5 gnarus5 prática e punição da sodomia no século xiii bruna oliveira mota (ufs)

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Artigo

PRÁTICA E PUNIÇÃO DA SODOMIA NO SÉCULO XIII ATRAVÉS DAS NORMATIVAS JURÍDICAS AFONSINAS: LAS SIETE PARTIDAS1 Por Bruna Oliveira Mota

Introdução

O

freira, um parente, uma mulher casada, um animal presente artigo tem como objetivo a análise das práticas sexuais por meio das

Siete Partidas, compêndio jurídico

ou até por meio da manipulação, também foram considerados pelo clero medieval como algo abominável.

castelhano. Enfatizaremos, de maneira geral, a

Ainda segundo Vainfas, o conceito de sodomia,

prática da sodomia, conceituando e analisando o

durante toda Idade Média, adquiriu alguns

rigor da sua condenação no século XIII, a partir da

sentidos. O primeiro grande significado da sodomia

referida documentação.

pertencia ao campo da animalidade, pois

Segundo Ronaldo Vainfas,2 o conceito de sodomia é um ato condenado conforme a época. Por muito tempo a sodomia permaneceu no mesmo âmbito de qualquer ato contra naturam, nos quais também estavam inseridos neste conceito de “contra a natureza” a retro canino (mulher de costas

sodomitas eram todos aqueles que cediam aos apelos da carne sem atentar para os costumes humanos em matéria sexual. O segundo significado advém da prática da sodomia marcada pelos

desvios da genitalidade, ou seja, o coito anal e as poluções orais.

para o homem) e a mulher super virum (homem

Com o decorrer do tempo, o conceito de sodomia

embaixo da mulher). A emissão de sêmen com uma

passou a ser identificado de forma individual, como

Entre o Pecado e o Prazer: As práticas sexuais em Castela no Século XIII (PVD2567-2014) financiado com bolsa remunerada pela COPES-UFS e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Álvaro. 2 VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1986.p. 66 e 67. 1 O presente artigo está atrelado ao Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica


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A Punição dos Sodomitas, Nicholas Hogenberg (séc. XV) um intercurso sexual entre homens e punidos

Partidas, especificamente a Setima Partida, como

violentamente com a mutilação ou a morte. Porém,

parâmetro para nossa análise.

ainda assim, como um ato contra naturam. O rigor à prática da sodomia, ao que tudo indica, se intensificou a partir do século XIII e XIV com os

A Sodomia na Documentação

testemunhos de inúmeros códigos ocidentais que

No Título XXI da Setima Partida, intitulado De los

estabeleceram a pena de morte na fogueira para os

que fazen pecado de luxuria contra natura,3

homens acusados dessa prática.

podemos ler:

O que tem nos instigado nesse artigo é entender o porquê desse rigor nesses séculos, sendo que nos anteriores a prática da sodomia era punida com a mesma intensidade de uma fornicação simples, ou seja, a sua condenação não era tão rigorosa a ponto de levar seu praticante à morte. Tentaremos ao longo desse trabalho elencar alguns fatores para a severidade na punição da sodomia durante o século XIII, utilizando a Siete ALFONSO X. Las siete partidas de Don Alfonso X. Barcelona: Impresta de Antonio Bergnes, 1843-1844. IV Tomos. Tomo IV. p. 329. 4 Idem. p. 329 e 330. 3

Sodomitico dizen al pecado, en que caen los omes yaziendo unos com otros, contra natura, e costumbre natura. E porque de tal pecado nacen muchos males em la tierra do se faze; e es cosa que pesa mucho a Dios con el, e sale ende mala fama, non tan solamente a los fazedores, mas aun a la tierra do es consentido; porende, pues que em los otros titulos ante deste fablamos de los otros yerros de luxuria, queremos aqui dezir apartadamente deste, e demostraremos, donde tomo este nome; e quien lo puede acusar, e ante quien. Et que pena merescen los fazedores e los consentidores.4


G N A R U S | 41 conquistadas e reconquistadas no período de seu O compêndio jurídico Las Siete Partidas, previa a

reinado.

morte àquele que fosse acusado de sodomia, seja

A condenação da sodomia estabelecida pelo víeis

ele ativo ou passivo, mas não àqueles que foram

religioso se dá no pressuposto básico da Igreja

forçados a praticar tal ato e nem àqueles que eram

considerar qualquer prática sexual fora do âmbito

menores de 14 anos.

conjugal e afastado do seu fim único que é a

A sodomia é considerada por Alfonso X um mal que põe em perigo não só a vida de quem a pratica,

procriação,

como

uma

prática

totalmente

abominável.

mas também a comunidade como um todo, pois

De igual maneira, sendo necessário um aumento

traz a ira de Deus. Sabemos que tal prática é

populacional no jogo político e estratégico de

condenada

mediante

Alfonso X, a prática da sodomia se caracterizava

argumentos religiosos, mas percebemos que não se

como um obstáculo importante para o alcance dos

é censurado somente o ato em si, mas sim a sua

seus objetivos. É importante pontuar que não

atuação

na

Setima

contra

sociedade

e

Partida

a

seus

interesses. várias para

punição

a e

condenação

tão

rigorosas da sodomia por parte de Alfonso X,

entre

universal

daquele período, mas entendemos a sua prática como algo que

colocava

do monarca. A validação de tal

pontuamos a questão

hipótese

religiosa, o aspecto

severidade

de

sodomia

político

e

o

para

a da

como

estratégica para a

pressuposto que o

uma

interesse

populacional

de

em

xeque os interesses

elas

fundamento

a

sodomia como uma prática

Temos hipóteses

consideramos

preservação por

combater a sodomia

Alfonso

e a bestialidade por

evidenciada na obra

ele estava atrelado a

Sexo, Pecado, Delito.

uma necessidade de

Castilla de 1200 a

um

1350,5 de Ana E.

aumento

populacional povoar

para

as regiões

ORTEGA BAÚN, Ana Estefanía. Sexo, Pecado, Delito. Castilla de 1200 a 1350. Madrid: Bubok Publishing, S.L., 2011. 5

X

é

Ortega Baún, quando a

mesma

pontua


G N A R U S | 42 sobre a legitimação e reconhecimento do concubinato clerical pelo monarca, permitindo que os filhos desses clérigos tivessem direito a herança dos seus pais, segundo ela, com o objetivo de repovoar o mais rapidamente possível o extenso e vago território conquistado pelos castelhanos. Segundo Jeffrey Richards,6 a preocupação latente com o problema da sodomia nas cidades foi exacerbada pela peste pandêmica e o consequente declínio da população que combinava com o hábito dos homens se casarem tarde ou sequer fazê-lo, em parte devido ao alto custo dos dotes e do casamento. Com relação à prática da sodomia o autor ressalta “A utilização de acusações de prática desviante para se livrar de inimigos era parte habitual da política medieval, e a sodomia era frequentemente vinculada à bruxaria e ao culto do Diabo”.7 Como dito, percebemos assim que a condenação da sodomia não adivinha somente de uma questão religiosa, ou seja, um ato que ia de encontro aos postulados da Igreja Medieval. Ela também se chocava com os interesses políticos da sociedade e

este acusamiento puede ser fecho delante del Judgador do fiziessen tal yerro. E si fuere provado, deve morir porende tambien el que lo faze, como el que lo consiente. Fueras ende, si alguno dellos lo oviere a fazer por fuerça, o fuere menor de catorze años. Ca estonce non deve recebir pena, porque los que son forzados non son en culpa; otrosi, los menores non entienden que es tangran yerro como es, aquel que fazen. Essa misma pena deve auer todo ome, o toda muger, que yoguiere con bestia; e deven demas matar la bestia para amortiguar la remembrança del fecho.8

Podemos notar através deste trecho documental, que todo acusado de sodomia e bestialidade teria como pena a morte, sendo, simplesmente, necessários testemunhos que explicitassem a veracidade do ato praticado. No entanto, convém destacar que nem sempre a condenação da sodomia foi realizada seguindo esse mesmo

víeis,

se

recuarmos

um

pouco

documentalmente perceberemos que no Fuero

Real, no Livro Cuarto, Título IX, intitulado De los que dejan La órden, e de los Sodomitas, em sua “Ley 2“ essa condenação tinha outra descrição:

do monarca castelhano Alfonso X.

Punição da Sodomia A punição da Sodomia estabelecida na Setima Partida, em sua Ley 2 intitulada “Quien puede

acusar a los que fazen el pecado sodomítico, e anti quien, e que pena merecen auer los fazedores del, e los consentidores” estabelece:

Maguer que nos agravia de fablar en cosa que es muy sin guisa de cuydar, e muy mas sin guisa de facer: pero porque mal pecado alguna vez aviene que un orne cobdicia a otro por pecar con el contra natura, mandamos que cualesquier que sean que tal pecado fagan, que luego que fuer sabido, que amos a dos sean castrados ante todo el pueblo, e después al tercer dia que sean colgados por las piernas fasta que mueran, e nunca dende sean tollidos.9

Cada uno del pueblo puede acusar a los omes que fiziessen pecado contra natura, e RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: As minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.p. 148 e 149. 6 7

Idem. p. 147. 8 ALFONSO X. op.cit.,p. 330 e 331. 9 FUERO REAL DEL REY DON ALONSO EL SABIO. In: Opusculos

Legales del Rey Don Alfonso el Sabio, publicados y cotejados

con varios códices antiguos por la Real Academia de la Historia. Madrid: Imprenta Real, 1886. Vol. 2: El Fuero Real, Las leyes de los Adelantados mayores, Las nuevas y El Ordenamiento de las Tafuererias, y por apendice Las Leyes del Estilo. p. 3-169. p.134. Disponível em: https://archive.org/details/opusculosle gales02cast. Última consulta em: 20 de março de 2015.


G N A R U S | 43 O que tem nos instigado, é entender o porquê da

entende essa atitude do monarca como uma

mudança na punição da sodomia por parte de

estratégia política, um pretexto convenientemente

Alfonso X. O que levou o monarca a mudar uma

válido, utilizado para afastar um inimigo declarado

estrutura jurídica já vigente? É importante ressaltar

do reino, posto que, segundo ele, o caráter rápido

que não pretendemos propor aqui respostas para

e violento da punição da sodomia presente na Siete

tal ato, mas sim, a construção de argumentos que

Partidas poderia servir de parâmetro para validação

possibilitariam lançar possíveis explicações sobre o

da sua hipótese.

caso.

Por fim, acreditamos que todas as abordagens

Analisando os dois aspectos punitivos da sodomia

em relação à prática da sodomia podem ser

em momentos diferentes do Governo de Alfonso X,

consideradas válidas, por isso não devemos

notamos

na

conceber as atitudes do monarca castelhano-

aplicabilidade da pena. Como tentativa de

leonês sobre um único víeis, já que as relações

explicação para essa mudança, são levantadas

naquele

algumas hipóteses, construídas por especialistas

entrelaçadas, ou seja, não podendo se separar o

sobre a vida e a obra de Alfonso X, entre eles,

âmbito religioso, do político, do econômico e

destacamos o trabalho de Salvador Martínez.

nem do cultural. Julgar que Alfonso X instituiu a

uma

acentuada

modificação

No livro Alfonso X, the learned: a biography,10 este autor institui como hipótese para tal mudança, o caso mais enigmático do governo do monarca: a morte de seu irmão Fadrique. Segundo Salvador Martínez ele foi punido pela pena capital sob a

momento

estão

completamente

punição da sodomia utilizando somente um desses pressupostos

seria cair em

erro

anacrônico muito grave, pois sabemos que no contexto medieval essas instancias não se separavam.

acusação de sodomia. É válido lembrar que não nos deparamos até o momento com algum documento que ateste tal hipótese, mas consideramos o caso aqui, não pela veracidade ou não do ato, e sim, pelas suposições acerca da punição de tal prática estar intimamente vinculada às disputas de poder no período. Como ferramentas para tal afirmativa, Salvador Martínez utiliza como pressuposto alguns aspectos nebulosos acerca desse ato, entre eles, o sigilo em torno da real causa da morte do acusado, a forma como o mesmo foi morto, sem direito a um funeral digno de um nobre e as circunstâncias entorno do ato. Ressaltamos que o próprio autor não acredita na prática da sodomia por parte de Fadrique, ele 10 MARTÍNEZ, H. Salvador. Alfonso X, the learned: A biography.

Leiden/Boston: Brill, 2010.

Considerações Finais Quando se trata da Idade Média, de maneira geral, o sexo é visto por nós contemporâneos como uma das práticas mais reprimidas daquele período. Essa perspectiva, carregada de uma série de interpretações simbólicas equivocadas, está atrelada ao fato de, indiscutivelmente, ter sido aquele um período da História no qual a Igreja media forças na tentativa de normatizar práticas

comportamentais

procuramos,

em

tese,

que, compactar

hoje, em

classificações que facilitem nossas análises:


G N A R U S | 44 política, religião, religiosidade, instituições, economia, cultura, etc. Como afirma Jérôme Baschet:

Embora a religião no sentido contemporâneo do termo não existia na Idade Média, as questões relativas à organização da Igreja, quer dizer, às relações entre os clérigos e os laicos, de um lado, entre os homens e o mundo celeste, de outro, são evidentemente centrais, mas nem por isso formam, em decorrência, um setor autônomo e separado do restante da atividade coletiva. Elas são, pelo contrário, inseparavelmente imbricadas no conjunto das realidades sociais. É preciso, então, cessar de pôr o estudo da Igreja à margem da análise do feudalismo, sob o pretexto de que ele diria respeito a um capítulo “religião”, que tivesse apenas relações acessórias com as estruturas sociais. Repitamos ainda uma vez: a Idade Média ignora toda a autonomização do domínio religioso, pois a Igreja, como comunidade, é a sociedade em sua globalidade, enquanto, como instituição, ela é sua parte dominante, que determina suas principais regras de funcionamento.11

Diante de tudo que foi exposto, reforçamos a prerrogativa de que não existe um único postulado em voga da prática da sodomia. Entendemos essa prática e a sua punição por todas as estruturas que norteiam e normatizam a sociedade daquele momento intimamente vinculada às relações senhoriais.

Bruna Oliveira Mota é Mestranda pela Universidade Federal de Sergipe e pesquisadora do Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica Entre o Pecado e o

Prazer: As práticas sexuais em Castela no Século XIII

(PVD2567-2014) financiado com bolsa remunerada pela COPES-UFS e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Álvaro (UFS).

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 168. 11


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