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Coluna:
O ETERNAUTA Por: Renato Lopes
“O verdadeiro herói de O Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano. Isso reflete, embora sem premeditação, meu sentimento íntimo, o único herói válido é o herói “em grupo”, nunca o herói individual, o herói solitário” – do prefácio de Héctor G. Oesterheld.
B
uenos Aires, Argentina, 1957. Um autor de
homem. Passado o susto, este homem se apresenta
histórias em quadrinhos chamado German,
como “O Eternauta”, um viajante multidimensional
está sem seu escritório trabalhando. Já é
e temporal. A partir daí ele começa a narrar suas
tarde da noite, quando inesperadamente começa a
desventuras que o levarem até aquele momento.
se materializar na cadeira vazia diante dele um
Um náufrago perdido no espaço e tempo. Em seu
G N A R U S | 171 rica em detalhes, expressões e dinamicidade, quase um plano cinematográfico. Uma trama repleta de revira voltas, com importantes reflexões e com uma ação
extremamente crível. Um dos grandes
trunfos é o próprio cenário da história: Buenos Aires. Todas as ruas, avenidas, praças, rios e outros lugares que aparecem na trama são reais e colaboram para o desenvolvimento da história. Num dos pontos altos da trama ocorre uma batalha épica no estádio do River Plate. relato somos levados a um futuro não muito distante, na mesma Argentina, em 1963, quando uma nevasca mortal assola o país e uma ameaça se avizinha. E o mundo nunca mais seria o mesmo. Sem sombra de dúvidas uma das dez maiores histórias em quadrinhos já escritas e a melhor história em quadrinhos da história argentina, (junto com a Mafalda, de Quino) "O Eternauta" de Hector German Oesterheld, soberbamente desenhada por Francisco Solano Lopes. Publicado entre setembro 1957 e setembro 1959 na “Hora Cero” Suplemento Semanal, contando com a arte primordial de Solano Lopes. Tratava-se de uma releitura da história de Robinson Crusoé, mas dessa vez baseada no poder da coletividade sobre a individualidade. Em vez do mar o que cercava agora era a morte. Em vez do estar só numa ilha, agora era um homem com família, amigos e uma nação. Conta-se que o roteiro foi elaborado sem planejamentos prévios, sendo construído basicamente a cada semana, da forma mais orgânica possível. Oesterheld tinha um total domínio da narrativa, conseguindo manter o fôlego e o ritmo da história ao longo de suas 360 páginas, uma história densa e que cada quadrinho é uma pequena obra de arte,
Há um sentido de urgência na trama, isolados do restante do mundo por uma nevasca, que não é natural, e uma invasão alienígena, a sobrevivência dos personagens reside unicamente na sua capacidade de se relacionarem e confiarem uns nos outros. Cada personagem a sua maneira colabora para o desenrolar da trama. Os personagens são Juan Salvo (O Eternauta), sua esposa e filhas, Elena e Martita, Favalli, Herbert, Polski e Franco. Mas até mesmo os coadjuvantes mais provisórios dão sua contribuição para o andamento da trama. Que a cada página, a cada quadrinho, esconde uma surpresa, nunca gratuita e nuca mal elaborada. Numa pesquisa rápida percebe-se que a trama de “O Eternauta” não encontra paralelos em nenhum outro país, nesse mesmo período, seja pela sua forma, seu conteúdo ou sua mensagem (vale lembrar que nessa época nos EUA, um dos maiores produtores de quadrinhos no mundo, vigorava o temido CCA - Comic Code Authority, órgão responsável por censurar as obras). A obra faz as vezes de uma legítima ficção cientifica, com elementos amplamente calcados na realidade, não se limitando a ser somente uma distopia com elementos futurísticos, muito pelo contrário. A narrativa de Oesterheld dialoga mais com a realidade do período (a ameaça da destruição
G N A R U S | 172 mútua de uma guerra atômica entre duas
alienígenas), ele nunca se desloca da realidade, seja
superpotências, o terceiro mundismo, a América
física, moral ou psicológica.
Latina no cenário político mundial naquele momento) e como essas visões concorrem para a
A arte de Solano Lopes é epidérmica, detalhista, dinâmica
montagem da trama.
e
como
já
disse
mais
acima,
cinematográfica. A cada cena de ação é como se Aliás, o autor deixa muito clara sua posição
você pudesse sentir a pulsação e a respiração
política (ele se juntou aos Montoneros, juntamente
ofegante das personagens. A cada momento de
com suas filhas e genros), e este viés político da
suspense (e são muitos, executados com maestria),
trama só a enriquece, nunca resultando em algo
é como se o leitor tremesse e hesitasse junta com as
panfletário ou em vulgaridades ideológicas vazias.
personagens. A cada pausa é um suspiro, mas
Em um contexto de polarizações diversas, o autor
acompanhado de uma ansiedade sobre o que virar
reafirma seu humanismo e a necessidade de união
a seguir. Ler o Eternaura, mesmo passados quase 60
entre todos para a superação de problemas e a
anos de seu lançamento, ainda é uma experiência
busca por soluções maiores para o bem de todos. É
das mais fascinantes.
um legitimo trabalho de representação da realidade. E muito embora conte com elementos fantásticos
(viagens
temporais
e
invasões
ASSASSINATO Hector German Oesterheld e suas quatro filhas Beatriz Marta Oesterheld (19 anos), Estela Inés
G N A R U S | 173 Oesterheld (24 anos – mãe de um menino de 3 anos,
personagem da neve mortal, era possível ver o rosto
Martin,
mas
de Kirchner sorrindo. Assim ele se auto intitulava “o
bisavôs
salvador” da Argentina, o “eterno”. Obviamente tal
maternos), Marina Oesterheld (18 anos), Diana
uso não foi muito bem recebido por nenhum dos
Irene Oesterheld (23 anos), estas duas últimas
lados da corrida presidencial, nem mesmo pelos
grávidas, e seus três genros, Rual Carlos Araldi
seus próprios partidários. Gerou um mal estar muito
(marido de Diana), Oscar Alberto Seinendlis
grande e seu uso foi suspenso. Kirchner havia
(marido de Marina) e Raúl Oscar Mortola,
mexido num dos símbolos mais invioláveis do país
infelizmente fazem parte da lista dos cerca de 30
(no mesmo patamar de uma Evita Perón, me arrisco
mil mortos e desaparecidos da ditadura
a dizer).
que
também
posteriormente
argentina
foi
de
desapareceu
devolvido
aos
militar
1976-1983. A importância dá obra é tal, que em 2000, quando
Sequestrado em 1977, após uma reunião secreta
o Jornal Clarín anunciou a coleção “La Biblioteca
ser descoberta, passou meses preso e sendo
Argentina”, com os grandes clássicos da literatura
torturado, de modo que não pode ver a conclusão
do país, lá estava figurando “O Eternauta”, ao lado
de “O Eternauta II”. Aém da violência física a qual
de obras de escritores tais como Borges, Cortazar,
fora submetido há relatos, de presos que
Sábato e de outros clássicos como “Martin Fierro”
sobreviveram, que diziam que uma das formas de era
Hector German Oesterheld foi assassinado pela
submetido consistia em expor a ele fotos de suas
defesa de seus ideais e de seu povo. Puderam calar
filhas mortas e torturadas. Em mais um momento de
sua voz, mas não calaram sua arte e sua mensagem,
sadismo, chegaram a levar seu neto Martin, filho de
que estão vivas e alcançando a imaginação de
Estela, para vê-lo. Através de alguns contatos e dos
muitos leitores até hoje. Enquanto seus algozes são
esforços de sua esposa, Elsa Sanches ,que estava em
relegados ao lixo da História, sua mensagem e sua
liberdade, conseguiram reaver o seu neto aos
arte são cada dia mais atuais e cada vez mais lidas.
tortura psicológica a qual Oesterheld
bisavós maternos.
Até a próxima.
“O Eternauta” traz consigo muitos elementos caros ao povo Portenho. Com o passar dos anos tornou-se símbolo de uma época, bandeira de uma luta. Fora publicado logo após o fim da ditadura do General Juan Domingo Perón (1955) e próximo de
Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina, agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema e colunista especialista em quadrinhos da Gnarus Revista de História.
outros dois golpes militares que abalariam o país (1966-1973 e 1976-1983). Em 2011, durante sua última
campanha
presidencial,
o
falecido
presidente Nestor Kirchner usou uma clássica imagem do personagem Eternauta em sua campanha política, se fazendo passar pelo mesmo, atrás da clássica máscara que protegia o
Obras essenciais de Hector German Oesterheld
O Eternauta, desenhado por Francisco Solano Lopes (Lançado no Brasil pela editora Marins Fontes
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O Eternauta: II, desenhado por Francisco Solano Lopes (Lançado no Brasil pela editora Marins Fontes
Che – Os últimos dias de um herói, desenhado por Alberto e Henrique Breccia (lançado no Brasil pela Conrad Editora
Sargento Kirk (personagem criado em parceria com Hugo Pratt) com desenhos de Hugo Pratt e posteriormente desenhado por Jorge Moliterni, Horacio Porreca, Gisela Dexter e Gustavo Trigo
Mortin Cinder, com desenhos de Jorge Moliterni
Ernie Pike (também criada em parceria com Hugo Pratt), com desenhos de Hugo Pratt e posteriormente desenhada por Alberto Breccia e Francisco Solano López