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Coluna:
JOE SACCO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A REPORTAGEM EM QUADRINHOS Por Renato Lopes "Nas histórias em quadrinhos, contamos com a repetição das imagens para criar a atmosfera. O repórter-fotográfico está sempre atrás da boa foto - ele procura por um instante. Mas eu estou em busca de uma época".
D
esde o movimento conhecido como
sobre temas já consagrados. Também tornou-se
Escola dos Annales1, passando pela Nova
muito comum a criação de novos campos de
História2 e com a implementação dos
pesquisa justamente em decorrência do acréscimo
Estudos Culturais na década de 80, muitas foram as
dessas novas demandas, frutos direto da mudança
novas aberturas teóricas que permitiram ao
da forma como se interroga o passado e o também
historiador incorporar novas metodologias e fontes
o tempo presente. Na célebre expressão era “Clio
de pesquisa ao seu trabalho. A cada etapa dessa
despedaçada”. Para alguns uma lufada de
revolução
renovação, para outros um martírio incontestável.
a
historiografia
era
severamente
revolvida e não demoravam a surgir novas abordagens, novas perspectivas, novos estudos 1 Para saber mais sobre a história dos Annales recomendamos a
leitura de BURKE, Peter. A Revolução Francesa em historiografia: a Escola dos Annales. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991
2
Para o melhor estudo das novas abordagens históricas, indicamos LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre (orgs). História: novas abordagens. Rio de Janeiro, F.Alves, 1976
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Os estatutos da História também passaram por consideráveis
mudanças.
cientificista/positivista,
um
projeto
uma
miríade
determinadas informações, testemunhos, discursos.
de
A informação, ou na fonte que traz essa informação,
atribuições frutos da mescla da História com outros
está impregnada de discursos, ela não é isente ou
campos
neutra, ou como nos diz Le Goff, a fonte não é
de
a
De
de um produto humano que carrega em si
conhecimento,
sociologia,
antropologia, filosofia, psicologia, o historiador se
“inócua”.
faz um pesquisador munido dos mais variados
Apreender o ponto de intersecção onde História
arcabouços teóricos para interrogar acerca de um
e informação se cruzam faz-se fundamental para
passado, seja ele distante ou recente. Tão
entender o tema deste breve artigo, por tratar de
importante quanto a pergunta se torna o saber
alguém que justamente operou nesse entre-
como perguntar.
campos e que acabou por constituir um novo
O acesso a informação acaba também por criar
campo dentro do ramo dos quadrinhos, a
não só a diversidade de conteúdos, como também
reportagem em quadrinhos, o repórter fotográfico
a forma de expressa-los. Os saberes via de regra
Joe Sacco.
variam em função das informações. Ao passo que o
Nascido na Ilha de Malta Joe Sacco é famoso
mundo passou por uma massificação da transmissão
pelas suas reportagens em forma de quadrinhos,
e consumo de informações em fins dos anos 80, e
que retratam a vida e a política em áreas de
vive esse processo acentuadamente até os dias de
conflito, como Palestina, Bósnia e Servia. Famoso
hoje, processos esses que afetam diretamente a
também por sua militância em torno da causa
forma como nos comunicamos e como entendemos
Palestina,
o mundo e as culturas, a História não saiu “ilesa”
desmistifica muitas informações relacionadas as
disso. A forma como as informações são produzidas,
zonas de conflito, explora suas causas históricas, e
distribuídas, percebidas, analisadas acabou por
tece uma rede de memórias a partir dos relatos, das
promover também uma revolução documental no
visões e lembranças daqueles que vivem e
cerne das sociedades informatizadas. A informação,
trabalham nesses locais.
ou aquilo que transmite a informação, também
Sacco,
através
de
seu
trabalho,
Joe Sacco pode ser enquadrado na categoria de
fonte
“testemunha ocular”, como definida por Peter
documental, a partir do momento em que se trata
Burke (BURKE, 2004, p. 12): alguém que presenciou
pode
ser
contemplada
como
uma
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 175 e registrou in loco determinado acontecimento, e
registro, alguém editou e redigiu o que irá ao ar ou
fez do uso da imagem uma forma de problematizar
será levado as bancas. Se esse processo é permeado
o conhecimento histórico. Ressaltando o fato que
de escolhas conscientes e inconscientes, que
nem mesmo sendo a testemunha ocular faz do seu
cunham os conceitos mercadológicos da noticia
registro uma fonte “pura”, pois quem a registra e a
enquanto um espetáculo, porque então não se criar
testemunha não é alguém isento ou desprovido de
novas vias, novas formas de trazer a noticia partir
subjetividades. Logo, a informação, no caso de
daquilo que está a margem dos consensos
Sacco jornalística, e o próprio documento, não
socialmente erigidos? Afinal o que não faltam são
falam nenhuma linguagem objetiva per si.
circunstâncias
Entender essa metodologia do trabalho de Sacco nos leva novamente a questão da massificação das
capazes
de
estabelecer
uma
contrapartida para o emprego outras formas e linguagens.
informações enquanto fontes e documentos. Pois
As redes sociais atualmente (o trabalho de Joe
ao verter suas reportagens para os quadrinhos,
Sacco é muito anterior a sua implementação),
Sacco acaba por gerar uma “divergência teórica”,
trouxeram uma lufada de renovação na forma como
frontalmente com o jornalismo e tangencialmente
se vincula e se percebe a noticia. E realmente as
com a História. Entender as nuanças desse conflito
mídias alternativas vieram para ficar. Todavia nem
é entender um pouco a essência do seu trabalho,
sempre a quantidade é sinônimo de qualidade. A
bem como a eficácia das problemáticas que
melhor noticia acaba sendo associada a sua
levanta.
capacidade de mobilizar likes. Em um mundo onde
O confronto de Sacco com o jornalismo
qualquer um pode produzir conteúdos é mais do
tradicional parte da própria proposta desse ultimo
que normal que a noticia seja extremamente volátil.
em se colocar como uma fonte de informações
Quando pensamos nessas duas dinâmicas,
objetiva e imparcial. Jornais impressos cada vez
critérios mercadológicos dos conglomerados de
mais sóbrios em textos e abundantes em imagens
mídia, e volatilidade da noticia nas redes sociais,
avulsas e apresentadores de telejornal, de boa
podemos inferir o quanto Joe Sacco foi um
aparência e voz polida, transmitindo noticias de
visionário em seu trabalho, operando no vácuo que
forma cada vez mais monolítica, obedecem antes
começou a existir entre essas duas vertentes. Ele se
de tudo mais a um critério mercadológico do que
contrapõe a mídia tradicional ao buscar um
realmente prover o espectador de informações ou
elemento humano, subjetivo, a partir dos relatos e
análises. Isso por si só faz com que a noticia, bem
das
como seu registro, jamais seja neutra, uma vez que
consequências dos conflitos e não aparecem no
os grandes conglomerados de mídia tem um claro
horário nobre por estarem fora dos critérios
objetivo: construir consensos em torno de algum
mercadológicos que constroem os consensos da
fato ou alguém. Da foto que entra no jornal
grande mídia. Ocorre dessas mesmas histórias
impresso ou aparece em site de noticias, ao ângulo
também não são serem abarcadas por muitas das
da imagem que será exibida no telejornal em
mídias alternativas, justamente por demandarem
horário nobre, tudo isso passou por uma filtragem,
tempo e cuidado para serem entendidas e
uma seleção realizada por alguém que não
assimiladas, e nas redes sociais o que vale ainda é a
necessariamente é a mesma pessoa que fez o
capacidade de mobilização instantânea.
experiências
daqueles
que
sofrem
as
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 176 Através de suas reportagens em quadrinhos Joe
demais, e o cinema por ser demasiado rápido, e
Sacco dá voz e espaço aos “invisíveis”, é ai que
quadro a quadro ele nos monta um painel que não
reside o poder de sua obra. Enquanto foto jornalista
se limita a instantes, mas trazem consigo os brutais
que verte seus trabalhos para os quadrinhos, ela
contornos, o peso e o conteúdo de uma época.
atua em uma linha muito tênue, entre o
A imagem é um toten da cultura ocidental, que é
estritamente factual e aquilo que ocorre as
predominantemente visual. Em um turbilhão visual
margens dos grandes acontecimentos. Sem
e semiótico o processo de apuração das imagens e
deslocar sua visão das reflexões maiores sobre um
conteúdos requer cada vez mais apuro e
grande
ocupada,
aprofundamento. E apesar de ter lançado suas
conflitos étnicos na Sérvia e na Bósnia), Sacco
principais obras há cerca de 20 anos, Sacco a
também quer entender a tragédia pessoal de cada
mantém em um elevado patamar de diferenciação.
um, como fazem para sobreviver, como viviam
Em tempos de militâncias midiáticas vazias,
antes desses conflitos e onde repousam suas
produzidas ao gosto do momento, as suas
esperanças e seus temores. Ao mesmo tempo em
reportagens
que faz e trabalha esses registros, o leitor é
preenchendo uma lacuna que a grande mídia exclui
conduzido por reflexões de cunho histórico,
e que a massificação compulsória e frenética não dá
midiático e até mesmo artísticos, dado o ineditismo
conta de abarcar com o devido aprofundamento.
de seu trabalho. Seja na atmosfera claustrofóbica
Joe Sacco é testemunha ocular e questionar de
de uma Gaza em ruínas e asfixiada pelo poderoso
arraigados paradigmas, desconstrói consensos ao
exército de Israel, passando por um campo de
mesmo tempo em que explora as brechas deixadas
refugiados na Bósnia, ou uma Sarajevo em ruínas, os
pelas deficiências da construção da noticia.
acontecimento
(Palestina
em
quadrinhos
continuam
quadrinhos de Sacco fazem aquilo que a literatura
A questão tangencial da obra de Joe Sacco com a
talvez não consiga alcançar, por ser hermética
História se exemplifica na sua busca não por
Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
G N A R U S | 177 noticias, mas por pensar em termos de média e
nas ruas, nos hospitais, nas escolas e nas casas dos
longa
das
refugiados, presenciando confrontos dos soldados
descontinuidades da narrativa histórica, longe da
com a população e entrevistando vítimas de
relação de causa e efeito típica dos modelos de
tortura. (relançado pela editora Conrad Editora em
pensamento linear. E somente ao fazer isso, Joe
2011)
duração,
atuando
dentro
Sacco alcança um entendimento dos fatos para além da versão dos vencedores. No interior da
Uma história de Sarajevo: A guerra como
construção de seu discurso através das reportagens
lugar de trabalho. Com sua porção de carreiristas,
em quadrinhos, o próprio autor chama a atenção
burocratas, intrigas baratas, pequenas traições e
para se cruzar fontes. Para isso ele faz igual uso de
gente disposta a tudo para manter seus cargos. E, é
jornais impressos, livros e relatórios emitidos pela
claro, aquelas pessoas empreendedoras tentando
ONU ou por outros grupos de ajuda humanitária.
extrair o máximo de lucro de cada tragédia, como é
Com esses recursos acaba assumindo a sua porção
o caso de Neven, fio condutor dessa narrativa, a
pesquisador, pois faz uso de outros objetos-fonte
personificação da guerra, destruído e a beira da
para construir seus discursos. Ao analisar as
loucura Em '”Uma História de Sarajevo'” Joe Sacco
circunstâncias e os espaços onde as histórias que
invade o mundo dos correspondentes de guerra
retrata são criadas ele acaba sabendo um pouco
para revelar como funciona a busca de noticias e
mais sobre o que é ignorando nos meios de
mostrar que ao contrário que a imprensa costuma
comunicação da mídia hegemônica, ao mesmo
veicular, a situação não melhorou muito desde a
tempo em que passa ao leitor as circunstâncias em
queda de Slobodan Milosevic. (lançado pelo
que essas noticiais e suas reportagens foram
Conrad Editora em 2005).
criadas, permitindo contrapor discursos, leituras e pontos de vista sobre um mesmo tema.
Área de Segurança – Gorazde: Entre os anos
Fonte histórica, expressão artística e discurso
de 1992 e 1995, durante a Guerra da Bósnia, a
político, a obra de Joe Sacco cobre todas essas
imprensa mundial, sempre centrada na capital
vertentes. Além de engrossar as fileiras de uma
Sarajevo, realizou uma maciça cobertura da
categoria de quadrinhos que se tornam de extrema
tragédia. Sarajevo tornou-se parte do grande
validade para o ensino de História.
espetáculo mundial. No entanto, na parte oriental do país, a população muçulmana era vítima de
Obras de Joe Sacco publicadas no Brasil
selvagerias impostas pelas forças sérvias, que
Palestina – Edição especial: reúne os
atacavam com uma crueldade impressionante. Isso
volumes Palestina – Uma não ocupada e Palestina –
ficou oculto e desconhecido aos olhos do mundo. A
na Faixa de Gaza. Esta obra procura retratar o
ONU decidiu agir, criando as 'áreas de segurança'
drama do povo palestino em uma reportagem em
nos territórios onde se confinavam os muçulmanos.
quadrinhos. O livro funciona como um diário do
Esses locais se tornaram os mais perigosos do país,
autor durante a visita que ele fez à Palestina, onde
devido ao cerco dos sérvios da Bósnia, que
ele mostra ao leitor tudo o que acontece em sua
realizavam ataques constantes. Essa cruel realidade
volta e as conversas que teve com as pessoas da
é revelada em 'Área de Segurança - Gorazde'.
região. Durante dois meses, ele coletou histórias
(lançado pela Conrad Editora em 2005) Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017
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Notas sobre Gaza: Em novembro de 1956,
nas cidades de Khan Younis e Rafah, centenas de civis foram mortos pelo exército israelense em uma incursão militar que tinha tudo para ser uma operação rotineira de captura de guerrilheiros palestinos. Segundo um os poucos relatórios da ONU disponíveis, os soldados teriam simplesmente entrado em pânico ao deparar com uma multidão em fuga. Já de acordo com o primeiro ministro israelense, as tropas teriam entrado em confronto com rebeldes armados, muito embora não tenha ocorrido uma única baixa entre suas fileiras. Em Notas sobre Gaza, Joe Sacco mergulha nos escombros de um conflito que parece não ter fim para reconstituir alguns dos eventos mais importantes para a escalada de violência em que se transformou a relação entre israelenses e palestinos
(lançado pela selo Quadrinhos na Cia, da editora Companhia das Letras, em 2010). Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestrando em História pela Unirio, pesquisa Cinema na América Latina e colunista especialista em quadrinhos da Gnarus Revista de História.
Bibliografia: Peter. A Revolução Francesa em historiografia: a Escola dos Annales. São Paulo:
BURKE,
Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991. _______________. Testemunha Ocular: História e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004 LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre (orgs). História: novas abordagens. Rio de Janeiro, F.Alves, 1976.
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