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Artigo
BREVE DISCUSSÃO SOBRE A FENOMENOLOGIA EM KANT E HUSSERL Por Adílio Jorge Marques, André Vinícius Dias Senra e Leonardo Vaicberg
Introdução
K
O conceito de Fenomenologia pode ser entendido
ant pode ser considerado como o pensador que fundou as bases para o estudo de uma fenomenologia
enquanto
disciplina
acadêmica, na medida em que cunhou a expressão ‘fenômeno’ para designar os objetos que podem ser conhecidos pela razão humana. O kantismo tornou-se referência para análise dos aspectos relacionados à teoria do conhecimento. E a característica específica da
filosofia
kantiana
é
ser
uma
filosofia
transcendental, ou seja, buscar a fundação do conhecimento a partir do que pode ser representado
como a indicação para se constituir uma ciência filosófica. Etimologicamente, phainomenon (objeto fenomênico) deve ser assunto de um saber do conhecimento em geral (wissenschaft). O termo
Wissenschaft tem o sentido de uma ciência da razão e não se restringe à pesquisa científico-natural meramente objetivista. Assim sendo, o conceito de Fenomenologia implica em um estudo que não leva em conta apenas o mundo objetivo, mas também como o sujeito representa o objeto de tal modo que este não seja reduzido ao solipsismo subjetivista.
fenomenicamente. De acordo com Husserl, o método
Segundo Husserl, este é o problema kantiano na
fenomenológico é o método filosófico por excelência,
tarefa para constituir uma fundação do conhecimento
contudo, ele considera que o projeto filosófico de
a
Kant se encontra incapaz de cumprir o que promete
fenomenológico. Husserl acusa Kant de ter fracassado
em teoria. Husserl entende que o conceito kantiano
no projeto de uma Fenomenologia porque sua
de fenômeno se sustenta na ideia da condição de
filosofia era muito fisicalista, o que tornou impossível
possibilidade para uma experiência cognoscitiva. Isto
abordar a ideia do fenômeno sem que esta não
significa que tal conceito fundamenta-se em uma
estivesse reduzida aos aspectos sensíveis. De acordo
restrição de caráter empírico, não lógico.1
com o método de Husserl, a superação do
1
partir
do
que
deveria
ser
um
projeto
Husserl, E. A Ideia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1986.
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 39 psicologismo torna-se necessária não somente em
analogamente, que a apreensão intuitiva deste
função do reconhecimento da esfera ideal da
objeto, só podia ser efetuada pelo sujeito empírico.
objetividade na condição de independente da sensibilidade,
mas
principalmente
porque
a
fenomenologia pretende ser o método filosófico que estabelece a fundação objetiva para o conhecimento em
geral.
O objetivo do trabalho, ao mostrar esta diferença sugerida
pelo
torna
doutrina a
redução
da
objetividade,
da
relação
de
conhecimento, aspectos tanto
Por
subjetivismo,
se
entende
qualquer
doutrina
que
psicológico. Se os pensamentos,
husserliana, referem-
Husserl
se propriamente à indagação sobre a
tem
expressão
como pressuposto a
objetividade,
que ao apoiar-se na
obviamente,
da
representação subjetiva do objeto, disputas
envolvendo
o o
aparecimento
da
apreensão
dos pela
consciência, refereCapa da obra Crítica da Razão Pura, 1781.
se a uma exigência de ordem lógica. Ainda
dualismo entre sujeito e objeto, que teve como conseqüência,
o
problema pensamentos
permitiu a existência de
que
melhor se ajusta à
metafísica,
ideia
na
definição
considera que a tese
tradição
dos problema
Desse
psicologista
a
pensamentos seja um
aos
idealista quanto no modo,
que
apreensão
sentido
empirista.
uma
subjetivista.
defenda
subjetivos,
no
mostrar
fenomenologia husserliana como uma concepção
O
possível
pretende
concepção que afasta a hipótese que associa a
psicologismo enquanto
título,
do
ceticismo,
precisamente por conta da ausência de um rigoroso fundamento filosófico para a questão. Esta é a herança do kantismo segundo Husserl. Desse modo, Husserl entendeu que o problema era que a base de argumentação cognitiva mantinha seu foco, até então, no objeto transcendente, do mesmo modo, e
que o conceito husserliano de fenômeno envolva a relação com um sujeito, contudo, não se trata de uma investigação acerca do objeto contido internamente na consciência. A proposta aqui esboçada em torno da ‘intencionalidade’, em sentido husserliano, não remete a nenhum aspecto relacionado às imagens sensíveis formadas com base na atividade psíquica, nem se refere a objetos privados da mente e, principalmente, não pretende propor nada em termos Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 40 do que se entende por estados mentais. A
intencionalidade não permite que as objetividades lógico-ideais dependam, em algum aspecto, da atividade psíquica do sujeito. Para tanto, a intencionalidade recorrer
aos
fenomenológica jogos
esquematismos
das
de
não
linguagem,
faculdades
da
precisa ou
aos
razão.
A
consciência intencional cumpre a função cognoscitiva de ser responsável pela apreensão dos pensamentos, sobretudo, porque as análises de sua atividade explicitam, para o sujeito do conhecimento, a origem do ser-objeto. O subjetivismo a que Husserl pretendia se opor nos Prolegômenos à Lógica Pura das
Investigações Lógicas, é o subjetivismo do positivismo psicológico,
que
predominava
nessa
época
(denominado psicologismo), que anexava à psicologia toda a filosofia e toda a teoria do conhecimento, interpretando as leis ideais do pensamento em nível
Edmund Gustav Albrecht Husserl
das atividades psíquicas, para finalmente reduzir todo
aparece não deve ser tomado como pertencente ao
o processo do ato consciente aos elementos sensoriais
mundo interno, solipsista ou privado.
associados à percepção. Ter consciência era para o
O que aparece é a apresentação da verdade sobre a
psicologismo o resultado da associação de conteúdos
coisa mesma. Não há algo oculto, ou melhor,
de consciência, todos reduzíveis à sua base orgânica,
enigmático no modo de apresentação do fenômeno.
de modo que, tal concepção tratava o objeto a partir
Em Husserl, a apresentação não esconde um sentido
de uma gênese psicofísica.
oculto, limitado racionalmente (tal como o noumen,
A noção de intencionalidade, a partir da
para Kant). As coisas aparecem porque são reais. E isto
caráter
se refere à ontologia e não aos assuntos psicológicos.
psicológico, porque deve ser compreendida como
Assim, o modo como as coisas aparecem, é parte do
modo de relação da consciência com um objeto. A
ser das coisas. Se as coisas podem ser objetivadas de
intencionalidade trata de uma abertura cognoscitiva
modos distintos, isto se deve a que cada região do ser,
‘para’ algo diferente da própria consciência e não de
tem um modo de tornar-se objeto para um sujeito.
um fechamento egológico ‘em si’. A intencionalidade
Cada ato intencional passa a efetuar a respectiva
é apresentada como abertura para os fenômenos em
experiência mediante o modo de apresentação do seu
um sentido realista em relação à manifestação das
objeto correlato. A fundação fenomenológica da
coisas. A fenomenologia reconhece a realidade das
objetividade indica que o critério da relação de
coisas que aparecem, e com isto reivindica um sentido
conhecimento deve levar em conta a intuição como
público para o pensamento, pois, funda os atos
abertura para a experiência cognoscitiva. Porém, esta
cognoscitivos na descrição do que aparece nos modos
fundação não se refere ao aspecto real da
intencionais de a consciência objetivar o ente. O que
representação mental, mas ao objeto intencional
reapropriação
husserliana,
perde
seu
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G N A R U S | 41 fundado sobre o objeto real. Por esta razão, não cabe
está sempre ‘fundada’ sobre a evidência sensível. O
mencionar nada em termos de uma suposta dualidade
conceito de ‘fundação’ evita a confusão entre os
em relação ao objeto, e isto porque o objeto
domínios. Não se trata de derivar o inteligível a partir
intencional é o mesmo ente que se apresenta em um
do sensível, mas que o inteligível se engendra sobre o
modo de doação a ser conhecido judicativamente.
plano sensível, sem reduzir-se a ele.
Se a intencionalidade é propriedade da consciência,
Logo, de acordo com Husserl, o que aparece como
isto é, se um ato perceptivo, ao visar ou dirigir-se ao
objeto da percepção sensível não é concebido como
percebido, pretende apreendê-lo como seu modo
aparência de uma coisa em si, isto é, como se houvesse
próprio de ser objeto para a consciência, então, o ato
algo escondido atrás das aparências, tal como numa
do
conhecimento
é
perspectiva kantiana,
desvelamento do modo
mas
é
o
específico de ser, a
objeto em ‘carne-e-
partir do qual um modo
osso’
na
próprio sua
de apresentação do
corporeidade.2
objeto é intuído na
Parece que a filosofia
forma
uma
crítica de Kant trata o
idealidade. Portanto, a
título
de
fenomenologia
tem
‘fenomenologia’ em
como seu fundamento
um
a
do
duplamente limitado,
conhecimento que não
pois, não apenas ao
pode ser pressuposta
que há de intuição
em nenhuma das suas
sensível
partes constitutivas, de
objetividade, mas é
tal modo que sobre o
igualmente limitado
dado cognoscitivo não
em relação ao limite
esteja pairando alguma
dessa
evidência
relação enigmática.
Immanuel Kant
domínio
na
experiência
possível.
As teorias tradicionais do conhecimento se
Em Kant, o que aparece pode ser considerado como
debatiam em dificuldades acerca do problema sobre
um dado da sensibilidade, de modo que esta atua
as relações entre o sensível e o inteligível. A
decisivamente na formação do conhecimento, como
possibilidade de um acordo entre intuição e conceito
receptividade da representação do objeto, isto é, sem
se origina, para Husserl, da análise das evidências
a intuição sensível, não há ‘matéria’ para o conhecer,
correlativas. Significa que a evidência deve ser
pois, nenhum objeto nos seria dado (Kant, Crítica da
fundada. Para tanto, o sensível e o inteligível não se
Razão Pura, 1989, Lógica Transcendental, §1, A 50/51
encontram separados, pois, a evidência categorial
– B 74/75). Husserl, não trata a intuição sensível como
2 O adjetivo leibhaft tem vinculação com o substantivo Leib (corpo
modo, Husserl pretende destacar o caráter da presença do percebido (e assim, com o mesmo critério, pode-se pensar o substantivo Leibhaftigkeit como presencialidade).
orgânico) e se usa especialmente para indicar a presença in corpore, “em pessoa”, ou como se diz em carne-e-osso. Desse
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G N A R U S | 42 irrelevante, contudo, sua censura a Kant se deve ao fato de que este não teria percebido que o ‘dado cognoscitivo’ não tem o caráter de uma experiência possível. O problema é que as sínteses kantianas, formadas a partir da intuição, não depuram o caráter real do objeto. Para Husserl, Kant não tematiza a Lógica Pura, e por esta mesma razão, não entende que o objeto do entendimento é de outra ordem. Assim sendo, o dado cognoscitivo da fenomenologia husserliana, só pode alcançar objetividade, se for fundado a partir da tematização do objeto que aparece como modo de apresentação em uma vivência intencional. Se, em Kant, o fenômeno é o objeto de uma experiência possível, isto quer dizer que as formas puras de espaço e tempo, na condição de determinarem o acesso ao fenômeno, estão referidas à realidade do objeto, logo, a justificativa do conhecimento ainda não está fundada na lógica. A censura de Husserl a Kant se deve precisamente ao fato deste não ter reconhecido um autêntico conceito
Conclusão Husserl não considera a filosofia kantiana como falsa, mas certamente insuficiente para estabelecer os parâmetros do autêntico método filosófico. Ao propor uma crítica da razão pura, Kant acertou ao perceber que o embate entre idealistas e empiristas era infrutífero e estéril para a Filosofia. Contudo, o fato é que este dualismo ainda se mantém no criticismo kantiano, de tal modo que Kant não garantiu as bases para que a Filosofia não pudesse ser superada pela Ciência. Muito pelo contrário, em sua resposta Kant nega a possibilidade da Filosofia como ciência. Para Husserl a resposta de Kant e dos kantianos mostra falta de compreensão sobre o que deve ser uma ciência filosófica. Adílio Jorge Marques é Doutor e Pós-Doutor em História e Epistemologia das Ciências. Professor da Universidade Federal Fluminense/INFES; André Vinícius Dias Senra é Doutor em História e Epistemologia das Ciências. Professor do IF de Volta Redonda; Leonardo Vaicberg é Doutor em História e Epistemologia das Ciências.
de a priori, sobretudo porque Kant não pôde conceber a função do entendimento a partir da intencionalidade. A investigação fenomenológica, ao procurar determinar como pode ser efetuada uma fundação cognoscitiva, termina por indicar o caminho de uma gênese da lógica. Isto quer dizer que, de acordo com Husserl, a determinação predicativa atua, precisamente, neste dado originário a ser conhecido, que é antepredicativo.3 A crítica de Husserl em relação a Kant indica que o critério para a ciência filosófica, denominada como fenomenologia, não possui o mesmo estatuto que a ciência da natureza, pois, os objetos da teoria filosófica não podem ser reduzidos ao realismo objetivista.
3 Kant, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
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