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Artigo
ADMINISTRAR A AMÉRICA PORTUGUESA, TRAJETÓRIA E PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS: PROBLEMATIZANDO A HISTÓRIA DA ADMINISTRAÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA
Felipe Castanho Ribeiro
“A tentativa de compreender a totalidade da história colonial como a história de uma relação monótona que submete colonizados a colonizadores é, vistas as coisas assim, uma simplificação grosseira, pouco aceitável pelas atuais regras de arte da história.” (HESPANHA In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. 2010, p. 75)
A
história da América portuguesa desde o século XIX, quando da emancipação do Brasil de Portugal, tem recebido
estudos que procuram entender como se deu a administração na ex colônia, podemos notar que tal temática foi responsável por suscitar inúmeros debates e teorias, decorrentes da complexidade que envolve o tema, basta dizermos que no exato momento em que escrevemos este trabalho, ou seja 191 anos após a independência do Brasil, ainda são elaboradas, discutidas e debatidas teorias diversas sobre o tema. Contudo é interessante notar que durante este trajeto historiografico, até os dias atuais, algumas explicações se destacaram de tal modo que se tornaram referências e foram consideradas responsáveis, em algum momento deste longo caminho, por responder os dilemas que se apresentavam diante do tema. É mediante deste quadro que
G N A R U S | 33 pretendemos discorrer sobre as principais
Estados-Nações3 europeus, era então um
teorias e que ganharam eco entre os
dilema
historiadores, analisando e inserindo cada uma
historiadores do período e que foram buscar as
dessas análises no seu contexto particular, para
respostas num passado não muito distante,
está tarefa tenhamos ciência de que não se
dessa
trata de nos posicionarmos como juízes e
monarquias em formação dos séculos XV e XVI
decidirmos o que é bom ou ruim, mas sim como
se tornaram inevitáveis de modo que:
propunha a escola dos annales de realizarmos
que
forma
se
as
apresentava
comparações
para
os
com
as
“[...] a Coroa é a forma larvar da soberania estatal; as assembleias de estado, a antecipação dos parlamentos; as comunas, os antecedentes da administração periférica delegada; os senhorios, o eterno elemento egoísta que o Estado deve dominar e subordinar ao interesse geral.”4
uma problematização da história, nesse caso da historiografia sobre um determinado tema. Reflexão e contextualização historiográfica Como dito anteriormente desde o século XIX à administração colonial é tema abordado
A principal obra que convergiria para está
pela historiografia, exemplo disso é o clássico
linha de pensamento no Brasil é de Raimundo
História Geral do Brasil (1854-57) de Francisco
Faoro em Os Donos do Poder (1975), para este
Adolfo de Varnhagen. Contudo as obras que
a administração da América Portuguesa possuía
chegaram a abordar o tema no século XIX
um
acabaram por refletir o movimento positivista,
conseguindo inclusive se sobrepor a dinâmica
tão em voga na intelectualidade da época,
local e eliminando com pleno sucesso as
digna de uma verdadeira história rankeana os
inúmeras
trabalhos do período enfatizavam a “simples”
domínios ultramarinos. Faoro descreve um
narração dos fatos com base em fontes
estado português forte para a época moderna
primárias, dito de outra forma o que tínhamos
por basear boa parte da sua obra num
era uma historia restrita a datação de fatos.1
aracabouço teórico inspirado nos escritos de
Não obstante são oriundos dos oitocentos
caráter
extremamente
adversidades
centralizador,
encontradas
nos
Max Weber, podemos notar ainda que para
modo
além da questão metodológica é possível notar
permanecem até os tempos atuais2, dentre
a influência dos acontecimentos nos diferentes
estes podemos destacar as conceituações de
períodos em que redige o seu trabalho,
regimes absolutistas para as monarquias
tornando relevante notar as diferenças das duas
europeias da modernidade e a respectiva
primeiras versões da sua obra, a primeira
centralização dos estados nacionais. Para
redigida em um período democrático5, e a
compreendermos a construção desta imagem
segunda e ampliada versão, que duplica de
devemos nos recordar que no século XIX estava
tamanho, é escrita em 1975 durante a ditadura
alguns
paradigmas
que
grosso
ocorrendo o processo de afirmação dos 3 1
VAINFAS, 2001, p. 15 Se não na academia no senso comum, perpetuada pelos livros didáticos desatualizados. 2
Para mais informações sobre vide HOBSBAWM, Eric J.
Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Saraiva de Bolso, 2011. 4 HESPANHA, 1994, p.22 5Durante o governo de Juscelino Kubitschek.
G N A R U S | 34 brasileira,
regime
governamental
romano, podemos encontrar tais evidências no
representativo de um estado centralizado e
campo literário de caráter romântico e
vigilante.6
nacionalista,
Retornando
a
história
positivista,
se
intencional
que e
exaltavam
programada
a
natureza
da
expansão
levarmos em consideração que os documentos
marítima portuguesa. É com este sentido que
traduzem a realidade, uma administração
podemos podemos identificar ideias como o
centralizada seria de fato a explicação mais
Plano das Índias e da Escola de Sagres. Sendo
plausível, posto que como nota a historiadora
assim, seria digno, além de enobrecedor para
Maria Fernanda Bicalho bastaria observar as
Portugal a glamorosa ideia de uma empreitada
consultas feitas junto ao Conselho Ultramarino
imperial, aonde o poder da coroa, logo do
para se convencer de que “deliberavam sobre
estado, seria de caráter “absolutista” com uma
cada minúcia da vida econômica, política e
administração centralizada na metrópole, e
militar das sociedades coloniais, chegando
admitir hipótese diferente desta poderia
mesmo a ordenar os mais
“diminuir”
insignificantes detalhes do
portugueses com relação
cotidiano
ao seu passado. Por outro
de
habitantes”
seus
.7
lado,
Neste
primeiro
o
para
coloniais,
brio
dos
as
elites
nada
mais
momento, outros fatores de
legitimador
variadas naturezas também
movimento
iriam
a
independência do que a
historiografia tangente a
noção de que esta foi
administração,
conquistada através de
influenciar
sobretudo
para
um de
elementos ideológicos que
tempestuoso
atingiram
tanto
contra um inimigo tenaz e
brasileiros
poderoso, neste caso de
historiadores quanto
portugueses,
conflito
proporções
imperiais
sustentando desta forma
que
conseguinte
um
libertaria
modelo
político
por
finalmente
e a
administrativo maniqueísta,
colônia da metrópole que
em
por tanto tempo subjugou
que
colonizador
e
colonizados estavam sempre em posições
e furtou as suas riquezas. Após a tão sonhada
opostas. Em Portugal por exemplo encontramos
independência adotaríamos um “inimigo” em
manifestações distintas que relatam com
comum, visando uma unidade nacional, o que
orgulho a ideia de um império marítimo, que
dizer do forte anti-lusitanismo existente
poderia ser comparado ao idealizado império
durante o regime imperial, quando ser brasileiro se caracterizava pela repulsa ao
6 7
SOUZA, 2006, pp. 33-35 BICALHO, 2003, p. 340
português. O governo estrangeiro seria ainda
G N A R U S | 35 verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes [...]”.10
responsabilizado pelas mazelas ocorridas em período pós-colonial, tanto por culpa da exploração quanto por práticas herdadas do
Com relação à administração Prado Jr. a vê
passado português e até o “genocídio de povos
de forma negativa, para ele era excessivamente
indígenas – ou a escravidão de africanos – pode
burocrática e com uma profusão de leis e
por conseguinte, ser como que remetido para o
estatutos
período colonial, apesar do triste historial
incompetente. Para a historiadora Laura de
oitocentista e mesmo novecentista”
Mello e Souza se trata de um erro anacrônico
.8
que
a
tornava
ineficaz
e
Com o advento da Revolução de 1917 e a
do autor, pois apesar do próprio reconhecer
consequente propagação dos estudos marxistas
que não se pode olhar o passado com base no
no início do século XX, inúmeros intelectuais
presente comete o erro mesmo assim posto que
seriam influenciados pelos estudos de Karl
vivendo sobre a égide de um estado liberal,
Marx, não seria diferente no Brasil e em 1942 é
baseado na teoria dos três poderes “ressalta a
publicada a pioneira obra de Caio Prado Júnior
irracionalidade do Antigo Regime – ‘passado
Formação do Brasil Contemporâneo, que
caótico por natureza’ -, e não leva em conta
costumeiramente é considerado o primeiro
que, nele, o Estado português não era exceção,
trabalho marxista sistematizado no Brasil9. Por
incorrendo, nesse tocante, em anacronismo” . 11
razões obviamente teóricas a ênfase da obra de
Oito anos antes de Prado Jr. abordar o tema,
Caio Prado é de ordem econômica, não seria
outro trabalho referente ao período colonial se
por mero acaso que o trecho do livro que
destacaria, mas neste caso o tema da
obteve maior desdobramento na academia é o
“administração” se distanciaria mais ainda do
Sentido da Colonização, aonde o autor aborda
foco principal e apesar da análise inovadora de
o caráter mercantilista e exploratório da
Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de
colônia luso-brasileira onde tudo que se passa
Holanda, em que o autor realiza um trabalho
“são incidentes da imensa empresa comercial a
comparativo entre o modelo de colonização
que se dedicam os países da Europa a partir do
espanhol e o português, o autor nesta obra se
séc. XV, e que lhes alargará o horizonte pelo
restringe mais a uma datação de fatos políticos
oceano afora” e concluí que:
importantes do que propriamente a uma
“No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o
reflexão sobre a natureza administrativa da América portuguesa. Não obstante seria através do cotejamento realizado por Sérgio Buarque entre as diferentes colonizações, que este chegaria a uma perspectiva negativa da administração portuguesa já que na sua
8
HESPANHA In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. 2010, p.50 9 É interessante lembrar ao leitor que a referida obra pretendia fazer parte de uma coletânea da evolução histórica do Brasil, contudo somente esta primeira parte foi escrita, que como sabemos aborda o período colonial.
concepção, quando comparada a colonização
10 11
PRADO JR., 1979, p. 31, grifo do autor. Idem, 2006, p. 37.
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colonial que se baseia em uma relação subordinativa, cabendo o papel de submissão a colônia que responderia sempre a metrópole, seriam, ainda, formulações do pacto colonial o exclusivismo comercial da metrópole e a negação a colônia da possibilidade de subsistir por conta própria, isto é deveria depender sempre de Portugal, em outras palavras o
“pacto colonial é a prática do sistema colonial” 14
Porém a obra de Novais tem sido alvo de críticas de outros historiadores, devemos salientar que a obra deriva de uma corrente marxista onde encontramos a eterna luta de classes que a tudo tende polarizar, parece ser este o caso de Portugal e Brasil na crise do
antigo sistema colonial (1777-1808), tendo em vista o caráter maniqueísta da obra. Se espanhola da América, a portuguesa tornavase, entre outras palavras desleixada.
realizarmos um exercício de contextualização, perceberemos também que o livro é escrito
Já na década de 1970 Fernando de Novais
durante a Guerra Fria, o regime militar
com o seu livro Portugal e Brasil na crise do
brasileiro e bem próximo da Revolução dos
antigo sistema colonial (1777-1808) manteria a
Cravos (1974)15 em Portugal, elementos que
tradição do estudo marxista de Caio Prado Jr.,
dualizaram estudos da época.
contemplando mais uma vez a economia apesar de não deixar de lado quesitos políticos e administrativos – teria como centro nervoso de seu trabalho o sentido mercantilizado da empreitada colonial, é do autor o conceito de que
havia
um
sistema
colonial12,
que
econômico teria “seu funcionamento em
benefício de um grupo de nações hegemônicas que exploram as áreas que lhes pertencem e aquelas que lhes são incorporadas”
13.
Para
tanto Novais elabora o conceito de pacto
Por fim, com base no recente revisionismo sobre o tema e segundo a historiadora Maria Fernanda Bicalho, o referido trabalho de Novais
pertenceria
a
uma
corrente
historiográfica pautada, mormente, no aspecto econômico e por mais que estivesse atenta as esferas política e administrativa da América portuguesa teria subjugado a “tessitura de
redes de poder, interesses, parentesco e negócios entre o centro e as várias regiões do ultramar português, cuja análise torna-se hoje
12
Tal conceito é detentor de ampla aceitação na historiografia e excelentes trabalho são frutos dele é o caso do clássico de Luiz Felipe Alencastro em O Trato dos
Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. 13
AMARAL LAPA, 1994, p.20, grifo nosso.
14
Idem, 1994, p.21. É a Revolução dos Cravos que põe fim ao regime ditatorial iniciado por António de Oliveira Salazar no país luso. 15
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fundamental para a configuração da dinâmica
teoria a prática, em outras palavras se
de escopo imperial” .16
quiséssemos
entender
a
administração
portuguesa na América não poderíamos mais Novos horizontes
nos restringirmos a observação de ordenações,
A partir da década de 1980 é iniciado um
regimentos, decretos extraordinários ou a atos
processo de reflexão e revisão que levariam a
régios, pois estes por si só levariam a uma
consideráveis mudanças na historiografia sobre
leitura incompleta do passado, assim da mesma
o tema da administração colonial, neste à
forma deveríamos estudar casos judiciais,
questão da centralização vem sendo alvo de
práticas governativas, missivas dos diferentes
profundas críticas e novas explicações têm
agentes administrativos, relações sociais18,
surgido, de modo que um maior equilíbrio nas
entre outras fontes que permitiram uma leitura
relações envolvendo centro e periferia tem se
dinâmica desta sociedade.
destacado,
culminando
assim
em
um
No outro lado do Atlântico a recente
importante ponto de inflexão na temática. Este
produção historiográfica portuguesa também
revisionismo está ligado a uma série de fatores,
sofreu alterações o que contribuiu para um
sobretudo ligado a novas metodologias e
profícuo diálogo entre historiadores brasileiros
teorias que possibilitaram novas formas de ver
e portugueses. De certa forma a adoção do
e escrever a História. Entre uma miríade de
conceito de império19 em detrimento da
novas questões que contribuíram para estas
análise das relações entre metrópole e colônia
mudanças podemos destacar elementos como
contribuiu
a “maior presença” da história cultural entre os
abrangente, favorecendo ao diálogo entre os
historiadores, ou até mesmo a introdução de
historiadores dos quatro cantos do mundo por
novos métodos como a micro-história italiana,
onde Portugal estabeleceu o seu império, posto
que possibilitaram aos estudiosos dinamizar a
que no caso desta última percebeu-se não ser
sociedade e enxergar indivíduos, componentes
suficiente:
pertinentes
aos
seres
humanos17. As implicações decorrentes de tais fatores nos ajudaram a compreender que deveríamos levar em consideração além da 16
In SOUZA, Laura de Mello; FURTADO, Junia Ferreira, 2009, p. 93 17 Deve-se ressaltar também, uma intensificação no diálogo da história com outras disciplinas, neste caso, sobretudo com a antropologia, só para citar algumas obras que tiveram influência na temática abordada: Ensaio
sobre a Dádiva – Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas in MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003; GODELIER, Maurice O enigma do Dom, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 e BARTH, Fredrick. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000.
uma
perspectiva
mais
“(...) para explicar a complexidade das redes e conexões que ligaram os diferentes domínios ultramarinos, entre si e com o centro da monarquia. Isso exigiu dos historiadores a inserção de seus respectivos objetos – cidades, feitorias, fortalezas, estabelecimentos, territórios, regiões, bens, pessoas e interesses administrados pela Coroa portuguesa – num contexto bem mais amplo e plural do que até então se pensara.”
da sociedade em questão, e dotados das incongruências
para
20
18
Ritualizadas, como o casamento e não ritualizadas como o apadrinhamento. 19 Em contrapartida o conceito de império já é antigo conhecido da historiografia anglo-saxônica, talvez não seja coincidência que um dos primeiros trabalhos a utilizalo, para o caso de Portugal, seja de um inglês em BOXER, Charles Ralph. O Império Marítimo Português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 20 BICALHO, Maria Fernanda in SOUZA, Laura de Mello; FURTADO, Junia Ferreira, 2009, p.91
G N A R U S | 38 Destas novas metodologias a análise de
crescer cada vez mais na hierarquia social
“redes” vem se destacando cada vez mais entre
colonial, e uma dessas possibilidades se
os especialistas da área21, assim a constatação
encontrava
da existência de redes no interior da sociedade
governança, como por exemplo, conseguir
colonial portuguesa demonstrou uma lógica
exercer ofício na câmara municipal de alguma
única, em que os atores sociais ou a própria
cidade. Logo, está constatação nos leva a
coroa conseguiam através de relações como
perceber que a administração da coroa
parentesco, apadrinhamento, amizade etc.
portuguesa, longe de ser estática e formal era
criar laços que permitiam a organização em
flexível
grupos
consequentemente influenciava na dinâmica
que
melhor
representariam
seus
objetivos em comum ou até mesmo individuais.
justamente
e
em
cargos
informalizada
o
de
que
do poder administrativo local e central.
Uma vez formada determinada “rede” seus componentes poderiam articular-se acionando dispositivos
para
alcançar
Um Antigo Regime nos Trópicos?
determinado
objetivo. O que aqui nos interessa salientar é
Convergindo para as novas tendências
que as articulações, entrelaçadas socialmente,
apontadas anteriormente, e indo além, é
destas redes ao procurarem atingir seus
lançado em 2001 o livro O Antigo Regime nos
objetivos
e
trópicos: A dinâmica imperial portuguesa
interferiam, na governabilidade tanto do reino
(séculos XVI-XVIII) dos historiadores João
quanto do ultramar de modo que:
Fragoso, Maria de Fatima Gouvêa e Maria
poderiam
vir
a
interferir,
“sublinha-se o relevo dos laços e das conexões interindividuais para, em detrimento ou a par dos laços formais ou juridicamente definidos, descrever o funcionamento das diversas instâncias de poder e em última análise das próprias monarquias.” 22
Analisar a sociedade através de redes também
permitiu
identificarem
as
aos diferentes
historiadores estratégias
utilizadas para que indivíduos pudessem
Fernanda Bicalho, composto por doze artigos de diferentes autores a obra aborda diversos temas, mas tem como ponto principal a dinâmica relação que regia o império marítimo português, em especial o reino e a América portuguesa. No trabalho ficam explícitos os mecanismos
de
negociação
da
coroa
portuguesa com os seus súditos, e vice-versa, para alcançar determinado objetivo podendo ser desde a manutenção e conquistas de novo territórios no caso da coroa a ganhos pessoais,
21
Como exemplo do lado brasileiro podemos citar os trabalhos das historiadoras Maria de Fátima Gouvêa e Maria Fernanda Bicalho, para portugueses ver THOMAZ, Luís Filipe F. R. em “De Ceuta a Timor”. Lisboa: Difel, 1994 e sobretudo o texto de Mafalda S. Da Cunha e Nuno Gonçalo F. Monteiro, “Governadores e capitães-mores do império atlântico português no séculos XVII e XVIII” in Nuno G. Monteiro, Pedro Cardim e Mafalda Soares da Cunha (org), Optima Pars. Elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, pp. 191-252. 22 CUNHA in FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. 2010, p. 121-122
como a possibilidade de servir em ofícios administrativos para os vassalos do rei que prestassem bons serviços à coroa. Dito de outra forma a coroa fazia prevalecer seus interesses, mormente, através de favorecimento aos colonos e ou reinóis que se aventuravam nos territórios ultramarinos, que assim executavam
G N A R U S | 39 a sua vontade, e em contrapartida a coroa legitimava os poderes destes homens ou realizava a concessão de mercês. No entanto nem sempre está engrenagem funcionava simetricamente, gerando inúmeros momentos de tensão entre a coroa e os colonos no ultramar. O próprio sistema descrito no parágrafo acima ilustra certa limitação do Estado moderno português, entretanto nos parece que as limitações eram maiores e o historiador António Manuel Hespanha as identifica e as sintetiza
no
conceito
de
monarquia
corporativa23 que percebe que havia outros poderes
e
normas
que
se
tornavam,
respectivamente, concorrentes e limitadoras do poder real, neste quadro quatro noções o compõem, na primeira noção o poder “real”
sofrendo críticas, e recentemente nas palavras
partilharia seus poderes com outros de maior
da historiadora Laura de Mello e Souza através
ou
do seu livro O Sol e a Sombra. Política e
menor
encontraríamos
interferência, o
direito
na
segunda
comum
(dos
administração na América portuguesa do
costumes), na terceira noção os deveres
século XVIII (2006). Para está, Hespanha ao
políticos deveriam ceder perante os deveres
estender seu modelo interpretativo para a
morais e na quarta encontramos oficiais régios
América Portuguesa desconsidera o contexto
que gozavam de extensos privilégios, ao
particular da colônia, sobretudo devido ao
mesmo tempo em que seus interesses, muita
elemento da escravidão tão presente na
das vezes, iriam de encontro aos interesses
colônia e ausente em Portugal. Outra crítica da
reais.24
Tais fatores reforçavam mais ainda a
historiadora seria uma supervalorização do
necessidade de negociação do rei com os seus
aspecto jurídico e das suas consequências nas
súditos, ou seja, do centro com as periferias.
ações da coroa já que o mundo colonial “não
Entretanto este modelo explicativo não é
pode ser visto predominantemente pela ótica
unânime entre os historiadores e também vem
da norma, da teoria ou da lei, que muitas vezes permanecia letra morta e outras tantas se
23Tal
conceito é elaborado no seu livro As vésperas do
Leviathan: Instituições e Poder Político Portugal – séc. XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994 e exposto no capítulo escrito por ele: A constituição do império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes In FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Fernanda, 2001, pp. 163-188. 24 In FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Fernanda, 2001, p. 166
inviabilizava ante a complexidade e a dinâmica das situações específicas”.25 Nos alerta ainda para o cuidado que se deve ter ao nomear a
25
SOUZA, 2006, p.56
G N A R U S | 40 sociedade da América portuguesa de Antigo Regime nos Trópicos, para isto recorda que apesar das semelhanças existentes nos dois mundos a realidade colonial era diferente do Antigo Regime europeu descrito por Alexis de Tocqueville. Já na introdução de trabalho lançado em 201026 pelo centro de estudos do Antigo Regime nos Trópicos (ART) além de dar continuidade ao livro de 2001 responde as críticas, lembrando que apesar de ser uma sociedade dita colonial foi criada por reinóis que recriaram nos trópicos uma sociedade parecida com a que conheciam, e os novos elementos como a escravidão foram inseridos nesta lógica reforçando características já conhecidas da sociedade moderna portuguesa como a organização social hierarquizada, reconhecendo-se também que devido as incoerências e variações coloniais o sistema de normas do Antigo Regime era constantemente reinventado. Por fim o livro Na trama das Redes aponta ainda
para
o
conceito
de
monarquia
pluricontinental, que já vinha sendo discutido27,
Conclusão Longe da pretensão de esmiuçar o tema em tão poucas palavras procuramos ao longo deste trabalho
abordar
as
diferentes
posições
historiográficas sobre o período colonial, levando em consideração os trabalhos que alcançaram certa notoriedade no tema, em alguns casos legítimos clássicos, não nos esquecendo da importância destes últimos, tentamos também demonstrar como a história caminhou e avançou durante está trajetória até os dias atuais. Posto desta forma, acreditamos de fato que estamos no caminho certo ao percebemos a história colonial de modo mais complexo do que antes, sobretudo com base em uma história mais conflituosa e tortuosa, e não mais homogênea e com previsível destino, quanto aos debates aqui explorados somente enriquecem o tema, posto que para a história nenhuma generalização deve ser considerada como tradutora da realidade. Felipe Castanho é Licenciado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e pós-graduando em História do Brasil pela Universidade Gama Filho.
superficialmente na sua definição teríamos uma única monarquia e nela poderes locais
Referências Bibliográficas:
exercendo uma força centrífuga tendo sua autonomia
garantida
pelo
princípio
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2010. 27FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusanos séculos XVI–XVIII In Tempo vol.14 no.27 Niterói, 2009. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script= sci_issuetoc&pid =1413-770420090002&lng=pt&nrm=is> acesso em 19/03/2013.
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Para saber mais:
Política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: