20 gnarus5 renato lopes do cinema pela verdade o nuevo cine latino americano

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Coluna:

O NUEVO CINE LATINO-AMERICANO E UMA ARGENTINA MEMORIOSA Por: Renato Lopes

O presente texto tem por objetivo fazer uma breve exposição do movimento cinematográfico conhecido como “Nuevo cine latino-americano”, com vistas a contextualizar uma de suas obras mais expressivas, o filme “A História Oficial” de Luiz Puenzo, 1985. Ao mesmo tempo busca traçar relações entre a memória de uma Argentina em processo de redemocratização e as memórias clandestinas que emergem nesse momento e a forma como são retratadas através da imagem cinematográfica.

O NUEVO CINE LATINO AMERICANO E SEU PAPEL NO REDEMOCRATIZAÇÃO ARGENTINA

“Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que permitam escapar à

condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes” – Paulo Emilio Salles Gomes.


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A

o começar a esboçar um pouco sobre a

criativo, nos 50/60 e anos 80, estava presente em

trajetória do cinema latino americano, o

seu

crítico e historiador Paulo Emilio Salles

cinematográfico que geraria uma série de rupturas:

emite este diagnóstico, tanto estrutural quanto

a busca por um cinema que retratasse os problemas

estético, que acaba por expressar também a tônica

do terceiro mundo, a busca de alternativas por um

dominante que moldaria o nosso cinema em fins

desenvolvimento que gerasse menos exclusão e

dos anos 50 e início dos 60 e que posteriormente

mais empoderamento as classes de poucos

seria retomada no imediato pós-ditaduras, na

recursos, um cinema de cunho político social que

redemocratização: um cinema de poucos recursos

fosse militante, que buscasse a identificação entre

materiais, porém de grande inventividade estética

seu público e ao que ele assistia, gerando uma

(linguagem utilizada no direcionamento da

conscientização ao passo que aumentaria a

mensagem) e onde a forma não prevaleceria sobre

participação de popular de grupos historicamente

o conteúdo, mas que buscar-se-ia uma relação

excluídos2.

bojo

essa

discussão

externa

ao

fato

dialética entre ambos. A

O

essência desse Nuevo

subdesenvolvimento,

Cine latino-americano, do

próprio

dado

Cinema

em

aceita passivamente, um novo caminho começa a

ruptura provocada por

se desenhar, onde a falta

fatores extrínsecos ao

de recursos, longe de ser

elemento

uma deficiência técnica,

cinematográfico, de um que

aparecem

seria

novas

tributário as discussões

da

ruptura

e

da

elaboração

ambos

os

contextos

de

sua

emergência

e

1

de

da

uma

linguagem estética que prima por dialogar com

radicalização política.1 Em

formas

a

vez intervém na própria

continente vivia. Seria a artística

ligados

expressão que por sua

políticas-sociais que o vertente

latino

americana, deixa de ser

uma continuidade. Uma

cinema

a

cinematografia

uma

ruptura, mas do que em

próprio

que

marcaria

Novo brasileiro, estava calcada

estrutural

a sociedade da qual emana

(Paranaguá).

boom

PARANAGUÁ, Paulo Antônio. O Cinema na América Latina: Longe de Deus e perto de Hollywood. Coleção Universidade Livre. São Paulo,L&PM. 1985 pg.66

MENDES, A.R.S O Nuevo Cine Latino-americano e a filmografia sobre os Regimes Civil-militares. In: Revista 2

Intellectus / Ano 05 Vol II –2006 ISSN 1676 –7640


G N A R U S | 177 Como nos índica Mendes:

sócio-política, não cabe em uma estrutura narrativa

“Maquiagem e iluminação, utilizados para realçar e padronizar o belo, não deveriam estar presentes. A ausência desta beleza seria o retrato de uma América Latina que se buscava distante de Hollywood. Fernando Birri afirmava que deveria se procurar “um desaliño provocado” com o qual concordava Nelson Pereira dos Santos.5 Sinalizando para as características do cinema na década de 1950, Avellar indica que a perspectiva não era a de representar o mundo, mas sim de reapresentá-lo”3 Muitas são as formas de proclamar este novo cinema “Uma estética da fome, uma estética da violência” segundo Glauber Rocha. “Um terceiro cinema, militante, oposto ao cinema alienado, comercial, dominante, bem como o cinema reformista, colonizado, de autor”, para os argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino. “Um cinema imperfeito”, para o cubano Julio Garcia Espinosa. “Um cinema coletivo, junto ao povo”, defende o boliviano Jorge Sanjinés. Em comum a todas essas proclamações podemos perceber que acaba recaindo sobre o cineasta, e ele aceita de muito bom grado, seu papel de produzir ideologias,

fomentar

discussões,

gerar

representações da realidade que os permeavam. Era um cinema que ao mesmo tempo que propunha uma linguagem, um conteúdo a ser discutido, negava veementemente seu enquadramento em qualquer escala de produção e reprodução a nível industrial ou mercadológico, busca se desvencilhar de qualquer formula pré fabricada e maniqueísta, seu intuito e abarcar toda a realidade que não é contemplada

pelos

consagrados

esquemas

narrativos do cinema maisntream hollywoodiano. Assim o nuevo cine latino-americano torna-se a afirmação de que a verdade, fruto da discussão 3

Ibdem.

4

Idem nota 02

arraigada em conceitos pré-concebidos. O que vem tornar o nuevo cine latino americano ainda mais revolucionário é sua ânsia de fincar a sua linguagem em uma realidade altamente distinta daquela retratada e vendida pelo cinema estadunidense, e que tanto sufocava a produção local.

O Nuevo Cine na Redemocratização Argentina Evidentemente que um cinema com esta perspectiva revolucionária seria prontamente calado quando da consumação dos golpes militares pelo cone sul entre metade dos anos 60 e 70. Afinal dada sua dimensão política e revolucionária seria uma arma apontada contra os ditadores que governavam impunemente. Cineastas e roteiristas que estavam na vanguarda dos movimentos cinematográficos foram silenciados ou preferiram o exílio. Mas apesar de todo o sufocamento a qual fora submetido o nuevo cine, no período de derrocada dos regimes militares ele volta a emergir, com sua temática político-social, cujo foco agora erma justamente os regimes civil-militares que se encerravam no cone sul. Embora não fosse necessariamente o mesmo cinema, nele estava contido a semente daquele mesmo movimento dos anos 60/70, mesmo porque muitos de seus principais realizadores estavam de volta a cena.4 Esta nova fase do nuevo cine, por assim dizer, vem aliar-se as memórias populares referentes aos períodos ditatoriais e tentam substituir a memória oficial propagada pelo regime, por uma memória que ficou clandestina, silenciada, dos moviments populares que resistiram as ditaduras. Havia-se um


G N A R U S | 178 comprometimento em buscar uma verdade que

instrumento criador de representações históricas, e

teria ficado ocultada, tinha-se novamente um

agente ativo do processo de construção da

cinema militante, de reflexão sobre a realidade

memória. Para isso devemos sempre considerar o

latino americana.

contexto em que o filme foi produzido, quem o

Vale ressaltar que nesse momento, mais do que convergências, ocorrem rupturas no seio do movimento dicotomização

cinematográfico. presente

O

grau

de

anteriormente

nas

películas do nuevo cine, agora dá lugar a um processo de vinculações institucionais que refletem os interesses de determinados grupos, nesse caso os governos democráticos que assumem o poder durante o processo de redemocratização. O cinema passa a ser instrumentalizados por esses grupos, que irão que irão especificar o tipo de discurso

dirigiu, roteirizou, seu tema, técnicas de produção ou seu misce en scene7, grupos sociais que concorrem para sua produção, que políticas culturais regem a sociedade no momento de sua produção e lançamento para consumo. A análise de todos esses elementos constitutivos colabora para que o filme seja utilizado como suporte aos recursos didáticos, indo além do simples uso da imagem como representação, e sim entendo os elementos que compõem aquela representação e qual seu sentido8

mediador das relações presente/passado. O cinema

No caso do cinema argentino e sua relação

tem esse laço concreto com a realidade dos atores

estabelece-se no bojo da redemocratização

históricos, sendo também um agente histórico e o

ocorrida em 1983, onde produziram-se diversos

filme um mediador dessas relações e discursos. Mas

filme

não deve-se deixar de indicar que o filme não traz

documentários ou ficções (esta última categoria

somente as motivações ideológicas de seus

produzida mais maciçamente), abordando diversos

realizadores, há questões tangentes a sua

aspectos, desde a questão das crianças arrancadas

produção, que ficam evidente quando filme é

dos pais perseguidos políticos, os desaparecidos,

lançado em seu circuito de exibição e o espectador,

torturas,

a despeito de qualquer ortodoxia imposta pelos

abordagens diretas ou mais alegóricas, exemplos

seus realizadores, tem a liberdade de se apropriar

não faltam, o cinema Argentino é fecundo em tratar

dos temas ali levantado.5 Supera-se a idéia de que

a ditadura nos mais diversos âmbitos, nas mais

o espectador é um agente passivo, pois a forma

diversas formas. Para além do tema ditadura há

como este irá receber a mensagem exerce

temas como a crise econômica do país, os males da

influência tamanha a partir da diversidade de

sociedade

sentidos criados pelos que assistem a obra.6

relacionamentos, cidades, amores, amizades, tudo

Não devemos perder o foco de que o filme é um documento histórico na medida em que é um

5

NAPOLITANO, Marcos. História e cinema/ Maria Helena Capelato [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007; - USP: História social. Série Coletâneas). Págs. 65 e 66. 6Idem nota 02. 7Movimento e arranjo dos elementos no quadro ou na tomada de uma cena a fim de observar como se podia gerar

sobre

o

crimes

ditadura

não

Argentina,

resolvidos,

argentina

seja

sejam

com

contemporânea,

isso ressaltando tendo o país, suas particularidades e história como pano de fundo.

significados, construindo relações entre as tomadas através da montagem. 8 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez. 2008. Páginas 373 e 374.


G N A R U S | 179 No contexto da redemocratização argentina,

período de redemocratização, em torno de um

toda essa nova vertente, tributária das origens do

esforço para revolver as memórias em busca

nuevo cine, vem agregar-se a uma prática de um

daquelas que não estavam minadas pela história

discurso único, que visa garantir uma perspectiva

oficial.

minimalista de democracia, capaz de garantir a

enquadramento das memórias através do cinema.

manutenção de uma classe dirigente no poder9. Na

Era

necessário

realizar

um

novo

Michael Pollack nos diz sobre o cinema usado

redemocratização argentina, esse discurso ilustra o

como suporte ao enquadramento da memória: “O

embate

projetos

filme é o melhor suporte para fazê-lo, donde seu

democráticos: uma democracia formal de caráter

papel crescente na formação e reorganização,

neoliberal ou minimalista e um projeto mais amplo

portanto no enquadramento da memória.Ele se

que

havia

entre

dois

de democracia participativa10.

dirige não apenas as capacidades cognitivas mas

Já nesse momento argentino, evidencia-se um dos

capta as emoções”11. O trabalho de enquadramento

pontos de ruptura entre a estética revolucionária

da memória se constitui em um trabalho de

do nuevo cine, oriunda dos anos 50/60, e as novas

associação entre dados históricos e a memória

propostas que surgem: enquanto naqueles anos

como “operação coletiva dos acontecimentos e das

privilegiava-se o documentário como mediador da

interpretações do passado”. De modo que seja

realidade a partir do cinema, nessa nova etapa o

estruturado um limite, plausível através das

cinema de ficção ganha de vez seu espaço, e passa

justificativas baseadas em metodologias de

a ser a produção preponderante. Posteriormente, o

pesquisa

que era um antagonismo, ficção e documentário,

arbitrariedades e por conseguinte, injustiças

passam a serem vistos como obras complementares

históricas norteiem o processo de reconstrução do

na compreensão da realidade. As novas tecnologias

passado.

que surgem, capazes de facilitar a produção e a montagem de pequenas e hábeis equipes de filmagem parecem minar a ideia de economicidade produtiva e precariedade de recursos, tem-se início o réquiem da estética revolucionária, que vê-se dominada

pela

aceitação

das

inovações

tecnológicas globalizantes do período (Mendes)

e

análise,

evitando

assim

que

E é justamente sobre uma memória enquadrada e o papel do cinema em sua mediação, seja didática ou metodológica, que vou procurar ilustra a relação cinema/memória, através da análise de um dos filmes mais expressivos da retomada do Nuevo Cine Latino-Americano. Trata-se do filme “A História Oficial” de Luiz, Puenzo, 1985. Ele será nosso

Para além da discussão dos rumos teóricos que o

timoneiro no entendimento das novas relações

nuevo cine estava tomando, havia a discussão em

institucionais, a partir do rearranjo das memórias,

torno do papel do cinema naquele momento. Como

que surgem na Argentina redemocratizada.

já dito anteriormente o cinema argentino estava agregando as memórias populares e sendo instrumentalizado pelos grupos dirigentes do

9

BORON, Atilio A. Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1994. Página 07. 10 Idem nota 02.

11POLLACK,

Michel. POLLACK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. In:Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, Pg. 11


G N A R U S | 180 A NÃO OFICIALIDADE DA HISTÓRIA OFICIAL

questionamentos, tudo ocupa o seu devido lugar, nenhuma porta se abre sem que a outra esteja

En el pais del no me acuerdo Doy tres pasitos y me pierdo. Un paasito para alli, no recuerdo si lo di. Un pasito para alla !Ay, que miedo que me da!12

devidamente fechada. Podemos dizer que Alicia, ao início da narrativa, encontra-se em um estado de “plenitude”, aliás não só ela como tudo a sua volta. Tudo está reconhecidamente normal. Todorov reconhece este estado como o ponto inicial elementar de

Ao início de “A História Oficial” (Luiz Puenzo,

qualquer narrativa. Porém para que a história se

1985), a professora Alicia Barnet, interpretada por

desenvolva serão necessárias oposições, capazes de

Norma Aleandro, ministra aulas de História da

desencadear uma série de significados que serão

Argentina – mais precisamente história política e

entrelaçados ao longo do filme. Essa quebra da

institucional a partir de 1810 – em um colégio de

plenitude é um processo marcado ao longo da

ensino Médio. Após as aulas, retorna para sua casa,

narrativa. Para se opor a esse estado de plenitude,

onde

sempre

manifesta-se

uma

reencontra sua filha

força

adotiva Gaby e ao

desestabilizadora,

final do dia também

que vem em sentido

reencontra

contrário,

marido

seu

com

o

Roberto.

intuito de quebrar a

Alicia parece ter um

harmonia inicial. A

bom casamento e

partir

uma vida normal.

momento

duas

Alicia

situações

podem

ser

transparece uma

afetuosa esposa

desse

mãe

ocorrer: a plenitude

uma

é restabelecida; ou

atenciosa,

se reconhece que

e

contrastando visivelmente

não se pode fazer com

nada para deter ou

austeridade

mudar o efeito da

como professora. No

força que gerou a

sua mundo

de

Alicia

percebemos

que

ruptura13.É característico

do

tudo é bem dividido,

“Nuevo Cine Latino

não há espaço para

Americano”

dúvidas

com finais abertos,

12

ou

En El País Del No nome acuerdo – composição Maria Elena Walsh

13

filmes

Tzvetan Todorov APAUD. TURNER, Graeme. O cinema como prática social – São Paulo. Summus, 1997 Pág. 80.


G N A R U S | 181 que são representativos dessa impossibilidade de se

alunos “a história é a memória dos povos”. Esse

alcançar um novo equilíbrio ao fim da trama. O que

elemento não surge de forma casual na narrativa,

servia para acentuar ainda mais a oposição entre a

ao contrário, ele irá representar uma dicotomia

estética marginal de cunho político-social que

permanente em toda narrativa. Irá marcar a relação

Nuevo Cine fazia em relação à hegemonia da

entre memória coletiva cerceada e libada pelas

estética hollywoodiana que valorizava o belo em

ações e práticas terroristas dos

detrimento da imperfeição da realidade, com finais

ditatoriais, e a edificação de uma memória oficial,

felizes, maniqueístas e bem resolvidos.

que irá suplantar essa memória coletiva e os efeitos

Ao fim de “A História...” veremos bem que o conflito pode estar ali, plantado desde o início,

interesses

da repressão e será também sua justificativa plena e irrefutável.

latente, aguardando o momento de se realizar.

O terceiro passo é o reencontro de Alicia com suas

Assim também são as memórias, as lembranças e as

antigas colegas do colegial. Nesse momento surge

outras faces da História. O drama de Alice começou

uma outra personagem chave na narrativa, e que

a ser desencadeado em quatro passos bem

certa forma será a responsável por transpor os

identificáveis.

conflitos e dilemas da sociedade argentina daquele momento para a vida de Alicia, a personagem em

OS 4 PASSOS

questão é sua amiga Anna, que acaba de voltar do exílio. Anna revela o porquê de seu afastamento:

O primeiro dado de realidade que nos é

Pedro, seu companheiro, havia sido condenado

apresentado é o ano em que transcorre a história do

pelo regime, Anna acabou sendo presa e torturada

filme: 1983. Essa marcação temporal nos ajudará as

por 36 dias por não revelar seu paradeiro. Alicia

mudanças pelas quais a personagem principal irá

nesse momento demonstra total alienação quanto

passar ao longo da trama. O ano em questão marca

as práticas políticas e de repressão promovidas pela

o fim do período ditatorial da Junta Militar, iniciado

Junta Militar que governou o país a bem pouco

em 24 março de 1976, autodenominado “Processo

tempo, e isso fica evidente quando esta indaga o

de Reorganização Nacional”. Um estado de

porquê de Anna não ter denunciado o que ocorreu.

exceção que durou quase 8 anos, onde qualquer

Temos duas vivências simultâneas tipificadas pelo

sinal de dissidência ou oposição era reprimido

regime: uma pessoa totalmente alienada em

violentamente, através de práticas coercitivas que

relação a repressão do regime militar, e outra que

iam do sequestro, passando por torturas, chegando

foi o algo e sofreu as consequências dessa

a assassinatos com ocultação de cadáveres. O

perseguição, Anna. A situação de ambas marca essa

período ficou conhecido como “Guerra Suja”. Suas

tônica dominante da sociedade argentina do pós

ações extrapolaram as fronteiras constitucionais

ditadura e que ganhou mais força e alcance através

visando silenciar toda e qualquer oposição e

do processo de rememoração oriunda dos relatos

espalhar o terror no conjunto da sociedade.

orais de sobreviventes e perseguidos políticos.

O segundo dado que nos é fornecido se apresenta

No entanto Anna, mais do que marcar posições,

durante a aula de Alicia, nos primeiros minutos do

traz aquela que será a informação chave do tema do

filme. Já nesse momento Alicia afirma aos seus

filme e o quarto ponto que irá configurar a retirada


G N A R U S | 182 de Alicia de sua zona de conforto: quando Anna

adotará um outro estado para chamar de

relata que muitas gestantes eram separadas de seus

plenitude?

filhos logo após darem a luz, que por sua vez, essas crianças eram dadas ou vendidas a colaboradores do regime ou eram apropriadas por militares que

UM PAÍS MEMORIOSO

em muitas vezes eram algozes de seus pais

Ao colocarmos em perspectiva as informações dos

biológicos. Nesse instante o estado de inquietação

quatro passos que levaram Alicia a rever seus

de Alicia aumenta e a realidade na qual está inscrita

conceitos e sua vida, é possível traçar um panorama

começa a se fragmentar a partir das informações

geral do que constituiu o processo de oficialização

que recebe. As contradições de sua realidade

de uma história e uma memória, a partir das ações

passam a ficar evidentes, os embates em sala de

que

aula sobre quem escreve a história, os assassinos

desaparecimento

que a falseiam e promovem o esquecimento, a

começarmos pela própria denominação que a Junta

demissão

literatura

Militar se outorgou “Processo de Reorganização

considerado agitador (com quem Alicia durante um

Nacional”, denotando a necessidade desses

diálogo abre um pouco mais sua mente para a

dirigentes de “associar uma profunda mudança

realidade em volta), até seu primeiro contato com

política a uma revisão (auto)crítica do passado”.14

as Abuelas da Plaza de Mayo. Alicia vê seu chão se

Essa suposta revisão crítica, foi a justificativa para

desfazer e passa a tatear em busca de respostas.

desencadear uma repressão institucionalizada por

de

um

professor

de

Resolve pedir a ajuda de Anna, busca o médico que lhe entregou Gaby recém nascida no hospital, tenta buscar paz no confessionário da Igreja, mas

visam

o

esquecimento de

outras

e

o

memórias.

total Ao

um estado terrorista, cujo inimigo se encarnava nas diversas tendências políticas da história recente da argentina: o populismo peronista e o comunismo.

encontra um padre distante e dissimulador, uma

A forma como Alicia recebe informações sobre o

clara referência da cumplicidade espúria entre a

passado recente da Argentina, da possibilidade de

Junta Militar e a Igreja Católica. Quando resolve

sua filha ter sido apropriada, dos inúmeros casos

indagar Roberto sobre a possibilidade de sua filha

semelhantes ao seu, do seu primeiro contato com

ser um bebe roubado, Roberto acusa Anna de estar

Abuelas que buscam informações da mesma forma

colocando ideias distorcidas na cabeça de Alicia,

que ela, todo o contato com essas memórias ocorre

porque “Anna era casada com um subversivo”.

a margem das vias oficiais, informações que saiam

Alicia, assim como enunciado na ideia de Todorov, foi retirada de sua zona de conforto, e agora se encontra em um momento de grande tensão. Ao fim da história Alicia se encontrará em outro ponto da narrativa, em outro estado mental, mas conseguirá restabelecer sua paz inicial? Ou

14

Idem nota 11. Pág.5

da clandestinidade a qual haviam sido confinadas. Essas informações chegam não só Alicia, mas ao conjunto da sociedade argentina, através de redes de contato

que persistiram

aos

anos

de

perseguição, onde pessoas foram assassinadas e privadas de sua identidade. Suas memórias e histórias passaram tanto tempo na clandestinidade,


G N A R U S | 183

“esperando a hora da verdade e da redistribuição

constantes dessa perseguição, esta última ganhou

das cartas políticas ideológicas”. Ao passo que este

status de matriz teórica, campo de conhecimento

exemplo ilustra de forma contumaz que qualquer

essencial para ser o sustentáculo crucial de

revisão “crítica” ou tentativa de silenciamento de

qualquer força política, dada a importância que

memórias de grupos minoritários ou hegemônicos

ocupa no imaginário dos indivíduos e das

não estão sob total controle dos grupos que detém

coletividades. E quem a influência e molda,

o poder político. Os dominantes jamais terão total

exercerá controle políticos sobre os grupos no

controle até onde levarão suas reivindicações que

conjunto da nação.

se formam “ao mesmo tempo em que caem os tabus

conservados pela memória oficial anterior”15

O personagem Roberto, marido de Alicia, vem representar a burguesia argentina que mais do que

Ao longo do filme (e mais marcadamente em seu

fechar os olhos e ouvidos para o momento político

encerramento) ouvimos a cantiga “En El País Del No

do país, foram coniventes com regime e ao vê-lo se

no me acuerdo”, composta por Maria Elena Walsh.

enfraquecendo, começaram a temer por sua vida e

Uma clara referência ao “no me acuerdo” imposto

seus negócios favorecidos pelo regime. Afinal o

pela Junta Militar, em seu processo de exercer

filme faz uma vinculação entre empresariado-

controle sobre a memória argentina. Os militares

militares-estrangeiros-Igreja,

também tentaram fazer o seu “no me acuerdo”

esquema de corrupção encabeçado por um

particular, onde se isentavam de qualquer

General e seu sócio estrangeiro. Não á uma

responsabilidade

e

exploração mais aprofundada dessa dicotomia

desaparecimentos, pois estavam em uma guerra e

durante, que redunda em colocar as mazelas da

os fins, segundo eles, seriam justificáveis. Um pouco

sociedade argentina unicamente na corrupção

menos explicito é a referência que a cantiga faz as

promovida pelos militares. Sendo a corrupção

diversas experiências do século XX, capitaneada

sintomática em quaisquer regimes, democracias ou

pelos regimes totalitários que deram a memória um

ditaduras, com o diferencial ser mais acobertada e

estatuto inédito, ao passo que a perseguiam de

não investigada em regimes ditatoriais17.

sobre

as

mortes

modo a suprimi-la. Com o advento das tecnologias de informação ao longo do século XX e a necessidade de controla-los, a apropriação das memórias chegou a níveis quase orwellianos. Atingindo sucesso de controle da informação de diversas formas, ocorreu eliminação, falseamento, manipulação das memórias, eram capazes de ocupar o lugar da realidade, enquanto outras formas de difusão da verdade eram perseguidas16.

em

um

mega

O jogo de oposições citados anteriormente buscam ilustrar a própria diferença entre Alicia e Roberto. A professora, mesmo com sentimentos contraditórios, tem o desejo de saber quem são os pais verdadeiros de Gaby, mas ao mesmo tempo tem medo de perder sua filha, persiste na busca pelo esclarecimento, pela verdade. De outro lado, Enquanto o marido busca ensandecidamente ocultar qualquer traço da verdade sobre a origem

A história e a memória passam a ser alvos 15.

Ibdem

16Tzvetan

Todorov APAUD. PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do Esquecimento na História. Letras nº 22 – Literatura e Autoritarismo. Pag.85

17MENDES,

R.A.S. Cinema e memória sobre os regimes civilmilitares do Cone Sul. Revista do Clube Militar – edição especial. Rio de Janeiro, março/abril de 2004. Nº 407. Pág.10


G N A R U S | 184 de Gaby e suas relações escusas como o regime

justificativa ao golpe de 1976, “guerra contra a

militar. No bojo deste choque de visões, Alicia

subversão”, já não tinha mais a mesma validade e

passa a se dar conta da real situação do país, passa

um novo argumento capaz de justificar a barbárie

a rever a “história oficial”. Alicia começa a

que estava em marcha: um mal para combater outro

acompanhar

mal maior, ou como ficou conhecido a “teoria dos

desaparecidos,

noticiais as

nos

jornais

manifestações

nas

sobre ruas.

dois demônios”, muito questionada a posteriori19.

Intimamente começa o questionamento da professora acerca de seu lar, de seu trabalho, além do choque de suas memórias particulares no tocante a como Gaby chegou a seus braços, pois segundo o marido Gaby havia sido abandonada pelos pais. Mas depois de sua conversa com Anna, Alicia acaba por entrar em um caminho sem volta, onde não é mais viável esquecer, ou não pensar sobre o passado pois “ele continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento em que menos se espera18.

Nesse vazio, diante dessa instabilidade e com a capacidade de atingir um grande público o cinema se faz a via necessária para se firmar com características de cunho político e visando a intervenção nas formas de se moldar a memória. Nesse sentido o filme toma parte nesse esforço de construção da memória, devido a fatores tais como: a escolha do período, final da ditadura e transição democrática; o tema, desaparecidos políticos. O filme fora lançado em 1985, com a memória dos acontecimentos recentes ainda muito viva e com muitas das situações abordadas no filme ainda se desenrolando. Esse tempo e esse lugar, onde se

O LUGAR DA MEMÓRIA NA IMAGEM E NA HISTÓRIA NÃO OFICIAL

constrói a memória, nesse caso através de imagens, clamam por colocar a memória em um lugar e “é

No ano em que transcorre a história do filme, o

este vai e vem que os constitui, momentos de

ano de 1983, a sociedade argentina ainda tateia no

história arrancados do movimento da história, mas

escuro e nos escombros do terrorismo de Estado

que lhe são devolvidos. Não mais inteiramente a

praticado pela junta militar. De modo que ao fim do

morte, mas como conchas na praia quando o mar se

regime a organização popular encontrava-se

retira da memória viva”20

combalida, sem capacidade para erigir uma contra argumentação

sistemática

e

ampla,

estava

calcando-se nos relatos e denúncias orais dos que sobreviveram. Os mesmos interesses ditatoriais coexistiram com as aspirações democráticas durante e após o período de transição democrática. O discurso anterior que serviu de pretensa

18

SARLO, Beatriz. O tempo UFMG/Companhia das Letras. Pg.9

passado.

Editora

19 GOMES, Salatiel Ribeiro. Cinema e memória: alegorias

de uma argentina memoriosa. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho 2011. Página. 2

Assim o filme insere-se em um âmbito da história recente

da

Argentina

onde

as

operações

cinematográficas além de formas de construção das memórias sobre a última ditadura também buscam, adquirir importância na atuação dos processos de reparação histórica. As representações fílmicas, quando confrontadas com outras fontes, alimentam

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares de memória. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC. São Paulo, SP – Brasil, pg.13 20


G N A R U S | 185 os debates e as mobilizações sociais que existem na

uma alienada nesse sentido, não podendo ser

sociedade e que clamam por justiça, punição aos

responsabilizada pelo crime de apropriação que

torturadores (mandantes e executores) e a

envolve Gaby.

restituição dos filhos sequestrados para suas famílias de origem21.

Ainda é possível visualizar na obra de Puenzo teses sobra a memória e a lembrança afetadas pela

Através do tema que aborda, o momento que

fluidez do tempo e sobre a própria história.

retrata e o contexto de grandes transformações da

Apreende-se que a emergência das memórias, seja

Argentina memoriosa do pós-ditadura, “A História

aquelas correntes afetadas ou as memórias que

Oficial”

a

ficaram clandestinas, sofrem os efeitos da

compreender o partido de qual memória está

aceleração do tempo, tornaram-se um tema

tomando. Como lugar de memória o filme é

“espetacularmente

investido de um aspecto simbólico, que o faz

memórias não só acerca de crimes cometidos, mas

ocupar espaço na imaginação de quem assiste.

promove-se a recuperação de memórias no âmbito

Simbólico “por definição visto que caracteriza um

cultural, construção de identidades perdidas e

acontecimento ou uma experiência vividos por um

privadas do conflito de versões e leituras do

pequeno número, uma maioria que deles não

passado. Ou nas palavras de Beatriz Sarlo “o

participou”22.

presente ameaçado pelo desgaste da aceleração,

assume

e

ajuda

o

espectador

social”.

Contrapõem-se

converte-se, enquanto transcorre em matéria de memória”23. Trabalhar as memórias faz parte de

CONCLUSÕES

uma operação que, seja pelo silêncio ao qual foram

O drama familiar de Alice é o timoneiro eleito por

submetidas ou pela ação da velocidade frenética do

Puenzo para estabelecer uma empatia com o

tempo, evita-se que se criem vazios sobre o

espectador, pois justamente retrata o drama que

passado.

muitas

famílias

argentinas

viviam

naquele

momento. É nesse ponto que o simbólico e a posição pela escolha da memória a ser construída se agudiza para introjetar na imaginação do público, através carga simbólica presente na película, o despertar de consciência da personagem principal, que era também o de muitos cidadãos argentinos naquele momento. Também é a forma encontrada para colocar Alicia tão vitima daqueles acontecimentos quanto outras milhares de mães e avós, sem necessariamente um julgamento moral, pois o filme se preocupa em pontuar Alicia como

Já dentro da perspectiva histórica “A História

Oficial”, interpõe memória e história no tocante ao afloramento da “verdade”. Em Mendes vemos essa perspectiva “Esta verdade, por sua vez tem origem em espaços não controlados pelas instâncias de poder: a família, a imprensa, as lembranças individuais. O diretor/roteirista propõe, neste sentido, uma transferência da verdade para as mãos das vítimas.24 Gostaria de encerrar dizendo que embora “A

História Oficial” não possa ser pródiga em levantar problematizações ou até mesmo relativizações no

21

Idem nota 18 nota 19. Pg. 22

22Idem

23

SARLO, Beatriz. O tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura – Rio de Janeiro: José Olympo, 2005. Pg.96. 24 Idem nota idem nota 16. Pág.12


G N A R U S | 186 transcorrer de sua exibição, o partido que o filme toma em relação a qual memória está defendendo, nos ajuda a situa-lo bem em um contexto especifico e abre a possibilidade para que o espectador possa buscar as entrelinhas daquilo que o filme apensas sugere ou induz. O filme envelheceu bem ao julgamento do tempo, pois mesmo com os seus “poréns” ainda é forte o suficiente, dado o contexto em que foi feito, para ser referencial nas discussões acerca do papel da memória na elaboração do relato histórico. Renato Lopes graduando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina e é agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema, realizado pela MPC&Associados, que discute através de documentários as ditaduras no cone sul.

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In: Revista Intellectus / Ano 05 Vol II –2006 ISSN 1676 –7640. NAPOLITANO, Marcos. História e cinema/ Maria Helena Capelato [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007; - USP: História social. Série Coletâneas). NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares de memória. Projeto História: Revista do Programa de Estudos PósGraduados em História e do Departamento de História da PUC. São Paulo, SP – Brasil.

PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do Esquecimento na História. Letras nº 22 – Literatura e Autoritarismo. PARANAGUÁ, Paulo Antônio. O Cinema na

América Latina: Longe de Deus e perto de Hollywood. Coleção Universidade Livre. São

Paulo,L&PM. SARLO, Beatriz. O tempo passado. Editora UFMG/Companhia das Letras. SARLO, Beatriz. O tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura – Rio de Janeiro: José Olympo, 2005.


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