GNARUS|1
Artigo
GRIOT: A MEMÓRIA DA ÁFRICA Por: Fernando Augusto Alves Batista
RESUMO A história oral tornando-se uma das principais ferramentas de pesquisa do historiador, com a finalidade de estudar povos que não tiveram uma forte ou até nenhuma tradição escrita, como é o caso de vários povos Africanos. Assim, um personagem africano torna-se uma grande ferramenta de estudo e pesquisa histórica, um Griot, uma espécie de memória viva da África, um guardião de seus costumes, crenças e tradições. PALAVRAS CHAVE: África, Griot, História oral. ABSTRACT The oral history is one that has become one of the main tools to research of historian, to study folks who hadn’t a strong written tradition, or even no, as example of many African peoples. Therefore, an African personage becomes a great tool to study and historical research, O Griot, a kind of memory alive of Africa, a guardian of their customs, beliefs and traditions. KEYWORDS: Africa, Griot, Oral History.
INTRODUÇÃO
D
GNARUS|2 esde
os
primórdios
da
Após o surgimento das mais diversas formas
espécie
de escrita, a oralidade foi perdendo espaço
humana, que evoluía de
como principal forma de preservação e
acordo com as vivências
transmissão do conhecimento. Com o tempo,
adquiridas pelo tempo, sentia a necessidade
o número de pessoas capazes de ler,
de transmitir o conhecimento gerado pelas
interpretar e escrever aumentava, fazendo
suas experiências ao próximo. Assim, ocorria
com que os ensinamentos não fossem mais
um
e
adquiridos de forma oral em coletividade e
gradativo, das sociedades e da espécie,
sim pela leitura, de forma individual. Quando
devido aos conhecimentos adquiridos e
a
acumulados.
conhecimento sobre a história de seu povo,
humanidade,
desenvolvimento
mais
a
rápido
A principal forma de transmissão destes conhecimentos era a oralidade, pois, mesmo enquanto existiam as pinturas rupestres e os
população
necessitava
de
obter
buscavam por livros e não mais pelos anciões que a viveram, ou que a aprenderam, ao ouvir de seus antepassados.
primeiros alfabetos inventados, ainda tinhase a necessidade de um interlocutor do conhecimento. Para isso, se fazia preciso alguém que lesse, entendesse e transmitisse aquilo que estava contido nas pinturas, ou nas escritas. Ao longo dos séculos, a oralidade fez com que as sociedades pudessem se desenvolver de forma mais rápida e eficaz.
Griots "passando" histórias Essas buscas cada vez maiores por fontes escritas, ou documentais, fizeram com que a oralidade, primeira forma de transmissão de conhecimento,
fosse
sendo
esquecida,
fazendo com que a mesma ficasse de lado, como fonte de pesquisa e embasamento sobre o passado. Porém, isso acabou por
causar uma lacuna no estudo da história de
GNARUS|3 que utilizavam da história oral e que tem
algumas sociedades, que durante os seus
como papel, serem os arquivos vivos das
processos
não
memórias da sociedade em que viveram, nas
constituíram uma forma de escrita, ou
suas jornadas. Em principal, tendo os griots2
mesmo não adotaram uma, como principal
como fonte de estudo e analise, pelo fato
fonte de preservação da história social de
deles terem sido os principais personagens
seu povo.
de preservação e disseminação das histórias
de
desenvolvimento,
Então,
como
estudar uma
sociedade que existiu a milhares de anos,
africanas.
mas que não deixou nada escrito, ou, até mesmo, como estudar uma sociedade que ainda existe, mas que não deixou nenhum
Desenvolvimento
relato escrito de sua história? Este artigo busca em seu curso explicar tal questionamento. Ao analisar, a priori, a importância da oralidade como preservadora
Escrita é uma coisa, e o saber outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é a uma luz que existe no homem. 3
do conhecimento e seu papel verossímil e eficaz como fonte de embasamento para estudos científicos e acadêmicos, além de analisar o fato descrito por Thompson, de que a história oral: “Pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, palavras”
1
mediante
suas
próprias
Analisando o exemplo das
sociedades e etnias africanas, que foram sendo deixadas de lado nas pesquisas históricas, por conta de possuírem, em sua maioria, uma forte tradição oral. Sendo então, um excelente exemplo para o estudo. Mas em âmago, este artigo visa mostrar o papel dos guardiões da história destes povos 1 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 22.
Desde a criação da disciplina de História, várias discussões foram travadas por seus idealizadores e suas escolas de estudo, acerca das fontes de pesquisa em que o 2 (pronúncia: “griô”) ou ainda jeli (ou djéli), termo do vocabulário franco-africano criado na época colonial para designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes para as quais, em geral, está a serviço. Presente, sobretudo na África ocidental, notadamente onde se desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali e etc.). O termo griot (guiriot originalmente escrito, pronunciado grau-oh) fez sua primeira aparição no Travelogue Relation du voyage du Cap-Verd (1637) pelo missionário francês Alexis de Saint-Lô, contando suas viagens no Senegal, dois anos antes. 3 História geral da África . I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph KiZerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 167.
historiador
deve
basear-se
durante
a
elaboração de seus estudos, pesquisas acadêmicas e cientificas. Neste contexto, é visível a supremacia das fontes escritas como principal
fonte
de
pesquisa
e
de
GNARUS|4 antropólogos, que não se consideram historiadores orais. O mesmo se dá com os jornalistas. Contudo, todos eles podem estar escrevendo história; e, sem dúvida estão provendo à história. 5
embasamento para tais trabalhos. Mas, com o decorrer dos séculos, a escrita vem sendo
Mesmo com a alegação de Thompson,
questionada como fonte primordial de
sabemos que historicamente a tradição oral
pesquisa, por conta de que ela não poder ser
é alvo de várias críticas acerca de sua
usada em todas as pesquisas históricas, como
veracidade em relação aos fatos estudados.
no exemplo deste estudo, que, ao analisar a
Segundo Peter Burk: “a maior parte dos
África, depara-se com sociedades que não
historiadores profissionais em geral são
tiveram uma forte tradição escrita, ou até
bastante céticos ao valor das fontes orais na
mesmo nenhuma.
reconstrução do passado”
Torna-se necessária a utilização de novas fontes de pesquisa que consigam completar as lacunas deixadas pela falta da tradição escrita nestas sociedades em questão. E neste contexto, a oralidade vem ganhando destaque, papel esse que ela possui desde a criação da própria disciplina História, como
6
. Assim, essa
vertente de fonte histórica é analisada por ele da seguinte forma:
A fragilidade implícita das fontes orais é considerada universal e irreparável; por isso, para as sociedades sem registro escrito, o alcance convencional do discernimento é considerado desanimador. 7
alega Poul Thompson ao dizer que: “a história oral é tão antiga quanto à própria
Com isso, sociedades que utilizavam
história. Ela foi à primeira espécie de
oralidade como fonte de transmissão de
4
história” . E não só dentro do meio histórico,
conhecimento e, também, como forma de
mas também, a história oral é usada por
manter viva e preservada suas histórias e
outros profissionais do saber em diversas
tradições ao longo de sua existência, foram
áreas:
5 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 104.
O método da história oral é utilizado também por muitos estudiosos, particularmente sociólogos e 4 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 55.
6 A escrita da História : Novas perspectivas. BURKE, Peter. (org.) Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 163. 7 Loc. cit.
taxadas erroneamente pelos historiadores
GNARUS|5 dos séculos, suas tradições, graças à
como sociedades sem história. A exemplo
oralidade. A essa história oral que estamos a
disso, temos as sociedades africanas que,
fazer referência é a mesma descrita pela
com exceção do Egito, eram tidas por não
autora Michelet, em seu livro: “A Voz do Passado de Tompson”, onde afirma:
“Quando digo tradição oral, estou falando de tradição nacional, aquela que permaneceu espalhada de modo geral na boca do povo, que todos diziam e repetiam, camponeses, gente da cidade, velhos, mulheres, até mesmo crianças; aquela que podemos ouvir ao entrar à noite numa taverna de aldeia” 8
A essa tradição nacional citada acima discorre sobre as lembranças espalhadas, de boca em boca, pela população de uma determinada sociedade ou povo, ao longo de suas conversas cotidianas ou interações sociais.
Lembranças
essas
que
são
encontradas no dia a dia, graças à interação gerada pela convivência em sociedade. possuir história, por conta de não utilizar da escrita como recurso de preservação da história de seu povo. Porém essas sociedades adotaram a oralidade como a principal ferramenta para manter viva as suas heranças culturais. A história oral é sim ferramenta precisa de embasamento para as pesquisas históricas, sendo de suma importância para o estudo da cultura dos diversos povos africanos e de vários outros que fizeram preservar, ao longo
Neste fato, pode ser notado um fenômeno de reconhecimento daquilo que se é falado, pois se uma pessoa fala e a outra consegue compreender e discernir sobre o que lhe foi
Griot wolof do Senegal, 1890 apresentado durante o discurso, de forma quase que automática, é porque o que lhe foi dito pertence à tradição e a vida cotidiana 8 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado : História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 4546.
em que a pessoa está inserida. Esse
GNARUS|6 história oral é aquela preservada na mente
fenômeno então descreve o quanto a
dos homens, passamos a discorrer sobre os
oralidade
homens que tem o papel de serem os
é
importante
nas
diversas
sociedades existentes, inclusive nas que têm tradições escritas, pois, de uma forma única, a oralidade transmite mais rapidamente os acontecimentos e os conhecimentos entre a população, pois o acesso aos documentos escritos acontece de forma individual e somente para aquelas pessoas que dominam a leitura e a interpretação da escrita. Já a oralidade abrange a todos, desde que aquele que narra fale o mesmo idioma ou dialeto daquele que está sendo o interlocutor da fala.
grandes guardiões da história de seu povo. Ao longo dos milênios foram surgindo, nas sociedades de tradição oral, pessoas cujo seus ofícios eram o de serem arquivos históricos vivos de seu povo. Na Grécia antiga, antes de serem escritas obras como
Ilíada e a Odisseia, os poetas líricos chamados de Aedos cantavam as ações dos deuses e semideuses, além de descrever as armaduras
e
adereços
dos
heróis,
declamando os seus grandes feitos que ficaram na história; tudo isso graças as
Tendo então visto o papel da oralidade
narrativas feitas pelos Aedos. Já na Idade
como fonte histórica de valida e de precisão
Média europeia, o bardo era o grande
para pesquisas, passamos então ao seguinte
Trovador, um personagem que cantava os
questionamento:
pode-se
feitos dos nobres, honrados cavaleiros e reis
encontrar a história de um povo em uma
a todos que encontravam e em todos os
narrativa oral completa, sem que ela esteja
lugares por onde passavam, fazendo com
fragmentada graças as intervenções pessoais
que a história, por eles narrada, se espalhasse
durante esse passar de boca em boca? Para
por todo o mundo; chegando até mesmo a
responder essa pergunta, primeiro deve-se
influenciar nos filmes, lendas e histórias dos
ter em mente a frase do historiador africano
dias de
A. Hampaté Bâ: “Não faz a oralidade nascer a
preservadas
escrita, tanto no decorrer dos séculos como
população europeia graças a eles, como o
no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos
caso da história do Rei Arthur, seus cavaleiros
ou bibliotecas do mundo foram o cérebro
e da távola redonda.
Onde
então
dos homens.” 9. Sabendo, então, que a 9 História geral da África . I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph KiZerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 168.
hoje.
Muitas histórias
vivas
no
foram
imaginário
da
Vários outros exemplos podem ser citados, como os skald escandinavo, os rajput na India, e, no exemplo da própria história do Rei Artur dada acima, também podemos
GNARUS|7 referenciar Merlin, mesmo como figura lendária, pois ele representa os sacerdotes druidas que, através da tradição ritualística oral, também ajudavam a manter a história deste povo, pois a oralidade também pode ser
transmitida
tradições
nos
ensinamentos
ritualísticas
das
das
religiões
professadas pelos povos de tradição oral. Essas
pessoas
que
agiam
Essas pessoas, ou guardiões da história de seu povo, eram consultados sempre que necessário como espécies de arquivos vivos; o que é percebido na análise de Thompson. Além de ter a obrigação de ensinar as tradições e a histórias, tinham que transmitir as
mesmas
sempre
que
tivessem
a
como
possibilidade, como mostrado acima. Essas
disseminadores e preservadores da história,
ocasiões variavam muito, como nos rituais ou
passaram a ter essa atividade quase como um
nos eventos sociais da região.
oficio em várias sociedades. Em alguns lugares, as pessoas que tinham tal papel eram sim entidades do Estado, onde tiveram o dever de manter viva, ao longo das gerações, a história de seu povo.
Feita então, as análises necessárias sobre o papel da oralidade como fonte preservadora da história, e da figura de alguns homens que eram os grandes guardiões da história, voltemos então ao âmago desta pesquisa. A África pré-colonial, em sua maioria, não
“A importância social de algumas dessas tradições orais resultou também em sistemas confiáveis para sua transmissão de uma geração a outra, com um mínimo de distorção. Práticas tais como o testemunho grupal em ocasiões rituais, disputas, escolas para o ensino do saber tradicional e recitações ao assumir um posto podiam preservar por séculos padrões exatos, inclusive arcaísmos, mesmo quando não fossem mais compreendidos. Tradições deste tipo assemelhavam-se a documentos legais, ou livros sagrados e seus detentores tornavam-se funcionários altamente especializados em muitas cortes africanas.” 10 10 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 4647.
possuía uma forte tendência por preservar sua história de forma documental, com exceção do povo egípcio e alguns outros povos isolados dentro do território do continente.
Por
isso,
historiadores
e
cientistas
os que
primeiros fizeram
análises sobre a cultura dos diversos povos africanos, a tomaram como um continente sem história; generalizando assim todas as sociedades e povos existentes no continente. Esse fato mesmo, tendo uma prática teórica lógica para a sociedade acadêmica da época, é passível de discursão, pois segundo o discurso de Marwick:
“a história de uma sociedade africana, pode ser uma história mais
imprecisa e menos satisfatória do que a de uma estriada de documentos, mas de todo modo é uma história” 11 então a história oral dos povos africanos é de fato uma fonte de baseamento e pesquisa para se estudar a história do mundo. Porém, onde podemos encontrar essa história
GNARUS|8 E o papel de ser o narrador destas histórias, juntamente com o dever de propagar os valores dentro da sociedade africana, está sobre os ombros de alguns personagens africanos, conhecidos como Tradicionalistas e Griots.
africana fora das análises documentais? A
Quando a história da África surgiu
resposta está na narrativa oral, como dito por
ganhando a importância que antes tinha sido
Rosário: “As narrativas de tradição oral são o
negada a ela, as teorias do continente ser um
reservatório dos valores culturais de uma
lugar sem história caiu. Graças aos novos
comunidade com raízes e personalidade
estudos e vertentes das escolas históricas, a
regionais,
oralidade foi o recurso principal adotado
muitas
vezes
perdidas
na
pelos historiadores para refazer os caminhos
amálgama da modernidade. ” 12 As
narrativas,
então,
são
as
mais
importantes fontes de transmissão dos valores das sociedades africanas, como ainda vemos na continuação do estudo de Rosário:
“Na sociedade africana, em particular a campesina, onde a tradição oral é o veículo fundamental de todos os valores, quer educacionais, quer sociais, quer político-religiosos, quer económicos, quer culturais, apercebe-se mais facilmente que as narrativas são a mais importante engrenagem na transmissão desses valores.” 13
percorridos por essas histórias a muito esquecidas. Vemos isso de força bela, na frase do livro Griots - culturas africanas:
linguagem, memória, imaginário: “Sabemos que, quando a África acordou o mundo com o som dos seus tambores silenciosos, os
Griots surgiram como poesia” 14. Os Griots tornam-se as fontes vivas de preservação destas tradições africanas. E logo eles são os lugares onde essa história africana esquecida deverá ser buscada. E, no decorrer deste artigo, iremos analisar a importância dos
Griots para as sociedades africanas, de modo 11 BURKE, Peter. (org.) A escrita da História : Novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 163-164)
a compreender o seu papel na sociedade.
12 ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A Narrativa Africana de expressão oral : transcrita em português. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa; Luanda: Angolê, 1989. p. 40.
necessariamente
13 Loc. cit. p. 40.
Para se estudar a história da África, temos
que
adotar
a
14 Griots - culturas africanas : linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. p. 4.
oralidade
como
fonte
primordial
de
responsáveis
por
ser
GNARUS|9 depositário das
pesquisa, caso contrário, a pesquisa não terá
tradições culturais, históricas, religiosas e as
êxodo,
ponto
demais tradições do povo em que eles estão
encontrando uma lacuna histórica deixada
inseridos, ou de um leque maior de
pela falta de fontes de pesquisa de outras
ramificações sociais da África, pois nem todo
espécies. Assim afirma o historiador africano
griot e tradicionalista está vinculado a um
A. Hampaté Bâ:
determinado povo, podendo ser também um
ou
falhará
em
algum
”Quando falamos de tradição em relação a história africana, referimonos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimento de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. “15
itinerante, uma espécie de viajante que vive espalhando e disseminando a história dos povos africanos por onde passa; fazendo assim o papel de preservar e espalhar a história pela África. Os griots e os tradicionalistas não são figuras diferentes que exercem o mesmo papel. São também diferentes em seus
Desde o começo da colonização europeia na África, ao longo dos séculos, o continente foi tido como sem história, sendo deixado de
princípios e atividades sociais. “Os grandes depositários da herança oral são chamados “tradicionalistas”. Memórias vivas da África,
lado e fazendo, então, com que sua herança
eles são suas melhores testemunhas” 17, como
cultural fosse esquecida. Mas como afirma A.
afirma A. Hampaté Bâ, os tradicionalistas,
Hampaté Bâ: “Essa herança ainda não se
também chamados de Dama, são pessoas
perdeu e reside na memória da última
que desempenham um oficio especifico, ou
geração de grandes depositários, de quem se
não, dentro da África. Eles podem ser
pode dizer são a memória viva da África. ”
conhecedores da metalurgia, iniciados na arte
(KI-ZERBO, 2010, p. 167).16
está
nos
ombros
medicinais,
ritualistas,
sendo, também, espécies de mestres destes
dos
Tradicionalistas e Griots, que são as figuras 15 História geral da África . I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph KiZerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 167. 16 Loc. Cit. p. 167.
ervar
especialistas na caça e vários outros ofícios,
Essa memória viva de vários dos povos africanos
das
17 História geral da África . I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph KiZerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p 174.
conhecimentos. Mas, como nas sociedades
G N A R U S | 10 histórias fantásticas, contadas ou cantadas
africanas, não existe uma divisão tão formal
pelos griots.
dos conhecimentos entre as pessoas. Um tradicionalista pode ser um conhecedor de um leque maior de informações e não um especialista determinado de uma área. Então, os tradicionalistas são pessoas que têm um conhecimento cientifico prático. Nas atuais sociedades, vemos essas pessoas como os
médicos,
especialistas
conhecedores em
caça,
de
ervas,
tornando-se
personagens especializados em uma ou várias áreas do saber, porém, também podendo
desempenhar
o
papel
de
historiadores, mas de uma forma mais tecnicista, como um arquivista de fatos ou genealogista. Já os griots eram mais como os aedos e os bardos, citados anteriormente neste artigo. Eram espécies de trovadores ou menestréis do conhecimento dos povos africanos. Como dito por A. Hampaté Bâ:
“a música, a poesia lírica e os contos que animam as recreações populares, e normalmente também a história, são privilégios dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o país ou estão ligados a uma família.” 18
O griot tem o papel de preservar a memória coletiva dos povos africanos ou de um
leque
maior
de
sociedades.
A
importância do griot está em guardar a palavras, narrativas, mitos, tradições, fatos e grandes feitos de seu povo. Na prática um griot é um escritor que não usa um papel e algo para escrever, guardando a história na memória e lendo-a para os outros ao usar sua fala. Ele, ao usar a oralidade, mantém vivo, nos corações dos seus conterrâneos, aquilo que deve ser preservado ao longo das gerações. Então, o
griot é a fonte histórica perfeita para se estudar os povos do continente africano, pois ele é um grande depositário e preservador dessa história, além de ser uma espécie de entidade pública, como um arquivista histórico, o que comprova-se na abordagem de Lima: “Na voz de um Griots, encontram-se os vestígios de uma memória cultural e do que foi apagado pela história oficial.” 19 Eles, muitas vezes, eram contratados por reis para narrarem à história de seus feitos, sua linhagem e genealogia, para que, assim, os reis pudessem validar o seu poder ou
Nas sociedades africanas, era costumeiro sentar-se sobre a sombra de uma grande árvore e passar horas ouvindo as narrativas e 18 Loc. Cit. p. 193.
enaltecer os seus feitos perante seus súditos. 19 Griots - culturas africanas : linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. p. 6.
Além de lutar com eles em várias batalhas, sendo muitas vezes um recurso fundamental que poderia dar aos seus mestres o recurso necessário para que a vitória na batalha viesse:
“Os griots tomaram parte em todas as batalhas da história, ao lado de seus mestres, cuja coragem estimulavam relembrando-lhes a genealogia e os grandes feitos dos antepassados.” 20
Com isso, vários griots tinham papel de importância dentro das sociedades africanas, tendo até mesmo postos de autoridade. Eles também eram temidos, pois um griot, de certa forma, poderia contar uma história, tornando alguém um grande vilão, inimigo ou covarde, podendo, também, torná-lo um herói, pois sabemos que a história oral recebe influência de seu locutor, podendo então ser adaptada durante a sua narração. Por isso ao contar uma história, os griots eram questionados sobre a forma com que a história estaria sendo contada, como afirma A. Hampaté Bâ:
“Quando um griot conta uma história, geralmente lhe perguntam: “É uma história de dieli ou uma história de doma?” Se for uma história de dieli, costuma -se dizer: “Isso é o que o dieli diz!”, e então se pode 20 História geral da África . I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph KiZerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 196.
G N A R U S | 11 esperar alguns embelezamentos da verdade, com a intenção de destacar o papel desta ou daquela família – embelezamentos que não seriam feitos por um tradicionalista - doma, que se interessa, acima de tudo, pela transmissão fiel.” 21 O griot, então, pode desempenhar na sociedade africana diversos papéis distintos. O historiador A. Hampaté Bâ separa esses papéis do griot nas seguintes categorias:
•os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra, cora, tantã, etc.). Normalmente são excelentes cantores, preservadores, transmissores da música antiga e, além disso, compositores. •os griots “embaixadores” e cortesãos, responsáveis pela mediação entre as grandes famílias em caso de desavenças. Estão sempre ligados a uma família nobre ou real, às vezes a uma única pessoa. •os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao mesmo tempo), que em geral são igualmente contadores de história e grandes viajantes, não necessariamente ligados a uma família. 22
Vemos que a importância do griot para a sociedade é imensa e seu papel é o que manteve, ao longo de gerações, viva a 21 Loc. Cit. p. 198. 22 História geral da África . I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph KiZerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 193.
memória de todo o continente africano. E, como afirma A. Hampaté Bâ sobre os griots: “tornaram-se naturalmente, por assim dizer,
G N A R U S | 12 isoladas no campo, é que hoje se coletam outras tradições orais, tais como jogos, canções, baladas e narrativas históricas.” 25
os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente, grandes historiadores.”23. A figura do griot era de tamanha
Ainda na fala de Thompson, vemos que ele, mesmo sendo um defensor da oralidade,
importância e de tal reconhecimento da
mostra-se
sociedade que o papel de destaque deles era
continuação da utilização de tal método no
lembrado enquanto viviam e, quando a hora
futuro, quando afirma que:
de sua morte chegava, acontecia um ritual descrito por Marta Aparecida:
“Quando um Griot falecia, seu corpo era sepultado dentro de uma enorme árvore, o Baobá, para que suas canções e histórias, assim como as folhas da árvore continuassem a germinar nas aldeias ao seu entorno.”
pessimista
em
relação
à
“As pessoas ainda se lembram de rituais, nomes, canções, histórias, habilidades; mas agora é o documento que se mantem como autoridade final e como garantia de transmissão para o futuro.” 26
24
Considerações finais A utilização da história oral como fonte de pesquisa vem crescendo dentro do meio acadêmico, mas ainda é muito escassa a busca por esse método. Mesmo porque a própria transmissão oral vem sendo deixada de lado pelas sociedades em um modo quase que geral. Segundo Thompson:
“em geral, apenas entre grupos de menos prestigio, tais como as crianças, os pobres da cidade, as pessoas 23 loc. cit. p. 197. 24 Griots - culturas africanas : linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. p.170.
25 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 51. 26 Ibid.
G N A R U S | 13 suas histórias
A importância da história oral
mantêm-se
como
vivas
fonte
primordial pesquisa
na
de
memória
nas
coletiva
sociedades
africana, graças
onde a escrita é
às
usada de forma
contadas
fragmentada,
cantadas pelos
ou
mesmo,
griots nas noites
onde a escrita
africanas ao
não
é
usada,
Griots de Sambala, rei de Medina (povo Fula,
para fazer-se preservar a memória, cultura e tradições de um povo, provou-se então de suma importância. Fato esse que se torna evidente dentro da maioria das sociedades africanas pré-coloniais e até mesmo em sociedades africanas dos dias de hoje, pois vários povos mantêm suas características orais, mesmo com tantas mudanças no mundo a sua volta. Os personagens que fazem a história manter-se viva dentro destas sociedades africanas são os griots, a memória viva da África. Sem os griots, os nomes dos reis, os grandes feitos, as conquistas e derrotas nas batalhas, tudo isso cairia no esquecimento. Se não fosse o trabalho destes menestréis do conhecimento africano, boa parte da história das mais de duas mil etnias existentes hoje na África teria se perdido com o passar do tempo, fora as várias etnias e sociedades que já deixaram de existir e que, mesmo assim,
narrativas
redor
ou
das
grandes fogueiras. Deve ser lembrado com isso que, quando na África morre um griot, não é só a morte de mais uma pessoa da aldeia, cidade ou vila, e sim o fim de uma verdadeira biblioteca riquíssima em conhecimentos; a morte de um arquivo vivo da história da África. Uma perda que pode ser irreparável para aquela sociedade e até mesmo para a história mundial. Para que isso não ocorra, os griots transmitem seus conhecimentos a sucessores. Eles escolhem jovens dentro da sociedade em vivem para que o acompanhe em sua jornada. E, no processo, o griot vai ensinando tudo o que sabe ao jovem ascendente ao cargo. Esse fato é de suma importância para as sociedades africanas, pois, quando ele morrer, toda a biblioteca de conhecimentos que ele possui em sua memória não se perde,
e sim, permanece viva dentro de um novo guardião. Além deste método, o griot mantém viva a história que ele adquiriu com suas vivencias ao longo do tempo, no processo em que ele a dissemina por todos os cantos onde suas trovas, versos, poesias e contos podem ser ouvidos e compreendidos. Por isso como afirma Hampaté Bâ, ao falar da história africana: “os griots estão longe de ser seus únicos guardiães e transmissores” 27 e sim, os guardiões das histórias, não só da África ou das sociedades orais, mas de todas as sociedades, culturas e povos, somos todos nós, pois todos somos a memória da humanidade.
Fernando Augusto Alves Batista é Pós Graduando em Gestão e Orientação Educacional e em História da África – Instituto Educacional Centro Oeste, Licenciado em História – Faculdade Projeção de Taguatinga DF e Licenciado como professor de Ensino Religioso – FATEO (Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília). http://lattes.cnpq.br/7977877644910871
Referências BURKE, Peter. (org.) A escrita da História: Novas perspectivas. Tradução 27 História geral da África. I: Metologia e préhistória da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 169.
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