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Artigo
FRANCISCO: O POVERELLO DE ASSIS Por Tadeu Góes
RESUMO: Francisco de Assis, o poverello de Deus, é um santo que facilmente fascina àquele que estuda sua biografia, por sua relação de amor para com o próximo e para com Deus e por seu amor com a natureza e toda a criação. Francisco foi um exemplo de cristão e de ser humano. Sua vida inspirou religiosos e intelectuais. O santo de Assis se dispôs a seguir nu o cristo nu, numa constante busca de viver o evangelho de Cristo em toda sua profundidade. Essa Imitatio Christi culminará nos estigmas de que São Francisco recebe as chagas de Cristo, tornando-se seu espelho. Palavras-chave: São Francisco. Imitatio christi. Cristianismo. Hagiografia.
Breve análise do contexto sócio religioso
O
período histórico em que Francisco se encontra é demasiado conturbado, principalmente no que se refere à
cristandade. É necessário descrever esse momento, pois Francisco, segundo sua hagiografia, veio dar novos rumos a essa cristandade medieval ocidental. É um momento determinante em sua vida, quando o crucifixo da Igreja de San Damian o chama, e a voz lhe diz: “Francisco, não vês que minha casa está desmoronando? Vai consertá-la! ” (Idem, 2011, p. 38). Para o jovem, que viria a ser o santo de Assis, a voz se referia à Igreja de San Damian, porém posteriormente deu-se conta de que se tratava da Igreja como o corpo da cristandade.
A Igreja católica passava por uma época difícil. Do século X até meados do século XI a Igreja se encontrava debilitada. A igreja desse período, recém-saída da era carolíngia, passava por diversas turbulências e crises. Ela ainda não se encontrava totalmente unificada através da figura do papa, apesar dessa figura já existir. Um dos problemas pelos quais passava a cristandade era a falta de limites entre o clero e o laical (secular). Não havia uma divisão clara do que cabia ao clero e do que cabia ao mundo secular. Temos como exemplo papas sendo entronados por imperadores; reis se intrometendo na seara de assuntos que diziam respeito tão somente à Igreja. Eram laicos que possuíam
igrejas
e
comercializavam
cargos
religiosos, dentre outras coisas. Além disso, outros
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G N A R U S | 74 motivos também contribuíram com a crise
senhores laicos estavam se apropriando da
institucional da Igreja, como, por exemplo, o
instituição, nomeando párocos, recebendo dízimos
nicolaísmo e a simonia. Baschet conceitua simonia
e rendimentos das igrejas. A igreja neste período
como toda forma de intervenção dos laicos nos
encontrava-se totalmente dependente dos laicos
negócios da igreja, bem como a posse das igrejas e
(BASCHET, 2006, p. 184).
dos dízimos. É, segundo suas palavras, a aquisição ilícita de coisas sagradas. Já o nicolaísmo se caracteriza pelos clérigos casados ou que vivem com concubinas. O ápice deste confronto entre os laicos, na figura do imperador, contra a Igreja, na figura do papa, se deu com a querela das investiduras. Estado versus Igreja. O conflito se deu na nomeação de doze papas, pelo imperador germânico e na exclusão de cinco. Com isso, a abadia de (de onde?), começou a exigir maior autonomia da Igreja frente ao Estado Laico. Para
Vouchez a querela entre Estado versus Igreja não foi tão simplesmente um conflito, mas sim uma luta
Diante desse quadro de crise institucional da Igreja, surge a reforma gregoriana. Como resultado dessa reforma, temos, principalmente, a separação do que é da igreja e do que é do mundo secular. O Estado Laico não mais interfere nos assuntos eclesiásticos e o Papa alcança o título de autoridade máxima dessa igreja. Uma vez que o Estado Laico não interfere mais em assuntos eclesiásticos, funda-se o colégio de cardeais de modo que a própria igreja passa a eleger o seu pontífice.
Baschet ao se referir à reforma gregoriana nos diz: “(...)Visa a uma reestruturação global da sociedade cristã, sob a firme condução da instituição eclesial. Os seus eixos principais são a reforma da hierarquia secular sob a autoridade centralizadora do papado e o reforço da separação hierárquica entre laicos e clérigos. Trata-se de nada menos que reafirmar e consolidar a posição dominante da Igreja no seio do mundo feudal (Idem, 2006, p. 190).”
obstinada. “(...) a famosa querela das Investiduras, que opôs, no fim do século XI e no fim do VII, os papas aos soberanos germânicos, não foi - como se diz muitas vezes um conflito entre o poder espiritual e a autoridade leiga, mas uma luta ferrenha entre duas sacralidades rivais (VAUCHEZ, 1995, p. 44).”
Z. N. Brooke, medievalista britânico, deixa claro, assim como Vouchez, que a querela, o conflito entre imperador e Igreja era muito além das
A principal intenção dessa reforma foi a
investiduras, era um conflito pela supremacia de
reestruturação da cristandade, separando a Igreja
um dos lados.
de um lado e os laicos de outro, impedindo que
“(...) Era um conflito pela supremacia entre o regnum e o sacerdotium, entre as cabeças dos setores seculares e eclesiásticos, cada lado clamando que seu poder derivava de Deus e que era seu direito julgar e depor o outro (...) (BROOKE, 1939: p. 218).”
estes fizessem intervenções nos negócios da Igreja. Novamente citando Baschet: “O movimento de reforma só procede por separação”, ou seja, há neste
período
uma
sacralização
do
clero,
reforçando assim o seu poder espiritual, que a partir de então, fica reservado apenas à Igreja. (Idem,
Baschet ao se referir a este período explica que o poder do Papa estava frágil, submetido a todo o momento aos imprevistos da política imperial e aos conflitos entre as facções romanas. Os bispos estavam subjugados às pressões dessas facções. Os
2006, p. 193). Para Le Goff, além da libertação do mundo eclesiástico, que estava submetido ao regime feudal leigo, a reforma gregoriana também significou: Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 75 “A independência da Santa Sé em face do poder imperial e os progressos da liberdade eleitoral dos bispos e dos abades em relação aos leigos poderosos são fenômenos significativos. Os esforços de eliminação de todas as pressões econômicas e sociais reunidas sob a etiqueta de simonia não são menos importantes. É essencial, sobretudo, a luta contra o que se chama nicolaísmo (Idem, 2001, p.27).”
O momento histórico é oportuno para Francisco
Boff reflete sobre o período: “Francisco, como personagem social, emerge num momento particularmente privilegiado e, por isso, crítico; é tempo de rupturas; algo de velho começa a morrer e algo de novo a nascer. O modo de produção feudal conhece estremecimentos porque sua hegemonia se vê ameaçada pelo emergente modo de produção mercantil da burguesia comunal. Francisco por sua prática de vida reflete a crise do tempo e às saídas possíveis confere sua versão pessoal”. (Idem, 2012, p. 164)
pregar, bem como para atuação de sua ordem. É o período do surgimento das cidades que aos poucos deixam de ser centros militares e administrativos para se tornarem centros econômicos, políticos e culturais (Idem, 2001, p.24). À medida que a população dobra seu número de habitantes, é preciso alimentá-la material e espiritualmente e Francisco levou o alimento espiritual a essa população (Idem, 2001, p.23). Assis, a cidade de nascimento de Francisco, foi uma das cidades pioneiras no que se refere ao florescimento comercial, e a família de Francisco, mais precisamente na figura de seu pai, que foi um rico mercador de tecidos, a cidade obteve sucesso. Por volta do século XII, a Europa assistiu ao florescimento comercial. Com o surgimento das cidades, desfez-se aos poucos o processo que ficou conhecido como ruralização. Era o início da transição do sistema feudal para a sociedade burguesa. Para Vauchez, do fim do século XI ao início do XIII, houve um grande progresso cuja principal característica foi a expansão demográfica, o renascimento das cidades e o aparecimento de novos grupos sociais, como a burguesia. Ele
Para Celso Márcio Teixeira, do Instituto Teológico Franciscano, os leigos também foram influenciados por essa ebulição pela qual passava a sociedade, pois despertou no povo o anseio por uma maior participação na vida religiosa. Surgiram, na sociedade civil, as corporações de ofício, como expressão do desejo de participação da vida socioeconômica
e
o
fenômeno
acabou
repercutindo também no campo religioso. O povo então se unia em grupos que procuravam viver o cristianismo com mais profundidade. Deu-se origem, assim, a uma intensa movimentação religiosa e a uma forte busca do cristianismo primitivo, apostólico, do Cristo pobre (COSTA; SILVA e SILVA, Org., 2003, p. 53). Estes homens desejavam viver de acordo com o evangelho tal qual pregado pelos apóstolos, ou seja, viver de acordo com o cristianismo primitivo. Eles apontavam para o que seria a base da filosofia de Francisco: Uma vida baseada na pobreza, na simplicidade e na imitação de Cristo, a exemplo da vida dos apóstolos. Pregavam a penitência, o ideal
completa dizendo: “Depois de séculos de imobilismo e isolamento, o Ocidente, começando pela Itália e pelas regiões entre Seine e Escaut, eram o cenário de uma verdadeira ‘revolução comercial’”
(Idem,
1995,
p.
65).
Estas
transformações sociais influenciaram diretamente a vida religiosa da sociedade. Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 76 desenvolve, nestes locais, uma atividade pastoral que procura evangelizar esse novo meio urbano.
Baschet cita Le Goff ao se referir a essa relação entre as ordens mendicantes e as cidades: Para ele, há um forte laço entre os mendicantes e o fenômeno urbano a ponto de se estabelecer uma correlação entre a importância das cidades medievais e o número de conventos mendicantes (Idem, 2006, p. 213). Os mendicantes inauguram um novo modelo de espiritualidade. Os mendicantes não aceitam doações feitas à ordem, de modo a dar sentido ao ideal de pobreza. Em especial a ordem dos frades menores. Outra característica fundamental dos mendicantes, é o ideal de vida ascética e comunitária. Eles optam por viver no mundo Bonaventura Berlinghieri: São Francisco e cenas de sua vida, 1235, uma das mais antigas pinturas representando São Francisco de Assis
de vida apostólica1 e a contestação. Para esses leigos, a contestação consistia numa crítica ao clero por não seguirem a vida baseada na pobreza apostólica e por descuidarem da pregação em prol da aquisição e da administração de riquezas. Essas
secular, no seio das cidades, junto aos fiéis, pregando “pela palavra e pelo exemplo”. Baschet diz que “as ordens mendicantes aportam, assim, uma contribuição decisiva à igreja de seu tempo, assumindo um enquadramento e uma atividade pastoral adaptados aos meios urbanos” (Idem, 2006, p. 213).
novas bases espirituais que surgem nos séculos XII e
Após essa breve análise do contexto sócio
XIII farão parte, também, da filosofia religiosa de
religioso no qual o santo estava inserido,
alguns grupos de hereges. Mas também, serão a
passaremos a discorrer sobre a sua vida.
base, principalmente, da filosofia das ordens mendicantes que nascem neste período (Idem, 2003, p. 54).
Do sonho Cavaleiresco ao Santo esposo da pobreza Francisco de Assis, o poverello2 de Deus, foi um
As ordens mendicantes, ordem dos frades
homem à frente de seu tempo, pois falou, num
menores, criada por Francisco de Assis, é uma
período conturbado da cristandade ocidental, em
vertente que se instala no seio dessas cidades e
respeito e amor à natureza, às mulheres3, em
1
Celso Márcio Teixeira explica que “de fato, a vida dos leigos não era considerada vida apostólica. A partir da reforma gregoriana, porém, começou-se a difundir a convicção de que a vida apostólica, exatamente por identificar-se com a vida cristã, deveria ser seguida por todos os fiéis” O contexto religioso do surgimento do Movimento de Francisco de Assis, Celso Márcio Teixeira, ITF, p. 54. 2 Em italiano significa pobrezinho, o coitado. Segundo Baschet, “os habitantes de Assis, que veem Francisco andar hirsuto e em
trapos, perguntam se não há nele alguma loucura e é um pouco isso que exprime o seu apelido poverello. ” Ver: BASCHET, Jerôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 208. 3 Francisco rompe com a misoginia da sociedade medieval. Segundo Leonardo Boff, Francisco entende a mulher como o caminho para o amor de Deus com os homens. Para ele, Francisco deixa claro que a mulher não deve ser motivo de fuga nem de obsessão (BOFF, 2012, p. 68).
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G N A R U S | 77 atenção e amor para com os pobres e miseráveis e criou um ideal de fraternidade, onde todos são
forneçam detalhes de suas vidas ou de suas personalidades” (SPOTO, 2010, p. 31)
irmãos, longe de toda a hierarquia em que vivia a Igreja. Porém, o amor maior que Francisco nutriu foi
Pedro ao viajar para a França a negócios deixou
pelo Cristo crucificado e é neste ponto que o
sua esposa grávida. Pica deu a luz ao menino na
presente artigo irá se ater. O amor pelo Cristo que
ausência do seu marido. Em poucos dias, após o
o chamou, intimamente, foi tão grande, a ponto de
nascimento da criança, Pica o levou para ser
Francisco buscar ser o espelho do seu Senhor.
batizado na Igreja de Santa Maria, em Assis. De
“Havia na cidade de Assis um homem chamado Francisco...” Assim começa a narração de São
modo a fazer uma homenagem a São João Batista, Francisco foi batizado com o nome de João.
Boaventura, na obra Legenda Maior, sobre a vida de
Bernardone, ao regressar de sua viagem à França
São Francisco de Assis. “Deus, depois de tê-lo
e tomar conhecimento do nome escolhido por sua
enriquecido
preciosas,
esposa para a criança, ficou bastante transtornado,
misericordiosamente o retirou dos perigos deste
pois na Europa Medieval, bem como na tradição
mundo e o cumulou abundantemente de dons da
bíblica, a escolha do nome de uma pessoa
graça” (LM, prólogo, p. 7). No meio do conturbado
influenciaria no que aquela criança viria a ser. E
período pelo qual passava a cristandade ocidental
Pedro não queria que o nome de seu filho fizesse
e ao mesmo tempo num crescente período de
referência a um eremita do deserto que se trajava
desenvolvimento das cidades e consequentemente
apenas de pele de camelo. Daí em diante o pai do
do comércio, Francisco vem ao mundo. Para Le
menino passou a chamá-lo de Francisco, “O
Goff, Francisco irá alimentar espiritualmente essa
francês”. Era da França que Pedro Bernardone trazia
sociedade que cresce, se desenvolve e anseia por
seus tecidos e a prosperidade para os seus negócios
esse alimento:
(Idem, 2010, p. 32). Na visão de Pedro, Francisco
de
bênçãos
“Desde cerca do ano 1000, desigualmente de acordo com as regiões, mas de maneira regular e às vezes explosiva – como na Itália do norte e do centro -, o número de habitantes aumenta, dobra, sem dúvida. É preciso alimentar material e espiritualmente esses homens “. (Idem, 2013, p. 23)
Francisco nasceu entre os anos 1181-1282. Não se sabe com precisão. Filho de Pietro (Pedro) di Bernardone dei Moriconi, um bem sucedido comerciante de tecidos da região de Assis e de Pica Boulermont, uma nobre de origem francesa. Segundo Donald Spoto: “Praticamente tudo o que sabemos com segurança até 1182 sobre a família Bernardone se resume à atividade comercial de Pedro, seu nome e o de sua mulher, além da localização de sua loja. Não existem arquivos nem documentação que Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 78 deveria ser o herdeiro dos seus negócios e levar adiante a prosperidade da família. Durante
a
infância,
Francisco frequentou um colégio anexo à Igreja de San
Giorgio
onde
aprendeu a ler e também recebeu
as
primeiras
instruções religiosas, visto que como livro de leitura usava-se
o
saltério
–
coletânea de orações e salmos em latim. Durante as viagens que fazia com o
O hábito de São Francisco, todo remendado de trapos, preservado na Basílica de Assis
pai à França e à Holanda para aprender os negócios
jovem Francisco como um pródigo. Ele gostava de
da família, Francisco aprendeu o francês, língua
cantar, se divertir com amigos durante dia e noite.
pela qual tinha um grande apreço (Idem, 2010, p.
Custeava os seus amigos e gastava altas quantias em
32). A língua dos poetas, das poesias e dos contos
banquetes, mulheres, bem como em roupas (Idem,
cavaleirescos despertava grande atenção do jovem
2011, p. 21). Gostava de ostentar tanto quanto um
de Assis. Le Goff ao se referir à grande admiração
príncipe. Francisco esbanjava tanto quanto a alta
de Francisco pela língua francesa cita Tomás de
nobreza. Durante a juventude seguiu buscando as
Celano que diz: “Quando ele estava cheio do ardor
virtudes da cortesia ao modo da ideologia
do Espírito Santo, falava em francês em voz alta”. O
cavaleiresca. Apesar de toda essa tendência para
medievalista francês conclui: “O francês o
banquetes com amigos e divertimentos, Francisco
mergulhava no êxtase e no júbilo” (Idem, 2013, p.
desde a mais tenra idade sempre se mostrou gentil:
59). No jovem Francisco é difícil identificar o santo que alguns anos mais tarde se tornaria. Francisco aprendeu a lidar com as armas, a montar e sonhava em ser cavaleiro. Além disso, se dedicava aos negócios da família trabalhando no comércio de tecidos com o pai, mas sempre aspirando uma vida
“(...) e, no entanto, era por natureza gentil nos modos e no conversar; tinha determinado a si mesmo jamais dirigir a ninguém injúrias ou palavras vulgares; mesmo sendo um jovem brilhante e que amava as mulheres, estabeleceu para si jamais responder a quem lhe falasse de modo grosseiro ou lascivo. Assim sua fama se difundiu dentro e fora de Assis, e de tal maneira se consolidou que muitos amigos ou conhecidos tinham certeza de que aguardava um grande futuro.” (Idem, 2011, p. 22)
mais nobre: O tal sonho de tornar-se um cavaleiro. Frugoni, de modo a construir para o leitor esse
As canções de gesta, a poesia, o amor cortês, tudo
Francisco avesso ao santo que se tornaria, recorre à
isso fazia parte da vida do futuro poverello.
obra Legenda dos três companheiros onde consta o
Entretanto, a arte da guerra também lhe despertava Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 79 grande admiração e não lhe faltou oportunidade de
voltar à batalha e que também era sinal de vitória.
ingressar como cavaleiro numa guerra. A partir daí,
Para Le Goff, Francisco interpretou este sonho de
sua vida começa a tomar novos rumos. Em 1198, os
maneira equivocada. Para ele, o sonho foi
membros da comuna de Assis resolvem atacar a
simbólico, e foi um primeiro chamado para um
torre do castelo imperial, pois a burguesia se
outro combate: o combate espiritual que travaria
revoltava contra os senhores feudais, ambicionada
logo a seguir (Idem, 2013, p. 61). No caminho, em
pelo sucesso e lucro em seus negócios. Segundo
Spoleto, ele se sente mal e resolve parar um pouco.
Spoto, a questão era meramente essa. Com isso,
No momento de descanso ouve uma voz
Francisco que sempre almejou a batalha, não se
perguntando-o para onde estava indo. Reproduzo
esquivou e se alistou nas fileiras da comuna. Num
nas linhas abaixo o diálogo, entre Francisco e a voz,
combate entre a cidade de Perúsia e a cidade de
reconstruído por Frugoni, logo após ele dizer para
Assis, no ano de 1202, Francisco acabou sendo feito
onde estava indo:
prisioneiro onde permaneceu pouco mais de um ano. Frugoni, em seu estudo sobre o santo de Assis, aponta que já durante a prisão Francisco assinalava ter atitudes que o diferenciariam dos outros companheiros. Eles, tristes, para baixo, por estarem na prisão, não compreendiam o porquê de
- Quem julgas que pode te fazer um bem maior, um senhor ou seu servo? - O senhor. - E por que deixas o senhor para seguir o servo, e o príncipe por seu subordinado? - Senhor o que quereis que eu faça? - Volta pra tua cidade e lá te será dito o que deves fazer, por que aquela visão deve ser interpretada de outra maneira (Idem, 2011, p.30).
Francisco externar alegria, não se deixando abater por aquela situação. A alegria sempre foi e será ao longo de toda sua vida um traço característico. Francisco a partir deste momento começava a demonstrar que algo estava por acontecer em sua vida:
Francisco, desde então, atende ao primeiro chamado de Deus em sua vida, monta em seu cavalo e volta pra Assis. Para não voltar fracassado e nem deixar que o julguem em virtude de não ter seguido em frente junto à batalha, Francisco junta
“Um dos prisioneiros, que evidentemente não aguentava mais passar os dias entre tantos desconfortos, perdeu as estribeiras e disse que ele era um louco e demente por exibir tal comportamento. Então Francisco lhe responde em tom vibrante: ‘O que achas que me tornarei na vida? Serei adorado no mundo todo!” (Idem, 2011, p.21)
seus amigos e promove os costumeiros banquetes da mesma maneira de sua já
conhecida
prodigalidade. Le Goff refere-se a ele, em relação aos seus amigos, como o chefe profano. Mas estes seriam
os
últimos
banquetes
e
exageros
promovidos por Francisco, pois aos poucos ele se Mesmo após ter sido libertado, Francisco continuou com o desejo de tornar-se um cavaleiro reconhecido. Então, em 1205, alista-se novamente,
afasta e se recolhe para meditações. Parece estar em busca de uma vida nova. Provavelmente nem ele sabia, naquele momento, o que estava almejando.
mas agora no exército papal que travava batalha
O jovem Francisco passou um período com
contra as tropas imperiais. Esta decisão de alistar-se
atitudes bem diferentes das que todos conheciam.
veio por meio de um sonho onde via sua casa cheia
Estava mais silencioso e pensativo, até que certo dia
de armas e uniformes militares. Francisco acreditou
resolveu entrar numa igrejinha dedicada a San
que este pensamento era um aviso de que deveria
Damiano e se pôs a rezar diante de um crucifixo, Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 80 onde havia Jesus, triunfante, pintado na madeira.
tinha o dinheiro para devolver ao pai. É daí que virá
Ao orar com mais fervor, Francisco sentiu que a
a grande separação entre o jovem Francisco e sua
imagem de Cristo pintada no crucifixo o observava.
família. Pedro Bernardone resolve procurar o bispo
Foi quando ouviu a voz novamente e dessa vez
da cidade, pois segundo os magistrados, ele estava
vinda do crucifixo: “Francisco, não vês que minha
sob a jurisdição da Igreja (Idem, 2010, p. 99). O caso
casa está desmoronando? Vá consertá-la! ”
foi parar nas mãos do bispo Guido. E uma audiência
De fato, a igrejinha estava em ruínas. Francisco então interpreta esse segundo chamado como uma
é marcada. Este foi um dos momentos mais emblemáticos da vida do santo de Assis.
intimação para restaurar a igreja física de San
Na hora acordada para o encontro com o bispo, lá
Damiano. Dali, sai imbuído da ideia de reconstruir
estava Pedro e seu filho. Guido aconselha Francisco
a igrejinha. Para Spoto, foi o início de um novo
a devolver a quantia: “A Igreja não quer que gastes
estágio na vida de Francisco, que:
com ela dinheiro que não é teu, dinheiro de teu pai,
“Já não se preocuparia em buscar a glória, privilégios ou nobreza; já não se dedicaria a encontrar-se a si mesmo ou aperfeiçoar sua autoestima. Mais suscintamente, ele havia ouvido e agora ansiava responder, para assim manter o diálogo”. (Idem, 2010, p. 89)
talvez fortuna mal adquirida” (Idem, 2011, p. 41). A atitude de Francisco foi despir-se por completo, E nu, com as roupas na mão, e sobre elas o dinheiro, chega à presença de seu pai e o entrega na frente de uma pequena multidão que acompanhava a
Para que pudesse atender ao pedido da voz do
audiência.
crucifixo, à maneira de sua interpretação, Francisco
São Boaventura, relata em seu livro “Legenda
se utilizou do comércio de seu pai. Pegou alguns
Maior”, que Francisco parecia estar embriagado
tecidos da loja de Pedro Bernardone, seu cavalo, e
pelo espírito de Deus e descreve sua atitude
foi até uma cidadezinha próxima, e vendeu tudo.
perante o pai. Francisco diz: “Até aqui, chamei-te
Chegando à igreja de San Damiano, entregou toda
meu pai aqui na terra; daqui para o futuro poderei
a quantia ao padre, para que este mantivesse a
dizer com segurança: ‘Pai nosso que estais no céu’,
lâmpada defronte ao crucifixo sempre acesa. O
pois a Ele confiei todo o meu tesouro e n’Ele
sacerdote que sabia do gênio de Pedro Bernardone,
depositei toda a minha confiança”. Ao presenciar
bem como da fama de pródigo de Francisco,
tal atitude de Francisco, o bispo “cheio de bondade
recusou a quantia. O jovem de Assis, então, jogou
e de admiração perante um gesto tão sublime, não
toda a quantia ao longe. Tempos depois, após
podendo reprimir as lágrimas, veio abraça-lo com
Francisco ficar um tempo sumido de casa, em
ternura e cobri-lo com a sua capa”. (LM, capítulo II,
virtude do episódio do dinheiro, seu pai o resgatou
p. 20). Para Frugoni, bem como para os demais
de seu esconderijo, o levou diante do pátio da
hagiógrafos de São Francisco, tal gesto do bispo
Igreja de San Giorgio e ali mesmo aplicou os
acolhendo Francisco, nu, sob o seu manto,
castigos diante de todos.
significou “o afastamento irreversível de Francisco,
Após nova fuga de Francisco, seu pai o reencontra novamente e dessa vez cobra o dinheiro dos tecidos e do cavalo, que havia vendido para dar para a restauração da igrejinha. Francisco, no entanto, não
que abandonava a família natural e passava para a família espiritual da Igreja” (Idem, 2011, p. 41). Donald Spoto, sintetiza o processo de conversão de Francisco: Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 81 “Sua conversão se iniciara com uma crise de sentido após o encarceramento, a enfermidade e uma longa convalescença. Em seguida, ele experimentara uma profunda falta de ligação com a vida e uma simultânea desilusão com as glórias e as riquezas do mundo. Depois disso, vira frustrado seu desejo de atingir o status de nobreza, e ao retornar a seus antigos hábitos de indolência e diversões ocas, encontrou a vida mais vazia e mais sem sentido do que nunca. Em outras palavras o despojamento espiritual precedeu o despojamento físico.” (Idem, 2010, p. 104)
onde São Francisco fundou a Ordem dos Frades Menores. Após o episódio com o bispo Guido, sua veste passou a ser uma túnica de saco, sandálias de couro e um cajado. Tal qual um eremita. Acrescentou ainda à indumentária humilde, uma tau, um “T”, que desenhou com uma pedra de calcário, marcando a sua túnica. Um símbolo de serviço ao próximo. Porém, ao contrário dos eremitas, Francisco não
Seguindo o conselho do bispo Guido, Francisco
estava interessado em viver afastado do mundo, se
seguiu em peregrinação a Roma. A partir de então,
abrigando em cavernas e cabanas distantes. Sua
segue solitário pelo mundo, porém sempre alegre e
solidão não significava se isolar do mundo, pois seu
seguro de si. Nas palavras de Spoto, “dali em diante
ideal era servir ao próximo, auxiliando-o em seus
tomaria lugar entre os excluídos, em companhia
problemas, ajudando-o nas suas necessidades e
dos pobres e do Cristo que vira no crucifixo de São
anunciando a palavra do amor de Deus (Idem, 2010,
Damião” (Idem, 2010, p. 103). No silêncio da sua
p.113). Para Francisco o local da vida religiosa era o
solidão buscava ouvir a voz de Deus a lhe dizer o
espaço livre, onde junto ao povo levaria o amor e a
caminho a seguir. Vivia por entre os leprosos,
palavra de Deus. Com as três igrejas restauradas
servindo-os com todo amor e dedicação. Segundo
com seu suor, com seu amor e dedicação, ele parte
a obra Legenda Maior, o amor que São Francisco
para a fundação de sua ordem: A Ordem dos Frades
começara a nutrir pelo próximo era tão grande que
Menores. Dessa forma, passa a viver na simples,
ele chegava a beijar as feridas dos leprosos. Mesmo
porém rígida, regra da Ordem fundada.
se dedicando ao leprosário, ele não se esqueceu da
Na igreja de Porciúncula, Deus fala novamente
igrejinha de São Damião e se empenhou em
com Francisco. Dessa vez, o interlocutor é um
restaurá-la.
padre, que durante a missa lê uma parte do
Ao voltar para a sua cidade, passou a mendigar
evangelho de Mateus, o capítulo dez: “Ide,
por entre os seus conterrâneos, com os quais
proclamai a boa nova: O reino de Deus está
outrora bancava pomposos banquetes. Com as
próximo”, “Não carregue nem ouro nem prata no
esmolas, arranjava pedras e o material necessários
teu cinto, nem saco para a estrada, nem duas
para a restauração da igreja, e, assim, Francisco
túnicas, nem calçado, nem bordão, porque o
restaurou-a. Após essa restauração, no seu modo de
operário tem dignidade para manter-se por si”.
pensar, para continuar a trabalhar e a servir, resolve
Após ouvir este trecho do evangelho, ele exclama:
restaurar, também, a igreja de São Pedro que um
“Eis o que quero, é isso que procuro, isso que desejo
pouco mais distante. Concluído este trabalho, passa
fazer do fundo do meu coração”. (Idem, 2013, p.
a frequentar a igreja de Santa Maria dos Anjos, que
68). A partir daí Francisco se desfaz de seu calçado,
segundo Boaventura “foi o lugar que ele mais amou,
seu cajado e ao invés de usar o cinto, como de
dentre todos os lugares do mundo” (LM, capítulo II,
costume, troca-o por uma corda e se desfaz ainda
p. 23). A igreja de Santa Maria dos Anjos foi o local
de uma de suas túnicas, ficando apenas com a que Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 82 estava usando. Francisco também convida outras
alegação de que tal regra era “dura” demais e um
pessoas a abraçarem esta vida de humildade e
tanto inalcançável. O próprio Inocêncio achava a
penitência. Começa a pregar e anunciar aos seus
regra uma extravagância, uma loucura. No entanto,
ouvintes a saudação: “O senhor vos dê a paz! ”
um corajoso cardeal, D. João de São Paulo, bispo de
Ao ouvirem a pregação de São Francisco, arauto do evangelho que era, as pessoas começaram a segui-lo e, assim, compartilhar do estilo de vida apostólica do santo de Assis. Diferentemente do resto da Igreja, pregava em língua vernácula, de modo simples e envolvente. Assim surgiram os primeiros “menores” da ordem. Não tardou muito, para que sete homens simples resolvessem segui-lo. Esse número foi aumentando conforme Francisco
Sabina, interferiu junto ao Sumo Pontífice e em defesa da regra de Francisco. Segundo ele, tudo que o poverello queria era viver uma vida puramente evangélica, tal qual Jesus e seus apóstolos viveram. E se a Igreja rejeitasse tão simples regra, estaria indo contra o próprio evangelho de Cristo. Concluiu dizendo que afirmar que a perfeição evangélica é extravagante ou impossível de se seguir é blasfemar contra Cristo.
anunciava a palavra do Senhor com todo o seu
Inocêncio ficou abalado com a declaração do
amor, eloquência e humildade. Ao ver o aumento
cardeal, mas mesmo assim não se convenceu.
de seguidores, Francisco resolve escrever um
Mandou que Francisco rezasse para que Deus
pequeno e simples programa de vida e condutas
manifestasse a sua vontade e que aguardaria o sinal
fundadas no evangelho, mas devido ao seu respeito
dos céus. A decisão sobre a aprovação da simples
pela Igreja, quis que esta pequena regra fosse
regra é adiada. Porém ao que parece Deus
aprovada pelo Papa.
realmente manifestou sua vontade à Inocêncio. Le
Francisco escolhe viver tal como os apóstolos e parece saltar no tempo e se unir a estes enquanto caminhavam com o Mestre, livre de qualquer estrutura ou organização (Idem, 2011, p. 59). Ao contrário do que muitos imaginam, Francisco não fez parte do clero, continuou leigo por toda a vida.
Goff esclarece bem o ocorrido: “Inocêncio III teve um sonho: viu a basílica de Latrão inclinar-se como se fosse desabar. Um religioso ‘pequeno e feio’ a sustentou em suas costas e a impediu de ir abaixo. O homem de seu sonho só poderia ser Francisco. Ele salvaria a Igreja” (Idem, 2013, p. 74).
Não tornou-se padre, nem monge. Preferiu
Diante desse sonho Inocêncio aprovou a regra de
permanecer submisso à Igreja, sem fazer parte de
Francisco, mas com algumas observações, como a
fato dela. Se juntou aos mais humildes e aí pregou
de que os frades obedecessem Francisco e este à
a palavra de Deus, muito mais por exemplos,
Igreja na figura do Papa; que todos da ordem
através das suas atitudes.
fossem tonsurados (sacerdotes, clérigos), ainda que
Cumprindo
à vontade, de que
a regra
estabelecida por ele fosse aprovada pelo papa, que à época era Inocêncio III, ele se dirige, com um pequeno grupo de frades menores, à Roma. Humildemente pede ao Papa que aprove a sua Regra de vida e conduta. Alguns cardeais
leigos; e autorizou Francisco apenas a pregar ao povo, nada mais que isso. Abençoou Francisco e seus seguidores e os mandou pregar a todos sobre a penitência e o evangelho. No livro, Legenda Maior, São Boaventura diz que “transformado em arauto do evangelho, Francisco percorria cidades e
interferiram na decisão de Inocêncio sob a Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
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Benozzo Gozzoli: Pregação de São Francisco aos animais e aos homens, 1452. Convento de São Fortunato, Montefalco.
aldeias a anunciar o reino de Deus, não em
apóstolos e a todos que o ouviam, era a máxima da
linguagem elegante de sabedoria humana, mas
sua espiritualidade. Assim, segue à frente de sua
com a força do Espírito” (LM, capítulo IV, p. 36). Os
ordem, sempre humilde, esposo da pobreza e
menores passaram a viver cuidando dos leprosos,
pregando, principalmente, com os seus exemplos
realizando trabalhos manuais, a mendicância e
de vida. De toda a parte vinham pessoas em busca
pregando o evangelho. Viver com a senhora
de Francisco, seja para conhecê-lo, ouvir suas
pobreza era o santo propósito do poverello.
palavras, seja para entrar na ordem e segui-lo.
Le Goff observa que Francisco vence a tentação
Spoto ao analisar os Franciscanos, defende que o
da solidão para ir para o meio da sociedade, do
êxito do grupo se deu em virtude da “capacidade
povo, não nos desertos ou florestas, mas nas
de pregar por meio do exemplo; quando falavam
cidades, rompendo assim com o monarquismo da
em público, eram alegres e positivos, e jamais
separação. Ele é aberto ao amor de todas as
sombrios e pessimistas. Nesse aspecto eram
criaturas e de toda a criação, amante da alegria
originais entre os pregadores medievais” (Idem,
(Idem, 2013, p. 114). Francisco vive com os pobres,
2010, p. 231). Os franciscanos pregavam pelas
o mundo é seu mosteiro e sua família. É assim que
cidades, na maioria das vezes, de dois em dois,
vivia com os menores: numa fraternidade. Amor ao
vivendo de esmola ou de seus trabalhos manuais. A
próximo, assim como Cristo pregava aos seus
vida religiosa de Francisco é no meio do povo, onde Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 84 comparando a um mosteiro, a cela é o mundo e os
prestaram depoimento em virtude da canonização
confrades são todos os homens, principalmente os
do santo. Até mesmo o cardeal Ugolino, que mais
pobres (Idem, 2012, p. 206). Le Goff entende que
tarde viera a se tornar o papa Gregório IX, e era
Francisco vence a ele mesmo, ao resistir à tentação
amigo de Francisco, se recusou a acreditar neste
da solidão indo para o meio da sociedade,
relato. Na proclamação de canonização em julho
rompendo assim com o monarquismo da separação
de 1228, não consta nada referente aos estigmas
(Idem, 2013, p. 114).
(Idem, 2010, p. 299). Estes estigmas foram
O poverello era puro amor e caridade. Sua fé era fervorosa. Francisco via Deus em tudo e em todos e comungava com essa presença divina na criação. Seguir a Cristo e buscar ser seu espelho era o modelo de vida que desejava. O Cristo que
valorizados pelos artistas que retrataram a vida de São Francisco, pois as hagiografias, a vida dos santos, serviam de inspiração, como modelos de santidade e de cristandade para a sociedade medieval.
Francisco seguia e se espelhava era o Cristo na cruz,
Spoto chama a atenção para o fato de que a partir
era a Sua paixão. A imagem do Cristo crucificado,
do ano de 1237, o mesmo Gregório IX, menciona os
desde os tempos do crucifixo de São Damião, não
estigmas em três proclamações referentes a São
lhe saía da cabeça. A partir de tal fervor e de tal
Francisco. Ele apresenta como explicação certa
desejo de seguir todos os passos do seu mestre,
concorrência
passou a desejar, também, o martírio. Desejava
dominicanos contra os franciscanos:
transformar-se no Cristo crucificado. Desde a epifania diante do crucifixo em São Damião, Francisco foi se sentindo mais atraído pela contemplação dos sofrimentos de Jesus. Dessa contemplação e dessa obsessão pelo martírio de
entre
a
ordem
dos
frades
“Os frades dominicanos, cuja Ordem se tornara em boa parte rival da dos franciscanos, negavam e até mesmo ridicularizavam os supostos estigmas de Francisco. Como Gregório precisava do prestígio e do apoio dos franciscanos na reforma da Igreja, tratou de acabar com a rivalidade e assegurar a lealdade do alegado milagre”. (Idem, 2010, p. 300)
Cristo, Francisco acaba por receber em seu próprio corpo as chagas do seu Mestre, fato um pouco contraditório para a historiografia.
Francisco, próximo de morrer, sentia um grande cansaço,
sentia-se
oprimido
pela
Igreja,
O poverello, certo dia, teve uma visão de um
incompreendido pelos frades. A sua Ordem
serafim e assim como o crucifixo de São Damião, a
crescera muito e nem todos os frades seguiam o
visão deixou Francisco em êxtase. Um anjo
modelo apostólico da regra de Francisco em sua
crucificado apareceu e o olhou com ternura, tal
essência. Eles se distanciavam cada vez mais dos
como confortou Jesus no jardim de Getsêmani na
ideais de pobreza e amor ao próximo do poverello.
noite anterior à Paixão. A partir de então, as chagas
Com isso, ele passa a ficar recluso, contemplando a
de Cristo começaram a cobrir seu corpo.
cruz, como era do seu costume, e com seletos
Perfurações nas mãos, nos pés e no flanco, assim
companheiros ao lado. Isolou-se numa cela
como os pregos que perfuraram Cristo na cruz. Esse
pequena e escura no convento de San Damiano,
episódio é um tanto contraditório na hagiografia de
visto que não suportava mais a luz, pois doía-lhe os
Francisco, visto que, segundo Spoto, a existência
olhos. O corpo ardia em febre, além das dores
dos estigmas foi negada pelas pessoas que
físicas. Sabendo-se fraco demais, compreende que Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 85 a irmã morte corporal, como complementou no
vida. Ali, ao lado de Clara de Assis, da irmã Jacoba,
cântico do irmão sol, se aproximava.
uma querida amiga de Francisco, e de alguns
No final do verão de 1226. Francisco volta para sua terra natal, Assis. Alguns frades perceberam que assim que ele encontrasse com a irmã morte
frades, Francisco parte deste mundo. Tadeu Góes é formado em História pela Universidade Estácio de Sá e pós graduado em História Antiga e Medieval pela Faculdade de São Bento do RJ.
corporal, seu corpo iria se transformar numa valorosa relíquia, e essa relíquia deveria pertencer à cidade de Assis. Os próprios habitantes de Assis ficaram alertas quanto à morte de Francisco, pois temiam que os próprios frades levassem o corpo de Francisco para outra cidade. Com isso, ele ficou alojado no palácio do bispo, vigiado por guardas (Idem, 2011, p. 163). Isso demonstra o quão importante eram as relíquias para a sociedade medieval. Pois além de difundir a fé, através da vida do santo, o exemplo, a relíquia movimentava todo um aparato comercial na cidade em que estava, visto que passava ser local de peregrinação. Francisco estava em farrapos em seu leito de morte. A morte parecia chegar bem lentamente, quase
que
aliviando
sua
angústia
e
proporcionando-lhe coragem frente ao momento que estava por chegar. Ele pedia constantemente aos frades que lhes acompanhava que cantassem o
Cântico do irmão sol. Certa vez, frei Elias ficou incomodado com tanta cantoria num leito de morte de uma pessoa que já era venerada como santa pela população. Elias temia que as pessoas ficassem escandalizadas ao ouvir os cânticos. Foi quando Francisco, reunindo o pouco de força que ainda lhe restava, respondeu que o deixasse em paz, pois queria se regozijar no Senhor e cantar Seus louvores de modo a alegrá-lo em meio às dores (Idem, 2011, p. 164).
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Sentido gradativamente mais próximo de sua última hora, pede humildemente aos frades que o acompanhavam que o levassem para a igreja de
Porziuncola, local de grande significado para sua Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017