GNARUS|1
Artigo
A ORIGEM DO DEBATE SOBRE O DEUS ÚNICO E O SURGIMENTO DA IDEIA DA TRINDADE NO ÂMBITO CRISTÃO (SÉCULOS III E IV D.C.) Por: Flávio Henrique Santos de Souza RESUMO : Neste artigo abordaremos a discussão do Deus que é tido como uno, mas que é apresentado de forma trina no âmbito do pensamento cristão. Nem todos os grupos cristãos da Antiguidade (como também da contemporaneidade) comungavam com esse ideário, e, ainda hoje é uma questão que disponibiliza fortes embates entre alguns cristãos (trinitarianos e unitarianos). Como também, muito debate entre historiadores e teólogos. Mas, será que o Antigo Testamento faz alusão ao chamado dogma Trindade? Será que os primeiros escritores cristãos fizeram menção da Trindade no que, posteriormente, veio a se chamar Novo Testamento? É o que discorreremos ao longo dessa pesquisa. Palavras-chave: Cristianismo, Trindade, Judaísmo, Monoteísmo.
Introdução
valor da circuncisão na assembleia de Jerusalém1, a
É
notório que o cristianismo “bebeu” da
fé cristã em menor escala ainda continuou com
fonte judaica no tocante a diversos
influências judaizantes no seu âmago teológico.
preceitos e leis hebraicas, que tiveram
Destarte, a maior parte dos cristãos assim como os
uma nova roupagem ao serem alocadas
judeus tem a perspectiva na crença do Deus único.
no cerne do seu corpo doutrinário. E isso veio se
O Deus que é tido como o criador do universo,
reverberar no que é chamado de tradição judaicocristã. A despeito de ter ocorrido o cisma da crença cristã quanto ao arcabouço de crenças judaicas no século I d.C. após a controvérsia do
1
Atos 15. Disputa “teológica” ocorrida aproximadamente no ano de 49 d.C. em Jerusalém entre os representantes dos cristãos judaizantes e Paulo de Tarso, defensor da missão gentílica de cristianização. Nessa reunião, ficou decidido que os gentios que abraçassem a fé cristã não precisariam seguir algumas questões do rito mosaico. JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 11-12.
GNARUS|2 “reitor” da natureza, e que pode intervir no curso
fragmento de fonte supracitado faz parte do
natural das suas criações para perpetrar os seus
Pentateuco3, e os judeus o chamam de Shemá. Ou
desígnios. Logo, tanto para cristãos como para os
seja, é a confissão fundamental de fé do judaísmo.
judeus, existem enumerações
daquilo que eles
A exortação que teria sido “dada” por Deus
convencionaram chamar de atributos de Deus. Por
começa com o termo hebraico shemá, que
exemplo, a onipotência (todo poder é executado
significa o ato de ouvir. Isto é, o povo judaico
por Deus), a onipresença (não existe lugar que
deveria atender esse comando para que o mesmo
Deus não esteja, pois está em toda parte) e
viesse responder devidamente e propriamente ao
onisciência (Deus tem a ciência de todas as
seu Deus. O povo deveria ouvir e obedecer, pois
incidências).
Deus o teria escolhido como “povo eleito” e não
Até aqui nesse sistema de crenças, não há
foram os judeus que intentaram e fizeram essa
divergências entre os prismas cristãos e judaicos
escolha. Mas a predestinação teria ocorrido por
em relação ao Deus uno. Porém, os cristãos,
parte de Deus. Seria como se Deus estivesse em
posteriormente, vão se notabilizar e diferenciar
“busca” dos homens e não os homens em “busca”
dos Judeus nesse aspecto pelo acréscimo de mais
Dele. Por isso, os judeus acreditam que foram
duas “deidades” em Deus. Contudo, para a fé
“eleitos” por Deus. Segundo os adeptos do
cristã (a maior parte)
judaísmo, Deus teria
Deus
salvado
continuaria
Israel
da
sendo único.
escravidão do Egito,
Origem do monoteísmo judaico Na crença
teria
monoteísta judaica,
instrução para que o
Deus
povo viesse a viver
é
um
os
guiado
através do deserto e forneceu-lhes
ser
“solitário”, ou seja,
bem
não existem outros
Prometida”.
Além
deuses, ou melhor,
disso,
Deus
personalidades
divinas
para
Lhe
fazerem
na
“Terra
estabelecera
um
companhia. Como pode ser evidenciado no
“relacionamento íntimo” com seu povo. Por isso, os
documento veterotestaméntário:
judeus quando se referem a Deus o reconhece
Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! Portanto, amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração!2. Foi esse o ponto de total discrepância que levou os cristãos a se diferenciarem dos judeus. Esse 2 Deuteronômio 6: 4-6.
como Senhor que é o único Deus verdadeiro. Com isso, para os proponentes do judaísmo, Deus teria “revelado” sua unicidade no monte
3 Os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) que para os judeus são chamados de Torá (“A Lei”). SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006, p. 391.
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Sinai a Moisés4. E depois dessa “revelação”, o povo
Desfechada a visão judaica sobre o Deus uno,
de Israel recebeu de Moisés o decálogo que teria
agora, analisaremos na esfera do cristianismo o
sido “dado” por Deus ao profeta para comunicar
mesmo
aos judeus mandamentos. E dentre os dez
peculiaridades que faz com que exista um abismo
mandamentos outorgados, fica bem claro a
de discrepâncias em comparação com o judaísmo.
condição de distinção entre Deus e os deuses
Como acentua o historiador Paul Jonhson:
ensinamento,
mas
com
algumas
aceita nenhuma outra divindade. E depois disso,
O que o distinguia do judaísmo era a crença na divindade de Cristo. Se Jesus fosse um mero messias, os dois sistemas religiosos seriam conciliáveis, como, aliás, argumentaram os cristãos judeus. Contudo, a insistência de que Jesus era o filho de Deus deixou o movimento de fora dos limites mais extremos do pensamento judaico e não apenas separou os sistemas como criou entre eles uma inimizade mortal. Essa situação acabaria gerada pela vitória da teologia paulina. A divindade de Cristo dotou o cristianismo de seu extraordinário impacto inicial e auxiliou em sua universalidade 8. Desde o século I d.C., grande parte dos adeptos
Moisés prescreveu os dez mandamentos que
da fé cristã professavam a crença em um único
começa com ordenanças no âmbito da adoração
Deus, mas esse Deus singular com o passar do
do verdadeiro Deus (Iahweh), é salientado como
tempo, tornou-se uno e trino concomitantemente.
os judeus se relacionariam com seus patrícios e os
A doutrina cristã “ortodoxa” diz que existe uma
povos gentílicos, e, é ressaltado a construção de
“Santíssima Trindade”, isto é, Deus é um ser
práticas litúrcicas para rituais. Destarte, pode ser
perene e coexiste com três pessoas eternas,
visualizado que o ponto capital do judaísmo é a
diferentes e que não podem ser fragmentadadas
unicidade absoluta de Deus como o criador que é
da sua coesão. Esse sistema de crença se
onipotente, onisciente, onipresente. Logo, depois
dogmatizou no século IV d.C. após o Concílio de
dessas instruções do decálogo, qualquer tentativa
Niceia9. De sorte que o Deus uno passou a ser
dos judeus de querer pender para o politeísmo
“manifestado” como Pai, o Filho e o Espírito Santo:
seria uma abominação. E doravante, aquele que
No início o dogma da Trindade foi um dogma cristão muito particular. Deus é uno e trino, quer dizer, um Deus em três pessoas. Deus está frequentemente representado por três anjos que serão a encarnação da Trindade. E é, sobretudo em
existentes. Essa passagem do livro de Êxodo é retratada da seguinte forma:
“Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo: Eu sou Iahweh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da servidão. Não terá outros deuses diante de mim”5. Os judeus afiançam que depois de terem passado mais de quatrocentos anos no Egito sendo supliciados pelos egípcios6, Deus teria livrado o povo hebreu dessa subjugação e se “revelou” no monte Sinai como o Deus verdadeiro e que não
não crumprisse esses preceitos e uma série de outros, seria ameaçado com a destruição e poderia perder a própria vida7.
4 Êxodo 19. 5 Êxodo 20: 1-3. 6 Ibid., 12:40. 7 Levítico 26.
8 JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 109. 9 Primeira assembleia “universal” de eclesiásticos que foi convocada pelo imperador Constantino. Ocorreu na cidade de Niceia da Bitínia em 325 d.C. O escopo da reunião foi a busca pelo consenso de diversas questões entre as comunidades cristãs.
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torno dessa noção bizarra da Trindade que nascem as heresias, quer dizer, “buscas” que não são lícitas, que levam ao abandono da ortodoxia, do verdadeiro dogma, da verdadeira crença e que são injúrias feitas a Deus 10. Essa doutrina dos cristãos difere radicalmente do
Porém, essa questão da divindade de Jesus foi sendo construída ao longo do tempo. Os Evangelhos de Mateus , Marcos e Lucas não chamam Jesus de Deus em nenhum momento. Já o Evangelho de João, que foi o último a ser escrito,
monoteísmo judaico, visto que no judaísmo não
vai retratar Jesus como um ser preexistente 14.
existem três pessoas na divindade, há apenas a
Assim, o Evangelho de João foi um dos portadores
unicidade absoluta de Deus. E qualquer outra
da alta cristologia15. Os outros três Evangelhos do
forma de divindade é uma aberração e um
Novo Testamento vão chamar Jesus de Filho de
sacrilégio. Como é salientado nas Escrituras
Deus, mas vão discordar quando isso acontece, ou
judaicas: “Assim diz o Senhor, rei de Israel e seu
seja, o momento exato que Jesus se “transformou”
Redentor, o Senhor dos exércitos: Eu sou o
em Filho de Deus. Para Mateus e Marcos Jesus se
primeiro e eu sou o último, e fora de mim não há
tornou o Filho de Deus no batismo 16. Segundo
11
Deus” . O estrito monoteísmo judaico foi sendo substituído pelos cristãos em um processo de deificação de Jesus de Nazaré, o ponto crucial para os cristãos se dá na centralidade da figura de Jesus. Os cristãos salientam a suma relevância de seus ensinamentos no que tange à moral, dentre os principais destacam-se o amor a Deus e ao próximo12. Mas o âmago da fé cristã se dá na morte e “ressureição” de Jesus. A vida de Jesus é tida como um exemplo a ser seguida, pois no prisma da maioria dos cristãos ele é o Deus “encarnado” (que seria 100% homem e 100% Deus ao mesmo tempo). E para aprender acerca dos “planos” de Deus para o homem, seria preciso observar seus ensinamentos. Assim como pontua o historiador Jacques Le Goff:
“Jesus se torna não apenas o Deus dos homens, mas Deus feito homem, cujo ato essencial para a salvação de cada um foi a Paixão e a morte na cruz”.13 10 LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.33. 11 Isaías 44:6. 12 Mateus 22:37-39.
Lucas, Jesus é o Filho de Deus desde o ato da “concepção virginal” de Maria17. Contudo, ser Filho de Deus para os judeus antigos não era ser um indivíduo com natureza divina. O teólogo Bart Erhman especialista em Novo Testamento pontua que:
O rei muito humano de Israel era chamado de Filho de Deus (2 Samuel 7:14), e a nação de Israel era vista como Filho de Deus (Oseias 11:1). Ser Filho de Deus Costumava significar ser o intermediário humano de Deus na Terra18. Nos séculos II e III d.C., a maior parte dos cristãos já reconhecia Jesus como Deus. Que segundo a crença “tradicional” dos primeiros cristãos, veio a Terra para libertar e salvar os seres humanos do 13 LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.38. 14 João 1:1-14. 15 Descrição de Jesus de Nazaré de forma sobremodo exaltada e divina. EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 311. 16 Mateus 3:13-17. Marcos 1:9-11. 17 Lucas 1:35.
18 EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 307.
GNARUS|5 pecado, e, através da crença na sua morte e
Isso era uma prática muito comum entre eles, haja
“ressurreição”, livraria do sofrimento eterno
vista que para esses grupos (de gnósticos) muitos
aqueles que confiassem nos seus ensinamentos. A
outros seres poderiam ser portadores da deidade.
despeito da construção teológica de Jesus sendo
Além
desses
grupos
cristãos
supracitados
de fato “plenamente divino” e plenamente
(ebionitas, marcionistas e gnósticos), ainda tinha
humano ter se tornado majoritária entre os
os judeus “ortodoxos” que também questionavam
cristãos, existiam pequenos grupos que não
essa suposta divindade de Jesus que teria sido
reconheciam esses ensinos. Afinal de contas, ser
criada pelos seus discípulos, pois argumentavam
Filho de Deus não era igual a ser divino. Porém, se
que ele jamais teria a natureza divina. Porquanto
Jesus fosse Deus, não haveria como ter apenas um
foi apenas mais um ser mortal que exercia alguns
Deus, mas sim dois deuses (e posteriormente três,
“poderes” de cura e exorcismo. De sorte que ao
com o acréscimo do Espírito Santo).
contrário do que se conta no “mito” da crença
Nesse contexto, um recorrente e ríspido debate
cristã, Jesus não teria ressuscitado, mas teria tido o
aconteceu entre grupos adocionistas (criam
seu cadáver roubado pelos seus discípulos para
apenas na humanidade de Jesus) e docetistas
simular uma possível ressurreição.
(criam apenas na divindade de Jesus). Como no
O surgimento da doutrina da trindade
caso dos judeus-cristãos chamados de ebionitas,
No início do século III d.C., um apologista
que diziam haver apenas um Deus e exigiam a
(“defensor da fé”) chamado Tertuliano22 se
necessidade de se manter muitos dos preceitos judaicos. Sendo assim, Jesus para eles era o 19
destacou entre os demais e se notabilizou por ser um heresiologista (“caçador de heresias”) e por ser
Messias judeu e absolutamente humano. Já para
o primeiro a fazer a adesão do termo Trindade
os marcionistas20, Jesus era completamente Deus e
para se buscar compreender a tríade Pai, Filho e
não tinha resquício nenhum de humanidade, pois
Espírito Santo.
ele só parecia humano. Todavia, para os marcionistas existia o Deus iracundo do Antigo Testamento e o Deus amoroso de Jesus. Além disso, tinha a perspectiva de vários grupos de gnósticos21 que reconheciam Jesus como divino. 19 No âmbito judaico, o Messias nunca foi considerado como Deus. Porém, era visto como um mediador entre Deus e os homens para que a vontade de Deus graçasse na Terra. Ibid., p. 316. 20 Seguidores das doutrinas do pregador e “teólogo” Marcião no século II d.C.
21
A palavra grega gnosticismo significa conhecimento. O termo designa grupos cristãos existentes desde o século I d.C. e que professavam que a salvação era adveniente do conhecimento secreto revelado por Jesus, e, não pela fé na sua morte e “ressureição”. EHRMAN, Bart D. Como Jesus se Tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014, p. 406.
22 Importante “teólogo” da comunidade cristã de Cartago, que ficava ao norte da África. Ibid., p. 416.
GNARUS|6 Espírito Santo. E a explicação do que, doravante, veio a se tornar o dogma da Trindade. Para Tertuliano o termo Trindade queria dizer três-em-um, de sorte que a palavra sendo aplicada a Deus significaria um único Deus que subsiste em três pessoas. Ficando assim: “O Pai é um, o Filho um e o Espírito Santo um, e eles são distintos um do outro”23. Assim, ao mesmo tempo em que a maior parte dos cristãos dizem haver um único Deus, afirma que o Pai é Deus, o Filho é Deus e que o Espírito Santo é Deus. Porém, essas três pessoas seriam distintas e não teriam a mesma essência e substância. Depois do Concílio de Niceia no século IV d.C., os
cristãos
cristológicos
“vencedores” se
desses
posicionaram
debates
ainda
mais
Os cristãos que defendiam a divindade de Jesus
rigidamente sobre o assunto, pois diziam que é
estribam-se em escritos da Bíblia (aliás, o cânone
uma insolência discorrer sobre questões que não
do Novo Testamento ainda não estava coligido,
são reveladas aos homens e primavam pelo que
mas todos os livros já existiam). Segundo a crença trajetória da sua vida e dentro do próprio contexto
Ícone retratando o Primeiro Concílio de Niceia. ficou acertado no Credo Niceno 24. A opinião que
cultural judaico da época, Jesus teria deixado clara
se fez “ortodoxa” sobre o assunto, diz que as três
sua condição divina (isso apenas no Evangelho de
pessoas são um Deus. Pois as Escrituras se
João, que foi escrito aproximadamente entre 60 a
harmonizam com essa hipótese e tem sido a crença
65 anos após a morte de Jesus). Eles alocam Jesus
da Igreja desde o primeiro século (argumento já
como a segunda pessoa da Trindade. Todavia,
refutado ao longo de nossa pesquisa). Doravante,
como já ressaltamos nesse trabalho, a deificação
o Credo atribuído ao bispo Anatásio25 tentou
dos mesmos, através da postura de Jesus na
de Jesus foi sendo construída aos poucos. Os primeiros cristãos do século I d.C. não tinham essa perspectiva.
Paulo: Leya, 2014, p. 420.
Analisaremos agora, a explicação trinitária e trabalharemos
23 EHRMAN, Bart D. Como Jesus se Tornou Deus. São
com
fontes
bíblicas
veterotestamentárias e neotestamentárias para elucidar a base de fundamentação cristã proposta por Tertuliano (outros escritores eclesiásticos participaram também desse labor teológico) quanto à divindade de Jesus de Nazaré e do
24 Declaração de fé que foi construída no Concílio de Niceia para alijar todas as formas alternativas de se conceber Deus. 25 Atanásio foi um diácono de Alexandria no Egito no século IV d.C., que se engajou durante o Concílio de Niceia contra as ideias arianas. Posteriormente, Atanásio se tornou bispo. EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 321.
GNARUS|7 explicar mais exaustivamente o obscuro dogma da
ao Deus monoteísta (Iahweh) e quando é utilizado
Trindade. Segue uma parte desse documento:
no plural se refere aos deuses pagãos28.
Todo o que se quiser salvar, deve mais do que tudo ter a fé católica. Aquele que não a guardar pura e inteira, de certo perecerá eternamente. A fé católica, pois, é esta: Adoramos um Deus em Trindade e a Trindade em Unidade. Sem confundirmos as Pessoas ou dividir a substância. Porque uma é a Pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo. Mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo têm uma só divindade, Glória igual e co-eterna Majestade. O que o Pai é, tal é o Filho e tal o Espírito Santo. O Pai é incriado, o Filho é incriado e o Espírito Santo é incriado (...)26. Discutiremos agora, as bases de fundamentação
Nesse processo de construção teológica cristã, o cânone
veterotestamentário
foi
alocado,
doravante, com o cânone neotestamentário. Assim, Iahweh, que inicialmente era o Deus estrito dos judeus, se tornou também o Deus cristão. E segundo os cristãos “ortodoxos”, esse é o nome pelo qual Deus teria se “revelado” ao homem pecador. No livro do Gênesis, Deus teria se “revelado” ao homem no princípio da raça humana. No livro de Êxodo, teria se “revelado” ao
do dogma que foram utilizadas pelos cristãos após
povo através do pacto mosaico etc. No Novo
a “vitória” do grupo majoritário em Niceia.
Testamento de forma geral, Deus teria se
Os cristãos que arrogaram serem “ortodoxos”, utilizaram tanto o Antigo Testamento como os escritos do que, posteriormente, veio a se chamar Novo Testamento para se aferrar no dogma da Trindade. No Antigo Testamento, a Trindade é inferida pelos trinitarianos através dos nomes que
“revelado” como o trino e uno Iahweh. Dessa forma, os “cristãos ortodoxos” consideraram que a Trindade é um “mistério” que aparece no Antigo Testamento na expressão da palavra Elohim. Como nos mostram mais algumas fontes das Escrituras judaicas: “Deus disse: façamos o homen à nossa
Deus teria se “revelado” aos homens. Nessa
imagem, como nossa semelhança (...)”29, “depois
perspectiva, isso indicaria que pode haver
disse Iahweh Deus: se o homem já é como um de
pluralidade de pessoas na divindade. Como é visto
nós (...)”30, “vinde! Deçamos! Confundamos (...)”31.
no termo hebraico Elohim, que é uma palavra no
Mas, nessas passagens supracitadas, apenas é
plural e é empregada em alguns lugares do Antigo
evidenciado um “plural de majestade” que denota
Testamento como relata a fonte: “no princípio
a grandiosidade de quem está falando. E não faz
criou Deus (Elohim) os céus e a Terra”27. Os
menção alguma de uma suposta pluralidade de
“ortodoxos” postularam que nesse fragmento, o
divindades atreladas à Iahweh.
nome plural é aplicado como sujeito de um verbo
Na perspectiva dos eclesiásticos autointitulados
singular, significando que o Deus uno também é
“ortodoxos”, esses trechos do Antigo Testamento
trino. Contudo, o termo Elohim não existe apenas
como
no plural, pois ele também pode ser aplicado no
satisfatoriamente à pluralidade de pessoas na
singular. Quando empregado no singular se refere
unidade divina. Mas convém lembrarmos que esses
26 Credo de Atanásio. Disponível em: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/dialogo_ecume nico/os_credos_ecumenicos. Acesso em: 14 de Agosto de 2013. 27 Gênesis 1:1.
também
outros,
podem
28 Ibid., 35:2, Êxodo 18:11, Jó 1:6 e Salmos 8:5. 29 Gênesis 1:26. 30 Ibid., 3:22. 31 Ibid., 11:7.
explicar
GNARUS|8 textos são de escritores judeus, que foram os
não relata nenhuma “fusão três em um” de
primeiros monoteístas da história universal das
Iahweh, Jesus e Espírito Santo.
religiões. E o elemento de capital importância do
Já nos escritos apostólicos, a “ortodoxia” se
judaísmo é a crença na unicidade de Deus, que é
fundamentou no que Paulo escreveu. Ela afiança
invisível e que não pode ser divisível. Contudo,
que fica claro que há um só Deus: “há um só Deus e
esses cristãos (trinitarianos) alegaram que tanto o
Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos
Antigo e o Novo Testamento corroboram com a
e em todos”34; Que este Deus teria enviado seu
visão da tri-unidade de Deus.
Filho: “quando, porém, chegou a plenitude do
Em
relação
ao
Novo
Testamento,
tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma
especificamente nos Evangelhos, os adeptos da
mulher, nascido sob a Lei”35; Que o Filho é Deus
doutrina trinitariana dizem que se tem o reconhecimento da atuação das três pessoas da Trindade. Para eles, um dos exemplos mais patente aparece nos três Evangelhos canônicos (Mateus, Marcos e Lucas), que é a narrativa de Jesus sendo batizado
por
João
Batista.
Segundo
os
evangelistas, quando ocorreu o batismo o Espírito Santo teria “descido” do céu na “forma corpórea” de uma pomba e Deus teria “falado” que Jesus era seu filho amado32. Mas, nenhum desses textos abordam sobre a doutrina da Trindade, apenas há inferências teológicas. Outro
fragmento
do
Novo
Testamento
defendido pelos triunitários seria a “fórmula do batismo” onde Jesus teria prescrito o seguinte: “ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”33. Na visão “ortodoxa” cristã, se não houvesse distinção pessoal entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, não seria necessário o emprego dos três nomes nessa
“manifestado” em carne: “seguramente, grande é o mistério da piedade: ele foi manifestado na carne, justificado no Espírito, comtemplado pelos anjos, proclamado às nações, crido no mundo, exaltado na glória36; E que Jesus se ofereceu a si mesmo a Deus:
“quanto mais o sangue de Cristo que, por um Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha, há de purificar a nossa consciência das obras mortas para que prestemos um culto ao Deus vivo”37. Nestas passagens acredita-se que se veem três “personalidades”, porém ao mesmo tempo unidas em uma só divindade. Não é possível citar todos os textos da Bíblia que supostamente abordam essa doutrina, pois comprometeria nossa discussão pela falta de espaço. Mas vamos rapidamente analisar os textos de Paulo38 mencionados anteriormente e do escritor da carta aos Hebreus. Para Paulo de Tarso, realmente existe um só Deus, porque o mesmo antes da sua conversão a fé
passagem. Esse é um dos poucos pontos da
34 Efésios 4:6.
narrativa bíblica que aparece os três sendo
35 Gálatas 4:4.
evidenciados claramente e de forma distinta, mas 32 Marcos 1.9-11, Mateus, 3: 13-17, Lucas 3:21-22 e João 1:32-34. 33 Mateus 28:19.
36 1 Timóteo 3:16. 37 Hebreus 9:14. 38 Paulo de Tarso foi um dos grandes escritores cristão do século I d.C., como também um grande propagador da fé cristã entre os gentios na Antiguidade.
GNARUS|9 forçadamente a “ortodoxia” interpretou como Espírito Santo para justificar suas doutrinas triunitárias. Mas, Se Jesus se entregou a Deus para morrer, então, ele se entregou a si mesmo e se autodesamparou?41 Estes textos são plenamente utilizados para tentar provar uma doutrina que nunca fez parte do ideário dos primeiros cristãos enquanto Jesus ainda estava com eles e muitos anos depois que ele morreu. O dogma da Trindade foi sendo construído em um processo teológico e teve seu apogeu com a deliberação “ortodoxa” (no século IV d.C.). De modo que todas as outras formas de se “compreender” Deus entre os cristãos foram tidas como “heréticas” e excluídas. Considerações finais cristã foi judeu e fariseu39. No que tange à epístola escrita para as comunidades cristãs da Galácia, fica evidente que para Paulo, Jesus em hipótese nenhuma era o Deus-Pai, claro que sendo Filho de Deus, ele seria Deus em algum sentido (como nas mitologias grega e romana). Outra questão importante nessa passagem, é que Paulo diz que Jesus nasceu de uma mulher. Mas não mencionou o nome de Maria e nem a “virgindade na concepção”. Com relação aos textos de Efésios e 1 Timóteo também citados anteriormente, essas cartas não fazem parte dos ecritos de Paulo, pois são falsificações feitas no seu nome 40. No tocante ao texto de Hebreus, o autor fala que Cristo (Jesus) se entregou a Deus por um Espírito eterno que 39 Atos 23:6-7, Filipenses 3:5-6. 40 As epístolas de Paulo aceitas pelos estudiosos do Novo Testamento como advindo dele são apenas sete (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicences e Filemom). EHRMAN, Bart D. Quem Escreveu a Bíblia?: Por que os Autores da Bíblia Não São Quem Pensamos Que São. Rio de Janeiro: Agir, 2013, p. 97-118.
Os esclesiásticos criadores da “ortodoxia” buscaram clarificar a questão da Trindade com todos esses apontamentos textuais abordados anteriormente (e tantos outros, a nossa discussão não foi exaustiva. Pois frisamos apenas nos pontos centrais). Todavia, deixamos mais dois fragmentos de textos bíblicos para nossa análise final. O Ícone com os Pais Sagrados do Primeiro Concílio de Niceia e o imperador Constantino, que exibe não o texto original do Credo Niceno (do ano 325) senão uma versão modificada do Credo niceno-constantinopolitano do Primeiro Concílio de primeiro é de Paulo, que finalizando sua carta aos cristãos de Corinto disse o seguinte: “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós!”42. Mais uma vez as três “pessoas divinais” aparecem citadas, entretanto, não há aquele sistema unificador do Deus uno com o trino criado a partir 41 Mateus 27:46. Marcos 15: 34. 42 2 Coríntios 13:13.
G N A R U S | 10 do século III d.C., e que teve seu desenvolvimento e apogeu no século IV d.C. O segundo é do profeta Isaías, onde Deus teria feito as seguintes indagações: “a quem podereis comparar-me ou igualar-me? Quem podereis em paralelo comigo, que seja igual?43. Para os judeus, esse é mais um texto que mostra a incomparabilidade de Deus com os seres humanos e divinos. Em resumo, constata-se que nenhum dos escritos do
Antigo
e
Novo Testamento
defendem
claramente essa crença tida como dogma da Trindade.
No
Antigo
Testamento,
seria
inconcebível que escritores judeus salientassem esse pluralismo em Deus. No Novo Testamento, são feitas analogias para tentar confirmar o ponto de vista dos cristãos que se sagraram “vitoriosos” do Concílio de Niceia em detrimento de cristãos que foram tidos como heterodoxos. Flávio Henrique Santos de Souza é Licenciado em História pela Universidade Castelo Branco (UCB) e Pósgraduado em História Antiga e Medieval pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEA-UERJ).
Referências bibliográficas Documentação Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Nova Edição, Revista: Paulus, 1973.
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