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Artigo
EXÉRCITO BRASILEIRO: UM CONVIDADO AUTORITÁRIO – 1900/1955 Por Ronaldo Rodrigues Coelho
Introdução:
E
sse trabalho pretende usar como ponto de
Outro autor que expressou o significante papel da
partida para compreender as manifestações
interpretação ao nível da Cultura Política foi Jean
insurgentes do Exército brasileiro, ao longo
Sirinelli3, em obra de René Rémond, que asseverava
da primeira metade do século XX, os conceitos
ser ela como “uma espécie de código, um conjunto
apontados pelo ideário da visão historiográfica de
de referentes, formalizados no seio de um partido
Cultura Política1, prática que é adotada por vários
ou, mais largamente difundidos, no seio de uma
intelectuais como historiadores, sociólogos etc. Um
família ou de uma tradição política”.4 A importância
deles é Serge Berstein que define assim nessa
do papel das representações na definição de uma
abordagem:
Cultura Política, faz dela uma outra ocorrência, e
“Cultura Política se mostra como uma resposta mais satisfatória em relação à investigação que o historiador faz e para explicação dos comportamentos políticos através da história além de ser um fenômeno de múltiplos parâmetros, e por isso, é capaz de se adequar à complexidade que é o comportamento humano.”2
1 BERSTEIN, Serge. A cultura política. Para uma história cultural. Lisboa: ESTAMPA (1998). 2 BERSTEIN, Op. Cit., Pg. 361.
não uma ideologia ou conjunto de tradições: “Ela supera, ao mesmo tempo, com uma leitura comum do passado e uma projeção no futuro, vivida em conjunto, inseridas no quadro das normas e valores determinantes à representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu passado e do seu futuro”.5
3 Sirinelli, Jean, Os Intelectuais. Cap. 8, Pg. 331-369. In RÉMOND, Réne. Uma história presente. Por uma história política, v. 2, 1996. 4 Sirinelli, Jean, Op. Cit. Pg. 23. 5 Sirinelli, Jean, Op. Cit. Pg. 23.
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 64 Sob esse conceito, pretendemos analisar o caráter
procura
de
adequações
para
modificações
reformador e insurgente do Exército brasileiro
pedagógicas e também àquelas ligadas a alteração
entre o início do século XX até meados da década
da mentalidade da Força, na busca por gerar uma
de
mais
unicidade no pensamento ideológico do Exército,
especificamente no final do Segundo Governo
por isso junto com essas alterações no seu próprio
Vargas. Período atravessado pela renovação na
metier, indiretamente foram alavancadas novas
formação acadêmica do oficialato, após as
elites políticas para partilhar o poder com os
adequações curriculares introduzidas pelo Alto
tradicionais grupos político-sociais, caminho que
Comando da Força, logo após a vitória do grupo
também vivenciou marchas e contramarchas,
reformador, que participara ao lado da Aliança
tornando difíceis as tais alterações.
cinquenta
do
mesmo
período,
Liberal, sob a direção de Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, ‘descendentes’ dos “Jovens
Turcos”.6
Negligenciando as influências sociais, políticas – internas e externas – que poderiam alinhar ou
Um longo processo mudanças fez perdurar por
separar ‘facções políticas diferenciadas’ entre os
mais ou menos três décadas a adoção das
elementos componentes das hostes militares, como
adaptações desejadas pelos “jovens turcos”,
afirmam Oliveiros S. Ferreira7, Alain Rouquié8 ou,
especialmente
à
ainda, Celso Castro9, as disputas, como por
profissionalização da Força, e, mesmo assim, essas
exemplo, as mobilizações tenentistas, estão mais
transformações se deram de forma irregular, na
relacionadas a um projeto de poder em uma
medida em que altos e baixos marcaram as
sociedade cuja formação é dominada pela relação
alterações na sociedade brasileira, levando a
entre ‘senhores’ e ‘servos’ e geravam uma
aquelas
que
visavam
Revolta dos 18 do Forte de Copacabana
6 Novos oficiais que, mandados estudar na Alemanha mais ou menos na primeira década do século, lutaram por introduzir métodos inovadores na formação dos cadetes do Exército. Ver: CASTRO, Celso, Vitor Izecksohn, e Hendrik Kraay, Eds. Nova história militar brasileira. FGV, 2004.
7 FERREIRA, Oliveiros S. Vida e morte do partido fardado. Vol. 3. SENAC, 2000. 8 ROUQUIÉ, Alain. Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: RECORD (1980). 9 CASTRO, Celso, Vitor Izecksohn, and Hendrik Kraay, Nova história militar brasileira. Eds. FGV, 2004.
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 65 mentalidade bacharelesca, ligada a determinadas
O mundo é feito de trocas, especialmente trocas
áreas de formação acadêmicas, em detrimento ao
culturais, logo não é possível imaginar qualquer
desenvolvimento tecnológico, social e econômico.
estabelecimento ou instituição que não receba e
Tal desenvolvimento poderia ser alcançado por
promova alterações, ainda mais uma que recebe
uma formação educacional mais ampla e universal
elementos dos mais variados extratos sociais como
da sociedade brasileira como um todo. Coisa que
é o Exército. Assim, não se pode desconsiderar as
não é esperada pelas classes dominantes em todas
exposições, as influências ideológicas, as opiniões
as instâncias do poder, inclusive no Exército.
dos diferentes grupos sociais e políticos etc., que
E essa previsão veio a confirmar-se ao longo da Primeira República, período marcado por levantes variados10, principalmente de jovens oficiais,
permeiam o processo de existência de uma comunidade. Senão observemos as considerações de Norberto Bobbio ao classificar o ‘militarismo’:
inclusive pela forte influência que movimentos
“O Militarismo constitui um vasto conjunto de hábitos, interesses, ações e pensamentos associados com o uso das armas e com a guerra, mas que transcende os objetivos puramente militares. O Militarismo é tal que pode, até, chegar a dificultar e impedir a consecução dos próprios objetivos militares. Ele visa objetivos ilimitados; objetiva penetrar em toda a sociedade, impregnar a indústria e a arte, conferir às forças armadas superioridade sobre o Governo; rejeita a forma científica e racional de efetuar a tomada de decisões e ostenta atitudes de casta, de culto, de autoridade e de fé.” 12
como o Comunismo, o Integralismo e outros que
Ora, se Exército impregna os aspectos culturais é,
seduziam os cadetes, dentro da própria Academia,
obviamente, influído por eles e adapta-se e
durante os anos abarcados pelo nosso estudo.
fragmenta-se em seus próprios processos de
contestando os rumos dados à Força pelo Alto Comando, muito bem exposto por José Murilo de Carvalho.11 A partir de fins da década de dez até a Revolução de Trinta, entre o Tenentismo e a aquela revolução, desenvolveu-se um intenso processo de lutas entre diferentes forças políticas no interior do Exército, na busca de um modelo ideológico,
Demonstraremos, através da compreensão dessas
filtragem de ideologias. Isso fica claramente
disputas políticas e/ou ideológicas, que elas
apresentado nas diversas expressões políticas e
expressavam um caráter desconsiderado pela
ideológicas nos anos vinte e trinta, no Brasil do
própria Força, àquele em que os seus elementos
século XX. Tenentismo, Comunismo, Integralismo,
não são doutrinados ao nível da completa
Nacionalismo etc., são expressões da sociedade
submissão, pois para isso seria preciso o uso intenso
brasileira ao longo do início do século XX que
de lavagem cerebral, para o condicionamento
impregnaram as Forças Armadas, especialmente o
desse tipo de controle. Seja o Exército, uma
Exército, sendo nossa análise uma busca por
instituição religiosa ou qualquer outra organização
compreender como, após o fim do primeiro período
que expresse um caráter monolítico de seus
de governo de Getúlio Vargas essa Força manteve-
conceitos, a tendência a crer na sua imutabilidade
se atuante em busca de uma unidade ao mesmo
e na predominância de suas propostas sobre as
tempo em que transitou entre ser contra ou a favor
influências externas é presente, mas ilusório. 10 Proclamação da República, 1889; Manifesto dos Doze Generais, 1892; Revolta da Escola Militar, 1895; Revolta dos Sargentos, 1915, Revolta Tenentista, 1922, 1924 etc., In CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Zahar, 2005.
11 CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Zahar, 2005. 12 BOBBIO, Norberto, Nicola Matteucci, and Gianfranco Pasquino. Dicionário de Política, vol. 2. Universidade de Brasília 42 (2016): 748.
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 66 do regime vigente, buscando tornar-se o esteio do
Estado muito fraco cujas elites dominantes não
Estado.
necessitavam de uma energia que viesse a
Entre os anos de 1945 e 1954, as elites
atrapalhar seu controle político e social.
dominantes existentes no Brasil atuaram sobre a
As mudanças vieram por conta do despreparo
sociedade brasileira através dos grupos políticos
técnico e estratégico para um conflito de grandes
formados pelos agrupamentos legados pelo Estado
proporções representado, com muita razão, pela
Novo.13 PSD, PTB, UDN, PCB. E o Exército foi
Guerra do Paraguai e as crises sucedâneas que
cortejado, açulado por esses grupos influentes, em
desembocaram na ‘Queda Monarquia’ e apontaram
busca de apoio às suas pretensões de poder e
a necessidade de se atualizar a Força rapidamente.
aprofundando separações internas na Força,
Devido às frustações frente aos primeiros
expressas em frações políticas que evoluem nas
resultados negativos na Guerra frente aquilo que
suas condições de preponderância à medida que
acontecia nos melhores exércitos na Europa, a ânsia
essas dissenções sejam mais ou menos agregadoras
de novos processos foi quase angustiante.
de pontos convergentes ao interesse da tropa. A
Entretanto, foi preciso aguardar a Primeira
tentativa de golpe e o contragolpe liderado por
República, para os jovens oficiais que reivindicavam
Henrique Teixeira Lott14 em 1955, revelam essa
o papel de ‘defensores de Pátria’ terem as
proposição.
condições necessárias para isso.
As Ordenações Estrangeiristas: O fim do século XIX acelerou o processo de modernização do Exército, que era ambicionado pelos seus mais destacados membros desde meados
“Os poucos oficiais que frequentavam a Academia na Praia Vermelha ou, depois, em Realengo, quase não recebiam formação especializada, não eram produzidos programas para preparar as tropas, a ascensão hierárquica dependia de relações de compadrio de influentes políticos civis e o Comando não era exercido por um Estado-Maior, que não existia como confirma novamente Domingos Neto.”16
do mesmo período. Para isso, contribuíram vários conflitos, na Europa e América – Guerra da Criméia, Guerra Franco-Prussiana, Guerra da Secessão e a
Nova Metodologia Acadêmica:
Guerra do Paraguai –, que influíram na visão do que
As alterações em grandes proporções iniciaram-
era uma força militar modernizada, como bem
se a partir da chegada ao Ministério da Guerra do
exprime Manuel Domingos Neto: “Exército
Marechal Hermes da Fonseca, francamente
modernizado
poderoso,
favorável às reformas. Este enviou, de 1906 em
operacionalmente capaz, doutrinariamente unido,
diante, grupos de oficias para estagiar, durante
capaz de agir com força decisiva na cena política”.15
pelo menos dois anos, no Exército Alemão e que
O problema que se apresentou durante muito
voltavam extasiados com a máquina germânica,
tempo a dificultar as adequações das Forças
tentando de todas as formas introduzirem as
Armadas foi a fragilidade dos militares ante um
mudanças observadas, inclusive com a publicação
13 MELO FRANCO, Afonso Arinos de. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. Vol. 3. Editora Alfa-Ômega, 1980. 14 CARLONI, Karla Guilherme. Forças Armadas e Democracia no Brasil: o 11 de Novembro. 2005. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado em História). Niterói: ICHF-UFF.
15 DOMINGOS NETO, Manuel. Influência estrangeira e luta interna no Exército, 1889–1930. In Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: RECORD (1980). 16 DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 46-47.
é
exército
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 67 de revistas, como a “A Defesa Nacional”,
dificuldades orçamentárias, sob a direção do
demonstrando o valor das propostas e noticiando
Ministro da Guerra, João Pandiá Calógeras.
críticas reações contrárias, por parte de elementos da tropa contra o movimento, fato que gerou a punição de alguns participantes.
4)
Implantação
uma
Nova
Estrutura
Organizacional: Grandes unidades capazes de efetuar
A insistência sobre a presença da missão alemã na
de
rapidamente
importantes
manobras,
substituíram os pequenos e frágeis destacamentos,
reforma militar brasileira foi atrapalhada pela
com
Primeira Guerra Mundial e só retomada a partir de
obedecendo
1919, com a presença de uma missão francesa sob
Reestruturação do Estado-Maior para tornar-se um
o comando do General Maurice Gamelin, que
organismo de coordenação e comando de
acelerou as mudanças sintetizadas nas seguintes
atividades militares.
medidas:
a
distribuição a
um
geográfica
das
planejamento
tropas
nacional.
5) Reforma Completa do Ensino: Passar a
1) Adoção do serviço militar obrigatório (“o
aplicação de programas que objetivavam dar aos
Exército é uma escola na qual todos os cidadãos
oficias uma formação profissional, técnica, em
deveriam se educar no culto à Pátria”17). Era a
oposição
noção de apostolado patriótico, descrita por José
“tarimbeiros” formados na experiência do dia a dia
Murilo de Carvalho como uma consciência de
da tropa, do século XIX, com a introdução de cursos
“Nação Armada”18 que fora adotada por todas as
de especialização em práticas moldadas pela
nações europeias, durante o século XIX, e tomada
Primeira Guerra Mundial. Esses métodos foram
pelo Brasil a partir de 1916, permitindo o
adotados a partir de 1919, após a visita da missão
monopólio sobre o serviço armado a nível nacional.
francesa.
ao
‘bacharelado
fardado’
ou
os
2) Ampliação dos Efetivos: Até mais ou menos
6) Adoção de Novas Regras para Promoção: As
1930, os efetivos do Exército praticamente
promoções e avanços hierárquicos passaram a levar
triplicaram, garantindo a imposição do seu poder
em conta a formação profissional do oficial e a
sobre as forças regionais, em especial a força das
influência do apadrinhamento para a promoção de
polícias militares, melhor preparadas e sob o
postos de comando foi sensivelmente reduzida.
controle dos ‘Governadores’ (monopólio do poder armado).
Tais iniciativas sepultaram rapidamente o ‘velho Exército’, que em fins da década de vinte não era
3) Renovação dos Armamentos e Melhoria das
mais um condutor de passeatas, nem deixava mais
Instalações: Nesse aspecto os avanços foram
“bestializado o povo”.19 Entretanto, transformações
enormes – armas, adoção da aviação militar,
tão grandes no aparelhamento militar do Exército,
artilharia
de
não ocorreriam sem sofrer intensos confrontos com
comunicação modernos e construção de quartéis,
os interesses distintos de grupos e tendências, civis
escolas, stands de tiro etc. – mesmo com as
e militares. Quem melhor expressou esses choques
17 Cf. Boletim do Estado-Maior do Exército, 3(1), abril, 1912, pp. 23-31. In DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 48. 18 CARVALHO, José Murilo de. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. In História geral da civilização brasileira. V. 3 (1977): 1889-1930.
19 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a república que não foi. 1991.
de
tiro
rápido,
instrumentos
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 68 com a chegada da Missão Francesa, foi um civil,
O mesmo objetivo guiava todas as outras
Ministro da Guerra, Pandiá Calógeras: “Há uma
potências, seja a Alemanha, a Inglaterra ou os
crise de comando com a subversão dos princípios
Estados Unidos, por exemplo, premeditando passos
hierárquicos até então prevalecentes”.20
múltiplos e variados, com ações que iam de acordos
O resultado dessa evolução de conceitos e das modificações foi uma disputa interna entre oficiais, chamados ‘eruditos’, por sua formação na área de humanas – Filosofia, Sociologia, Literatura – e orgulhosos de sua formação bacharelesca, contra
secretos com políticos e autoridades até intensas campanhas na imprensa nacional junto aos militares. Um dos caminhos escolhidos passava pelo convite a oficiais para realizar estágios na tropa e/ou nos cursos de especialização.
aqueles de sólida formação técnica, especialmente
Em última análise, as atuações visavam aumentar
em relação às promoções e a autoridade
a admiração pelos exemplos e ações das forças
hierárquica e influenciados pelos interesses
militares estrangeiras, estendendo essa impressão
estrangeiros.
ao desenvolvimento dos aspectos econômicoindustriais dessas nações, induzindo ao interesse pela aquisição de seus produtos e pela introdução
Como o Mundo Pensa um Exército:
e modernização da infraestrutura nacional. E, para
As grandes potências, ao lado dos esforços
finalizar, a crença pelo grupo agrário exportador de
diplomáticos, às atividades de propaganda, à
que a modernização traria a disciplina e o
exploração de prestígio intelectual, as relações
afastamento da política de governo pelos militares
sobre a presença de contingentes de imigrantes
em geral.
etc., participavam também de um jogo político em busca
de
mercados
para
seus
produtos
industrializados (não só de armas). Essas relações estão expressas por Manuel Domingos Neto, inclusive nos relatórios dos adidos militares estrangeiros
no
Brasil.21
Observemos
O que parece não ter sido percebido, talvez até mesmo pelos próprios militares, era que a modernização
exigiria
uma
adequação
do
desenvolvimento industrial brasileiro, para que ele desse as condições técnicas propícias à afirmação
um
de um modelo mais apropriado. “A dependência
fragmento do relatório do adido militar francês, no
externa que a modernização do Exército causaria
Brasil, durante a Primeira Guerra, isto é, antes da
era vista com toda naturalidade. Ninguém
chegada da missão Gamelin:
levantava a necessidade da autonomia técnica e
“(...) a influência militar a se conquistar em um país ainda na infância, mas destinado ao mais belo futuro, e onde nós procuramos, por outro lado, conquistar posição na área econômica, vale alguns sacrifícios que nós podemos esperar produtivos futuramente”.22
industrial do país para se redarguir à modernização
20 Relatório do Ministro da Guerra João Pandiá Calógeras, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1919. In DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 49. 21 DOMINGOS NETO, Manuel. Presença Militar Francesa no Brasil 1889-1920, dissertação apresentada para obtenção do diploma do Institut des Hautes Études de l’Amerique Latine, Paris, 1976.
22 FANNEAU de la HORIE, Rapport ao Ministre de la Guerre, Rio de Janeiro, SHAT (Service Historique de l’Armée de Terre), Château de Vincennes, 11/09/1918. In DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 51. 23 DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 51.
do Exército”.23 Seria possível afirmar que aqui estaria nascendo à tendência da Força em apoiar o Nacionalismo Desenvolvimentista, apoiador da
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 69 industrialização e contrário as forças tradicionais do setor agrário exportador? Veremos a diante.
Partido Militar Moderno: Os seguidores do modelo germânico viram suas expectativas fenecerem com a Primeira Guerra e o advento dos ensinamentos franceses, por isso, a consequência imediata, foi o apoio incondicional ao modelo francófilo, pois o principal objetivo era a modernização da instituição e eles rapidamente tornaram-se os principais propagadores desses ideais. Em sua grande maioria tornaram-se os principais
estudantes
e
praticantes
dos
ensinamentos do General Gamelin, inclusive com a defesa propagandística intensa em ‘A Defesa Nacional’. São eles que propagaram as mudanças desejadas e ambicionadas pelos “jovens turcos”. A Coronel Benjamin Constant
principal delas o serviço militar obrigatório visto como a redenção à falta de civismo dos brasileiros. Seguindo à proposição do Coronel Benjamin Constant, inspirador do positivismo na Academia Militar, que afirmou num comunicado oficial, logo após a proclamação da República: “que o Exército brasileiro tinha uma missão altamente civilizadora, eminentemente moral e humanitária que, de futuro, estaria
destinada aos
Exércitos do
de uma ética quase missionário entre a oficialidade e que indicará dois rumos bem definidos a tropa: a transformação do exército e a transformação do país. Sem alterar as condições econômicas e, consequentemente, políticas do Brasil seriam impossíveis adequar às mudanças para a Força. É aqui que se torna importante abrir um parêntese. Quando
observamos
as
ideias,
conceitos,
continente sul-americano”.24, o General Caetano
propostas etc., dos jovens renovadores da
de Faria afirmou em 1912, em A Defesa Nacional25,
instituição militar, notamos como elas se dirigiam
que aos brasileiros, “faltava espírito cívico a
também para o ajuste do Brasil ao mundo que
população”, (...) “os brasileiros ignoravam o que era
emergira ao fim da Grande Guerra. A acomodação
patriotismo”, (...) “a tarefa de educar a população
das forças do liberalismo econômico, após as
caberia ao Exército”, “os oficiais deveriam agir
disputas entre Inglaterra, França e Alemanha,
como ‘apóstolos do patriotismo e do civismo”.26
principalmente, produziu um crescimento dos
É esse modelo de militar que será internado na sociedade e na caserna, promovendo o surgimento
24 Cf. Boletim do Estado-Maior do Exército, 3(1), abril, 1912, pp. 23-31. DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 64. 25 Ver especialmente os números de 1916.
ganhos dos países mais industrializados no mundo. Assim, adequar a modernização do Exército, pelo
26 Cf. Boletim do Estado-Maior do Exército, 3(1), abril, 1912, pp. 23-31. DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 64.
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 70 ajustamento do país a esse projeto político-
Fato reproduzido até os dias de hoje nos meios de
econômico, imporia mudanças sólidas e profundas.
comunicação.
Tais mudanças foram expressas no modelo de
As reformas foram realizadas de maneira mais ou
formação dos reformadores, que procuravam
menos compassada, exigindo a aceitação de
estudar, analisar e produzir respostas claras e
retrocessos e acomodações aos roteiros políticos
eficientes, sobre o que o país precisava e não
das elites nacionais. Getúlio Vargas é o grande
demandar propostas políticas morais. O melhor
exemplo de acomodação às forças políticas em
exemplo dessa receita foi aludido por Góis
evolução, inclusive na culminância da derrubada do
Monteiro, aceito como líder reformador a partir da
ditador. Depois, chegou-se inclusive, a ameaçar a
vitória de 1930, que, pouco antes da Revolução,
ordem democrática coma tentativa de deposição
discursando à Força, afirmou:
de Vargas, em seu segundo governo, ou a tentativa
“Sem querer aprofundar a discussão sobre o sentido do movimento tenentista, estamos convencidos de que a atenção que lhe foi dada até o presente não é plenamente justificável. Não corresponde à importância política do movimento. Pelo menos se compararmos ao dos jovens reformadores do Exército durante o mesmo período. O grupo reformador não somente guardou, no essencial, sua coesão durante várias décadas, mas, o que é da maior importância, chegou ao poder e colocou em prática seus projetos concernentes ao futuro do país. Os tenentes não conseguiram sequer conceber projetos. Suas proposições, pouco explicitadas e fundamentadas, tinham acentuado teor de moralização dos costumes políticos. Jamais representaram propostas de política socioeconômica ou de reformas para o fortalecimento do Estado-Nação”.27
de golpe, seguida do contragolpe de Lott, em 1955, para garantir a posse de Juscelino Kubistchek, até chegar a 31 de março de 1964. Cabe aqui um questionamento sobre se esse modelo, constituído desde os anos trinta tenha talvez tenha incutido no Exército a perspectiva de que os destinos da nação e do Estado são os rumos da Força, cabendo a ele decidir, apoiar, referendar ou alterar, quando necessário, as disposições da sociedade
brasileira.
Tal
determinação
é
referendada pela disposição e imaturidade do povo, que despreparado em vários aspectos – educação, vivência democrática, organização
E o caminho escolhido para ‘”vender” seu ideário
política etc. –, não consegue dar vida as suas
valores
aspirações políticas e sociais. Esse fato é
pretendidos, através do uso propagandístico das
exemplificado pela ausência de representação
publicações da Força, com destaque para A Defesa
político-partidária durante grande parte de vida
Nacional, onde se difundiam frases como: “Se a
republicana, com uma exceção razoável durante os
publicidade nos jornais constitui um meio eficaz de
anos de 1945-1964, como abordam autores
persuasão
espíritos
preocupados com o significado do período:
suficientemente fortes para resistir ao poder da
Rodrigo Motta Patto Sá29, Afonso Arinos de Melo
repetição. Na maior parte dos homens a repetição
Franco30, Maria do Carmo Campello de Souza31.
foi
uma
repetição
é
porque
constante
há
dos
poucos
chega a criar rapidamente a certeza dos fatos”.28
É na análise de alguns momentos e/ou instituições representativas da Força (Revolução de 30, 11 de
27 DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 62. 28 Editorial de A Defesa Nacional, 37, 10/10/1916. In DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 65. 29 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros. Editora UFMG, 1999.
30 MELO FRANCO, Afonso Arinos de. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. Vol. 3. Editora Alfa-Ômega, 1980. 31 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. A democracia populista, 1945-1964: bases e limites. Como renascem as democracias. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 71 Novembro de 1955, O Clube Militar, a ESG etc.),
assim, que as aspirações do Exército se fundem as
que permitirá a nós compreender o significado das
aspirações dessa camada social, que podemos
ações do Exército como elemento constitutivo do
chamar ‘industrializante’.
Estado e seu aparato aramado mais atuante.
No século XVII, o Cardeal Richelieu ambicionava tornar a França a força dominante no Mundo, pois,
Conclusão:
em sua visão, os destinos da Europa eram os
Nossa análise tentou abranger alguns elementos representativos
das
transformações
que
fervilhavam na sociedade brasileira, num período significante da história do país, pela observação e compreensão do braço armado do Estado, onde foram considerados e tratados alguns elementos do processo de adequação da Força, por elementos renovadores, conectados com as mudanças que estavam
se manifestando
Exército, transformar a metodologia de formação dos cadetes, seria apenas um passo na direção da atuação mais profunda, modernizar a força e adaptá-la aos novos tempos e posições políticas e sociais. Seria correto afirmar que os anos que vão de 1900 até 1945 marcam a mudança e a consolidação de
liberalismo dominante. O predomínio na política e
um novo modelo de Força militar para o Estado, que
na economia nacionais, de elites retrógradas ainda
também mudou e consolidou um novo modelo. É
vinculadas
agrário-exportadores,
por isso que as ingerências realizadas pelo Exército
existente desde o Império e herdado do período
vão se amiudando até chegar à Crise de 1964.
colonial, marcou a República Velha, atrapalhando
Talvez seja atrevimento afirmar que o caráter
aspirações de vários seguimentos sociais e políticos,
interventor e de ser o mais capaz de fazer escolhas,
como o Exército.32
que aquela força assumiu tenha suas raízes nessa
modelo
mundo
proporções, na visão dos jovens renovadores do
do
ao
pelo
destinos da França.34 Guardadas as devidas
É possível fazer essa afirmação ao relacionarmos os objetivos dos defensores das adequações, as demandas da sociedade e as propostas políticas que ao longo dos anos dez e vinte manifestaram-se e produziram expressões ideológicas, algumas conflitantes, dentro da sociedade. A própria ‘disputa’ entre as influências germânica e francesa já aponta uma dúvida, mas essa foi resolvida pela Guerra. As aspirações sociais e o advento das
fusão de interesses e objetivos, sejam eles políticos econômicos e sociais. Obviamente estudos mais aprofundados e específicos garantiriam resultados mais seguros, impedindo considerações tão vagas, mas também atraentes. Ronaldo Rodrigues Coelho é licenciado em História pela UNISUAM (Universidade Sociedade Unificada Augusto Motta), Mestrando em História do Brasil pela Universidade Salgado de Oliveira (Universo) e Professor do Colégio Militar do Rio de Janeiro – CMRJ.
ideologias do Comunismo e do Integralismo, impuseram a busca por uma escolha mais profunda33, mudanças que expressassem as aspirações de uma fração da elite, mais adaptada ao que ocorria no Capitalismo do pós-Guerra. É 32 CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Zahar, 2005. 33 MELO FRANCO, Op. Cit. Ver também, MOTTA, Op. Cit.
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G N A R U S | 72 Karla Guilherme. Forças Armadas e Democracia no Brasil: o 11 de Novembro. 2005. Tese
CARLONI,
de Doutorado. Dissertação (Mestrado em História). Niterói: ICHF-UFF. CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Zahar, 2005. ___________, José Murilo de. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. In História geral da civilização brasileira. V. 3 (1977): 1889-1930. ___________, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a república que não foi. 1991. CASTRO, Celso, Vitor Izecksohn, e Hendrik Kraay, Eds. Nova história militar brasileira. FGV, 2004. DOMINGOS NETO, Manuel. Influência estrangeira e luta interna no Exército, 1889–1930. In Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: RECORD (1980). ________________, Manuel. Presença Militar Francesa no Brasil 1889-1920, dissertação apresentada para obtenção do diploma do Institut des Hautes Études de l’Amerique Latine, Paris, 1976. FERREIRA, Oliveiros S. Vida e morte do partido fardado. Vol. 3. SENAC, 2000. MELO FRANCO, Afonso Arinos de. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. Vol. 3. Editora AlfaÔmega, 1980. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros. Editora UFMG, 1999. ROUQUIÉ, Alain. Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: RECORD (1980). SIRINELLI, Jean, Os Intelectuais. Cap. 8, Pg. 331-369. In RÉMOND, Réne. Uma história presente. Por uma história política, v. 2, 1996. SOUZA, Maria do Carmo Campello de. A democracia populista, 1945-1964: bases e limites. Como renascem as democracias. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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