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Artigo
A IMAGEM DO RIO DE JANEIRO DE PEREIRA PASSOS NAS CRÔNICAS DE JOÃO DO RIO. Por Cristiane de Jesus Oliveira Pimentel
O
Rio de Janeiro é uma cidade múltipla e
por toda a extensão da grande baia, até os dias
essa
ser
atuais, a cidade cresceu, recebeu muitos
denominada histórica. Dos primeiros
imigrantes vindos de todas as partes do mundo
portugueses que aportaram à terra chamada
e transformou-se na cidade maravilhosa – fruto
por eles de São Sebastião do Rio de Janeiro e
de inspiração de muitos compositores, poetas e
do encontro desses homens brancos com os
escritores – e principalmente, numa cidade
homens da terra, os índios, que se espalhavam
cosmopolita, nos moldes daquelas que em
multiplicidade
pode
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outros tempos serviram-lhes de inspiração.
foram propostos, ainda no Império,1 mas por
Nos tempos coloniais, a cidade era referida, pelos grandes viajantes, que registraram sua
motivos diversos nenhuma dessas propostas se confirmou.
fisionomia em seus históricos relatos, como
Porém com a instauração da República e com
uma terra de negros, tamanha era a quantidade
a virada do novo século, que é sempre marcada
de escravos africanos que para atender a
por muitas incertezas e, sobretudo por
necessidade dos colonos, portugueses
e
expectativas, um novo clima paira sobre a
franceses, já aqui instalados, serviam ao
cidade. Nos primeiros anos do século XX,
trabalho braçal.
Rodrigues Alves, assume a Presidência da
Como cidade portuária e consequentemente, centro recebedor e distribuidor das novidades vindas do Velho Continente, a cidade se desenvolveu e seu número de habitantes cresceu extraordinariamente ainda no século XVIII pela necessidade de abastecimento das Minas Gerais, onde se descobria a cada dia
República com expectativas muitas quanto à transformação da cidade num grande centro urbano. Pensa-se em uma reforma com a finalidade de incluir o país, através de sua capital, no cenário internacional. A Belle Époque carioca é então, o momento propício para a realização desta reforma urbana, que mudaria não só a arquitetura, mas também o
novas jazidas de ouro e diamantes. A cidade foi ainda Capital de um grandioso
modo de vida das pessoas que ali residiam. A Reforma Federal teria, então, como
Império, quando a Família Real portuguesa a escolhe para instalar sua Corte ainda nos primeiros anos dos oitocentos. A chegada da Família Real, e todo seu aparato digno de uma corte tradicional europeia, dão novos modos de vivência à cidade que a marcaria para sempre como centro político e, para além disso, cultural de todo um país. É a chegada da
Posteriormente, em fins do século XIX, com a da
escravidão
obtenção de “um cenário decente e atraente aos fluxos do capitalismo internacional, tão refreados pelas precárias condições da capital, então ambicionado pelas elites atreladas aos grandes interesses exportadores instalados no governo
da
união”.2
Portanto,
para
o
Presidente Rodrigues Alves a Reforma seria o
civilização aos trópicos...
abolição
princípio básico a expectativa em torno da
a
cidade
sofre
novamente um inchaço populacional. Com uma estrutura precária desde os tempos coloniais, necessita de obras de melhoramentos para que pudesse se transformar numa cidade salubre e livre das pestes que grassavam todos os anos, tanto no inverno quanto no verão. Os primeiros planos visando uma reforma nesse sentido
projeto primordial da sua administração, não apenas pela questão da salubridade, que a 1
Maiores esclarecimentos sobre esse tema podem ser obtidos em: OLIVEIRA, Cristiane de Jesus. Nas entrelinhas
da cidade: A Reforma Urbana do Rio de Janeiro no início do século XX e sua imagem na literatura de Paulo Barreto;
Orientadora: Sônia Cristina da Fonseca Machado Lino. – Juiz de Fora: UFJF, Departamento de História, 2006. 2 MARINS, Paulo César Garcez. “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras”. IN: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da
vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 143.
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muito era debatida por médicos e sanitaristas,3
fazer da Capital Federal a metonímia de um
mas também para atender ao desenvolvimento
país que caminharia rumo ao progresso.5
econômico do país. Segue-se a esse fato, uma série de outros que
A Reforma Federal teve início, então, num primeiro
eixo,
com
o
processo
de
motivaram a Grande Reforma anunciada pelo
modernização do Porto, sendo, coordenada
Presidente em novembro de 1902. Para além
pelo então Ministro de Viação e Obras
da questão da salubridade, a Reforma era
Públicas, Lauro Muller, e chefiada pelo
também uma forma de legitimação do Regime
Engenheiro Francisco Bicalho.
Republicano que se encontrava extremamente desgastado diante da grande maioria da população brasileira. Soma-se a isso, a necessidade de ampliar o comércio externo, tanto pela pressão da elite cafeeira, que necessitava de grandes empréstimos para o desenvolvimento dos seus negócios, quanto para um maior equilíbrio das finanças por parte do Governo Federal. O Historiador André Azevedo cita ainda, um quarto fator, a saber, “a tentativa de responder à crise da capitalidade4 do Rio de Janeiro, revigorando esta propriedade da cidade na perspectiva de 3
Segundo Benchimol foram justamente os higienistas, os primeiros a formular um discurso articulado sobre as condições de vida na cidade, propondo intervenções mais ou menos drásticas para restaurar o equilíbrio daquele “organismo” urbano que consideravam doente. BENCHIMOL, Jayme Larry. “O Haussmanismo na Cidade do Rio de Janeiro”. IN: AZEVEDO, André Nunes de (org.). Rio de Janeiro: Capital e Capitalidade. Rio de Janeiro: Departamento Cultural/ Sr-3 UERJ, 2002, p. 129. 4 A Capitalidade é um fenômeno tipicamente urbano que se caracteriza pela constituição de uma certa esfera simbólica originada de uma maior abertura às novas ideias por parte de uma determinada cidade, o que confere a esta um maior cosmopolitismo relativo às suas congêneres e uma maior capacidade de operar sínteses a partir das diversas ideias que recepciona. Este conjunto simbólico que se desenvolve nas vicissitudes das experiências históricas vividas por esta urbe, identifica a cidade como espaço de consagração dos acontecimentos políticos e culturais de uma região ou país, tornando-a uma referência para as demais cidades e regiões que recebem a sua influência. Esta esfera simbólica evolui, sendo redimensionada ao sorver novas experiências, constituídas e constituidoras da tradição da urbe. AZEVEDO, André Nunes de. “A Capitalidade do Rio de Janeiro. Um exercício de reflexão histórica”. IN: AZEVEDO, André Nunes de (org.). Rio de Janeiro: Capital e Capitalidade. Rio de Janeiro: Departamento Cultural/ Sr-3 UERJ, 2002. p. 45.
O segundo eixo da remodelação urbana foi a Avenida Central, pensada como uma obra de menor importância relativamente àquela do porto e seu entorno. Seu leito de dois quilômetros rasgou, de mar a mar, o labirinto de ruas estreitas e movimentadas da cidade velha. As demolições começaram em 26 de fevereiro de 1904, três dias antes da solenidade que inaugurou as dragagens para a construção do novo porto. Segundo Oliveira Reis, foram demolidos 700 prédios. Eulália Lobo fala de 641 casas de comércio desapropriadas,6 o que elevou a obra a um custoso orçamento, principalmente em virtude das indenizações. No projeto original, a finalidade primordial da Avenida Central era a solução de um problema histórico de infra-estrutura urbana do Rio de Janeiro, o da distribuição dos produtos do Porto com a rede de comércio estabelecida no centro da cidade.7 Não obstante a isso esta também representou o eixo
de
melhoramentos
propriamente
urbanísticos, pensados pelo Governo Federal e projetados com o intuito de transformar a 5
AZEVEDO, op. cit., p.241. BENCHIMOL, Jayme Larry. “A modernização do Rio de Janeiro”. IN: DEL BRENNA, Giovanna Rosso. O Rio de Janeiro de Pereira Passos: uma cidade em questão II. Rio de Janeiro: Index, 1985. p. 258. 6
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cidade colonial portuguesa em metrópole
moderna, urbana e assalariada, resumida em
civilizada e cosmopolita, sempre tomando
um novo existir social e literário.
como referência as grandes capitais europeias, principalmente Paris.
Segundo Machado Neto, as mudanças sociais e as iniciativas modernizadoras decorrentes da
É então nesse contexto que viveu João do
abolição e da República transformaram a
Rio... João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos
literatura, o jornalismo e a boemia. A partir de
Coelho Barreto – mais conhecido pelo seu
1900 a literatura não se enquadra mais na
principal
–
boemia dos cafés e restaurantes. Era o início da
pseudônimo literário, inspirado no francês Jean
transição de uma mudança na boemia do
de Paris e adotado em 1904 – nasceu no dia 05
século XIX – caracterizada pelo romantismo
de agosto de 1881. Pessoa controvertida,
para uma boemia ligada ao modernismo. “A
amada por uns e execrada por outros, quando
proeminência cabe agora, à boemia dos salões,
se fala em João do Rio, sua imagem é
já que a literatura se assimilara ao mundanismo
imediatamente associada aos novos tempos da
da metrópole que se queria cosmopolita e
Capital Federal, à modernidade, à Avenida
civilizada”.9
pseudônimo
João
do
Rio
Central, ao Cinematógrafo e, ao mesmo tempo, ao submundo, à cidade dos vícios, dos prazeres e dos pecados.
João do Rio foi então, o literato que, como jornalista e cronista, viveu o dia-a-dia de uma cidade em constante remodelação, onde sua
João do Rio viveu nesse início de século
configuração se modificava permanentemente.
extremamente conturbado, onde as mudanças
Viveu no Rio de Janeiro dos novecentos; das
começaram a se suceder, de uma maneira
primeiras casas de chope, dos cabarés, das
muito rápida, em várias áreas, entre elas na
agremiações literárias e da Avenida Central
literatura, na imprensa e na boemia carioca.
como símbolo da civilidade carioca. Viveu
Esse é o momento que marca o fim de uma
numa cidade que se fazia representar moderna.
boemia intelectual de tradição européia, que dominou a vida da cidade durante as duas últimas décadas do século XIX e que se estendeu até os primórdios da República. Essa boemia teve como seu período áureo os momentos de luta dos jovens intelectuais abolicionistas e republicanos. Mas o que a
E como homem moderno, numa cidade que se remodelava, a imagem de João do Rio pode ser associada à do poeta francês Jean Baudelaire, pela sua condição de flaneur,10 ou seja, pelo fato de abrir mão de sua identidade como homem da cidade, para ganhar o mundo como um observador, o que só foi possível com a
sucede agora é o que Brito Broca chamou de uma “Boemia dourada”,8 ou seja, uma boemia 7
Ibidem. p. 249. 8 BROCA, apud, RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. José de Alencar: o poeta armado do século XIX. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000, p. 20.
MACHADO, Maria Cristina. Lima Barreto: um pensador social na Primeira República. Goiânia: Ed. da UFG; São 9
Paulo: Edusp, 2002, p. 61. 10 É de Baudelaire a ideia do artista enquanto flâneur. Através deste se resgata a posse da individualidade: o artista deixa de ser um homem perdido na multidão. Ele se caracteriza pelo prazer de olhar; é um voyeur e, enquanto tal, um rebelde ao déjà vu. BENJAMIN, apud, VELLOSO,
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remodelação arquitetônica da cidade e a vasta
o burguês entre suas quatro paredes.12 “Saio. É
ampliação do mundo de experiência.
preciso sair. Não é possível deixar de sair. A
Segundo Benjamin, o hábito do flaneur só se torna possível no asfalto. Assim como a Paris
cidade é outra, a cidade toma um tom inédito”.13
anterior à reforma de Hausmman, a cidade do
Em Benjamin o flaneur é comparado a um
Rio de Janeiro também tolhia essa atividade
detetive, pois entre suas características estão a
urbana por apresentar raras calçadas largas e
arte de observar e a sensibilidade apurada para
pela pouca proteção que oferecia contra os
os indícios do novo, qualidades adequadas ao
veículos que começam a se multiplicar na
ritmo da cidade grande e da multidão que
cidade.
circula por ela.
“Dificilmente a flanerie poderia ter alcançado sua relevância sem as passagens, uma nova invenção industrial, [com] vias cobertas de vidro e revestidas de mármore [onde] os dois lados dessas vias recebem a luz do alto [e onde] se sucedem as mais elegantes lojas comerciais, de tal modo que uma dessas passagens é uma cidade, um mundo em miniatura.11
Devemos, então, atentar para o fato de que é inspirando-se em autores da modernidade europeia, sobretudo em Baudelaire, que João do Rio defende uma nova visão da literatura que vai radicalmente contra temas oficiais, privilegiando a temática da vida privada e a
Essa descrição utilizada por Benjamin para
própria subjetividade. Para João do Rio a
ilustrar a Paris reformada por Hausmman,
realidade sempre ultrapassa os modelos que
extraída de um guia ilustrado da Paris de 1852,
lhe são impostos. A cidade não se constitui em
poderia ter feito parte de um guia da cidade do
abstrações criadas a seu respeito, ela existe
Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX,
para ser vivida em todas as suas variantes
após a reforma da cidade. No Rio de Janeiro, a
possíveis; de um passeio em uma festa elegante
Avenida Central e suas fachadas originárias de
nos bairros sofisticados da zona sul do Rio ao
um concurso arquitetônico, podem tomar a
encontro com os populares nas festas religiosas
descrição da Paris de Baudelaire para se
e tradicionais da Penha e da Glória.
caracterizar como um novo lugar e um novo ambiente que possibilitava a partir daí, o ver e o ser visto, onde a modernidade representada pelas
avenidas
largas,
iluminadas
pelas
lâmpadas elétricas se constituía no destino final do flaneur. A rua se torna moradia para o flaneur que está tão em casa entre as fachadas das casas quanto Mônica Pimenta. As tradições populares na Belle Époque carioca. Rio de Janeiro: Funarte, 1988, p. 29. 11 BENJAMIN, Walter. Sociologia. 2ª. ed. São Paulo: Ática, 1991. p. 40.
João do Rio foi uma das grandes figuras dos salões cariocas e fez um grande sucesso no tempo das conferências, falando de coisas que jamais as pessoas tinham ouvido, sobre a cidade e o mundo.14 João do Rio soube como ninguém, 12
BENJAMIN, op. cit., p. 67. Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 19 de abril de 1908. 14 RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins “Em algum 13
lugar do passado. Cultura e História na cidade do Rio de Janeiro”. IN: AZEVEDO, André Nunes de (org.). Rio de Janeiro: Capital e Capitalidade. Rio de Janeiro: Departamento Cultural/ Sr-3 UERJ, 2002, p. 19.
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fazer-se identificar ao cosmopolitismo de sua
modernos e vivências civilizadas. É por isso que
época.
a criação de novos espaços de civilidade, de
Desde o tempo do café do Rio, na esquina das ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias, que foi sua primeira experiência boêmia, teve interesse no aprendizado da retórica e da eloqüência. E foi
lazer, de troca de ideias e as sucessivas mudanças em várias áreas, como o trabalho e o conhecimento se constituem na temática do trabalho do nosso flaneur.
Café do Rio – Foto de Augusto Malta. Acervo do MIS-RJ
no Café Paris, no Largo da Carioca, entre os
João do Rio trata então, em suas crônicas, de
mosqueteiros das letras, das artes e da política
diversos assuntos, geralmente ligados ao
que adquiriu maturidade.15
cotidiano da cidade que se faz mudar
Era um novo mundo e um novo tempo onde seria possível presenciar as transformações na nascente Capital Federal, desde a despedida dos tempos coloniais até sua transformação numa
cidade
cosmopolita,
de
traçados
constantemente. As mudanças nas ruas e a criação dos boulevars como novos espaços de sociabilidade, as novas lojas de produtos importados, as festas populares que ora são proibidas, ora permitidas, as grandiosas festas da alta sociedade, o carnaval de rua e dos
15
Ibidem. p. 34.
salões. As novas proibições com argumentos
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“(...) o doutor Pereira Passos, que aos 70 anos, depois de reformar uma cidade violentamente, parte para a Europa, corre o Egito montado em dromedários, embarca para o Japão e trabalha, lê, escreve sempre incansável e sempre extraordinário.”19
civilizacionais são os assunto mais recorrente em suas crônicas. Pode-se observar que estes estão ligados à reformulação arquitetônica e, automaticamente, cultural da cidade, ou seja,
Passos
direta ou indiretamente interferem na tradição
Um dos assuntos de grande destaque de sua se
figura
como
aquele
responsável pela promoção da cultura do povo,
cultura da cidade.
coluna16
também
relaciona
aos
mentores
e
executores da reforma urbana. É muito recorrente, em seus textos, assuntos ligados às figuras do então Presidente Rodrigues Alves e
“Mas Deus do céu! A cultura pode promover uma série de coisas. Quem, porém promove a cultura no povo? Os homens inteligentes e adiantados pregando-lhe o que é bom e as autoridades obrigando-o a obedecer”.20
do Prefeito Pereira Passos, sendo que tanto ao
Ao tratar de assuntos ligados à Reforma
tratar do Presidente quanto do Prefeito, estes
urbana pelas quais as áreas centrais da cidade,
sempre aparecem ligados à ideia de civilidade
passavam naquele momento, vemos um João
e suas pessoas são sempre glorificadas e
do Rio menos convicto e mais contraditório,
aplauso,
exaltando as obras e a inserção da cidade num
convençam o governo atual de que é
panorama maior de modernidade, ao mesmo
necessário continuar a obra encetada pela
tempo em que a despreza, como se ela fosse
direção do conselheiro Rodrigues Alves e por
um mal responsável pelo fim das tradições. A
esse [...] extraordinário – o doutor Pereira
aprovação/exaltação e a negação/saudosismo
Passos”17. Pereira Passos sempre figura como
são assuntos constantes em várias de suas
incansável, extraordinário, como o homem de
crônicas.
exaltadas.
“Talvez
o
grito,
o
grandes realizações. “Era o Doutor Passos o
A exaltação das obras da Reforma e da
autor da ideia. (...), os meus olhos admiraram a
Grande
sua energia, o seu comendo, a maneira pela
modernidade carioca, pode ser observada em
qual tudo quanto queria, realizava o Prefeito”
.18
crônicas como a do dia 18 de agosto de 1907
Escreve João do Rio no dia 22 de julho de 1907
onde o luxo e o prazer presentes na nova
para em agosto do mesmo ano novamente se
cidade e tão almejados pela boa sociedade
referir com grande admiração à figura do
carioca são exaltados em contraposição à
Prefeito:
cidade antiga e tradicional.
como
símbolo
da
“A grande esplendorosa avenida “scintilla” de toiletes raras, de jóias coruseantes, de belezas admiráveis. Passam, sem cessar, automóveis raros, de luxo, numa fila interminável.(...)
16
Nesse nosso artigo tomamos para análise uma coluna denominada Cinematógrapho que foi publicada por João do Rio, sob o pseudônimo de Joe, na Gazeta de Notícias, um dos jornais mais importantes do período e que se encontra em custódia da divisão de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 17 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 18 de agosto de 1907. 18 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 22 de julho de 1907.
Avenida,
19
Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 18 de agosto de 1907. 20 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 01 de agosto de 1909.
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É bem diferente este Rio do que nós suportávamos há cinco anos atrás!”21
Vemos ai um sentimento de desprezo pela cidade antiga que se repete também na evocação da mesma como sendo os “maus
É o fim da cidade tradicional, singular e única e o início de um novo tempo onde tudo é moderno, padronizado e igual e com a cidade não seria diferente.
lugares do Rio”. “(...) Pelos becos lúbregos –
João do Rio nos presenteia ainda, numa outra
passeamos os dois pelos maus lugares, os
crônica, com uma maravilhosa descrição do
curiosos maus lugares do Rio: becos estreitos,
ainda, Rio antigo, escrevendo no dia 23 de
vielas más, onde a gentalha formiga”.22 O fato
agosto de 1910, ou seja, três anos após o
de chamar a cidade colonial de “maus lugares”
término da “Grande Reforma”, sobre a festa da
já demonstra uma contraposição aos bons
Glória, uma festa muito tradicional nos tempos
lugares que à princípio seria a parte reformada
do Império, que independente da grande
da cidade, ajardinada, iluminada e “avenidada”.
reforma modernizadora ainda sobrevive em um
No entanto, essa comparação do Rio reformado, civilizado e bom com o de outrora
espaço da cidade, com suas características originais e coloniais. “E de repente a maravilha cessa. Nós vamos por cima, pelo Catete e passamos pelo outeiro da Glória, o célebre ponto da célebre festa há vinte anos. Foguetes modestos e reumáticos subiam ao ar dificultosamente dando algumas lágrimas discretas. Uma gente vagarosa e mole subia o morro ou descia com sono. A iluminação era de velas em mangas de vidro e embaixo [...] uma série de vendedores de doces ambulantes gritando cocadas e quindins.”24
como sendo ruim, virá acompanhada, tempos depois, de um saudosismo capaz de fazer com que um leitor que tome determinada crônica separada do conjunto a que pertence, possa ter uma ideia completamente contrária do seu trabalho. Se acima, a Grande Avenida que
“scintilla” é vista como a representação da panorama
Essa é a outra cidade. A cidade que se
internacional de civilidade e modernidade –
mantém intacta, imutável. A cidade que não
uma ideia comum a várias capitais – por outro
reconhece a Reforma, porque esta não chegou
lado, ela representaria a padronização da
até lá. É a cidade que abriga as pessoas que
cidade e a perda de singularidade por parte da
direta ou indiretamente não foram atingidas
mesma.
pela Reforma e que, consequentemente, não
inclusão
da
cidade
em
um
“- Que horror! Com efeito, tudo aquilo está calçado, arejado, avenidado. Há mesmo um projeto de canteiros de boulevard, e o novo mercado todo de ferro elegante e moderno é como todos os mercados. (...) Sim, como queres tu originalidade onde tudo é igual as que há em outras terras? As avenidas são a morte do velho Rio.”23
mudaram seus hábitos de tal forma que sua vivência fosse alterada. E João do Rio conclui a citação acima da seguinte maneira: “Parecia a
roça, parecia a Arábia, parecia tudo quanto quiserem menos o Rio admirável - Eis a cidade de há vinte anos! E reside ainda!”25
21
Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 18 de agosto de 1907. 22 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 12 de janeiro de 1908. 23 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 12 de fevereiro de1908.
24
Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 23 de agosto de 1910. 25 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 23 de agosto de 1910.
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A luz é a civilização meu velho: quando a luz falha, adeus civilização.”27
Essa era então a cidade que não merecia mais aparecer, era a cidade, que nesse momento, três anos após a Reforma, o próprio João do Rio não queria mais que existisse, mas que como sobreviveu, lá estava ele para descortinar e mostrar que ainda existia uma parte da cidade que não havia sido tragada pela modernidade.
É então no sentido de um testemunho do seu tempo que vemos as crônicas de João do Rio, pois se como cronista da alta sociedade, ele se encantou e se deslumbrou com as novidades trazidas por uma corrente modernizadora, por outro lado, como cronista do submundo, ele
Cabe destacar que nesses primeiros anos do
não abandonou a velha cidade que conseguiu
século XX o Rio de Janeiro já se constituia no
se preservar e, para além disso, em nenhum
centro cultural, econômico e político do país e
momento ele abandona seu hábito de flanar e
que João do Rio, como homem moderno, se
sua observação múltipla, seja numa festa
encantou
elegante ou numa festa popular.
com
introduzidas
por
todas
as
essa
transformações
modernidade.
O
cinematógrafo, a eletricidade, o luxuoso Pavilhão Mourisco no elegante bairro de Botafogo; aparecem em várias crônicas suas como valorosos elementos trazidos pelo processo modernizador no qual o país se inseria
Essa aparente contradição alta sociedadesubmundo é aceita em João do Rio, justamente pelo fato dele estar inserido na modernidade, aquela que para Schorske28 vive e vê a cidade para além do bem e do mal. Para além de um julgamento da cidade como
através da sua Capital. A exaltação à eletricidade aparece nas suas crônicas de várias maneiras, e de forma constante. Desde a imagem que se tem dos postes de iluminação elétrica na enseada de Botafogo como um espetáculo – “Assim, inteiramente iluminada, alastrada de focos elétricos aquela enseada e um golfo de luz é como uma serpente lendária”26 – até a
destinada a um fim, João do Rio está disposto apenas a viver-la e essa vivência só é possível enquanto ele mesmo se ver como um flaneur. Inspirado nos intelectuais e artistas europeus que viveram essa experiência da modernidade no século XIX ele a toma como inspiração e torna a cidade do Rio de Janeiro do início do século XX seu cenário.
utilidade que esta tem como protagonista na
Cabe ressaltar que como João do Rio viveu
mudança de hábitos. A civilização seria agora,
ainda no momento em que essa transição
impossível sem a luz elétrica.
acontecia, acreditamos que nas suas crônicas
“- Não dormi anti-ontem. Não dormi ontem. Não durmo hoje. É impossível dormir no Rio sem luz. (...) O homem só é homem porque domina o fogo que é a luz. 26
Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 23 de agosto de 1910.
ela aparece de uma maneira bem explícita e é 27
Joe ((João do Rio):Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 19 de abril de 1908. 28 SCHORSKE, Carl E. Pensando com a história: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Para um maior aprofundamento quanto à questão da cidade para além do bem e do mal, ver: OLIVEIRA, Cristiane de Jesus. Nas entrelinhas da cidade: A
Reforma Urbana do Rio de Janeiro no início do século XX e sua imagem na literatura de Paulo Barreto; Orientadora:
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nesse sentido que sua percepção sobre a
e os acontecimentos, mesmo que grandiosos,
Reforma
suas
como a reforma urbana, não foram capazes de
contradições, são fontes ricas para a análise
mudar de um dia para o outro, toda a história
desse período.29 A cidade não é um bloco único
de uma cidade.
urbana
e,
principalmente
Sônia Cristina da Fonseca Machado Lino. – Juiz de Fora: UFJF, Departamento de História, 2006. Capítulo I. 29 Para um aprofundamento maior sobre a questão do uso das crônicas literárias como documentos, ver: NEVES, NEVES, Margarida de Souza. “Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas cariocas”. IN: CANDIDO, Antonio (et al). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Unicamp, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 76.
Para saber mais:
Cristiane de Jesus Oliveira Pimentel é Especialista em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.