2006, p. 49 20 Idem, p.48 21 “União sexual entre uma divindade e um indivíduo mortal” (GUERRA, 2008, p. 64), mas
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relações nas tragédias, a união Zeus e
nada se compara aos tempos de renome e
Alcmena23, que deu origem a Herácles.
glória, o que pode ser percebido no
Não era apenas no nascimento que esses semideuses se destacavam,
Um exemplo da importância do culto heroico, pode ser observado na Odisseia, Canto XI, vv. 482-486, onde Odisseu encontra com Aquiles no Hades, quando foi consultar Tirésias, a conselho de Circe, anunciando ao Pélida sua supremacia sobre os mortos, onde
“não queira embelezar a morte, pois preveria lavrar a terra de um ninguém depauperado, que quase não tem o que comer, a ser o rei de todos os defuntos cadavéricos”.25 Preferindo Aquiles dessa forma, ser um criado de um pobre agricultor, do que rei dos mortos, sendo um dos motivos para tal conclusão, a falta de informações sobre sua família, em especial seu pai26 e seu filho27. Além dos benefícios que possuem os heróis, existe suas características divinas e com o auxílio delas, surgem os feitos grandiosos, como cita Herácles:
“És o mais bem-aventurado no presente e no futuro: vivo, nós, argivos te rendíamos honores dos divinos; hoje, é enorme o teu poder restando entre os cadáveres aqui. Não te aniquile, Aquileu, a morte!” de
no Hades, quando este último responde ao Laércio que
“A morte também os coloca acima da condição humana. Em vez de descerem as trevas do Hades, eles são, graças ao divino ‘arrebatados’, transportados, alguns ainda vivos, a maioria após a morte, para um lugar especial, afastado, para a ilha dos Bem-Aventurados, onde continuam a gozar em permanente felicidade, de uma vida comparável à dos deuses”.24
Apesar
decorrer do diálogo entre Odisseu e Aquiles
possuírem
uma
posição
privilegiada em relação aos outros mortais, nunca revelando o imortal, sua potência divina ou levaria o ser humano a morte, sendo esse um dos motivos de Zeus se metamorfosear em algum animal para realizar o coito com suas pretendentes, a exemplo de Europa, que transformado em um touro, a rapta e a leva para ilha de Creta, onde a desposou. 22 VERNANT, 2006, p.48 23 Segundo o mito, a mulher mais bela da terra, o que despertou os ciúmes de Hera, que culminaram com o surgimento do ódio destinado ao fruto da relação da mortal com seus esposo, Zeus, criança que veio se chamar Héracles (HÉRACLES, p.127, vv. 1.258-1.264) 24 VERNANT, 2006, p.48
“Houve leões ou hordas de quadrúpedes centauros ou gigantes ou tifões tricorpos que eu não tenha trucidado? Dei cabo da cadela cujos crânios sempiespocavam, a hidra. Obrei muitíssimo até descer ao mundo cadavérico, pois que Eurismeu mandara resgatar o cão tricéfalo, postado no Hades”.28 Na “ordem hierárquica [...] no topo, os theoí, os deuses grandes e pequenos, que formavam a raça dos Bem-aventurados imortais”29, possuíam uma superioridade diante dos mortais, e mesmo assim em um 25 ODISSEIA, Canto XI, vv. 487-491 26 Peleu; 27 Neoptólemo; 28 HÉRACLES, p.127, vv. 1.271-1.278 29 VERNANT, 2006, p. 53
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se a Teseu, já que apesar de tantas
fundamental do divino para que o senhor do Olimpo possa ser assimilado de algum modo a uma daquelas divindades orientais que morrem e renascem.”.34
provações, ele mantem-se vivo, além de
Dessa forma, a imortalidade torna-se uma
outro fatos que o leva a negar a proteção
barreira entre o que é ser herói e o que seria
divina.30
o divino, por esse motivo os deuses
momento de fúria, Héracles renuncia os deuses, em sinal de repúdio a suas interferências na vida do mesmo, exaltando-
constantemente Héracles acredita que se “um deus, se é 31
forma
não mereceriam de oferendas, rituais ou
mortalidade.
suficiente para se auto satisfazerem. E se por acaso os “deuses são duros e eu, com eles, idem”,32 dessa forma, se os olimpianos lançarem castigos sobre Héracles por sua oposição ao Olimpo, mas rude ele seria com as divindades. Héracles:
lembrando
os
semideuses dessa sua característica, como
deus, de nada necessita”, por esse motivo festividades, pois sua imortalidade já seria o
estão
de
se
sobressair
diante
da
Esses heróis são continuamente testados, principalmente por intervenção divina, por esse motivo “as preces, os sacrifícios, as oferendas nunca são negligenciadas. A observância destas regras vale aos heróis a amizade dos deuses”,35 pois através desses sacrifícios, eles alcançam que esses seres
A
condição
e
a
dor
divinizados os protejam e os garantam atos gloriosos como vimos frequentemente nas
mortal ;
tragédias, a exemplo de Héracles, no livro Mesmo com esse processo de divinização, o
herói
persiste
comumente
passa
na
mortalidade,
e
por
momentos
de
provações, onde seu lado humano vem à tona33, tomando o luto como ponto de partida. Podemos perceber que,
As Traquínias, de Sófocles, que ao concluir os
doze
trabalhos,
não
segue
imediatamente ao leito de sua casa, mas parte para realizar “o rito em que oferece dádivas a Zeus pela conquista”,36 dessa forma, reconhecendo o importante papel desempenhado pelo deus em sua vitória. Em contraposição a dor divina que é
“A imortalidade, que traça entre homens e deuses uma fronteira rigorosa, é um traço demasiadamente
devastadora e permanece por um período
30 “Não te irrites ancião, pois eu renego, ó pai, o olímpio” (HÉRACLES, p.127. vv. 1.264s)
raro, em contraposição “a dor humana é
mais longo, apesar de ser um fato muito
31 EURÍDES, p. 61, vv.1.344 32 EURÍDES, p. 61, vv.1,243
34 VERNANT, 2006, p. 37
33 Não querendo dizer que os deuses não tenham sentimentos, mas buscar diferenciar um sofrimento divino de um mortal.
35 ROMILLY, 2001, p.91 36 SÓFOCLES, 2014, p.37
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Podemos tomar como exemplo de um luto
outros deuses seus caros filhos do meio dos duros combates e pugnas pois ao redor das muralhas de Príamo lutam muitíssimos filhos de deuses: entre estes farás vicejar a discórdia”40
divino, a morte de Sarpédon, filho de Zeus
Ao seguir o conselho de sua cônjuge, e ver
com Europa, rei dos Lícios, que foi morto
o fim de seu filho com a lança do pélida
mais frequente, mas não é evocada com tanta força”.37
pela
lança
de
38
Pátroclo .
Quando
a
encravada no peito, a divindade entra em
divindade percebeu que o destino de seu
um luto profundo onde torna a “noite
filho seria a morte, o mesmo resolveu
funesta Zeus grande estendeu sobre a
interferir,
pugna terrível para que em torno do corpo
“Pobre de mim o Destino asselou que o mais caro dos homens o meu Sarpédon tombe hoje aos golpes de Pátroclo exímio! O coração sinto agora indeciso entre dois pensamentos: levá-lo-ei para longe da pugna lugente e o coloco neste momento com vida entre o povo opulento dos Lícios ou deixarei que o vigor lhe despoje o viril Menecíada?”
do filho maior fosse a luta”,41 criando um clima de desolamento, que acompanhava seus
profundos
sentimentos.
39
Mas observando a insegurança do esposo e a escolha que estava prestes a tomar, Hera o lembrou da lei que impossibilitava a interferência divina na vida dos mortais durante
a
guerra,
o
que
poderia
desencadear a ira dos demais olimpianos, pois havia vários filhos dos mesmos em combate.
“Zeus prepotente nascido de Cronos que coisa disseste? Tens a intenção de livrar novamente da morte funesta ao lutador que se encontra fadado a morrer há já muito? Seja se o queres conquanto nós outras jamais te aprovemos. Ora outra coisa te quero dizer guarda-a bem no imo peito se resolveres enviar para casa a Sarpédon vivo não aconteça quererem também retirar
Aquiles cura Pátroclo - Detalhe de vaso em técnica de cerâmica vermelha 500 a.C. Um sentimento parecido tomou conta de Aquiles, quando o mesmo descobriu a morte de seu amante Pátroclo, a quem havia emprestado sua armadura divina (presente
37 ROMILLY, 2001, p.102 38 ILÍADA, Canto XVI, vv. 480-563
40 ILÍADA, Canto XVI, vv. 440-450
39 ILÍADA, Canto XVI, vv.433-438
41 ILÍADA, Canto XVI, vv. 556-558
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de sua mãe, a ninfa Tétis), que foi morto
acontecer em batalha, vencendo Heitor e
pelas mãos de Heitor, com o auxílio de Febo
mutilando os restos mortais do troiano.
Apolo, sendo uma forma de vingar-se da
“Ainda que no Hades escuro te encontres alegra-te Pátroclo pois vou cumprir tudo quanto afirmei que fazer haveria. Trouxe arrastado o cadáver de Héctor para aos cães atirá-lo e na fogueira sagrada pretendo imolar doze Teucros dos de mais lúcida estirpe por causa tão-só de tua morte.” 45
morte de Sarpédon42.
“Nuvem de dor envolveu a alma nobre do grande Pelida que tendo terra anegrada tomado nas mãos a derrama pela cabeça desta arte as graciosas feições afeando. De cinza escura manchado também fica o manto nectáreo. Logo na poeira se estende ocupando grande área no solo e os ondulados cabelos com ambas as mãos arrepela.”43 Não parou neste trecho o luto do herói, já estando afastado do campo de batalha desde o primeiro canto, pelo fato de Agamémnon ter tomado Briseide, prima de Heitor, para si, de quem o Pélida gostava, e logo em seguida a morte de seu primo a quem tinha grande admiração, já que havia sido criado junto a si, possuindo até o mesmo tutor, o centauro Quíron. Toda essa sequência
de
acontecimentos
ruins
favoreceram ainda mais para o desconsolo do herói,
“As mãos de Aquileu que fundos lamentos no peito agitava visto recear que ele o tenro pescoço com o ferro cortasse. Solta gemidos terríveis; ouviu-os a mãe veneranda das profundezas do mar onde ao lado do pai se encontrava. Em altos gritos prorrompe; cercaram-na logo afanosas todas as deusas nereides que o fundo do mar habitavam.” 44 Como consolo, prometeu ao cadáver de seu primo que o vingaria, o que veio
Na tragédia grega também podemos encontrar exemplos da dor heroica, que aproxima
ainda
mais
o
semideus
a
mortalidade, como modelo desse ideal, podemos citar Héracles, que sob influência da deusa Loucura, a mando de Hera, dizima toda sua família, que era composta por Mégara e seus filhos, sobrando apenas Anfítrion, seu pai terrestre, que ao chegar ao local do ocorrido, assusta-se com o que vê,
“As crias cadavéricas já são visíveis, diante do pai que é um traste adormecido, concluído o assassinato dos meninos. Em torno de se corpo, um complexo de amarras, cordas, nós cegos, que o prende ao colunário pétrio do solar” 46 Héracles ao voltar a si, encontra-se amarrado a um poste, sendo através de Anfítrion que fica a par do ocorrido, entrando em desespero o filho de Zeus.
“- Olha no chão os corpos dos meninos! - Não posso crer! O que me vem a vista? - Guerreaste uma antiguerra com teus filhos. - Guerra? Não entendi! Quem os matou?
42 ILÍADA, Canto XVI, vv. 1-100 43 ILÍADA, Canto XVIII, vv. 22-27
45 ILÍADA, Canto XXIII, vv. 19-23
44 ILÍADA, Canto XVIII, vv.33-38
46 EURÍPEDES, p.97, vv. 1.032-8
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- Tu mesmo, o arco e o nume responsável.
deprimido, chorando muito, se despede de
- O que anuncias pai? Que mal fiz eu?
sepultamento de sua família, mas seu amigo
- Enlouqueceste! Indagas teu sofrer.
a qual resgatou do Hades, acredita que o
- Fui matador também da minha esposa?
herói
- A mão de ninguém fez o que fez.
“criticarão de seu modo feminino”.50
- Uma nuvem me estreita com lamentos.
seus pais e recomenta como realizar o
deva
conter
suas
lágrimas
ou
Outro momento em que Héracles inicia
-Por isso eu lamento a tua sina.
um processo de humanização, é logo após
- Feito bacante, aniquilei meu lar?
retornar de seus doze trabalhos, mas no
- Eis o que sei: tudo que é teu se arruína”47
enredo dessa tragédia51, ele está casado com Dejanira, sua segunda esposa, que está ansiosa para revê-lo, mas a mesma acaba
Na tentativa de vingar a morte da esposa e
descobrindo que seu marido traz consigo
dos filhos, Héracles pensa em se matar para
uma concubina, denominada Iole, filha do
não conviver com esse peso nas costas,
rei Êurito, da Ecália, a qual o herói destruiu
“Fará sentido preservar a vida do matador de seres tão queridos? Arrojome do precipício oblíquo, encravo o gládio firme contra o fígado, a fim de justificar o sangue infante? Ateio fogo sobre minha própria carne, poupandome da infâmia que me resta” 48 Mas com os conselhos de seu pai e de Teseu, é convencido do contrário, onde
para
conseguir
Enfurecida
desposar
Dejanira
envia
a
princesa. um
peplo
envenenado por Licas, o arauto de Héracles, acreditando a mesma que sua encomenda seria dado de presente a outra mulher de seu esposo, o que não acontece, já que o próprio semideus veste-se com a túnica, o que o leva a sentir emortecidas dores.
ambos lhe dão dicas de como reverter a situação e seguir em frente, o que ameniza o luto que sente o herói, por fim demostrando outra característica que o aproxima da mortalidade, que seria a aceitação de sua minoridade diante de um mundo fútil, onde “não pensa bem quem sonha em ter riqueza e poderio, mas do que ter um amigo”.49 Ao decidir que irá seguir caminho ao lado
“O Zeus, onde me encontro? Que mortais ladeiam-me jazente, fustigado por inúmeras dores? Ai! Quanto sofrimento! Sinto que trincha o dente da moléstia!”52 Mas mesmo em um momento tão humano, que é no momento da morte, Héracles toma medidas dignas de um deus, que ao mesmo tempo são pautadas em princípios mortais, já que pede a Hilo, seu filho, que acelere
de Teseu, Héracles ainda desconsolado e
sua morte, arrancando-lhe a cabeça,
47 EURÍPEDES, p. 109-111, vv. 1.131-1.143
50 EURÍPEDES, p.129, vv. 1.412
48 EURÍPEDES, p.112/3, vv.1.146-1.152
51 As Traquínias, de Sófocles
49 EURÍPEDES, p.141, vv. 1.425-6
52 SÓFOCLES, p.99, vv. 983-987
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“Deixai que durma o moiramarga, deixai-me... a mim, entregue ao torpor extremo! Sinto tua mão que pesa! Onde me reclinas? Me eliminas? É o meu fim? Açodaste o que não bulia. Fisgou-me, ai!, no seu retorno. Onde vos encontrais, gregos, primazes na injustiça? Eu me empenhei em depurar por vós demasiados mares, jângal sem exceção, e adoecido no presente fogo não há, gládio tampouco, que tenha serventia. Ai! Ninguém há de tomar a iniciativa de arrancar-me a cabeça e dar fim à vida estígia? Ai!” 53 Ainda que utilize tantos clamores, nenhum dos presentes, inclusive seu filho, realizou seu desejo, dizendo Hilo que o amparava, “mas não tenho interna ou externamente condições de dar alívio à sua dor, pois Zeus
mortal, vivem com seus feitos grandiosos, buscando alcançar o renome e a glória, o que os aproximaria da imortalidade. Por essa aproximação ao divino, eles serviriam
como
intercessores
entre
a
população e as divindades, o que resultaria nas festividades e cultos heroicos. Mesmo com a construção dessa aura divinizada, os semideuses continuam persistentes nas características que os tornam mortais, como exemplo, na demonstração frequente de seus sentimentos. Artur Vítor de Araújo Santana é Graduando em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana –UEFS.
decide.”54 Ao perceber a decisão tomada pelo filho, o semideus conclui que é seu fim, e entende a profecia do oráculo. Por esse motivo ele transmite a Hilo, como quer seu funeral55, e pede-lhe que “evita derramar seu pranto. Ausente o pranto, ausente o teu lamento, se provéns de um hercúleo, age, ou pesa minha eterna maldição nos
Documentação: EURÍPIDES. Héracles; tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014A. HOMERO. Odisseia; tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2013. SÓFOCLES. As Traquínias; tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014B.
ínfernos!”56
Conclusão: Em síntese, podemos observar que os heróis eram seres divinizados, tanto em sua aparência, quanto em seu caráter. São humanos descendentes dos olimpianos, e para não serem comparados a um simples 53 SÓFOCLES, p.101, vv.1.003-1.016 54 SÓFOCLES, p.101, vv. 1.017ss 55 SÓFOCLES, p.117, vv. 1.193-1.202 56 SÓFOCLES, p. 117, vv. 1.199-1.202
Bibliografia: GUERRA, Lolita Guimarães. Entre dois mundos: ressurreição e hierogamia nas mitologias grega e judaico-cristã. Dissertação (Mestrado em História Comparada) UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, 2008. JAEGER, Werner. “Nobreza e arete”. In: Paidéia: A formação do homem grego; tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa; tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. ROMILLY, Jacqueline. Homero: Introdução aos poemas homéricos. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 89-109.
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ROMILLY, Jacqueline. A tragédia grega. São Paulo: Editora UnB, 1998, p. 8-46. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga; tradução Joana Angélica D’Avila Melo – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p. 37- 57