G N A R U S | 179
Resenha
UM CONVITE A LEITURA DE “Por terra, céu e mar: Histórias e memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia” Por: Geraldo Magella de Menezes Neto
SILVA, Hilton P., et al. Por terra, céu e mar: Histórias e memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia. Com a colaboração de Rodrigo Yuri C. Correa e Leonardo G. G. Trindade. Belém: Paka-Tatu, 2013.
P
or terra, céu e mar: Histórias e memórias da
professor da Faculdade de Educação Física da
Segunda Guerra Mundial na Amazônia é
UFPA; Murilo Ribeiro Teixeira, acadêmico da
uma obra lançada pela editora Paka-Tatu
Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA)1,
no final de 2013, que possui quatro autores: Hilton
bolsista do PIBIC/CNPq, atuando no ensino médio
Pereira
em
da Escola de Aplicação da UFPA; e Samuel R.
Antropologia/Bioantropologia pela Ohio State
Mendonça, bolsista do PIBIC/CNPq, e também
University, é professor do Programa de Pós-
atuando no ensino médio da Escola de Aplicação da
Graduação em Antropologia e do Mestrado em
UFPA. Além disso, o livro possui dois colaboradores:
Saúde, Ambiente e Sociedade na Amazônia da
Leonardo Gabriel Gomes Trindade e Rodrigo Yuri
Universidade Federal Do Pará (UFPA); Elton
Carvalho Correa, ambos bolsistas do PIBIC/CNPq,
Vinicius Oliveira de Sousa, Mestre em Saúde,
atuando no ensino médio da Escola de Aplicação da
Sociedade e Endemias da Amazônia pela UFPA, é
UFPA.
da
Silva,
Doutor
O livro não especifica qual o curso de formação do autor. 1
G N A R U S | 180 Tendo como justificativa
Pará (AECB-PA)2, contendo
o argumento de que os
várias
pracinhas
aqueles que atuaram na
da
Força
Expedicionária (FEB)
foram
pelo
governo
Brasileira
No primeiro capítulo, “A
pela
Amazônia e o Pará durante
sociedade brasileira, que
a
não lhes deram o devido reconhecimento, autores,
o
é
o
pracinhas
da
Pará na época da guerra.
de
Citam o afundamento de navios
FEB)
a sociedade brasileira ao longo de suas vidas.” (p.15). Não por acaso, o prefácio da obra, assinado por Aristóteles Miranda, tem um título significativo que corrobora com o objetivo do livro: “Memória e reconhecimento”.
pelos
submarinos do Eixo; falam
que merecem, que sejam sacrificaram e fizeram enormes contribuições para
mercantes
brasileiros
olhados com a dignidade amados e apreciados pelo que são, homens que se
Guerra
um resumo do contexto do
“colaborar para que sejam (os
Segunda
Mundial”, os autores fazem
objetivo da obra, segundo os
sobre
Segunda Guerra Mundial.
esquecidos e
imagens
da
perseguição
aos
“quinta-colunistas”, espiões que estariam atuando em favor dos países do Eixo; da construção do Hospital do Pronto Socorro Municipal de Belém e do Hospital Evandro Chagas, como parte da operação militar entre o Brasil e os Estados Unidos; o racionamento de combustíveis e de alimentos; e a existência de um “campo de concentração” em
Além da Introdução, o livro possui quatro
Acará (atual município de Tomé-Açu), no qual
capítulos: “A Amazônia e o Pará durante a Segunda
foram isolados imigrantes japoneses, italianos e
Guerra Mundial”; “A história que estava esquecida:
alemães.3
relatos da guerra pelos ex-combatentes”; “Os amazônidas que não voltaram”; e “As repercussões da FEB dentro e fora do Brasil”. Além disso, a obra possui uma seção intitulada “Memórias da
Interessante neste capítulo é o depoimento do Sr. Raimundo Santa Brígida, que morava na época da guerra em Carutapera, na fronteira entre o Maranhão e o Pará. Santa Brígida revelou que viu
Associação dos Ex-Combatentes do Brasil - Seção A Associação dos Ex-Combatentes do Brasil - Seção Pará (AECB-PA) foi fundada em 8 de maio de 1946, é considerada de utilidade pública pela Lei Estadual n. 524, de 16 de agosto de 1952, tendo sede na Avenida Governador José Malcher, n. 2887. Seu primeiro presidente foi o ex-combatente Cléo Bernardo de Macambira Bastos. (p. 29). O atual presidente é o excombatente Raimundo Nonato de Castro. Infelizmente, nos últimos anos a sede da Associação foi vítima de vários assaltos. Objetos históricos como capacetes de aço, fardas dos militares e documentos que contam a história dos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial já 2
foram roubados. Ver “No Pará, Associação dos Excombatentes do Brasil é assaltada”. Site G1 Pará. Disponivel em: <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2014/05/associ acao-dos-ex-combatentes-do-brasil-no-para-eassaltada.html> Acesso em 14 mar. 2015. 3 Sobre os campos de concentração no Pará e no Brasil, ver PERAZZO, Priscila Ferreira. Prisioneiros de guerra. Os cidadãos do Eixo nos campos de concentração brasileiros (1942-1945). Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2002.
G N A R U S | 181 “diversas embarcações, possivelmente nazistas nas
do contexto da guerra em Belém e o treinamento
cercanias do local”, e que tinha um tio que fazia
dos pracinhas da FEB.4
abastecimento de alguns submarinos alemães na cidade de Salinas-Pará, que estavam próximos da costa. Segundo o Sr. Raimundo, as autoridades locais descobriram tal fato e “desapareceram” com o tio “como forma de punição por sua traição à nação”. (pp.17-18). Tal depoimento é bastante revelador de algo que não foi pesquisado de forma profunda, o que poderia ser mais explorado pelos autores.
voltaram” faz uma breve abordagem dos excombatentes que morreram nos campos de batalha na Itália. Em contagem oficial, quatro combatentes paraenses da FEB, dois amazonenses e um acreano foram mortos. Já 21 paraenses foram mortos nos ataques dos submarinos alemães aos navios mercantes brasileiros. No quarto e último capítulo, “As repercussões da
No segundo capítulo, “A história que estava esquecida:
O terceiro capítulo “Os amazônidas que não
relatos
combatentes”,
há
da
guerra
vários
relatos
pelos
ex-
de
ex-
combatentes, termo que se refere aos cidadãos que, “de forma direta ou indireta, esteve a serviço da nação por ocasião da guerra.” (p. 30). O Contingente da Amazônia que fez parte da Força Expedicionária Brasileira (FEB) era formado por 786 homens. Esses homens saíram de Belém no dia 20 de dezembro de 1944 para o Rio de Janeiro, e de lá partiu em 8 de fevereiro de 1945 para os campos de batalha na Itália.
FEB dentro e fora do Brasil”, os autores exaltam em vários momentos a atuação da FEB, afirmando que os brasileiros “superaram todas as expectativas” (p. 87); que a criação da FEB e a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial “foi um marco fundamental da criação do Brasil e do mundo que conhecemos hoje” (p. 87); que o fato de as tropas brasileiras apresentarem homens e mulheres de todas as cores e matizes etnorraciais demonstrou a “falácia” do pensamento racista e da segregação racial, o que era comum no exército norteamericano, que separava brancos e negros; que
O livro traz depoimentos de ex-combatentes do
para o Brasil veio a ideia de “modernização das
exército, da aeronáutica e na marinha. A estrutura
relações na caserna e mais respeito aos suboficiais
basicamente
o
e soldados”, o que, segundo os autores, coloca as
entrevistado, com informações sobre a data e o
Forças Armadas Brasileiras hoje “entre as mais
local de nascimento, o momento em que fez parte
respeitadas do mundo”. (p. 88).
é
a
mesma:
apresenta-se
das forças armadas ou se alistou como voluntário, e qual a sua atuação durante a guerra. Além dos depoimentos, os autores utilizam outras fontes, tais como: diários, a exemplo do diário do praça Galliano Cei (1921-2007), que deixou registrado vários informações sobre a guerra; e o livro de Antonio Batista de Miranda (1923-2001), que trata
Ver MIRANDA, Antônio Batista de. Guerra: memórias... destino... . Belém: Evolution, 1998. 4
Podemos dizer que o grande mérito do livro é o de trazer à tona diversos depoimentos daqueles que viveram e participaram do contexto da Segunda Guerra Mundial, possibilitando aos leitores o conhecimento de inúmeras experiências que vão além do que foi registrado em discursos, relatórios de governo e jornais, por exemplo.
G N A R U S | 182 Destacamos os depoimentos dos ex-combatentes
Os autores exageram também ao falar das
da aeronáutica e da marinha, que geralmente são
repercussões da FEB fora do Brasil, focando apenas
deixados em segundo plano em relação aos
em aspectos positivos. Segundo Francisco César
soldados da FEB.
Ferraz, o Brasil, “ao recusar o uso de suas tropas
No entanto, o livro também apresenta alguns equívocos. No prefácio, Aristóteles Miranda afirma que a obra dá “o reconhecimento merecido aos pracinhas amazônidas e preenchendo uma lacuna na historiografia paraense.” (p. 8) Os autores afirmam ainda que “os eventos associados à guerra e os impactos do conflito no Pará e na Amazônia ainda são pouco conhecidos”. (p. 17) Se considerarmos que podem ser desconhecidos por um público em geral, não especialista no assunto, concordamos com os autores. No entanto, não
como forças de ocupação na Europa destruída, perdeu a oportunidade de ganhar importância nessa reordenação mundial”.6 Além disso, a aliança com os Estados Unidos não produziu os efeitos que se desejava, ou seja, uma proeminência brasileira na América do Sul, já que, com as mudanças nos responsáveis pela política externa nos Estados Unidos antes do fim da guerra, “não interessava compartilhar o poder político no continente sulamericano com o Brasil ou com qualquer outro país”.7
podemos generalizar esse “pouco conhecimento”
Outra questão problemática é que os autores não
em relação à produção científica acadêmica sobre
analisam as memórias dos ex-combatentes. Há uma
o tema, que possui muitas pesquisas sobre as
sucessão de narrativas, muitas delas desconexas,
repercussões da Segunda Guerra na Amazônia e no
sem relação entre si. Talvez por se tratar de um
Pará, muitas delas inclusive não citadas pelos
“reconhecimento” ao ex-combatentes, os autores
autores.5 Assim, a obra deixa de lado várias
não
pesquisas já realizadas que poderiam contribuir
problematizar os relatos dos entrevistados, nem de
para um debate maior acerca das memórias dos ex-
confrontar os depoimentos. Poderíamos dizer que
combatentes.
faltou um aporte teórico da história oral, que,
Ver por exemplo: FONTES, Edilza Joana de Oliveira. O pão nosso de cada dia: trabalhadores e indústria da
Segunda Guerra Mundial, 1939-1945. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 2003; PINON, Alerrandson Afonso Melo. Belém durante a Segunda Guerra Mundial: problemas de alimentação, energia elétrica e transporte (1939-1945). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 2007; RODRIGUES, Venize Nazaré Ramos. “Memórias de guerra”. In: FARES, Josebel Akel (org.). Memórias da Belém de antigamente. Belém: EDUEPA, 2010, pp. 207215; SIMÕES, Adrialva. De pé pela honra do Brasil : o papel da imprensa paraense na divulgação da Segunda Guerra Mundial (1942-1945). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 1993. 6 FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 66. 7 Ibid. pp. 66-67.
5
panificação e a legislação trabalhista (Belém 19401954). Belém: Paka-Tatu, 2002; “A batalha da borracha, a imigração nordestina e o seringueiro: A relação história e natureza”. In: NEVES, Fernando Arthur de Freitas e LIMA, Maria Roseane Pinto (orgs.). Faces da História da Amazônia. Belém: Paka- Tatu, 2006; LIMA, Antonio José de Sousa. Guerra e memória: o cotidiano em IgarapéAçu durante o período de 1943 a 1945. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) Universidade Federal do Pará - UFPA, Castanhal-PA, 2006; MENEZES NETO, Geraldo Magella de. A Segunda Guerra Mundial nos folhetos de cordel do Pará. 82 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 2008; A “ressurreição da alma cabana”: as passeatas de protesto contra o Eixo na Belém da Segunda Guerra. Em Tempo de Histórias. n. 23, Brasília, ago. – dez. 2013, p. 22-41; NAZARETH, Aleckssandra Guerreiro. Nunca vi tanta metralha: memórias de Belém do Pará no tempo da
tiveram
a
ousadia
de
questionar
e
G N A R U S | 183 segundo Verena Alberti “é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes”, que consiste “na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado.”8 Alessandro Portelli aponta que o que torna a história oral diferente é que ela “nos conta menos sobre eventos que sobre significados.” entrevistas
“sempre
revelam
As
eventos
desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos.”9. Portelli destaca que a história oral “é contada de uma multiplicidade de pontos de vista”, e que a confrontação de “diferentes parcialidades” é “uma das coisas que faz a história oral interessante.”10 Nesse sentido, a obra pode ser vista mais como um registro daqueles que atuaram direta ou indiretamente na Segunda Guerra Mundial do que um estudo crítico. Pode-se dizer que o livro conseguiu atingir o objetivo de olhar os pracinhas “com a dignidade que merecem”, mas que poderia ter ido muito além com a riqueza de depoimentos que trouxe.
Geraldo Magella de Menezes Neto é Mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Professor da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), Professor da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) de Belém-PA, distrito Mosqueiro. Email: geraldoneto53@hotmail.com
ALBERTI, Verena. “Fontes orais - Histórias dentro da História”. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 155. 8
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo, n. 14, fev., 1997, p. 31. 10 Ibid. p. 39. 9