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Artigo
A HIGIENIZAÇÃO SOCIAL NO BRASIL E O PAPEL DO MANICÔMIO (1964-1980) Por: Glaucia de Souza Dias
Resumo: Este trabalho tem por objetivo estudar as relações de poder envolvidas na determinação do que é normal e do que é o louco na sociedade, para tanto delimitamos a história do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais como espaço de estudo e o período de 1964-1980, pois é a partir deste período que começa o regime autoritário brasileiro e em 1979 foi quando as primeiras denúncias começam a aparecer e evidenciar o caso. Palavras Chave: Higienização, loucura, poder
Introdução
determinada construção da moral2 que rege o
“O gênio, o crime e a loucura, provêm, por igual, de uma anormalidade; representam de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao meio.” (Fernando Pessoa)1
grupo social, e é esse meio que determina, condena, exclui e pune o “louco”. O louco geralmente não tem a percepção de desencaixe com o mundo, mas o mundo tem a necessidade de
O
conceito de loucura é moldado por diversos campos sociais tais como: religiosos, médicos, familiares, políticos
entre outros. A loucura pode ser descrita como uma relação desajustada com o meio, normas e relações sociais. As relações sociais tendem a ser
segrega-lo do meio, o motivo é que a loucura causa um desajuste, é o “outro”3 que torna insuportável, impossível a convivência, não é ela que separa, que segrega, é a sociedade que tem por costume a auto regulação e, assim, tudo aquilo que é diferente não pode estar inserido.
normatizadas pelo próprio meio em função de uma
1
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. - 133. 2 Princípios adquiridos através da cultura, da educação, da tradição e do cotidiano, e que norteiam comportamentos e valores dentro de determinadas sociedades e comunidades.
3
Na antropologia o outro é “aquele social” que não sou o “eu social” que não atua na mesma linha moral e ética daquele que avalia, observa e julga o observado. (SANTOS, 2004)
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G N A R U S | 14 Desde os primórdios a
não haver uma ciência
loucura ganhou diversos
especifica
significados e definições
assunto
ao longo dos tempos,
comportamental abria
entre as várias formas de
um leque para uma
ser vista, Foucault4 mostra
série de interpretações,
que no século XVII a visão
para Foucault a loucura
sobre a loucura é a que
não era uma doença
mais
pré-existente,
a
tempos de hoje, tanto na
sociedade
a
parte jurídica quanto nas
loucura
práticas
comportamento
parece
com
os
sociais,
principalmente
para a
o
questão
definia através
do do
nesta
indivíduo e então o
última, a loucura era vista
tratamento psiquiátrico
como um comportamento
era
desviante do sujeito na
desqualificar a conduta
sociedade, ao contrário
social, ética e moral do
da visão que se tinha na
louco do que tratá-lo
idade
média
onde
a
mais
de
terapeuticamente,
loucura era divina, agora o portador da loucura era
como na medicina tradicional. “O louco tinha que
visto alguém fora da razão e deveria ser excluído.
ser vigiado nos seus gestos, rebaixado nas suas
Mesmo com a variação de olhares sobre a loucura ao longo dos anos a pratica é sempre a mesma: a exclusão, o internato. No séc. XIX a loucura passa a ser vista como uma patologia e lhe é criada uma ciência para que fosse estudada e a loucura passa a ser objeto de pesquisa e como dito anteriormente o
pretensões, contradito no seu delírio, ridicularizado nos seus erros”,5 ou seja, ser “louco” era de certa forma uma contraposição necessária à normalidade garantidora dos costumes e morais vigentes, elaborados
e
“naturalizados”
pelas
classes
dominantes.
seu tratamento continua sendo por meio da internação. Foucault vê o comportamento humano como uma questão de construção social, nessa visão a loucura seria um comportamento atípico e o internato seria uma forma de corrigir a conduta e a moralidade do indivíduo. A questão da loucura era muito subjetiva, como não tinha um diagnóstico claro de doença era difícil separar o que era loucura
Loucura, eugenia e controle O poder sempre esteve presente nas relações louco/sociedade e louco/tratamento manicomial, esse poder fortemente empregado sobre o outro esteve presente desde a prática de exclusão até a manutenção da internação. “O poder não é essencialmente repressivo (já que “incita, suscita, produz”); ele se exerce antes de se
e o que era apenas um “desajuste” social, pois por
4
FOUCALT, 1982.
5
FOUCALT, 1975.p.57
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G N A R U S | 15 possuir (já que só se possui sob uma forma determinável – classe – e determinado – Estado); passa pelos dominados tanto quanto pelos dominantes (já que passa por todas as forças em relação) um profundo nietzscheísmo”6
“reconstituiu em torno deles todo um encadeamento moral, que transformava o asilo numa espécie de instância perpétua de julgamento (...) a sanção tinha que seguir imediatamente qualquer desvio em relação a uma conduta normal. E isto sob a direção do médico que está encarregado mais de um controle ético que de uma intervenção terapêutica. Ele é, no asilo, o agente das sínteses morais”.7
O poder se estabelece nas relações, ele se impõe sobre aquele que é rebaixado. Para ele sobrepor sobre o outro este precisa ser fragilizado e diminuído.
Nem todo o castigo psicológico, como a reclusão,
Os manicômios segundo o senso comum são
a identidade que lhes eram roubadas, e a
locais para onde são levados os loucos e onde são
individualidade que não tinham como manter nos
oferecidos a eles um tratamento. Foucault relata
manicômios, eram suficientes para castigar aqueles
em sua obra “A História da loucura” que desde a
que não queriam estar ali, então a partir do séc.XX
idade média se excluíam pessoas do convívio social,
os castigos físicos passaram a fazer parte do
como no caso de leprosos, por exemplo. Após
cotidiano daqueles que viviam no internato,
incorporarem à cultura da exclusão, a loucura
sempre embasados no conhecimento científico que
passou a ser um motivo para excluir indivíduos da
a psiquiatria trouxe. Neste viés foram incorporados
sociedade, por um tempo entre os séculos XIV e
à prática manicomial: duchas frias, choque térmico,
XVII por não conhecer os mistérios da loucura e
sangrias e máquinas giratórias, uma verdadeira
suas razões, eles eram vistos como diferentes,
sessão de tortura.
intocáveis. No século XVIII as pessoas que tinham um comportamento diferente dos demais já eram excluídos, entre eles os portadores de doenças venéreas,
deficientes
físicos,
libertinos
Higienismo e a psiquiatria: um caminho ao manicômio.
e
A prática higienista fortemente defendida da
prostitutas, neste mesmo período surgem os
Escola de Munique por renomados psiquiatras
manicômios. A partir do século XIX, a loucura é vista
alemães influenciou diretamente a psiquiatria no
como doença mental que deve ser tratada, porém
Brasil e serviu de base para o movimento de higiene
esse tratamento em regime de internato passou a
mental ocorrido no Brasil, esse movimento, que era
ser usado não somente para tratar enfermos, mas
amplo, visava não somente a doença mental, mas
sim num processo mais amplo de normatização
também todo o comportamento na vida social,
social. Os manicômios foram criados a partir da
educação
necessidade de haver um espaço especializado
fundamentada no higienismo passa a interferir nas
para receber esses loucos, antes tratados em alas
relações sociais cotidianas, a psiquiatria com todo o
específicas em hospitais e cadeias públicas quando
respeito que a qualidade de ciências lhe dava era
aparentemente representam um perigo iminente à
usada agora para nortear as relações sociais e o
sociedade, assim se...
comportamento da sociedade. Esse movimento
e
trabalho.
A
psiquiatria
agora
estudava e analisava clinicamente os costumes do 6
DELEUZE, 1991.p. 79
7
FOUCAULT, 1975.p.57
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Foto de alojamento do Hospital Colônia exibida no documentário Holocausto Brasileiro - Reprodução/HBO determinadas doenças e a banição de certos comportamentos, tidos como sinais do comprometimento vital. Grandes alvos destas medidas foram, entre outros, os homossexuais, os alcoolistas e os esquizofrênicos” 8
cotidiano, como o alcoolismo, homossexualismo, vadiagem e outros comportamentos que iam contra a moral e aos bons costumes, estes passaram a ser vistos como uma doença, uma doença mental. “Os problemas sociais são identificados como doentios e sua solução passa pela terapêutica, que na medicina tem como principal representação a medicalização. Tudo na sociedade, sob a ótica da higiene mental e sua lógica clinica, pode ser objeto do olhar diagnóstico, da perspectiva prognóstica e da intervenção terapêutica. Submetem-se ao escrutínio clinico as maneiras de viver, de vestirse, de falar, de caminhar, de relacionarem-se, as formas humanas de existir e veem-se estas como passíveis de medicalização quando consideradas inadequadas ou anormais. Trata-se da classificação do anormal como doente e da submissão da existência ao olhar do clínico, agora sob os auspícios da Higiene Mental.” (...) A eugenia, motor epistemológico do higienismo, preconizava que para atingir uma humanidade mais pura havia que se livrar dos vícios naturais, das doenças desabilitantes, dos problemas que se contrapõem ao desenvolvimento civilizatório conforme almejado no ideário do capitalismo moderno. Na prática, medidas preventivas passam a fazer parte do repertório psiquiátrico, tais como o aconselhamento genético, a esterilização de certas pessoas capazes de transmitir 8
OLIVEIRA, 2009 p.53 e 56
Os doentes mentais já não possuíam mais a sua característica fundamental, a razão, por isso eram usados sem nenhuma humanização, eram agora cobaias perfeitas para o estudo dessas novas teorias que o higienismo trazia. “Estas intervenções e experimentos incluiriam, em diferentes momentos, a inoculação de malária, a indução de comas insulínicos, a provocação de convulsões que lesavam tanto estruturas ósseas como cerebrais, as cirurgias lobotômicas, todo um conjunto de medidas com fins terapêuticos e que se aplicava com pouca preocupação sobre as seqüelas incapacitantes ou letais que afligiam os indivíduos que eram objetos destas experiências.” 9
Ser cobaia era para esta sociedade uma forma “normal de contribuição” à sociedade, uma forma de dar utilidade a um grupo que dentro daquela 9
Idem, p. 56.
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contribuidora à nação. O manicômio era para a
para quase 56 mil, ao mesmo tempo que os investimentos no setor público começavam a diminuir.”11
teoria higienista um local de depósito para essas
Desta forma podemos perceber uma clara
pessoas que, seja por alguma deficiência ou por
sintonia entre os métodos de todo regime
desvio comportamental, acabavam passando o
autoritário e o controle da loucura, neles atitudes
resto de suas vidas lá. O local se encaixava
como exclusão, confinamento, condenação e
perfeitamente com esses ideais, pois era um local
punição justificadas em função de um “bem maior”,
isolado que distanciava o problema da população,
a normalidade, a segurança e o tratamento dos
que parecia não querer saber o que acontecia lá
desajustados se enquadravam também dentro de
dentro.10
uma lógica do capital, na qual o tratamento e o
sociedade estava fora de uma participação ativa,
confinamento geraram um “produto” a ser
O higienismo durante a ditadura
consumido
e
financiado
pelo
governo,
o
“tratamento” da loucura.12
Após o Golpe militar esses ideais higienistas ganharam ainda mais força, havia uma necessidade de esconder pessoas que de alguma forma não
A fundação do hospital
faziam parte dos ideais higienistas, se por um lado
Antes da Lei Estadual nº 290, de 16 de agosto de
esse isolamento cruel foi de responsabilidade do
1900 - Minas Gerais, que determinou a fundação de
Estado, isso só foi possível com a aceitação da
um local específico para assistência de alienados, os
população, dos funcionários e de todos que faziam
loucos não tinham um local especifico para o seu
a máquina funcionar, a desumanização dos internos
tratamento, eram levados para as santas casas de
legitimava toda aquela barbárie.
misericórdia
Venda de corpos, venda de serviços precários
apresentavam
ou um
cadeias grau
públicas de
quando
periculosidade,
garantidos pela falta de fiscalização e interesse
localizado na antiga Fazenda Caveira de baixo,
público pela qualidade de vida dos internos,
local que antes funcionava um hospital de
descarte de indesejáveis, a indústria da loucura foi
tratamento de doenças pulmonares devido às
um negócio vantajoso em todos os sentidos.
baixas temperaturas, o local era adequado ao
“No início dos anos 40 havia 24 mil leitos psiquiátricos no Brasil, dos quais 21 mil eram públicos e 3 mil privados. Depois do golpe militar de 64, o setor da saúde viveu o mais radical processo de privatização do mundo. A psiquiatria foi a área mais explorada e preferida pelas empresas privadas, na medida em que a falta de direitos dos usuários, somada à baixa exigência de qualidade no setor, facilitava a construção ou transformação de velhos galpões em ‘enfermarias’. A ‘indústria da loucura’, como ficou conhecida, fez o número de leitos saltar de 3 mil
tratamento da tuberculose. O hospital colônia de Barbacena foi fundado em 1903 e foi o primeiro Hospital Psiquiátrico Público de Minas Gerais, criado com capacidade de 200 leitos. Costumava funcionar nos primeiros anos com a capacidade controlada entre 150 e 200 internos. Havia duas classes no hospital: a de pagantes
10 Aqui reconhecemos que ainda são imprecisos os dados sobre
11
este aparente descaso da população, nos baseamos até aqui nas informações obtidas na pesquisa da jornalista Daniela Arbex (ver bibliografia).
12
AMARANTE. 2006, p. 33. Ver também neste texto o item As práticas e o comércio de corpos na pág. 10
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G N A R U S | 18 (pensionistas) e de indigentes. No local, apesar de
situação que se não levavam à morte rapidamente,
criado para o acolhimento de doentes mentais não
levavam a uma situação pior, a morte lenta nos
havia um tratamento específico para eles, a
calabouços do hospital.
atividade terapêutica praticada por eles eram a laborterapia.13
Dentre
as
“Ninguém morre de loucura. Era morte natural combinada com desnutrição: a comida, às vezes, era única e exclusivamente água com fubá, ou uma sopa rala de canjiquinha, sem nenhuma gordura ou proteína. Ficavam nus e chegavam a perder os movimentos. Barbacena faz um frio terrível. Uma vez despidos, já desnutridos, sem nenhuma defesa, pegavam uma gripe, que depois virava pneumonia, porque eles também não eram medicados. E assim, todas às manhãs, eram recolhidos cadáveres nas enfermarias.”15
atividades
desempenhadas destacavam-se a conservação do local, a confecção de tijolos e o cultivo de hortas. O hospital então passou a ser o local oficial para o recebimento de alienados, principalmente aqueles que tinham um motivo maior para estar ali. O hospital durante os seus primeiros anos funcionava de acordo com o planejado e com a sua estrutura, o
As práticas e o comércio de corpos
hospital ajudou a desafogar a os hospitais da região, Na década de 50 com a popularização do hospital começaram a chegar pacientes de vários hospitais da região, geralmente pacientes que já haviam passado por um tratamento inicial, mas que não haviam conseguido se recuperar a ponto de ir para casa e que não possuíam familiares e condições de voltar a vida social e precisariam de um confinamento mais longo ou até mesmo perpétuo, era uma espécie de 2ª etapa do acolhimento desses doentes. Assim ainda na década de 50 o hospital já contava com mais de 1500 internos. “O ano de 1966 foi um dos que contabilizaram maior número de mortes, 1.253. Média de quase quatro por dia. Naquele ano, morreram 800 homens e 453 mulheres. Os meses de março, maio, julho e dezembro foram os mais terríveis, com, respectivamente, 120, 121, 119 e 123 óbitos. O ano seguinte seria menos terrível, mas ainda com um número assustador: 657 mortos. Há registros, cadernos e mais cadernos, com a contagem dos cadáveres, pessoas “sem lenço nem documento, hoje lembradas apenas nas páginas amarelas, quase tomadas pelas traças.”14
Mesmo os que entravam naquele lugar sãos não permaneciam assim por muito tempo, a situação enlouquecia mesmo aqueles não tinham qualquer distúrbio mental. A identidade, a individualidade e o pudor lhes eram arrancados, eram transformados em animais, e tendo se transformado em animais ainda lhes restavam o instinto, instinto de sobrevivência. Armados deste instinto, quando eram lançados à fria madrugada de Barbacena, completamente nus, eles se agrupavam, formavam rodas e alternavam entre ficar dentro e fora da roda de forma que todos recebessem calor, porém nem sempre conseguiam sobreviver a estas frias noites e o balanço pela manhã chegava muitas vezes a mais de uma dúzia de corpos.16 “Fome e sede eram sensações permanentes no local onde o esgoto que cortava os pavilhões era fonte de água. Nem todos tinham estômago para se alimentarem de bichos, mas os anos no Colônia consumiam os últimos vestígios de humanidade. Além da alimentação racionada, no intervalo entre o almoço e o jantar, servidos ao meio-dia e às 5 horas da tarde, os pacientes não comiam nada. O dia começava com café, pão e manteiga distribuídos somente para os que estivessem em fila. A alimentação empobrecida não era a única a debilitar o organismo. Apesar de o café da manhã ser fornecido às 8 horas, três horas antes
Com a superlotação, já não havia mais leitos, não havia mais uniformes, não havia mais dignidade,
13 14
Terapia através de atividades de trabalho. ARBEX, 2013, p. 114.
15 16
Idem, p. 118. Ibdem.
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G N A R U S | 19 os pacientes já tinham que estar de pé. Eles seguiam para o pátio de madrugada, inclusive nos dias de chuva” 17
utilidade de se transformarem em peças para aulas de anatomia — alguns corpos eram cozidos em caldeirões, muitas vezes na frente de outros
Com um número cada vez mais alto de mortes, em média 16 mortes diárias como consta nos registros do próprio hospital (podendo ser este número algo muito maior), em consequência das péssimas condições de vida no local. Os meses mais frios eram os que ocorriam mais mortes e que era comum que os
corpos,
universidades
ao
para
serem onde
dissecados eram
internos, para o aproveitamento dos ossos.”19 Percebe-se que não havia nenhuma humanização no trato com os pacientes, com a venda dos corpos fica ainda mais claro que eles não passavam de objetos sem nenhum aproveitamento em vida e talvez algum após suas mortes. “Os corpos dos transformados em indigentes foram negociados por cerca de cinquenta cruzeiros cada um. O valor atualizado, corrigido pelo Índice Geral de Preços (IGP- DI) da Fundação Getúlio Vargas, é equivalente a R$ 200 por peça. Entre 4 e 19 de novembro de 1970, foram enviados para a Faculdade de Medicina de Valença quarenta e cinco cadáveres negociados por 2.250 cruzeiros o lote. Corrigido pelo IGP-DI, o lote saiu a R$ 8.338,59. Em uma década, a venda de cadáveres atingiu quase R$ 600 mil, fora o
nas
vendidos,
apresentassem sinais de tuberculose causados pelas noites de exposição ao frio. Logo essas mortes começaram a dar um lucro financeiro ao hospital. Esses corpos abandonados por suas famílias, que viraram indigentes.18 “Encontravam após a morte a
Corpos humanos sendo desossados para o comércio, vendidos inteiros para estudos nas Universidades ou desossados com ácido para a construção de esqueletos didáticos. Processo realizado diuturnamente no pátio do manicômio ao lado de urubus e internos. 17 18
Ibdem, 42 Ibdem, p. 59
19
ARBEX, 2006, p. 27
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G N A R U S | 20 valor faturado com o comércio de ossos e órgãos.”20
“Os olhos acostumados a tantas tragédias não puderam acreditar na cena que se desenhava. Milhares de mulheres e homens sujos, de cabelos desgrenhados e corpos esquálidos cercaram os jornalistas.(...) Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio e inundava o chão do pavilhão feminino. Nas banheiras coletivas havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável, assim como o ambiente, pois os urubus espreitavam a todo instante. Dentro da cozinha, a ração do dia era feita em caldeirões industriais. Antes de entrar nos pavilhões, o fotógrafo avistou um cômodo fechado apenas com um pedaço de arame. Entrou com facilidade no lugar usado como necrotério. Deparou-se com três cadáveres em avançado estado de putrefação e dezenas de caixões feitos de madeira barata. (...) Dentro dos pavilhões, promiscuidade. Crianças e adultos misturados, mulheres nuas à mercê da violência sexual. Nos alojamentos, trapos humanos deitados em camas de trapos. Moscas pousavam em cima dos mortos-vivos. O mau cheiro provocava náuseas. Em outro pavilhão, a surpresa: capim no lugar de camas. Feno, aliás, usado para encher colchões, abrigar baratas, atrair roedores. Viu muitos doentes esquecidos nos leitos, deixados ali para morrer”21
Depois de algum tempo, as universidades diminuíram a compra de corpos, pois haviam feito um grande estoque e a grande quantidade de mortos a cada dia não parava de subir e aí o hospital passou a derreter esses corpos com ácido para poder ainda ter lucro com a venda posterior dessas ossadas. Além disso, complementando o processo da “indústria da loucura” e segregação foi construído junto com o Hospital Colônia, no início do século XX, o Cemitério da Paz, cuja função, além da natural necessidade de dar fim aos corpos, tratava também de livrar o cemitério da cidade de uma última possível contaminação à normalidade, já que havia um preconceito na cidade de não se misturar mortos “normais” com os “loucos”. A área pertence à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, está desativado desde o final da década de 80. Este processo apresenta claramente
Quando a reportagem foi publicada a tragédia
o “sucesso” da indústria da loucura na lógica do
teve grande repercussão, foi uma comoção
capital vigente a época.
nacional, porém foi rapidamente esquecida pela mídia por vários anos. Em 1973 o respeitado
O descobrimento de irregularidades e declínio
psiquiatra Ronaldo Simões Coelho adepto da desospitalização dos loucos e influenciado pelos
Em 1961, a visita do fotógrafo Luiz Alfredo e do
ideais de Foucault denunciou o Hospital colônia de
repórter José Franco do jornal Cruzeiro ao Hospital
Barbacena e todas as suas práticas abomináveis, a
Colônia de Barbacena para uma reportagem seria o
denúncia lhe custou o emprego na Fhemig, mas a
começo de uma grande mudança, a reportagem só
situação covarde não ficaria intocável por muito
foi possível porque se tratava de um momento de
tempo, Ronaldo aliado a outros profissionais
transição de governos e qualquer conduta ilícita
militantes pelas causas humanistas não desistiriam,
vista ali não seria creditada ao atual governo.
assim
Mesmo assim o fotógrafo mostrou ao mundo a
continuaram lutando e denunciando os maus tratos
triste realidade daqueles internos.
do lugar, porém, somente anos mais tarde essas
20
21
Idem, p. 68
do
hospital
Colônia
de
Barbacena
ARBEX, 2013. p. 152.
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G N A R U S | 21 denúncias começariam a surtir algum efeitos, em
consequência disto é quase sempre a ocorrência de
1979 o conselho regional de medicina abriu
processos injustos, desumanizados e naturalizados
sindicância contra o manicômio, entre as denúncias
como uma “solução” para o problema daqueles que
estavam as envolvendo a relação de interesses
não se adequam ou comportam como desejam ou
entre o hospital e as universidades na venda de
impõem os altos grupos sociais.
corpos.
Nesse
mesmo
ano
as
denúncias
desencadearam uma série de outras denúncias e estimularam cada vez mais a luta pela reforma psiquiátrica. A divulgação do trabalho do psiquiatra italiano Franco Bessaglia22 e a comparação do manicômio aos campos de concentração nazista fomentou ainda mais as lutas do período.
Além da questão histórica temos também a pretensão de que esse nosso caso em estudo mostra a importância discutir os direitos daqueles que não podem lutar por si, essa conquista veio somente em 1988 com direitos humanos garantidos pela constituição brasileira, que tem em um dos principais artigos, o 5º, que garante o direito a vida,
O documentário “Em Nome da Razão” de
a privacidade, a igualdade, a liberdade e outros24...
Helvécio Ratton23 levou a população a realidade da
Isso é importante, pois assegura os direitos dessas
colônia. Em 1989 o então deputado federal Paulo
classes de indesejados, antes desta lei muitos
Delgado apresentou um projeto de lei onde ele
denúncias relativas às praticas manicomiais foram
propunha a extinção progressiva dos Manicômios e
feitas, mas nenhuma providência foi tomada a
das práticas manicomiais desumanas, em 1990
respeito. Além de tudo, é importante criar na
mesmo com a classe dominante sendo contra, o
sociedade uma noção de igualdade e um olhar mais
projeto foi aprovado, mas somente em 2001 foi
humano sobre o outro, reforçando os direitos dos
promulgada a lei.
homossexuais, das mulheres, dos idosos e todo esse grupo que até hoje sofre com a descriminação e
Conclusão
segregação. Sempre vai haver um local e uma forma de segregar e isolar um grupo que não se adequa
Nosso breve estudo nos leva à conclusão de que a
aos ideais da classe dominante. Combater isso é
História às vezes, dentro de cada especificidade, se
conscientizar a sociedade e derrubar paradigmas. A
repete, sistemas autoritários se impõem à força
intolerância social é a grande responsável por
sobre grupos dissonantes dos valores arbitrados por
massacres desse tipo e a omissão da população
esta classe dominante. O caso do Hospital Colônia
contribui para a continuidade desse tipo de prática
de Barbacena se encaixa perfeitamente neste viés,
de exclusão. Ainda hoje podemos ver questões
no qual exclusão, confinamento e controle são
desse tipo, como no caso do debate em torno da
exercidos sobre os discursos de ordem e
internação compulsória dos usuários de drogas, o
normalidade proferidos por um ou mais grupos que
que devemos refletir é se essa internação é boa
se encontram em um lugar privilegiado do poder. A
para eles ou para nós? Primeiramente devemos
22
24
Franco Bessaglia fez no período diversas palestras no Brasil sobre o tema. 23 Disponível em www.dailymotion.com/video/x1hjp4b_emnome-da-razao-os-poroes-da-loucura-1979-barbacena_news (acesso em 07/05/2016)
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...), Constituição brasileira, 1988.
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G N A R U S | 22 garantir um tratamento sério, adequado e acima de tudo humanizado e com a aceitação desse grupo ou abriremos novamente uma brecha para que possamos varrer a sujeira para baixo do tapete e não propiciar uma oportunidade de melhorar condição de vida desse grupo. Glaucia de Souza Dias é licenciada em História pela Universidade Cândido Mendes e professora da rede Municipal de Nova Iguaçu-RJ.
Bibliografia AMARANTE. Paulo, Rumo ao fim dos manicômios: A luta antimanicomial. Revista Mente Cérebro, edição 164 - Setembro 2006. ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. 1. ed. – São Paulo: Geração Editorial, 2013.
BOARINI, Maria Lúcia (org.) Higiene e raça como projetos: higienismo e eugenismo no Brasil. Maringá: Eduem, 2003. DELEUZE, Gilles. Foucault. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1991. SANTOS, Boaventura de Sousa (org), Reconhecer Para
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2009 ISSN 1984-21476.6.6.6.6. SILVA, Marcos Virgílio da. Detritos da civilização: eugenia e as cidades no Brasil. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitext os/04.048/589 acessado em 09/06/2016.
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