Gnarus 3

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ANO I - Nº 3 - DEZEMBRO - 2013

GNARUS

Revista de História - ISSN: 2317-2002

AMÉRICA

ASTECAS ES C R ITA

LITERATURA CURA

SA NG RA DO RE S

GALEGOS REPÚBLICA

CORTEZ

HISTÓRIA

ME MÓ RI A

BANDEIRANTES M U L H E R RE AL EN GO IMPÉRIO

IM AG INÁ RIO

AKHENATON XVIII

ROCK AND ROLLORDEM

GUANABARA

N E G R O RIO DE JANEIRO

JESUÍTAS COLÔNIA

TENÓRIO CAVALCANTI


Página |2

Sumário Ao leitor............................................................................................................................................................................. 3 Fernando GralhaErro! Indicador não definido. Reforma Amarniana: Imaginário social no período de Akhenaton-xviiiª (1550-1070 a.c)......................................................... 5 Deise Cristina Erro! Indicador não definido. O empresariado, a Guanabara e a fusão: a complexa (re)construção de uma capital ..............................................................12 Rosane Cristina de Oliveira Práticas de cura no Rio de Janeiro Colonial .......................................................................................................................................20 Germano Martins Vieira Administrar a América Portuguesa, trajetória e perspectivas historiográficas: problematizando a história da administração na América Portuguesa ......................................................................................................................................32 Felipe Castanho Ribeiro A imagem do Rio de Janeiro de Pereira Passos nas crônicas de João do Rio ..............................................................................42 Cristiane de Jesus Oliveira Pimentel A entrada da mulher no curso técnico de química industrial da Escola Técnica de Belo Horizonte......................................52 Fábio Liberato de Faria Tavares Hernan Cortez: a conquista do México e a administração espanhola..........................................................................................57 Eron Santos Pereira Primeiros acordes distorcidos: a construção de um rock and roll brasileiro na década de 1950............................................65 Gustavo Moura Um convite a leitura de “A construção da ordem e Teatro de sombras” .....................................................................................73 Fernando Gralha Uma análise da ocupação de juízes por gênero, raça ou cor no brasil e por unidade da federação......................................76 Romeu Ferreira Emygdio As cotas nos concursos públicos, um debate oportuno ...................................................................................................................90 Renato Ferreira Duque de Caxias (1953 – 1958): a figura mítica de Tenório Cavalcanti e suas práticas coronelistas ....................................93 Jordan Luiz Menezes Gonçalves Os logradouros dos imigrantes galegos no paraíso tropical: as cadeias migratórias e as redes de solidariedade no Rio de Janeiro ........................................................................................................................................................................................... 103 Erica Sarmiento da Silva História oral, metodologia e o CMRP .............................................................................................................................................. 116 Leonardo Tavares Santa Rosa As escaramuças entre bandeirantes e jesuítas pelo gentio da terra na região do Guairá, Tape e Uruguai no período de 1602 a 1641 .................................................................................................................................................................................. 126 Miguel Luciano Bispo dos Santos Irmandades de homens pretos no Brasil Colonial.......................................................................................................................... 135 Luís Tadeu de Farias Goes Prática religiosa brasileira: entre o público e o privado ............................................................................................................... 141 Pedro Tavares


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AO LEITOR Por Fernando Gralha

C

hegamos ao terceiro número, são quase cem

mobilização que se espalhou pelo país, com reações

páginas a mais que o número anterior, mais

contrárias e a favor tanto das reformas urbanas de Passos

páginas,

mais

como a fusão da Guanabara, foram fermentadas por

trabalho, mais orgulho em mais uma viagem pelo rio do

motivações, medos e certezas que remexiam o vasto

conhecimento, o

mais

responsabilidades,

A-Letheia.1

Nesta nova viagem Rosane

patrimônio cultural e social carioca e ativaram

Cristina, Cristiane de J. O. Pimentel e Érica Sarmiento

sentimentos que ligavam homens e mulheres à história

revisitam dias vertiginosos da urbe carioca vividos em,

do país.

prosas literárias, jogadas políticas e financeiras. Suas análises instigantes situam as condições que levaram o Rio de Janeiro a ser um discurso, uma cidade a ser lida por seus vários agentes, sejam ele cariocas da gema como João do Rio, sejam estrangeiros como os galegos imigrantes do início do século XX ou sejam também, agentes políticos financeiros de meados do mesmo século que ao transformarem a Guanabara em Rio de Janeiro ditam as novas regras do jogo. O Rio ao ser lido, promove novos discursos, novos olhares, novas abordagens,

estas

tão

bem

apresentadas

aqui

determinam nossa condição de metrópole, de caixa de ressonância do Brasil para o mundo. A ampla

1

Sobre o A-Letheia ver “Ao Leitor” Gnarus, nº 1.

Por isto mesmo é fecundo aproximar outros assuntos que comparecem nesta edição, dentre eles a afirmação dos movimentos negros em dois artigos que com certeza vão dar bons debates, o do Advogado e professor Renato Ferreira e o de Romeu Ferreira, Tecnologista Informação Geográfica Estatística no IBGE que transitam pelos meandros das lutas sociais do movimento negro em nossa sociedade, que por sua vez se tornaram formas de expressar o pertencimento deste grupo em uma comunidade coletiva. Neste mesmo caminho das batalhas pela inclusão, temos o trabalho de Fábio Liberato, através dele percebemos nas mulheres de


Página |4 Minas a força e personalidade de gênero tantas vezes

narradores. E só para lembrar, “Narrar nos remete para

sufocadas na poeira da história.

narro (fazer conhecer, contar) um verbo derivado de

Germano Martins, Miguel Luciano e Luís Tadeu nos

gnarus, que significa ‘que conhece’, ‘que sabe’.

levam a viajar por tempos coloniais, nos quais tradições

Fundamentalmente, narrar é levar ao conhecimento

simbólicas que passaram a ser esgrimidas com

e também ‘contar’, ‘dizer’. Gnarus tem a mesma raiz

intensidade por índios, escravos, senhores, doentes,

etimológica de nosco, conhecer, tomar conhecimento,

médicos, sangradores, jesuítas, bandeirantes e todo uma

começar

gama de personagens que desenharam os primeiros

Acrescentando o prefixo cum a nosco, temos o verbo

contornos e cores do Brasil e suas instituições como a

cognoscere, que significa “conhecer”. Narrar é

Igreja, bandeiras, aldeias, quilombos, escolas e muito

essencialmente

mais, todos com a certeza na frente e a história na mão.

conhecimento é um nascer, um surgir algo que não

Além do Brasil temos a América, Felipe Castanho e Eron Santos fazem uma boa dupla acidental, pois seus trabalhos de certa maneira nos levam a pensar as origens da América e a forma como a História faz esta análise, um excelente exercício de leitura, teórico e prático. A Gnarus antes de tudo é um ponto de encontro de História, neste uma miríade de possibilidades de trabalhos, escritas e discursos flutuam no pequeno universo deste número, além dos já aqui citados uma viagem pelo Egito antigo através das letras da Professora Deise Cristina, um olhar sobre os acordes do Rock Brasileiro e Estadunidense em trabalho de Gustavo Moura, uma entrada nos estudos do místico e rico mundo das religiões brasileiras em artigo apresentado por Pedro Tavares, um retrato de uma polêmica figura histórica nacional, Tenório Cavalcanti e toda sua energia política são analisados em excelente trabalho de Miguel Luciano. E para finalizar apresentamos as já tradicionais colunas do CMRP, na qual Leonardo Tavares discorre sobre os processos de elaboração e pesquisa da História oral no Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel e em nossa resenha do mês, o livro escolhido foi um clássico da historiografia nacional, “A construção da ordem e Teatro de sombras”. Enfim, retornamos a fazer o mesmo convite que fizemos nos dois números anteriores, venham ler nossos

a

conhecer,

“levar

aprender

o

a

conhecer.

conhecimento”.

O

havia, o conhecer é um gerador de nascimentos. É esta nossa ambição em mais uma empreitada, narrar a História, fazer conhecer, dar voz a professores e alunos, divulgar a produção acadêmica historiográfica e estimular a produção do fazer conhecer, da construção da memória, que nos livre do esquecimento, do não ser. Esperamos que nos acompanhem nesta nova viagem pelo rio da A-Letheia.


G N A R U S |5

Artigo

REFORMA AMARNIANA: IMAGINÁRIO SOCIAL NO PERÍODO DE AKHENATON-XVIIIª (1550-1070 A.C) Por Deise Cristina

A

través da descoberta da Pedra de Roseta1

alto

no século XVIII, o Egito antigo pôde

internamente pelo domínio territorial, o faraó

compartilhar

a

Ahmés (XVIIª), dando continuidade ao que seu pai

sociedade moderna. Podemos mencionar que tais

tinha iniciado, retomou o território egípcio que

conhecimentos sobre o mundo antigo, só foram

até então era ocupada pelos hiscos4 da cidade de

possíveis através das iniciativas Francesas de

Avaris, esta reunificação deu origem a XVIIIª

“encurtar o caminho até as índias através do canal

dinastia ou período conhecido como Reino Novo

de Suez no período Napoleônico”2.

(1550-1070 a.C)5. Sobre a reunificação Júlio

seus

mistérios

com

A disputa pela decifração da pedra de Roseta

e

do

baixo

Egito

que

conflitavam

Gralha é categórico em afirmar:

ficou acirrada entre França e Inglaterra, mas coube “(...) a hostilidades entre Tebas e Avaris tiveram seu começo no reino do faraó Sequenen-ra taa II, mas foi somente no reinado de seu filho Kaméss, após uma absorção mais eficiente de novas tecnologias.(...) e pela primeira vez, o estabelecimento de um exército e frota de guerra profissionais que as campanhas dos monarcas tebanos forma capazes de reduzir drasticamente a influencia dos hiscos, controlando definitivamente o Egito durante o reinado do faraó Ahmés que foi o fundador da XVIII dinastia.”6

ao Francês Jean François Champollion, através do

Copta, a grande façanha de decifrar os hieróglifos contidos na Pedra. Desde então, foi possível pesquisar de forma eficiente os processos que mantinham e organizavam esta sociedade que até o período do séculos das luzes, se mantinha intacta. Até a chegada do reinado de Amenhotep IV3, o Egito ainda estava dividido entre governantes do 4 1

Grande fragmento de basalto com textos em caracteres gregos, demóticos e hieróglifos. ALDRED, Cyril. Os Egípcios. Lisboa: Editorial verbo, 1972, p.22 2Ibim Idem p.21 3 Após o festival-sed, mudará sua titularia real para Akhetaton. SILVA, Regina Coeli Pinheiro da. Análise do painel das cenas de oferendas da sala Alfa- Tumba real de Amarna/ Rio de janeiro: Uerj/ MN (tese de mestrado) p.40

Governantes estrangeiros, provenientes da palestina,que ocuparam o delta formando as XV, XVI e a transição para a XVIIª. GRALHA, Júlio. Op. Cit. p.30 5 Reino Novo, Período da XVII, XIX, XX, final da idade de bronze (1500-1200 A.C) GRALHA, Júlio. Deuses, Faraós e o Poder- Legitimidade e Imagem do Deus Dinástico e do Monarca no Antigo Egito - 1550-1070 a.C. Rio de Janeiro: Barroso, 2002. P.25 6 Ibid. Idem p.30


G N A R U S |6 Após o período de reunificação e a fundação de

Amom-Rá-Deidade Dinástica do Reino Novo

uma nova dinastia – O REINO NOVO - o Egito iniciou um dos períodos mais ostensivos do seu

É importante dizer que a deidade Amom passa a

tempo, “sendo ele marcado pelo grande apogeu

ser de grande influência no período do reino novo

teocrático, com monarcas divinos e suas poderosas

através do faraó reunificador do Egito, Ahmés,

divindades dinásticas, que através das diversas

“que declara ter recebido do próprio deus —

incursões militares”7 alcançou ao longo de várias

Amom— seu pai a Cimitarra, (símbolo de guerra),

gerações, o posto de reino mais poderoso e estável

ao regressar vitorioso a capital tebana, e após a

do mundo antigo. Segundo Júlio Gralha, houve

expulsão dos hicsos, consagra assim oferendas a

uma implícita ''expansão da arquitetura através de

este Deus''11. É importante notar que nesta

complexos

passagem mencionada anteriormente, Amom é

templários

sofisticados,

e

legitimada pelas ações do rei e passa a ser

desenvolvimento do cânon artístico - religioso

considerado a divindade dinástica12 que irá reger

soberbo,

todo o período do reino novo13.

de

uma

palácios e

além

de

fabulosos,

um

produção limitado

avanço

tecnológico”8

O deus Amom, passa a exercer total poder sobre

Através dos processos expansionistas inferidos

todo o território egípcio após seu processo de

pelos grandes monarcas do reino novo, o Egito

solarização,14 passando assim a exercer as

estava localizado entre as grandes maiores

prerrogativas do deus Rá15, esta prática foi

potências da época, tais como “Mitanni, Hatti,

importante para Amom no sentido de que “cada

Arzawa, Chipre e Babilônia e não obstante a isto o

território egípcio era regido por um deus local, a

aumento demográfico também foi fato marcante

partir do momento que Amom realiza assimilação

para o período. A população que estava em torno

divina do deus solar Rá - que já era referenciado

de 1,5 milhões foi 2,5 a 5 milhões, sendo a cidade

no Reino antigo como deus criador nos mitos da

de Mênfis e Heliópolis a que mais cresceu.”9

criação”16, sua influência se torna muito mais

Apesar de todo o seu poder, luxo e ostentação, o

abrangente.

reino novo teve seu declínio por volta de “1200-

1070 a.C, devido a perda da influência e desgaste

“Adoração de a Amon-Ra, touro que reside em heliópolis, que tem autoridade sobre

da teocracia faraônica, exaustão dos recursos naturais e sucessivas invasões dos povos do mar''10. Antes de seu processo de declínio, o reino novo foi palco de um dos contextos históricos mais intrigantes da história da humanidade, a reforma Amarniana pelo faraó Amenhotep IV.

11CARDOSO,

C. F. Antiguidade Oriental: Política e Religião. São Paulo: Contexto, 1997, p.35 12 Divindade associada a uma dinastia de monarcas reinantes. GRALHA, Júlio. Op. Cit, 2002, P.102 13 GRALHA, Júlio. Op. Cit, 2002, P.102 14A da religião egípcia, embora tenha ocorrido aproximadamente entre 2700 e 1800, ganhou força no segundo milênio e as divindade solares com Atum, RaHarakhty e Aton. CHAPOT, Gisela. Senhor da ordenação:

7

Ibid idem P.25 GRALHA, Júlio. Op. Cit. p25 9 Ibid idem P.25 10 GRALHA, Júlio. Op. Cit. 2002. p.25 8

15

Um estudo da relação entre o faraó Akhenaton e as oferendas divinas e funerárias durante a Reforma de Amarna (1353 – 1335 a.C.). Niterói, 2007, p. 86

Divindade Heliopolitana, tradicional muito prestigiada no baixo Egito, Ibid Idem P. 87 16 GRALHA, Júlio. Op. Cit, 2002, p .46


G N A R U S |7 todas as esposas divinas, o deus perfeito, o bem amado, que dá a vida a todos os seres viventes e os rebanhos. Saúdo a ti, Amonra....o maior do céu e o mais antigo na terra, O senhor do que existe, que estabelece duravelmente toda coisa!”17

Até a chegada do período de reinado do faraó Akhenaton o Egito no período do Reino Novo já encontrava-se em seu grande ápice estrutural em todos os sentidos, porém convém levantarmos o seguinte questionamento, qual seria a real motivação da reforma? Este questionamento já foi pesquisado por muitos intelectuais, estudiosos de

reinado na cidade de Tebas. Neste contexto Christian Jacq expõe com clareza ''que no princípio

de seu reinado não há ruptura com as antigas tradições”20. Todavia após o sexto ano21 de seu reinado Amenhotep IV já começa a conduzir os processos da reforma. Amenhotep IV através de seu poder real se antecipa

no

uso

do

Festival-Sed22,

para

caracterizar a sua morte simbólica23 e renascer como uma nova titulatura real e reintegrar uma antiga deidade de característica solar- Aton, sendo referenciado

nos

textos

e

reconhecido

popularmente entre os egípcios, como Ahkenaton, (aquele que é útil ao disco solar)''24 abdicando assim, de toda e qualquer referência ao deus Amom-rá. Para os egípcios, o ato realizado por Ankenaton demostra o rompimento com a antiga tradição iniciada pelos seus ancestrais.

abrangem

É importante salientar, que o nome de coroação

renomados historiadores e egiptólogos que

de um faraó estava engendrado em vários

diversas

áreas

de

atuação

que

incansavelmente buscam compreender as atitudes tomadas

por

Akhenaton

em

sua

atuação

reformistas.

aspectos místicos que o ligava diretamente com o deus dinástico primordial regente do período, esta ligação foi desfeita por Amenhotep IV quando o mesmo aboliu o deus Amom,''pelo menos na esfera

Akhenaton e a Reforma: Construção de Amarna

governamental - as tradicionais cosmogonias e crenças, dotando Aton, uma antiga divindade

Amenhotep IV( 1353 à 1335 a.C.)18 que significa

“Amon está contente ou satisfeito, divino governante de Heliópolis do Sul''19, foi coroado rei do Egito no período que corresponde a XVIIIª dinastia, filho de Amenhotep III, tinha como exemplos seus antepassados com características

solar, de status real, reconhecendo-o como deus oficial do Egito.''25 Ahkenaton era o filho legítimo de Aton, o próprio deus em terra, digno de ser adorado em vida. Além da ausência dos mitos cosmogônicos foi peculiar na nova proposta religiosa, a ausência dos ritos funerários, “isto

guerreiras. Este faraó nos primeiros anos de seu reinado manteve-se com nome de titulatura real não abdicando assim aos cultos e adoração ao deus Amom, mantendo em primeiro momento seu 17

GRALHA, Júlio. Op. Cit, 2002, p.46 Op.Cit.p.91 19 GRALHA, Júlio. Op.Cit.140 18CHAPOT,Gisela.

20

JACQ, Cristian. Ahkenaton e Nefertiti,editora, BERTRAND, ano 2002, p.52 21Data mais aceita, ver GRALHA, Júlio. Op,Cit, p 132 22 Ver GRALHA, Júlio. Deuses, Faraós e o Poder- Legitimidade e Imagem do Deus Dinástico e do Monarca no Antigo Egito 1550-1070 a.C.Rio de Janeiro: Barroso, 2002. P. 131 23 GRALHA, Júlio. Op.Cit.131 24 SILVA,Regina Coeli Pinheiro da. Análise do painel das cenas de oferendas da sala Alfa- Tumba real de Amarna/ Rio de janeiro: Uerj/ MN (tese de mestrado) p.40 25Ibid Idem.p.40


G N A R U S |8

significa que na nova religião de Akhetaton houve

sol”30, esta última característica demonstra o alto

a suspensão dos ‘demônios’, e dos deuses punitivos

poder simbólico do sol que é representado como o

que julgavam os falecidos após a morte,

deus Aton. Amarna foi indicação do próprio deus,

Akhenaton era quem direcionava o caminho dos

para a existência sagrada do mesmo, vejamos no

falecidos para serem absorvidos pelo deus Aton”.26

hinos clamado por Akhenaton que diz:

Além da mudança de titulatura real, a supressão do deus Amom e todos os deuses do panteão politeísta, o golpe final e determinador da reforma religiosa de Akhenaton foi a idealização e construção de sua nova capital Akhetaton – O Horizonte de Aton – que foi realizada como intuito de ser o berço da nova religião atoniana. Tel el Amarna denominação árabe, hoje mais conhecida

Eu farei Akhetaton (Amarna) para o aton meu pai, Neste local; Não lho farei nem mais para o sul, Nem para o norte, Nem mais para leste, Nem mais para Oeste, Não ultrapassarei os limites, Nem ao Sul, Nem ao norte; Não construirei a oeste31,

popularmente como Amarna27. Aspectos

simbólicos

nortearam

toda

a

construção desta cidade, pois Amarna

foi

especialmente projetada para ficar exatamente a

“meio caminho de Mênfis, que exprimia a influência administrativa e religiosa do antigo império e Tebas do novo império”

28.

Amarna

deveria estar situada em um ponto onde o esplendor no nascer do sol fosse vislumbrado e seu maior ápice, e concomitante a isto, deveria ser construída em um solo que homem nenhum jamais tenha trabalhado, e sequer tenha sido ofertada a nenhum outro deus, sendo considerada virgem e pertencendo única e exclusivamente ao deus Aton29. Bem como um novo ideal religioso, Amarna foi a projeção de Ankenaton para um paraíso terrestre do deus aton, ela era contemplada segundo Cristina Jacq “com amplas avenidas, parques

Legitimação e poder através do imagético social O imagético social é uma importante ferramenta de legitimação da posição hierárquica dos faraós, bem como seu poder e influência sobre seus súditos. Na nova religião de Akhenaton, ao elevar o deus Aton como o deus primordial da XVIIIª dinastia, ele impõe um novo ideal religioso e político. A construção do paraíso armaniano, o uso do Festival Sed para a mudança mítica de seu nome, a icnografia em Amarna, os templos construídos para Aton, e os hinos, formam um conjunto

elementos

essenciais

para

a

construção de um novo imagético para guiar a sociedade por um novo viés ideológico e comportamental, logo Bronislaw Baczko nos elucida da seguinte forma: “O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida colectiva. As referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que pertencem à mesma sociedade, mas definem também de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas relações com ela, com as divisões internas e as

artificiais e parques ornados de pavilhões com urbanismo aberto facilitando a circulação do 26

GRALHA, Júlio. Op. Cit, p.105 JACQ, Christian. Akhenaton e Nefertiti – O casal solar. Trad. Attílio Cancian. São Paulo: Hemus – Livraria Editora LTDA, 1978.p81 28Ibid Idem. p81 29 SILVA, Tatiana Rita da. Do Cânone à Criação: A Simbologia usada na representação do Faraó Akhenaton / São Paulo, 2006 P.39

de

27

30JACQ,

Cristian. Op.cit.p.87 proferidas por Akhenaton sobre a fundação e localização da cidade de Amarna. JACQ, Christian. Op.Cit. p 84

31Palavras


G N A R U S |9 instituições sócias, etc. O imaginário social é, pois, uma peça efectiva e eficaz do dispositivo de controle da vida colectiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objecto dos conflitos sociais”32

O uso desta ferramenta era essencial para a relação de poder que organizava e mantinha a posição hierárquica do faraó no antigo Egito,

enfatizando

o

convívio familiar, Akhenaton

referência o novo segmento que nortearia religião amarniana - A família. “Para o rei, o fluxo divino

passa obrigatoriamente pela comunidade familiar que é, em miniatura, a imagem harmoniosa da sociedade. 'Por conseguinte, é à família que cabe por às claras as intenções de deus''35

Akhenaton também se prevalece do imagético social fazendo uso do poder simbólico para enfatizar a sua natureza divina. Através da análise das icnografias encontradas na cidade de Amarna, é notório a importância do poder simbólico e seu impacto sobre a ideologia egípcia. Neste sentido contamos mais uma vez com a definição categórica de Baczko no que concerne aos símbolos. “A função do símbolo não é apenas instruir uma classificação, mas também introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e colectivos e indicando as possibilidades de êxito dos seus empreendimentos”33

Inserida nesta outra imagem36 acima, perceberse que Aton - representado como um disco solar com raios terminados em mãos, “abençoa única e

exclusivamente com seu raios o casal reais Akhenaton e Nefertiti, entende-se como um novo imaginário sendo construído - só se consegue chegar a Aton através da família real''37 A construção do imaginário social tornava-se uma ferramenta tão eficaz que era comum encontrar oratórios particulares com representação da tríade divina formada, Aton, Akhenaton, e Nefertiti.

A imagem acima34 demonstra pela primeira vez na arte egípcia a intimidade da família real, BACZKO, Bronislaw.Iimaginação Social. In: Enciclopédia EINAUDI. Vol 1. Memória e História. Lisboa: Imprensa Nacional e Casa da Moeda, 1984. p.309-310 33 BACZKO, Bronislaw. Op. Cit.P.311 34 Akhenaton e sua família: Procedência: Tell El Amarna – XVIII Dinastia, Calcário pintado: 31 x 39 cm, Staatliche Museum, Berlin. 32

35

CRISTIAN, Jacq, O.p Cit, p. 105 Akhenaton e Nefertiti. Akhenaton entregando brincos a uma de suas filhas. 37 GRALHA, Júlio. Op. p. 144 36


G N A R U S | 10 “O monoteísmo de Moisés, parece-nos, deve muito ao monoteísmo de Ankhenaton. Do rei execrado pelos Ramassidas, Moisés se faz um modelo para escapar à influência política e social desses mesmos Ramassidas. Quando Moisés espatifa o bezerro de ouro, o ídolo adorado pelos hebreus a quem ele ensinava os ideais do monoteísmo, ele repete o ato de Ankenaton em luta contra a multiplicidade dos deuses egípcios que incomodavam o brilho de Aton, o único.”

Considerações Finais. As Razões da Reforma. A supressão do deus Amom como divindade primordial no Egito foi um ação ousada realizada por Akhenaton. Mesmo sendo ele o faraó das duas terras o próprio deus em terra, a ruptura com

Jacq, reforça sua explanação equiparando a

antigas tradições que foram construídas ao longo de várias dinastias, requer mais do que atitude e iniciativa, requer um grande objetivo que deveria levar a civilização egípcia a um novo sentido de vida. Alguns historiadores, tais como Jan Assman, Cyril Aldred, Cristian Jack e Tatiana Rita da Silva, defendem a tese de que Akhenaton ao suprimir o deus primordial Amom, estava tentando introduzir uma espécie de monoteísmo na religião egípcia, que refletiria essencialmente nos processos de organização política no Egito. Na avaliação dos autores supracitados a iniciativa de Akenaton de suprimir o deu amom como deus primordial, acarretaria na diminuição do poder do clero que já no período de Amenhotep exercia tamanha influência nos assuntos referentes ao Estado. Segundo Tatiana Rita, Akenaton já tinha percebido “uma dissensão

havida entre seu pai e os sacerdotes de Amon.”38 Cristian Jacq é incisivo ao mencionar a respeito do clero tebano, “que os sacerdotes desviavam- se da

fé em seu sentido original e apegavam- se ao materialismo excessivo”,39 Jacq além de ser defensor do monoteísmo em Amarna também

semelhança entre o grande hino de adoração ao deus aton, ''como o salmo 104 que referencia Javé,

o deus dos hebreus''40, Jan asmam também defende o monoteísmo e sua influência sobre o monoteísmo judaico-cristão.41 Porém de acordo com as considerações dos professores Júlio Gralha, Gisela Chapot e Ciro Flamarion, os mesmos não defendem que a reforma político religiosa proposta por Akhenaton possa ser considerada uma tentativa de impor o monoteísmo, Júlio Gralha e Gisella Chapot argumentam da mesma forma, de que não se deve considerar o monoteísmo “visto que na religião amarniana

declaradamente há duas divindades supremas, Aton e Akhenaton que não negou sua natureza divina, configurando assim uma dualidade divina (bilatria) deus terrestre e deus celeste”.42 Na argumentação de Júlio Gralha ele ainda coloca:

“tendo por base a dualidade formada pelo deus e pelo monarca, Aton se manisfesta a humanidade através de sua representação viva como deus terrestre o faraó Akhenaton, configurando assim, uma ‘bilatria’ e não o monoteísmo”43 Ciro Flamarion em seu artigo faraó Akhenaton e

enfatiza que este mesmo monoteísmo de Akhenaton teria influenciado o monoteísmo Judaico - Cristão mais precisamente o período de

seus contemporâneos expõe com clareza a questão do monoteísmo, que diz:

Moisés. Na citação o autor esclarece: 40

Ibid Idem, p.180 CHAPOT. Gisela. Op. Cit. p.233 42 Ibid Idem. pp.234-235 43 GRALHA,Júlio. O.p. Cit. p.174 41

38 39

SILVA, Tatiana Rita da. Op. Cit. p.88 CRISTIAN, Jacq, O.p Cit. p. 162


G N A R U S | 11 “(..)parece indicar de parte de Akhenaton, de início, uma monolatria, não um verdadeiro monoteísmo. Lá, o rei construiu templos à modalidade de divindade solar que viera a adotar em caráter exclusivo e considerava seu pai, o Aton, que se manifesta como a luz do disco do Sol. Note-se que nem por isso o monarca renunciou ao seu próprio caráter divino: vimos que ele e sua rainha, Nefertíti, apareciam como Shu e Tefnut, filhos consubstanciais do Aton, portanto, dificilmente diferenciáveis deste e certamente divinos.”44

Apesar da nova reforma político religiosa proposta por Akhenaton ser de modo geral simples,

e

aparentemente

ter

diversas

similaridades com a religião monoteísta judaico

REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS CARDOSO, Ciro Flamarion. O faraó Akhenaton e nossos contemporâneos. Artigo digital disponível em.http://www.pucrs.br/ffch/historia/egiptomania/ farao.pdf. Acesso em 26/04/2012. TESES E DISSERTAÇÕES CHAPOT,Gisela. Senhor da Ordenação: Um estudo da

relação entre o faraó Akhenaton e as oferendas divinas e funerárias durante a Reforma de Amarna

(1353 – 1335 a.C.). Niterói, 2007, P.123, Dissertação (Mestrado) SILVA, Tatiana Rita da. Do Cânone à Criação: A

Simbologia usada na representação do Faraó Akhenaton / São Paulo, 2006 130 f. : il.

cristã, as contradições ainda são muito fortes, não existem ainda, elementos que aumentem e/ou reforcem a defesa de alguns historiadores e egiptólogos em considerar o monoteísmo, para tal, seria necessário uma nova estela outros tipos de elementos arqueológicos como fonte primária em favorecimento da mesma. Deise Cristina é licenciada em História pelas Faculdades Integradas Simonsen, Prof.ª do Instituto Tecnológico Simonsen (ITS) e do Centro de Tecnologia Aplicada (CTA)

Bibliografia. ALDRED, Cyril. Os Egípcios, Lisboa: Verbo, 1972, BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia EINAUDI Vol 1.História. Lisboa Imprensa Nacional e Casa da Moeda, 1984.p 296-331 CARDOSO, C. F. Antiguidade Oriental: Política e Religião. São Paulo: Contexto, 1997 GRALHA, Julio. Deuses, faraós e o poder. Rio de Janeiro: Barroso Produções, 2002 JACQ, Christian. Akhenaton e Nefertiti – O casal solar. Trad. Attílio Cancian. São Paulo: Hemus – Livraria Editora LTDA, 1978 SILVA, Regina Coeli Pinheiro da. Análise do painel das

cenas de oferendas da sala Alfa – Tumba Real de Amarna /. Rio de Janeiro:UFRJ/MN,2009. f.132; il.26

Ver CARDOSO, Ciro Flamarion. O faraó Akhenaton e nossos contemporâneos. Artigo digital disponível em http:// 44

www.pucrs.br/ffch/historia/egiptomania/farao. pdf. Acesso em 26/04/2012.

Para saber mais:


G N A R U S | 12

Artigo

O EMPRESARIADO, A GUANABARA E A FUSÃO: A COMPLEXA (RE)CONSTRUÇÃO DE UMA CAPITAL Por Rosane Cristina de Oliveira “Esvaziada a Cidade em 21 de abril de 1960, há 30 anos levaram o cetro e o Banco do Brasil para o Planalto Central, e nos deixaram na orfandade... Fato é que os governos eleitos desde 1960 o foram em oposição ou a Brasília ou ao próprio governo local, ou geralmente aos dois... A alma coletiva do carioca tem estado enfermiça. E o que é grave: poucos, muito poucos têm se dado conta disto, como se ao mesmo tempo um pouco da própria brasilidade não fosse afetada e não tivesse sido abalada a sua autoestima, sua vontade de viver e crescer. Enquanto o Rio não age, se debate ou reclama muito, e atua pouco.” (Revista da ACRJ, ano 50, n. 1257, março de 1990 - Editorial).

O

empresariado carioca nos anos 1990 (três

fragmentada e com várias forças políticas e

décadas após a transferência da capital

econômicas envolvidas no debate.

política para Brasília) concordaria com a

Por outro lado, é importante chamarmos a

avaliação de que o esvaziamento econômico do

atenção para o aspecto da fragmentação e o

Rio foi inevitável. Em 1990, os empresários do Rio

impacto político e econômico sofrido pela cidade

de Janeiro, especialmente os membros da

e pelo Estado do Rio de Janeiro no contexto da

Associação Comercial do Rio de Janeiro, iniciaram

retirada da capital federal. Atrelada a isto, a

uma série de reflexões sobre os rumos do Estado e

inauguração de uma nova “estrutura industrial

da cidade do Rio de Janeiro, lançando olhar

promovendo um significativo crescimento da

negativo sobre a transferência da capital federal

economia fluminense” (Oliveira, 2008, p. 19), cujo

para Brasília e a fusão.

intuito foi recuperar as perdas históricas e

Pensar a cidade do Rio de Janeiro após 1960 é complexo. O antigo Estado da Guanabara, mesmo

delineando economias regionais mais estruturadas fora da metrópole.

com o processo da fusão, não conseguiu reverter o

Neste breve artigo, a intenção é discutir o

quadro de atrofiamento econômico e político ao

esvaziamento econômico e a complexidade de se

se tornar a capital fluminense. Nesse contexto,

pensar a cidade após a transferência da capital

podemos sugerir que a construção do projeto

federal, tendo como objeto a atuação do

político para a cidade do Rio de Janeiro

empresariado local, representado pela Associação

encontraria ecos, nos anos 1960 e 1970, de forma

Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ), e demais


G N A R U S | 13 entidades

representantes

do

termos globais, o que sem dúvida facilitaria e/ou baratearia a sua solução.”2

empresariado

industrial.

Naquela conjuntura, Amaral Peixoto não se As discussões sobre a fusão e o papel do empresariado

declarou efetivamente contrário à fusão. Apenas

No Congresso Nacional, os debates sobre

envolviam esta política. O deputado via a

o estatuto jurídico e político para o ex-distrito

possibilidade de recuperar a economia carioca,

federal durou alguns meses. Entre as propostas

desde

apresentadas pelos deputados, José Talarico

minuciosamente planejado. Caso contrário, o

defendeu a ideia de que “a cidade se conservasse

sucesso não ocorreria e os problemas sociais e

como capital de direito, pregando a existência de

econômicos aumentariam, tanto para a Guanabara

dois Distritos Federais”. Outra proposta, do

como para o Estado fluminense.

expressou os aspectos positivos e negativos que

que

o

processo

de

fusão

fosse

“De qualquer modo, o que é importante salientar é que a fusão das duas unidades não concretizaria as vantagens prováveis e evitaria ou reduziria as desvantagens previstas na medida em que fosse feita de modo planejado, prevendo-se, inclusive, um período de adaptação no que se refere à composição da receita e despesa. Do contrário, teríamos apenas uma soma de misérias, que redundaria em prejuízo para ambos os atuais estados.”3

deputado paranaense Munhoz da Rocha, defendia o projeto de criação da “Cidade Nacional do Rio

de Janeiro”. (Motta, 2001b) As discussões sobre a fusão e a dificuldade de encontrar consenso entre as forças políticas e econômicas estão inscritas desde a segunda metade dos anos 1960. Em agosto de 1968, o Deputado Estadual Álvaro Fernandes elaborou um

Em 13 de março de 1970, o professor Ariosto

relatório sobre as consequências do processo de

Berna4 enviou uma carta ao presidente da

fusão e o enviou ao Deputado Augusto Pereira das

República, General Emílio Garrastazu Médici,

Neves (Presidente da Comissão de Habitação,

enfatizando os argumentos que demonstravam o

Urbanização e Turismo).1 Neste documento, fica

equívoco que era a “fusão”. Para Berna, a cidade

registrada a dificuldade em chegar a um consenso

do Rio de Janeiro, desde o império ocupa posição

sobre o destino da ex-capital federal, pois,

de destaque no cenário nacional e internacional.

“Não seria correto afirmar que a fusão entre os estados da Guanabara e do Rio de Janeiro representa, por si só, um meio ou garantia de solução para os problemas econômicos, sociais e administrativos dos dois Estados... Por outro lado, não há como negar que as duas unidades fazem parte de uma mesma região econômica que, portanto, a divisão político-administrativa é artificial. O grande número e o significado das relações existentes entre as duas unidades justificariam a sua reunião que, por sua vez, seria um elemento adicional importante no sentido da compreensão e formulação dos problemas existentes na Guanabara e do Rio de Janeiro em 1

Esta documentação faz parte do arquivo Ernani do Amaral Peixoto, no CPDOC/FGV. (Disponível em: http://docvirt.com/ docreader.net/docreader.aspx?bib=\\Acervo01\drive_S\Trbs\ FGV_EAP_EstadRJ\EAP_EstadRJ.DOCPRO&pasta=EAP%20erj %201968.08.08)

Portanto, seria um equívoco não levar em consideração a representatividade que a cidade carioca possuía. A fusão era vista como um “golpe” e fruto de uma política liderada por aqueles que não tinham a visão límpida acerca da verdadeira 2

Carta do Deputado Estadual Álvaro Fernandes ao Deputado Estadual José Augusto Pereira das Neves. Arquivo Ernani do Amaral Peixoto. CPDOC – FGV, 08∕08∕1968. p. 2. (disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib= \\Acervo01\drive_S\Trbs\FGV_EAP_EstadRJ\ EAP_EstadRJ.D OCPRO&pasta=EAP%20erj%201968.08.08) 3 Idem, p. 7. 4 Professor, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto dos Centenários, ex-secretário geral do Movimento Libertador da Terra Carioca. Este movimento fazia parte de uma iniciativa de intelectuais cariocas contrários à ideia da incorporação da Guanabara ao Estado fluminense.


G N A R U S | 14 Com referência à Capital do Grande Rio, opino que seja na Guanabara, isto é indiscutível.” 7

vocação da cidade do Rio de Janeiro, na condição de cidade-capital da república. Assim, mesmo após a sua perda de status de centro político do país,

Durante os anos 1970, os governos do Rio de

deveria continuar a ser autônoma. Nas palavras de

Janeiro, especialmente o último governador da

Berna,

Guanabara, questão5,

“Reaberta no governo de V. Exa. a não devo silenciar, com a credencial de haver secretariado trinta anos a luta pela emancipação política e administrativa da Cidade-Estado e, com Paulo de Frontin, Benevenuto Berna, Barbosa Rodrigues, Heitor Beltrão, Pedro Hernesto, e outros, fundado, sem credo político, sem objetivos ocultos, o Movimento Libertador da Terra Carioca, que teve atuação incisiva nas tarefas cívicas empenhadas... Só aspiramos que a Cidade-Estado ocupe o seu verdadeiro lugar entre os demais Estados, por ser um legítimo direito da própria Unidade Nacional.”6

Chagas

Freitas,

investiram

na

transformação da Guanabara em mais um estado como os demais da federação. Entretanto, em 1974, este processo foi anulado pela fusão, que delegou à cidade do Rio o status de municípiocapital do “novo Estado do Rio de Janeiro”8. Os motivos da fusão foram basicamente dois: evitar que continuasse no Brasil uma tendência a uma predominância econômica de um Estado – São Paulo; dar dinâmica econômica ao Estado do

foi

Rio de Janeiro para se recuperar da ideia de que a

institucionalizada, ao contrário dos argumentos de

cidade do Rio não era mais capital federal. A

Ariosto

foram

tentativa de reestruturação econômica, nos anos

favoráveis à fusão, alegando que não havia a

1970, ocorreu com a construção dos Centros de

necessidade de ter um Estado autônomo. A

Tecnologia no Campus da Ilha do Fundão, pois,

Guanabara pertencia ao Estado do Rio de Janeiro e

segundo João Paulo dos Reis Velloso9, ex-ministro

só sairia da crise econômica e política, com a sua

do planejamento, pensava-se ser possível certa

integração. O vereador de Magé (município do

parceria

Estado do Rio de Janeiro), Antonio Garcia Filho,

universidade-empresa. Cogitou-se, também, um

expressou esta opinião em carta ao senador

programa de desenvolvimento agrícola do Vale

Amaral Peixoto:

São João10. Tais projetos não atingiram o sucesso

Em

1974, Berna,

ano

em

que

a

fusão

muitos parlamentares

“(...) há um adágio sertanejo que diz, o bom filho a casa volta; é o que está acontecendo agora, o que deveria ter acontecido na época em que foi transferido o Distrito Federal para Brasília, ninguém mais do que V. Exma. é conhecedor, de que as grandes indústrias que funcionam no Estado do Rio, seus escritórios estão na Guanabara, o que em parte o Estado do Rio vinha tendo prejuízo. Estou de pelo acordo com a fusão, a Guanabara não está dando nada ao Estado do Rio, e sim entregando o que é seu.

5

As discussões sobre a fusão estiveram presentes em 1964, pela força do golpe militar. Entretanto, foi vetada pelo então presidente Marechal Arthur da Costa e Silva. 6 Carta de Ariosto Berna ao presidente General Emília Garrastazu Médici, em 13 de março de 1970. Arquivo de Ernani do Amaral Peixoto, CPDOC / FGV, p. 8-9 e 13. (Disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/docreader .aspx?bib=\\Acervo01\drive_S\Trbs\FGV_EAP_EstadRJ\EAP_Es tadRJ.DOCPRO &pasta=EAP%20erj%201968.08.08).

7

entre

universidade-indústria

e

Correspondência enviada pelo vereador Antonio Garcia Filho, do município de Magé, ao Senador Amaral Peixoto, em 1974. Arquivo de Ernani do Amaral Peixoto, CPDOC / FGV. Doc 5, p. 46. (Disponível em: http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=\\Ace rvo01\drive_S\Trbs\FGV_EAP_EstadRJ\EAP_EstadRJ.DOCPRO &pasta=EAP%20erj%201968.08.08) 8 Ver Ferreira, Marieta de Moraes; Dantas, Camila Guimarães. Os apaziguados anseios da Terra Carioca – lutas autonomistas no processo de redemocratização pós-1945. In: Rio de Janeiro: uma cidade na história. Rio de Janeiro: FGV, 2000. 9 João Paulo dos Reis Velloso ocupou o cargo de Ministro de Estado e do Planejamento e Coordenação Geral, no período de outubro de 1969 a maio de 1974. De maio de 1974 a março de 1979, foi Ministro de Estado da Secretaria de Planejamento da Presidência da República. 10 Jornal dos Economistas, n. 183, outubro de 2004 – Especial: As origens da crise do Rio (João Paulo dos Reis Velloso e Marly Motta).


G N A R U S | 15 esperado, em parte por problemas do sistema político, com tendência altamente clientelística11. Distante de existir consenso sobre os rumos da

No contexto da fusão, o empresariado do Rio de Janeiro13 “apoiou” as medidas do governo. Segundo Faria Lima, “A Federação das Indústrias do Estado da Guanabara14 tinha sido uma das maiores entusiastas da fusão, no período de Mário Ludolf e depois do Artur João Donato, dois grandes amigos meus. Fizemos uma intervenção radical na Junta Comercial do Rio de Janeiro, e o Donato foi até vogal. Uma pessoa do padrão do Donato! Ele atendeu ao meu pedido para ser vogal e contribuiu para endireitar aquilo. O prof. Oto Gil foi o presidente. Enviei o novo presidente da Junta a Londres para ver como funcionava a Junta Comercial de Londres. Ele trouxe muitos subsídios e implantou aqui um sistema que acelerou bastante o registro das empresas comerciais e industriais. Construímos um prédio, moralizamos todo o processo, e todo mundo ficou satisfeito com as providências tomadas. Nunca tive qualquer problema, nem com a Fiega nem com a Associação Comercial.”15

cidade carioca, para este artigo é importante verificar a posição assumida pela elite empresarial do Rio de Janeiro. Analisou-se especialmente o papel dos empresários membros da ACRJ e FIRJAN, diante do processo de deslocamento da capital federal para Brasília e da fusão da Guanabara com o Estado do Rio. O primeiro governador do novo Estado do Rio de Janeiro, Floriano Peixoto Faria Lima (19751979), assumiu o discurso de reestruturação econômica da capital do Estado do Rio de Janeiro. Nos primeiros meses, Faria Lima encontrou vestígios de uma Guanabara falida, com graves problemas no sistema de saúde, educação e transporte.12

De fato, segundo estudo realizado por

Eleito indiretamente, sua escolha

Evangelista (1998 e 2004) e Oliveira (2008), os

ocorreu por não ter vínculo político com o antigo

empresários apoiaram a fusão. A Federação

Estado da Guanabara e com o ex-Estado do Rio de

Industrial do Estado da Guanabara (FIEGA) e o

Janeiro. Dessa forma, conseguiu levar adiante o

Centro Industrial do Rio de Janeiro (CIRJ)

seu projeto de fusão, cuja finalidade seria integrar

elaboraram e

a cidade ao restante do Estado. Dessa forma, seria

“(...) tiveram a guarda e a geração de vários documentos favoráveis à fusão, assim como estimularam que seus quadros estivessem mobilizados em favor da iniciativa; alguns chegaram a ocupar postos de governo na forma de assessoria.” Do ponto de vista econômico, era

possível angariar recursos para a cidade por parte do governo federal, elevar positivamente a imagem do presidente Ernesto Geisel e, por

visível o desequilíbrio entre os estados da Guanabara e o “antigo” estado do Rio de Janeiro. A Guanabara apresentava receita superior ao estado do Rio, e, por esse motivo, a

conseguinte, transformar a administração do Rio num exemplo a ser seguido pelos demais Estados da federação.

“fusão facilitaria a melhor alocação dos recursos públicos”. 16 13

11

Sobre as questões ligadas à política de patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro, especialmente no Governo de Chagas Freitas, ver Diniz, Eli. Voto e máquina política – patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 12 Ver Mota, Marly. & Carlos Eduardo Sarmento. (org.) A construção de um estado: a fusão em debate. Rio de Janeiro: FGV, 2001. (Faria Lima em entrevista cedida ao Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense do CPDOC – FGV, entre 7 de maio e 4 de setembro de 1997, no Rio de Janeiro).

Vale salientar que, em 1969, a Federação Industrial do Estado da Guanabara (Fiega) e o Centro Industrial do Rio de Janeiro (CIRJ) “elaboraram em conjunto um minucioso estudo, que terminava concluindo ser fundamental fundir o Rio de Janeiro e a Guanabara”. (Canosa, 1998, p. 48) 14 Após a fusão, passou a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro – FIRJAN. 15 Mota, Marly. & Carlos Eduardo Sarmento. (org.) A construção de um estado: a fusão em debate. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p. 60. (Faria Lima em entrevista cedida ao Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense do CPDOC – FGV, entre 7 de maio e 4 de setembro de 1997, no Rio de Janeiro). 16 Ver Evangelista, Helio de Araújo. A luta pela fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. A luta pela desfusão no atual estado do Rio de Janeiro. Revista geopaisagem (online). Ano 4, nº 8, Julho/Dezembro, 2005.


G N A R U S | 16 entidades de classe entenderam que a fusão fazia Além disso, a fusão fazia parte de uma

parte

de

um

projeto

de

desenvolvimento

estratégia do governo federal para acelerar o

econômico nacional, e não somente vislumbraram

crescimento do país através do projeto Brasil-

a recuperação das perdas provocadas pela

Potência.

transferência da capital federal para Brasília.

17

Esse projeto tinha como finalidade

viabilizar grandes obras: as Usinas Hidroelétricas de Tucuruí, Itaipu, a rodovia Transamazônica, a Usina Nuclear, entre outras. A criação do novo

Empresariado, fusão e conflito entre as forças políticas

estado do Rio de Janeiro se equilibraria em relação a São Paulo e ao estado do Mato Grosso do Sul,

A fusão não gerou consenso entre as forças

“além de planejar outros estados. Assim, a fusão

políticas que atuavam naquele momento. Com a

correspondeu

índole

mesma intensidade que a fusão foi debatida na

administrativo-institucional compatível ao projeto

primeira metade da década de 1970, após a

de Brasil-potência.” (Evangelista: 2005)

assinatura do decreto que transformava a

a

um

esforço

de

Por outro lado, a lógica desenvolvimentista do

Guanabara na nova capital do Estado do Rio de

governo militar ao longo dos anos 1970, impactou

Janeiro, se consolidariam as discussões sobre a

diretamente a política e a ação dos municípios. Em

desfusão.19

primeiro lugar, tentou definir estratégias que

A construção do novo Estado foi conturbada.

atendessem os interesses dos setores produtivos

Para a gestão estadual, foi necessário que

(como, por exemplo, energético, metalúrgico,

assumisse

petroquímico) e, em segundo lugar, procurou

provavelmente para evitar que ranços da política

investir

urbano,

local típicos do período anterior atrapalhassem o

setor

processo de fusão. E, por outro lado, a gestão

em

municipal foi entregue a um técnico formado nos

programas

“quadros do antigo Estado da Guanabara” e “que

habitacionais e de saneamento básico). De acordo

se manifestava sempre de forma dissimulada

com Oliveira (2008, p. 101),

contra a fusão”. (Oliveira, 2008, p. 101) Até o final

no

especialmente

desenvolvimento nas

automobilístico. construção

civil

demandas

do

disso,

investiu

Além

(promovendo

“(...) tais políticas, evidentemente, acabam por se chocar com ações e objetivos dos planos políticos locais, quando estes se voltam para interesses específicos ou são definidos apenas nas esferas de planejamento dos municípios”.

alguém

sem

passado

político,

da década de 1970, houve investimentos no Estado do Rio de Janeiro e a ideia de esvaziamento econômico

da

ex-Guanabara

foi

atenuada,

Por esse motivo, os empresários da Fiega18 e CIRJ apoiaram prontamente a integração entre a Guanabara e o Estado do Rio de Janeiro. Estas

17

Ver Pereira, Mauricio Broinizi. O Complexo IndustrialMilitar Brasileiro: O Projeto Brasil Potência e os Programas de Construção da Autonomia Tecnológica e Estratégica das Forças Armadas (1964-1994). Tese de doutorado. USP, 1996. 18 A FIEGA (Federação das Indústrias da Guanabara), no contexto da fusão, tornou-se FIRJAN (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro).

19

Os debates sobre a desfusão ocorreram a partir de 1976 e, em 2004, o mesmo tema ocupou as páginas dos jornais, conforme descrito por Evangelista (2005). No cenário político carioca dos anos 1990, César Maia foi um dos defensores da desfusão, como podemos notar na seguinte declaração: “... a tese da desfusão é muito mais simpática ao antigo Estado do Rio de Janeiro do que ao da Guanabara. De qualquer forma, acredito que, se levar à votação, dá todo mundo a favor, dois lados. Todos querem a desfusão. Por isso esse não é um debate interno nosso. Exige um movimento comum de forças políticas, para que a emenda constitucional venha apoiada por um consenso das forças políticas estaduais.” (Maia, 1998, p. 109)


G N A R U S | 17 especialmente

da

área

de

petróleo,

em

decorrência do II PND20. Em 1979, o segundo choque do petróleo e o

fim do milagre econômico mudaram o cenário

deveria

voltar

a

ser

Guanabara.

Somente

retomando seu status de Estado, seria possível

“restabelecer a identidade do Rio de Janeiro consigo próprio, seu passado e sua população...”21

econômico do país. De acordo com o estudo de

No início dos anos 1980, o processo de

Oliveira (2008, p. 108), o Estado do Rio de Janeiro

crescimento industrial para o Rio de Janeiro

perde em dois momentos: primeiro, deixou de ser

fracassou. O quadro que se delineou era

prioridade na linha de investimentos do Governo

constrangedor e, nas palavras de Lessa (2000, p.

Federal e, segundo, “por não ter expressividade na

351),

produção mineral”. A produção mineral tornou-se

“A expressão esvaziamento do Rio tornou-se lugar comum. Inspirou uma série de contabilidade das perdas. Além da clássica abulia agropecuária fluminense e das frustrações industrializantes, ganhou-se consciência do anacronismo do porto do Rio, superado por Santos e perdendo carga para Vitória. O café de Minas, tradicionalmente embarcado pelo Rio, já havia sido deslocado para Santos... O papel clássico de polo comercial do Rio havia sido estruturalmente superado.”

a prioridade do então ministro Delfim Neto e o Estado do Rio de Janeiro não estava entre as regiões a serem contempladas. A produção agrícola também não era forte no Estado, e o setor naval (que teve muita expressão na década de 1970) perdera espaço econômico ao fechar inúmeras empresas que faziam parte de sua cadeia produtiva. (Canosa, 1998, p. 194-195) Após o mandato de Faria Lima (1975-1979), Chagas Freitas assumiria o governo do Estado. O final dos anos 1970 foi conturbado. A mudança no cenário político nacional influenciou os rumos da política fluminense e, por conseguinte, a carioca. Cinco anos após a fusão, a perspectiva era de que, embora estivesse consolidada, sua conclusão não havia ocorrido. Segundo Motta (2004, p. 71), “os

novos governantes recém-empossados a nível federal e estadual – o presidente Figueiredo e o governador Chagas Freitas – tinham outros compromissos e outros projetos que nem sempre se afinavam com aqueles que haviam determinado a implementação da fusão”. Não gerando os ganhos necessários, a cidade do Rio de Janeiro

Em seguida, a partir de 1983, associada aos problemas de ordem econômica, a questão política foi outro agravante. O governo do Estado foi assumido por Leonel Brizola, abertamente contrário à presidência da República e com relacionamento conflituoso com algumas forças políticas e econômicas do Estado e da Capital carioca,

entre

as

quais

destacamos

o

empresariado. Duas décadas depois, a ideia de que a fusão foi essencial e apoiada pelo empresariado não encontrou discursos favoráveis por parte desses atores. Para os empresários do Rio de Janeiro, no início dos anos 1990, as discordâncias políticas em torno da fusão e suas consequências tiveram como resultado, para a cidade e o Estado, o sentimento

20

Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, implementado pelo Governo Militar de Ernesto Geisel, entre os anos de 1975-1979, tinha como finalidade estruturar a produção de insumos básicos, bens de capital, alimentos e energia. Com a proposta de reestruturar a economia brasileira após o “choque do petróleo”, teve sucesso até o final da década de 1970. A economia fluminense cresceu neste período, justamente com os investimentos federais em várias cidades, como Volta Redonda, Barra Mansa e Resende.

21

Mota, Marly. & Carlos Eduardo Sarmento. (org.) A construção de um estado: a fusão em debate. Rio de Janeiro: FGV, 2001. p. 193. (Israel Klabin em entrevista cedida ao Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense do CPDOC – FGV, no Rio de Janeiro). As questões políticas desse momento delicado da política carioca serão detalhadas posteriormente. Neste texto, procuramos apenas fazer alguns apontamentos.


G N A R U S | 18 de perda. Para Paulo Protásio,22 as forças políticas

1991 e o Planejamento Estratégico para a Cidade

e econômicas do Rio de Janeiro “não chegaram a

do Rio de Janeiro em 1993 e 1994, destacar-se-

se convencer de que a fusão era um processo de

iam na agenda do empresariado carioca.

soma de valores positivos, e ela acabou sendo contraproducente tanto para o estado da

Comentários finais

Guanabara quanto para o estado do Rio. Não houve uma integração, e a metrópole, que gera

O processo de transferência da capital

cerca de 70% da receita estadual, não se

federal para Brasília, conforme exposto neste

acostumou a pensar numa atuação em conjunto

artigo,

com o interior.” 23

reorganização das forças políticas, quais sejam,

deixaria

clara

a

dificuldade

de

Para Henrique David de Sanson, empresário e

gestão pública e empresariado, acerca dos rumos a

membro da ACRJ, a fusão não foi interessante para

serem percorridos pela cidade carioca. Os debates

a cidade do Rio de Janeiro. Na opinião do

em torno da fusão e desfusão, expostos

empresário, pensar a cidade carioca trazia certa

brevemente

radicalidade:

importância em pensar a reestruturação política e

“Devido aos séculos em que a cidade foi Capital, e o fato de grande número de seus moradores serem oriundos de outros estados, a mentalidade de nossos cidadãos ficou deformada e nós só nos interessamos pelos problemas gerais do país. Infelizmente temos de mudar, sermos mais bairristas. A começar pelos nossos representantes no Congresso. O Rio é viável e tem muitos campos de atividade onde pode crescer e se expandir em três áreas: agrícola, industrial e de serviços, mas, como afirmamos inicialmente, é necessário vontade política e um interesse do cidadão em que isto aconteça.”24

A

declaração

acima

denota

quanto

o

neste

trabalho,

denotaram

a

econômica para o Rio de Janeiro. Entretanto, o empresariado local encontraria dificuldades em pensar o local, uma vez que até 1960, os olhares destes atores estiveram voltados para o plano nacional. Rosane Cristina de Oliveira é Doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da Universidade do Grande Rio e professora adjunta das Faculdades Integradas Simonsen.

empresariado tenderia a mudar o pensamento sobre a cidade e a posição política e estratégica a ser tomada a partir do início da década de 1990. A

Referências Bibliográficas

promulgação da Constituição Municipal25, as discussões acerca do Plano Decenal da Cidade em 22

Paulo Protásio foi presidente da ACRJ entre 1988 e 1992. Entrevista de Paulo Protásio (ex-presidente da ACRJ) a Pedro Noleto Filho (Revista da Associação Comercial, ano 50, n. 1257, março de 1990, p. 10). 24 Sanson, Henrique David de. O Rio é viável, mas falta vontade política. Revista da Associação Comercial, ano 52, n. 1267, p. 40, abril de 1991. 25 A Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro foi promulgada no dia 5 de abril de 1990. A Lei reestabeleceu eleições diretas para a prefeitura da cidade e, nesse sentido, o empresariado participou dos debates e discussões sobre a plataforma das campanhas eleitorais para a gestão da cidade do Rio de Janeiro. Essas impressões serão devidamente abordadas na terceira unidade. 23

CANOSA, Lourdes P. Todas as Fatias e a Cereja

Também: Pensamento Político da FIRJAN em Quinze Anos de Crise. Tese de Doutorado –

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. DINIZ, Eli. Voto e máquina política – patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. EVANGELISTA, Helio de Araújo. A luta pela fusão

dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. A luta pela desfusão no atual estado do Rio de Janeiro. Revista geo-paisagem (online). Ano 4, nº 8, Julho/Dezembro, 2005.


G N A R U S | 19 FERREIRA, Marieta de Moraes; Dantas, Camila Guimarães. Os apaziguados anseios da Terra

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Mapa de 1922, quando ainda éramos distrito federal


G N A R U S | 20

Artigo

PRÁTICAS DE CURA NO RIO DE JANEIRO COLONIAL Por Germano Martins Vieira

“Perguntaram a um lacedemônio como vivera tanto tempo com saúde: ‘porque não conheço drogas’, respondeu. O imperador Adriano, ao morrer, repetia sem cessar que o excesso de médicos o matara. Um mau lutador fizera-se médico: ‘coragem’, disse-lhe Diógenes, ‘tens razão: vais agora poder derrubar todos os que te derrubaram outrora’. Como observava Nicocles, ‘têm eles a sorte de o sol iluminarlhes os êxitos e a terra esconder-lhes os erros.”

DEBRET, Jean-Baptiste. “Barbeiros ambulantes”.


G N A R U S | 21

A

ssim como bem ficou caracterizado na

os quais recorriam às suas boticas – que

epígrafe

do

funcionavam nos Colégios da Companhia –

humanista e filósofo francês Michel

para obterem os medicamentos dos quais

acima,

de

autoria

Eyquem de Montaigne1 (1533-1592) em sua

necessitavam

clássica obra Ensaios, este nutria pelos médicos

restabelecimento.

e pela medicina que era exercida em sua época

combinavam o trabalho catequético (saúde

uma aversão bastante desenvolvida e, como

espiritual) com a assistência material (saúde do

Hipócrates, acreditava plenamente no poder

corpo), aviando receitas, fazendo sangrias e até

de cura natural, isto é, aquele exercido pela

mesmo partejando.

própria natureza. Este fato serve para ilustrar como a medicina – que tentava alcançar o

status de Ciência – ainda não contava com uma boa aceitação por parte da população e, assim como acontecia na Europa, as práticas médicas que vinham sendo aplicadas no Brasil desde o século XVI – época de seu descobrimento e colonização – até a primeira metade do século XIX – quando da institucionalização do ensino médico e cirúrgico de nível superior – eram postas em prática por uma grande variedade de “profissionais” que também não reconheciam os médicos formados em Portugal como sendo os representantes oficiais da arte de curar. A medicina acadêmica nesta época era tão somente uma, dentre as várias formas de tratamento das enfermidades que existia para socorrer os doentes.

para

o Estes

seu

pronto

eclesiásticos

Alguns destes missionários que para cá vieram com a Companhia de Jesus já possuíam certo conhecimento de medicina, de cirurgia e também

de

medicamentos

que

eram

ministrados aos enfermos na Europa a essa época e, com o decorrer da experiência adquirida com os naturais da terra quanto ao conhecimento das ervas que compunham a flora brasileira, rica em sua diversidade, estes jesuítas foram capazes de preparar novos remédios e ainda aumentar a produção dos medicamentos que conheciam e que eram mais utilizados nos procedimentos de cura aplicados à população local. Devido à demora que havia na entrega dos remédios provenientes do Reino, os que eram produzidos nos Colégios da Companhia se transformaram na principal fonte de abastecimento das suas boticas, que

Inicialmente, as artes de curar na colônia

passaram a ser as responsáveis diretas pelo

foram executadas pelos padres jesuítas que

provimento dos estabelecimentos situados nas

vieram na comitiva de Martim Afonso de Souza

cidades, vilas e demais regiões vizinhas,

(1490/1500-1571), o qual deu início ao

chegando ao ponto até mesmo de serem

processo

América

exportados para Portugal2. Desta maneira,

portuguesa através do sistema de Capitanias

estes padres puderam fazer evoluir ainda mais

Hereditárias. Foram esses missionários da

as suas atividades de médicos e de cirurgiões,

de

povoamento

da

Companhia de Jesus que cuidaram das doenças que acometiam os primeiros colonos do Brasil, MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril S. A. Cultural e Industrial, 1972. Livro II, cap. 37, p. 353. 1

SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História Geral da Medicina Brasileira. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1991. v. 1, 2

pp. 127-128.


G N A R U S | 22 assim como a da arte de boticário3, a qual os

colônia, dando continuidade às obras que

proporcionou

bastante

faziam na Europa, com o passar do tempo estes

respeitados, tanto na colônia quanto na

missionários transformaram-se nos primeiros

Europa4.

físicos,

Muitos

tornarem-se

destes

missionários

que

aqui

chegaram nesta época eram, na verdade, cristãos-novos

ou

possuíam

ascendência

judaica que, devido à perseguição que se estabelecera na Península Ibérica no século XVI

cirurgiões

e

boticários

a

desempenharem as ditas artes nos hospitais da Santa Casa de Misericórdia do Brasil até o ano em que foram expulsos de todas as colônias portuguesas pelo Marquês de Pombal, em 1759.

a todos aqueles que não professavam a fé

Da mesma forma como vieram os primeiros

católica, infiltravam-se nas ordens religiosas

missionários da Companhia de Jesus, verifica-se

com o propósito de escaparem ao alcance da

também nesta ocasião – no decorrer do século

temível ação do Tribunal do Santo Ofício, pois

XVI até o início do século XIX – a chegada à

como afirmou Bella Herson, muitos destes

colônia de alguns profissionais “habilitados”, os

novos cristãos “tornaram-se católicos sinceros,

quais praticavam a arte da cura no Reino de

ou ganharam fama de o serem” .

Portugal e, entre eles, diversos cristãos-novos

5

O

exercício

da

medicina

era

muito

difundido nos mosteiros das diversas ordens religiosas europeias – baseada apenas nas habilidades resultantes de práticas cotidianas e não no seu estudo específico6 –, como por exemplo, a dos jesuítas e a dos beneditinos de Portugal, entre as outras existentes no Reino à época dos descobrimentos, e os padres das igrejas destas regiões tinham também como atribuição levar o atendimento médico e a distribuição de remédios à população pobre das imediações, assim como a prestação de auxílio aos viajantes que recorriam a eles7. Na

incógnitos que vieram exercer aqui no Brasil a medicina que lhes fora lá impedida de praticar regularmente. Eram eles os físicos8, possuidores de diploma que lhes conferiam o direito de exercerem a medicina em toda a sua plenitude, prescrevendo

medicamentos

e

aviando

receitas, e os cirurgiões, portadores de carta, a qual os habilitava a intervir em procedimentos operatórios e, entre outros, fazer sangrias, incisões, lançar ventosas e arrancar dentes. Observa-se ainda, em conjunto com estes agentes curadores acadêmicos, a presença e atuação, dentre outros, dos barbeiros que, além de cortarem cabelo e barba, também atuavam

3

como sangradores9, pelo simples fato terem

cotidiano: discursos e práticas médicas no Brasil setecentista. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP (mimeo), 1995, pp. 33-35. In: SOARES, Márcio de Sousa.

8

Nome pelo qual era conhecido aquele que hoje exerce a atividade de farmacêutico. 4 RIBEIRO, Márcia Moisés. Ciência e maravilhoso no

“Médicos e mezinheiros na Corte imperial: uma herança colonial”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Volume VIII (2): Rio de Janeiro, julho-agosto de 2001, pp. 407-438. 5 HERSON, Bella. Cristãos-novos e seus descendentes na medicina brasileira (1500-1850). São Paulo: Edusp, 1996, p. 47. 6 SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. Op. cit., pp. 331332. 7 Idem, ibidem, pp. 74-76.

Nome pelo qual eram conhecidos os médicos propriamente ditos nesta época, os chamados licenciados ou diplomados, por possuírem licenças ou diplomas que eram obtidos em cursos superiores nas principais universidades europeias, como Coimbra (Portugal), Edimburgo (Escócia), Montpellier (França) e Salamanca (Espanha). 9 Nome pelo qual eram conhecidos aqueles que exerciam a atividade de sangria, procedimento terapêutico muito utilizado no período colonial e que se estendeu até o início do século XX, consistindo em fazer cortes em locais


G N A R U S | 23 habilidades em manusear objetos cortantes,

sangradores,

como a tesoura e a navalha, aventurando-se,

curandeiros, feiticeiros, aprendizes e curiosos

assim, a exercer os mesmos ofícios dos

em geral, em sua maioria escravos ou pretos

cirurgiões licenciados, ou seja, competindo

forros. E os que por ventura existissem nestas

diretamente com os estes.

regiões interioranas não se demoravam por

A população da colônia, mesmo no século XVIII, ainda não podia contar com um atendimento médico, de formação acadêmica, que se apresentasse de forma satisfatória, pois além da quantidade reduzida de físicos existentes – característica marcante em todo o desenvolvimento colonial – estes esbarravam no impedimento imposto pela Igreja, a qual não

permitia

que

as

ações

médicas

penetrassem no corpo humano, pois este era visto como um bem divino, uma dádiva de Deus e por isso, intocável.

Sendo assim, cabia

somente a Deus intervir ou não para que o enfermo voltasse a recuperar o seu antigo vigor. O corpo era tido como sagrado e por isso era proibida a dissecação de humanos. Desta forma, os estudos de Anatomia nas universidades portuguesas baseavam-se apenas na anatomia interna dos animais e nos textos galênicos. Além disso, a qualidade da atuação destes práticos mostrava-se de forma bastante precária, o que colocava sob suspeita a sua

barbeiros,

algebristas,10

muito tempo, pois era comum se instalarem em vilas

onde

havia

maior

contingente

populacional11 – como a Capitania do Rio de Janeiro – e, consequentemente, as mais promissoras no que se refere ao retorno econômico desejado. Mas nem mesmo estes habitantes do litoral do Rio de Janeiro possuíam facilidades no acesso aos médicos e aos medicamentos que chegavam ao porto12, os quais geralmente se encontravam em más condições

de

insuficientes

uso

e

devido

à

em

quantidades

deterioração

que

acontecia durante o transcurso das viagens marítimas.

Ainda

assim,

quando

estes

medicamentos chegavam à colônia, mesmo não apresentando

as

qualidades

mínimas

necessárias para serem consumidos, estes eram comercializados a preços tão elevados que a população mais carente não podia ter acesso a eles, sendo por isso, motivo de reclamações contínuas por parte do povo e ainda das próprias autoridades coloniais13.

qualificação profissional perante os seus

Em razão das diversas denúncias destas

pacientes. Os habitantes que se encontravam

autoridades enviadas a Portugal – a respeito da

em regiões mais distantes da área litorânea

falta de profissionais da saúde, do estado com

possuíam uma situação ainda mais difícil por

que os medicamentos chegavam aos portos do

não

Brasil e do seu armazenamento, além dos altos

terem

a

presença de

profissionais

habilitados para os auxiliarem, fazendo com que

as

famílias

que

necessitassem

de

tratamento para as suas mazelas recorressem a diversos “entendidos” na prática da cura:

estratégicos do corpo para retirar o excesso de sangue através de ventosas.

10

Nome pelo qual eram conhecidos aqueles que exerciam a atividade de consertar ossos quebrados ou deslocados. Os antepassados dos atuais ortopedistas. 11 SANTOS FILHO. Op. cit., pp. 63-64. 12 SANTOS FILHO. Idem, ibidem. pp. 59-64. 13 RIBEIRO, Márcia Moisés. Ciência e maravilhoso no

cotidiano: discursos e práticas médicas no Brasil setecentista. Dissertação de mestrado. São Paulo, USP (mimeo), 1995, pp. 11-20. In: SOARES, Márcio de Sousa. Op. cit., pp. 407-438.


G N A R U S | 24 preços que se pagava para obtê-los – foi que,

ministrar o devido medicamento necessário ao

através da Ordem Régia de 1744, que ficou

combate de determinado mal. Para que

estabelecido

regulamentos

pudesse atingir o fim desejado – a cura –,

concernentes à medicina vigentes no Reino de

Hipócrates entendia que deveria o médico

Portugal – no que diz respeito à inspeção das

possuir ainda uma boa organização e elaborar

boticas,

seus

à

que

os

qualidade

dos

medicamentos

trabalhos

médicos de

forma

bem

comercializados e à regulamentação dos

sistematizada para que pudesse alcançar

preços ao consumidor, entre outras – deveriam

resultados eficazes. Ou seja, a doutrina

também ser seguidos na colônia de agora em

hipocrática estava baseada mais na observação

diante, com o firme propósito da Coroa

metódica do enfermo para a identificação dos

portuguesa de tentar ao máximo evitar e

sintomas apresentados e na forma de aplicação

reprimir

do seu tratamento do que no conhecimento da

os

excessos

cometidos

pelos

droguistas14, afim de conter também a falta de

causa

escrúpulos dos boticários15 que visavam mais o

explicitamente: “não havia doenças, mas

lucro do que a saúde pública.

doentes”17.

da

sua

enfermidade.

Mais

A preocupação com a saúde dos seres

Grosso modo, a teoria humoral hipocrática

humanos data de longo tempo. Remontam à

dizia que a união entre os elementos ar, terra,

época dos grandes filósofos, dos quais se

água e fogo resultariam na formação de tudo o

sobressai Hipócrates de Cós (460-375/351 a.C.)

que existe, inclusive na formação do corpo

– conhecido entre nós hodiernamente como

humano, onde cada uma dessas substâncias

sendo o “Pai da Medicina” –, o qual entendia

simples continha propriedades específicas, isto

que a natureza era a base de todo o poder

é: ao ar corresponderiam a umidade e o calor; à

curativo dos males que afligiam o homem.

terra, a friagem e a secura; à água, a friagem e a

Sendo assim, aos médicos caberia apenas o

umidade e ao fogo, o calor e a secura. Dessa

auxílio à recuperação da saúde do doente,

associação originariam os elementos chamados

devendo este permanecer à margem da

secundários: os humores, que, assim como os

atuação da physis16 (natureza). Aos médicos era

elementos primários, também seriam em

atribuída

das

número de quatro. Seriam eles o sangue

manifestações apresentadas pela evolução das

(quente e úmido), a fleuma (fria e úmida), a bile

doenças no paciente para que fosse possível,

amarela (quente e seca) e a bile negra (fria e

posteriormente, indicar a melhor maneira de

seca). Assim sendo, a estabilidade entre esses

apenas

a

interpretação

elementos designava que o corpo estava são 14

Nome pelo qual eram conhecidas as pessoas que exerciam o comércio de drogas, as quais eram vendidas aos donos de boticas para a produção de medicamentos. 15 SANTOS FILHO. Op. cit., p. 339. 16 “O conceito de Physis compreendia a totalidade de tudo aquilo que é. Dela provinha tudo – Sol, Terra, astros, árvores, homens, animais e os próprios deuses”. Apud CZERESNIA, D. “Constituição epidêmica: velho e novo nas teorias e práticas da epidemiologia”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Vol. VIII (2). Rio de Janeiro: julhoagosto de 2001, pp. 341-356.

(eucrasia18) e, se houvesse uma alteração nesse

17

ANDRADE LIMA, Tânia. “Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Volume II (3), Rio de Janeiro, novembro de 1995-fevereiro de 1996, pp. 4496. 18 Bom temperamento; boa compleição. Isto é: boa constituição do corpo; boa disposição de ânimo.


G N A R U S | 25 quadro de equilíbrio (discrasia19), o corpo

Bernardo

apresentaria os sintomas causadores das

temperamento

enfermidades20. Isso fica bem entendido em um

associação

trecho explicativo do qual tratava em sua

supersticiosos, como era muito comum naquela

época o filósofo e médico grego Empédocles

época, atribuindo à doença um caráter

(495/490 - 435/430 a.C.) sobre a teoria dos

religioso.

quatro elementos:

Pereira

ao

explicar

melancólico

direta

com

faz

os

esse uma

aspectos

século II, a partir da teoria humoral de

“Por isto chamam a melancolia de banho do Demônio, e por muitas razões. Pela rebeldia, renitência e erradicação de tal humor que por frio e seco é inobediente aos remédios e constitui doenças crônicas e dioturnas (...) se encobre aqui a astúcia e a maldade do Demônio e seus sequazes, e se ocultam as qualidades maléficas com os sinais e sintomas que se equivocam com os originados de causa natural, e nestes termos o doente, o médico e assistentes ficam duvidosos.”24

Hipócrátes, acrescentou a esta a sua doutrina

Esses humores teriam sua origem nos

“Quando (os elementos) se compõem e chegam ao éter sob a forma de homem, de animais selvagens, de árvores ou de pássaros, então se diz terem sido gerados; e quando se separam, fala-se em morte dolorosa (...)”21

Galeno de Pérgamo (131-200 d.C.), já no

temperamentos, a saber: o

alimentos ingeridos que, sob a ação do calor,

sanguíneo, o colérico, o fleumático e o

produziriam os nutrientes necessários ao

melancólico. Mary Del Priore, através da sua

equilíbrio orgânico. Assim sendo, a maioria das

“Viagem

interior

doenças eram entendidas como “excessos” de

feminino”22, nos fornece um interessante

um ou mais destes humores, que estariam

exemplo atribuído ao humor melancólico – o

subjugados à ação de quatro forças naturais, ou

qual era diagnosticado pelos tratadistas23 da

seja, a força da ação atrativa, da retentiva, da

época “como uma alucinação sem febre,

alterativa e da expulsiva. Desta forma, para

acompanhada de medo e tristeza”. Diz Del

manter

Priore que Galeno teria ainda associado estas

consequentemente, a saúde, os agentes da cura

sensibilidades diretamente “à cor negra,

deveriam atuar diretamente – e somente – na

resultante dos vapores que exalavam do sangue

forma expulsiva, onde esta se apresentava

menstrual, causador de horríveis e espantosas

como a única possibilidade “natural” para

alucinações”. Pode-se observar mais adiante no

aliviar os excessos que prejudicavam o ser

relato da autora que o médico setecentista

humano e, para isso, administravam purgantes,

dos quatro

19

pelo

imaginário

do

Destemperança; alteração da composição e reações dos humores e dos tecidos. 20 ANDRADE LIMA. Idem, ibidem. 21 Fragmento 9. Apud BORNHEIM, Gerd (org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Ed. Cultrix, 1997, p. 69. In CZERESNIA, D. “Constituição epidêmica: velho e novo nas teorias e práticas da epidemiologia”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Volume VIII (2), Rio de Janeiro: julho-agosto de 2001, pp. 341-356. 22 DEL PRIORE, Mary. “Viagem pelo imaginário do interior feminino”. História, Revista Brasileira de História. Volume XIX (37), São Paulo: setembro de 1999, pp. 179-194. 23 Pessoas que escrevem tratados sobre matéria em que é versada; sobre obras que tratam de uma arte, de uma ciência.

o

equilíbrio

do

corpo

e,

vomitivos, evacuantes e sangrias25. As sangrias se apresentavam como o único meio de intervenção médica permitido pela Igreja para a eliminação dos excessos de humores que prejudicavam o equilíbrio e a harmonia do corpo humano, tornando-se uma

24 25

DEL PRIORE. Idem, ibidem. ANDRADE LIMA, Tânia. Op. cit., pp. 44-96.


G N A R U S | 26 prática muito difundida na Europa e, trazida

um barbeiro que se tornara bastante conhecido

para o Brasil, esta também aqui se proliferou.

em Belo Horizonte por volta de 1900, o qual

Como se pode notar em uma das diversas

criava sanguessugas para alugar aos médicos e

correspondências escritas por José de Anchieta

aos seus “clientes” particulares:

e enviadas aos seus pares em Portugal, a prática

“As nojentas sanguessugas (...). Eram colocadas nos doentes, na parte onde deveria ser tirado o sangue. Agarravam-se à pele, geralmente do braço, pernas, nádegas, ou costas. Chupavam sangue e se entumeciam (...). Se fosse necessário, punham-se outras no mesmo local, para tirar mais sangue.”27

da sangria tornou-se um ato bastante vulgar na colônia desde os seus primórdios: “las sangrias son aquy muy necessarias, porque es mui subiecta esta tierra a prioris, maxime em los naturales della, quando el sol torna a declinar hazia el norte, que em el mês de Deziembre y dally por dellante; y sino acudiéssimo com sangrias no ay dubda sino perecian muchos.”26

DEBRET, Jean-Baptiste. “Loja de barbeiros”.

E assim como afirmou Betânia Gonçalves

Desde a colonização até o início do século

Figueiredo, o exercício da sangria atravessou os

XX, as práticas médicas estiveram divididas

séculos coloniais e se estendeu até o início do

entre dois caminhos bem distintos, isto é, a

século XX. Isso é demonstrado quando ela faz

utilização dos princípios idealizados por

referência a certo senhor Moura, que teria sido

Hipócrates – os quais estavam sedimentados na FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. “Os barbeiros e os cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Volume VI (2), 27

LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Vol. III. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, p. 454. 26

julho-outubro de 1999, pp. 277-291.


G N A R U S | 27 espera e observação dos sintomas apresentados

Janeiro e, no que diz respeito àqueles práticos

pelo paciente para, posteriormente, encontrar

que existiam na região, reclamações quanto a

a melhor forma de aplicar o medicamento

sua falta de conhecimentos e habilidades no

necessário – ou a utilização das teorias de

tratamento dos doentes e ainda quanto às

Galeno – as quais se baseavam na força natural

questões relacionadas aos medicamentos, ou

de extração dos humores que se encontravam

seja, condições de uso e valores exorbitantes.

em excesso – onde ele defendia e prescrevia a

As queixas se tornaram tantas que o próprio

administração de purgantes e de sangrias para

governador José Luiz de Castro, o Vice-Rei

o restabelecimento da saúde do corpo.

Conde de Resende (1790-1801), chegou a

Durante o período colonial brasileiro, as ações fiscalizadoras das atividades médicas e cirúrgicas eram exercidas pelos comissários do Físico-mor e do Cirurgião-mor dos Exércitos do Reino que, por sua vez, subdelegavam os poderes pelos quais eram investidos a outros agentes, com o firme propósito de aumentar o poder de fiscalização da Fisicatura-mor e, assim, garantir o cumprimento das leis impostas pelo Regimento do Físico-mór28,29. Contudo, havia

por

parte

da

população

e

ponto de, em 1796, encaminhá-las por carta30 em forma de denúncia à rainha de Portugal, D. Maria I (1777-1816), confirmando o visível despreparo dos praticantes da cura, sobretudo na

“desqualificação”

apresentada

pelos

boticários, na tentativa de que fossem tomadas providências urgentes por parte da Coroa quanto à melhoria no atendimento da população em relação às questões ligadas à saúde pública no Rio de Janeiro.

da

Acolhendo

as

diversas

denúncias

administração colonial, diversas queixas sobre

provenientes da sua colônia americana e

os práticos da cura. Dentre tantos outros

atendendo ao seu Conselho de Estado dos

queixumes, os principais diziam respeito ao

assuntos de saúde pública do Reino, Estados e

insignificante contingente de profissionais

Domínios Ultramarinos, D. Maria I acha por

habilitados na arte de curar atuantes no Rio de

bem extinguir a Fisicatura-mor, por entender que o dito órgão não estava conseguindo

28

Estatuto; norma; lei; regulamento. Regimento que serve de lei, que devem observar os comissários delegados do físico-mor do Reino nos Estados do Brasil. Ministério do Império. Fisicatura-mor. Códice 314. Arquivo nacional (AN). 29

“Proposto pelo dr. Cipriano de Pina Pestana, físico-mor do Reino nos Estados do Brasil, regulando as atividades de seus comissários, delegados e oficiais. Sob a condição de médicos aprovados pela Universidade de Coimbra, os comissários deveriam realizar inspeções periódicas para examinar a regularidade das boticas existentes em seus distritos e seus responsáveis. A eles também caberia a averiguação e aplicação de multas no caso de infrações ou irregularidades. Ao abordar estas e outras questões relacionadas à fiscalização da produção e da circulação de medicamentos no Brasil colônia, este documento permite acompanhar o esforço do governo em exercer um maior controle sobre a atividade farmacêutica”. Disponível em http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/c gilua.exe/sys/start.htm?infoid=705&sid=93. Acesso em 15 de outubro de 2013.

produzir os efeitos desejados pelas medidas que foram adotadas para o seu funcionamento, sendo conivente com aqueles que não tinham

“procedido os exames e licenças necessários”, permitindo a sua livre atuação. Sendo assim, pela Lei de 17 de junho de 1782, dada no Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, em Lisboa, a rainha revoga todas as ordens anteriores, fazendo com que seja substituída a Fisicatura-

30

Correspondência do Conde de Resende com a Corte de Portugal, 1796. Lata 53, maço 6. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Apud SOARES, Márcio de Sousa. Op. cit., pp. 407-438.


G N A R U S | 28 inconvenientes, e funestos accontecimentos, com que ate agora, com grande desprazer Meu, tem sido perturbada a ordem, com que sempre se devia proceder em assumpto tão sério, e de tanta ponderação, Mando, Ordeno e é Minha Vontade que na Minha Côrte e Cidade de Lisboa, seja logo criada, e erigida, como por esta Sou servida crear e erigir huma Junta perpetua, que será denominada a Junta do Proto-medicato (...)”31

mor do Reino pela Real Junta do ProtoMedicato, promovendo a destituição das funções de direção da instituição as quais estavam personalizadas nas figuras do Físicomor e do Cirurgião-mor dos Exércitos do Reino, objetivando “o bem commum” daqueles habitantes do Brasil. Dizia a Lei:

DEBRET, Jean-Baptiste. “Cirurgião negro colocando ventosa”.

“(..) Faço saber aos que esta Lei virem que sendo-me presentes os muitos estragos, que com irreparável prejuízo da vida dos meus vassallos tem resultado do pernicioso abuso, e extrema facilidade com que muitas pessoas faltas de principios, e conhecimentos necessários se animam a exercitar a Faculdade de Medicina e Arte de Cirurgia, e as frequentes, e lastimosas desordens praticadas nas Boticas destes Reinos e dos Meus Domínios Ultramarinos, em razão de que muitos Boticários ignorantes se empregão a este exercicio, sem terem procedido aos exames e licenças necessários para poderem usar da sua arte. E porquanto este objecto he o mais importante, e o mais essencial que devem occupar a Minha Real Consideração, pois nelle se interessa o bem commum, e a conservação dos Meus Vassalos, e querendo obviar aos

Através do Decreto de D. Maria I estes cargos agora passariam a ser ocupados por uma Junta

constituída

por

sete

deputados,

composto por médicos ou cirurgiões – escolhidos especialmente para fazerem parte do

Conselho

ou

Tribunal

Superior

de

Salubridade Pública –, os quais exerceriam

31

Lei de 17 de junho de 1782. Criando a Junta do ProtoMedicato, e extinguindo o Lugar de Físico Mor, e de Cirurgião Mor. Legislação de 1775 a 1790. Ius Lusitane. Fontes Históricas de Direito Português. Disponível em http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte =109&id_obra=73. Acesso em 14 de outubro de 2013.


G N A R U S | 29 estes cargos durante um período de três anos.

diretamente o sistema educacional português

A

em todos os seus níveis, desde as primeiras

estes

deputados

caberiam

agora

a

fiscalização das práticas médicas e cirúrgicas antes atribuídas ao Físico-mor e ao Cirurgiãomor, além dos exames e da expedição de cartas e de licenciamentos daquelas pessoas que porventura quisessem exercer as atividades de cura, tanto no Reino quanto nas colônias portuguesas e domínios ultramarinos. Desta forma, objetivava-se uma maior centralização por parte da Coroa portuguesa com relação às questões de saúde pública na colônia32. No entanto, não se verificou uma melhora nas questões de saúde da população, pois os funcionários desta Junta somente exerceram as funções

dos

antigos

representantes

da

Fisicatura-mor que por eles foram substituídos, apenas impondo uma maior rigidez fiscal. As

desqualificações

Pombal assimilou diversas ideias iluministas durante a sua administração, mas manteve a concentração do poder nas mãos do monarca absolutista, o que lhe valeu o título de “déspota esclarecido”, conservando as “luzes” no limite em que não conflitassem com os interesses do Estado. O Marquês entendia que o atual ensino não era capaz de preparar suficientemente os líderes que deveriam assumir os postos de comando do Estado e domínios ultramarinos portugueses. Segundo sua concepção, os jesuítas eram os responsáveis diretos pelo atraso educacional porque passava o povo português. Sendo assim, com uma medida drástica, expulsa os jesuítas de Portugal e dos

profissionais da medicina não eram apontadas

seus domínios. Consequentemente, os seus

somente pelos colonos brasileiros. Havia

colégios e seminários são fechados, seus bens

também, em Portugal, um descontentamento

confiscados e seus métodos educacionais

muito grande quanto à formação e atuação

abolidos em prol da modernização de seus

destes

Quando

conteúdos e na tentativa de levar Portugal a

Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de

atingir o mesmo patamar das nações mais

Oeiras e futuro Marquês de Pombal (1699-

desenvolvidas da época, como atesta o Alvará

1782),

de Regulamento de Estudos Menores:

foi

da

nomeado

inaptidões

Representante do governo ilustrado luso,

dos

profissionais

e

letras até o ensino universitário.

saúde.

como

ministro

da

Secretaria do Exterior e da Guerra (1750-1777), pelo novo rei de Portugal que subiu ao trono em 1750, D. José I, O Reformador (1714-1777), empreendeu uma série de reformas que não ficaram restritas apenas no âmbito econômico ou administrativo do Estado e do império português, mas em diversas outras áreas, como a

científica,

por

exemplo,

que

atingiu

ABREU, Eduardo de. “A Physicatura Mor e o Cirurgião Mor dos Exércitos do Reino de Portugal e Algarve e dos Estados do Brasil”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Tomo I. Imprensa Nacional, 32

1900, pp. 189-190.

“Alvará por que V. Majestade há por bem reparar os Estudos das Línguas Latina, Grega e Hebraica, e da Arte da Retórica, da ruína a que estavam reduzidos; e restituir-lhes aquele antecedente lustre, que fez os Portugueses tão conhecidos na República das Letras, antes que os Religiosos Jesuítas se intrometessem a ensiná-los: Abolindo inteiramente as Classes, e Escolas dos mesmos Religiosos: Estabelecendo o ensino das Aulas, e estudos das Letras Humanas uma geral reforma, mediante a qual se restitua nestes Reinos, e todos os seus domínios o Método antigo, reduzido aos termos símplices e claros, e de maior facilidade, que


G N A R U S | 30 atualmente se pratica pelas Nações polidas da Europa: Tudo na forma acima declarada. 33

(...) innumeravel copia de Cirurgiões, de Boticários, de Barbeiros, de Charlatões, de Segredistas, de Mezinheiros, de Impostores, e até de mulheres Curandeiras, que pelas Villas, pelos Lugares, e Campos se mettiam a praticar a Medicina, e conseguiam a fortuna de serem attendidos, e chamados, até que a triste experiencia de muitas mortes, de que eram réos, os fizesse ser desprezados?”35

Com o nítido intuito de desvalorizar os métodos atrasados utilizados na pedagogia adotada pela Companhia de Jesus em todos os seus níveis, sobretudo os “estudos maiores” – ou universitários – e para justificar a reforma

O quadro existente dos estudos superiores

educacional, foi elaborado pela Junta da

de Medicina em Portugal, ministrado pela

Providência Literária e pelo próprio Marquês

Universidade de Coimbra, que foi “pintado”

de Pombal o Compêndio Histórico do Estado

pelo Compêndio era a base na qual os

da Universidade de Coimbra34, em 1771. O

profissionais da medicina, com diplomas

Compêndio, na “Parte II. Capitulo III” –

acadêmicos lá formados, se apoiaram para

direcionado aos estudos de Medicina – revela a

exercerem sua profissão no Brasil até princípios

precariedade da formação desses alunos e o

do século XIX. Uma mudança significativa nos

perigo que representavam para a sociedade

estudos superiores do Reino só foi sentida

esses futuros médicos, que não conseguiam

alguns anos após a Reforma Pombalina, que

reunir em si a mínima competência para

mudou os estatutos das universidades lusas. No

exercer a sua profissão porque

Brasil, com a transferência da corte imperial

“desprezavam a Anatomia, sem advertirem a necessidade, e utilidade deste conhecimento (...) que faziam consistir toda a sua prática em purgar, sangrar, &c. sem saberem as occasiões opportunas, em que deveriam applicar estes remédios (...) que carregavam as Receitas de infinitos ingredientes, sem formarem delles o verdadeiro conceito. Em fim por não sermos mais extensos, desprezavam a observação, e a experiência; e continuamente se oppunham a todo aquelle, que pretendia seguir esta estrada, e por ella vir ao conhecimento das enfermidades, e dos seus legítimos remédios”.

para os trópicos, devido à sanha expansionista de Napoleão Bonaparte que impôs o chamado Bloqueio Continental contra os interesses econômicos da Inglaterra na Europa, houve uma

maior

brasileiros

dificuldade

terem

acesso

dos à

estudantes universidade

francesa de Montpellier e de Coimbra, que estava sob a ocupação militar do general Junot. D. João, atendendo ao pedido do dr. José Correia Picanço, cria a Escola de Cirurgia da Bahia e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. Os estudantes que

33

Alvará de 28 de junho de 1759. Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/crono/acervo/tx12. html. Acesso em 13 de outubro de 2013;

http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte =105&id_obra=73&pagina=95. Acesso em 13 de outubro de 2013.

COMPÊNDIO histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771). Coimbra: Por Ordem da Universidade, 34

1972. Disponível em http://books.google.com.br/books?id=2IbpAAAAMAAJ& printsec=frontcover&hl=ptBR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=snippet&q=A% 20Aula%20de%20Medicina&f=false. Acesso em 13 de outubro de 2013.

futuramente se graduariam físicos, cirurgiões e boticários não mais precisariam formar-se no exterior. Mas isso é outra história... Germano Martins Vieira é Graduado em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Gama Filho e Pós-graduando em História do Rio de Janeiro nas Faculdades Integradas Simonsen.

35

Compêndio... Idem, pp. 342-343.


G N A R U S | 31 BIBLIOGRAFIA ABREU, Eduardo de. “A Physicatura Mor e o Cirurgião Mor dos Exércitos do Reino de Portugal e Algarve e dos Estados do Brasil”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Tomo I. Imprensa Nacional, 1900. ANDRADE LIMA, Tânia. “Humores e odores: ordem corporal e ordem social no rio de Janeiro, século XIX”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Volume II (3). Rio de Janeiro: novembro de 1995 – fevereiro de 1996.

COMPÊNDIO histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771). Coimbra: Por Ordem da Universidade, 1972.

CZERESNIA, D. “Constituição epidêmica: velho e novo nas teorias e práticas da epidemiologia”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Volume VIII (2). Rio de Janeiro: julho-agosto de 2001. DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Edusp, 1978. Volume 1. DEL PRIORE, Mary. “Viagem pelo imaginário do interior feminino”. Revista Brasileira de

Para saber mais:

História. Volume XIX (37). São Paulo: setembro de 1999.

FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. “Os barbeiros e os cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX”. História, Ciência, Saúde – Manguinhos. Volume VI (2). Rio de Janeiro: julho-outubro de 1999. Bella. Cristãos-novos e seus descendentes na medicina brasileira (1500-1850). São Paulo: Edusp, 1996.

HERSON,

LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Volume III. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954. MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril S. A. Cultural e Industrial, 1972, Livro 2. SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História Geral da Medicina Brasileira. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1991, 2 volumes. SOARES, Márcio de Sousa. “Médicos e mezinheiros na Corte Imperial: uma herança colonial”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Volume VIII (2). Rio de Janeiro: julho-agosto de 2001.


G N A R U S | 32

Artigo

ADMINISTRAR A AMÉRICA PORTUGUESA, TRAJETÓRIA E PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS: PROBLEMATIZANDO A HISTÓRIA DA ADMINISTRAÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA

Felipe Castanho Ribeiro

“A tentativa de compreender a totalidade da história colonial como a história de uma relação monótona que submete colonizados a colonizadores é, vistas as coisas assim, uma simplificação grosseira, pouco aceitável pelas atuais regras de arte da história.” (HESPANHA In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. 2010, p. 75)

A

história da América portuguesa desde o século XIX, quando da emancipação do Brasil de Portugal, tem recebido

estudos que procuram entender como se deu a administração na ex colônia, podemos notar que tal temática foi responsável por suscitar inúmeros debates e teorias, decorrentes da complexidade que envolve o tema, basta dizermos que no exato momento em que escrevemos este trabalho, ou seja 191 anos após a independência do Brasil, ainda são elaboradas, discutidas e debatidas teorias diversas sobre o tema. Contudo é interessante notar que durante este trajeto historiografico, até os dias atuais, algumas explicações se destacaram de tal modo que se tornaram referências e foram consideradas responsáveis, em algum momento deste longo caminho, por responder os dilemas que se apresentavam diante do tema. É mediante deste quadro que


G N A R U S | 33 pretendemos discorrer sobre as principais

Estados-Nações3 europeus, era então um

teorias e que ganharam eco entre os

dilema

historiadores, analisando e inserindo cada uma

historiadores do período e que foram buscar as

dessas análises no seu contexto particular, para

respostas num passado não muito distante,

está tarefa tenhamos ciência de que não se

dessa

trata de nos posicionarmos como juízes e

monarquias em formação dos séculos XV e XVI

decidirmos o que é bom ou ruim, mas sim como

se tornaram inevitáveis de modo que:

propunha a escola dos annales de realizarmos

que

forma

se

as

apresentava

comparações

para

os

com

as

“[...] a Coroa é a forma larvar da soberania estatal; as assembleias de estado, a antecipação dos parlamentos; as comunas, os antecedentes da administração periférica delegada; os senhorios, o eterno elemento egoísta que o Estado deve dominar e subordinar ao interesse geral.”4

uma problematização da história, nesse caso da historiografia sobre um determinado tema. Reflexão e contextualização historiográfica Como dito anteriormente desde o século XIX à administração colonial é tema abordado

A principal obra que convergiria para está

pela historiografia, exemplo disso é o clássico

linha de pensamento no Brasil é de Raimundo

História Geral do Brasil (1854-57) de Francisco

Faoro em Os Donos do Poder (1975), para este

Adolfo de Varnhagen. Contudo as obras que

a administração da América Portuguesa possuía

chegaram a abordar o tema no século XIX

um

acabaram por refletir o movimento positivista,

conseguindo inclusive se sobrepor a dinâmica

tão em voga na intelectualidade da época,

local e eliminando com pleno sucesso as

digna de uma verdadeira história rankeana os

inúmeras

trabalhos do período enfatizavam a “simples”

domínios ultramarinos. Faoro descreve um

narração dos fatos com base em fontes

estado português forte para a época moderna

primárias, dito de outra forma o que tínhamos

por basear boa parte da sua obra num

era uma historia restrita a datação de fatos.1

aracabouço teórico inspirado nos escritos de

Não obstante são oriundos dos oitocentos

caráter

extremamente

adversidades

centralizador,

encontradas

nos

Max Weber, podemos notar ainda que para

modo

além da questão metodológica é possível notar

permanecem até os tempos atuais2, dentre

a influência dos acontecimentos nos diferentes

estes podemos destacar as conceituações de

períodos em que redige o seu trabalho,

regimes absolutistas para as monarquias

tornando relevante notar as diferenças das duas

europeias da modernidade e a respectiva

primeiras versões da sua obra, a primeira

centralização dos estados nacionais. Para

redigida em um período democrático5, e a

compreendermos a construção desta imagem

segunda e ampliada versão, que duplica de

devemos nos recordar que no século XIX estava

tamanho, é escrita em 1975 durante a ditadura

alguns

paradigmas

que

grosso

ocorrendo o processo de afirmação dos 3 1

VAINFAS, 2001, p. 15 Se não na academia no senso comum, perpetuada pelos livros didáticos desatualizados. 2

Para mais informações sobre vide HOBSBAWM, Eric J.

Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Saraiva de Bolso, 2011. 4 HESPANHA, 1994, p.22 5Durante o governo de Juscelino Kubitschek.


G N A R U S | 34 brasileira,

regime

governamental

romano, podemos encontrar tais evidências no

representativo de um estado centralizado e

campo literário de caráter romântico e

vigilante.6

nacionalista,

Retornando

a

história

positivista,

se

intencional

que e

exaltavam

programada

a

natureza

da

expansão

levarmos em consideração que os documentos

marítima portuguesa. É com este sentido que

traduzem a realidade, uma administração

podemos podemos identificar ideias como o

centralizada seria de fato a explicação mais

Plano das Índias e da Escola de Sagres. Sendo

plausível, posto que como nota a historiadora

assim, seria digno, além de enobrecedor para

Maria Fernanda Bicalho bastaria observar as

Portugal a glamorosa ideia de uma empreitada

consultas feitas junto ao Conselho Ultramarino

imperial, aonde o poder da coroa, logo do

para se convencer de que “deliberavam sobre

estado, seria de caráter “absolutista” com uma

cada minúcia da vida econômica, política e

administração centralizada na metrópole, e

militar das sociedades coloniais, chegando

admitir hipótese diferente desta poderia

mesmo a ordenar os mais

“diminuir”

insignificantes detalhes do

portugueses com relação

cotidiano

ao seu passado. Por outro

de

habitantes”

seus

.7

lado,

Neste

primeiro

o

para

coloniais,

brio

dos

as

elites

nada

mais

momento, outros fatores de

legitimador

variadas naturezas também

movimento

iriam

a

independência do que a

historiografia tangente a

noção de que esta foi

administração,

conquistada através de

influenciar

sobretudo

para

um de

elementos ideológicos que

tempestuoso

atingiram

tanto

contra um inimigo tenaz e

brasileiros

poderoso, neste caso de

historiadores quanto

portugueses,

conflito

proporções

imperiais

sustentando desta forma

que

conseguinte

um

libertaria

modelo

político

por

finalmente

e a

administrativo maniqueísta,

colônia da metrópole que

em

por tanto tempo subjugou

que

colonizador

e

colonizados estavam sempre em posições

e furtou as suas riquezas. Após a tão sonhada

opostas. Em Portugal por exemplo encontramos

independência adotaríamos um “inimigo” em

manifestações distintas que relatam com

comum, visando uma unidade nacional, o que

orgulho a ideia de um império marítimo, que

dizer do forte anti-lusitanismo existente

poderia ser comparado ao idealizado império

durante o regime imperial, quando ser brasileiro se caracterizava pela repulsa ao

6 7

SOUZA, 2006, pp. 33-35 BICALHO, 2003, p. 340

português. O governo estrangeiro seria ainda


G N A R U S | 35 verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes [...]”.10

responsabilizado pelas mazelas ocorridas em período pós-colonial, tanto por culpa da exploração quanto por práticas herdadas do

Com relação à administração Prado Jr. a vê

passado português e até o “genocídio de povos

de forma negativa, para ele era excessivamente

indígenas – ou a escravidão de africanos – pode

burocrática e com uma profusão de leis e

por conseguinte, ser como que remetido para o

estatutos

período colonial, apesar do triste historial

incompetente. Para a historiadora Laura de

oitocentista e mesmo novecentista”

Mello e Souza se trata de um erro anacrônico

.8

que

a

tornava

ineficaz

e

Com o advento da Revolução de 1917 e a

do autor, pois apesar do próprio reconhecer

consequente propagação dos estudos marxistas

que não se pode olhar o passado com base no

no início do século XX, inúmeros intelectuais

presente comete o erro mesmo assim posto que

seriam influenciados pelos estudos de Karl

vivendo sobre a égide de um estado liberal,

Marx, não seria diferente no Brasil e em 1942 é

baseado na teoria dos três poderes “ressalta a

publicada a pioneira obra de Caio Prado Júnior

irracionalidade do Antigo Regime – ‘passado

Formação do Brasil Contemporâneo, que

caótico por natureza’ -, e não leva em conta

costumeiramente é considerado o primeiro

que, nele, o Estado português não era exceção,

trabalho marxista sistematizado no Brasil9. Por

incorrendo, nesse tocante, em anacronismo” . 11

razões obviamente teóricas a ênfase da obra de

Oito anos antes de Prado Jr. abordar o tema,

Caio Prado é de ordem econômica, não seria

outro trabalho referente ao período colonial se

por mero acaso que o trecho do livro que

destacaria, mas neste caso o tema da

obteve maior desdobramento na academia é o

“administração” se distanciaria mais ainda do

Sentido da Colonização, aonde o autor aborda

foco principal e apesar da análise inovadora de

o caráter mercantilista e exploratório da

Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de

colônia luso-brasileira onde tudo que se passa

Holanda, em que o autor realiza um trabalho

“são incidentes da imensa empresa comercial a

comparativo entre o modelo de colonização

que se dedicam os países da Europa a partir do

espanhol e o português, o autor nesta obra se

séc. XV, e que lhes alargará o horizonte pelo

restringe mais a uma datação de fatos políticos

oceano afora” e concluí que:

importantes do que propriamente a uma

“No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o

reflexão sobre a natureza administrativa da América portuguesa. Não obstante seria através do cotejamento realizado por Sérgio Buarque entre as diferentes colonizações, que este chegaria a uma perspectiva negativa da administração portuguesa já que na sua

8

HESPANHA In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. 2010, p.50 9 É interessante lembrar ao leitor que a referida obra pretendia fazer parte de uma coletânea da evolução histórica do Brasil, contudo somente esta primeira parte foi escrita, que como sabemos aborda o período colonial.

concepção, quando comparada a colonização

10 11

PRADO JR., 1979, p. 31, grifo do autor. Idem, 2006, p. 37.


G N A R U S | 36

colonial que se baseia em uma relação subordinativa, cabendo o papel de submissão a colônia que responderia sempre a metrópole, seriam, ainda, formulações do pacto colonial o exclusivismo comercial da metrópole e a negação a colônia da possibilidade de subsistir por conta própria, isto é deveria depender sempre de Portugal, em outras palavras o

“pacto colonial é a prática do sistema colonial” 14

Porém a obra de Novais tem sido alvo de críticas de outros historiadores, devemos salientar que a obra deriva de uma corrente marxista onde encontramos a eterna luta de classes que a tudo tende polarizar, parece ser este o caso de Portugal e Brasil na crise do

antigo sistema colonial (1777-1808), tendo em vista o caráter maniqueísta da obra. Se espanhola da América, a portuguesa tornavase, entre outras palavras desleixada.

realizarmos um exercício de contextualização, perceberemos também que o livro é escrito

Já na década de 1970 Fernando de Novais

durante a Guerra Fria, o regime militar

com o seu livro Portugal e Brasil na crise do

brasileiro e bem próximo da Revolução dos

antigo sistema colonial (1777-1808) manteria a

Cravos (1974)15 em Portugal, elementos que

tradição do estudo marxista de Caio Prado Jr.,

dualizaram estudos da época.

contemplando mais uma vez a economia apesar de não deixar de lado quesitos políticos e administrativos – teria como centro nervoso de seu trabalho o sentido mercantilizado da empreitada colonial, é do autor o conceito de que

havia

um

sistema

colonial12,

que

econômico teria “seu funcionamento em

benefício de um grupo de nações hegemônicas que exploram as áreas que lhes pertencem e aquelas que lhes são incorporadas”

13.

Para

tanto Novais elabora o conceito de pacto

Por fim, com base no recente revisionismo sobre o tema e segundo a historiadora Maria Fernanda Bicalho, o referido trabalho de Novais

pertenceria

a

uma

corrente

historiográfica pautada, mormente, no aspecto econômico e por mais que estivesse atenta as esferas política e administrativa da América portuguesa teria subjugado a “tessitura de

redes de poder, interesses, parentesco e negócios entre o centro e as várias regiões do ultramar português, cuja análise torna-se hoje

12

Tal conceito é detentor de ampla aceitação na historiografia e excelentes trabalho são frutos dele é o caso do clássico de Luiz Felipe Alencastro em O Trato dos

Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. 13

AMARAL LAPA, 1994, p.20, grifo nosso.

14

Idem, 1994, p.21. É a Revolução dos Cravos que põe fim ao regime ditatorial iniciado por António de Oliveira Salazar no país luso. 15


G N A R U S | 37

fundamental para a configuração da dinâmica

teoria a prática, em outras palavras se

de escopo imperial” .16

quiséssemos

entender

a

administração

portuguesa na América não poderíamos mais Novos horizontes

nos restringirmos a observação de ordenações,

A partir da década de 1980 é iniciado um

regimentos, decretos extraordinários ou a atos

processo de reflexão e revisão que levariam a

régios, pois estes por si só levariam a uma

consideráveis mudanças na historiografia sobre

leitura incompleta do passado, assim da mesma

o tema da administração colonial, neste à

forma deveríamos estudar casos judiciais,

questão da centralização vem sendo alvo de

práticas governativas, missivas dos diferentes

profundas críticas e novas explicações têm

agentes administrativos, relações sociais18,

surgido, de modo que um maior equilíbrio nas

entre outras fontes que permitiram uma leitura

relações envolvendo centro e periferia tem se

dinâmica desta sociedade.

destacado,

culminando

assim

em

um

No outro lado do Atlântico a recente

importante ponto de inflexão na temática. Este

produção historiográfica portuguesa também

revisionismo está ligado a uma série de fatores,

sofreu alterações o que contribuiu para um

sobretudo ligado a novas metodologias e

profícuo diálogo entre historiadores brasileiros

teorias que possibilitaram novas formas de ver

e portugueses. De certa forma a adoção do

e escrever a História. Entre uma miríade de

conceito de império19 em detrimento da

novas questões que contribuíram para estas

análise das relações entre metrópole e colônia

mudanças podemos destacar elementos como

contribuiu

a “maior presença” da história cultural entre os

abrangente, favorecendo ao diálogo entre os

historiadores, ou até mesmo a introdução de

historiadores dos quatro cantos do mundo por

novos métodos como a micro-história italiana,

onde Portugal estabeleceu o seu império, posto

que possibilitaram aos estudiosos dinamizar a

que no caso desta última percebeu-se não ser

sociedade e enxergar indivíduos, componentes

suficiente:

pertinentes

aos

seres

humanos17. As implicações decorrentes de tais fatores nos ajudaram a compreender que deveríamos levar em consideração além da 16

In SOUZA, Laura de Mello; FURTADO, Junia Ferreira, 2009, p. 93 17 Deve-se ressaltar também, uma intensificação no diálogo da história com outras disciplinas, neste caso, sobretudo com a antropologia, só para citar algumas obras que tiveram influência na temática abordada: Ensaio

sobre a Dádiva – Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas in MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003; GODELIER, Maurice O enigma do Dom, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 e BARTH, Fredrick. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000.

uma

perspectiva

mais

“(...) para explicar a complexidade das redes e conexões que ligaram os diferentes domínios ultramarinos, entre si e com o centro da monarquia. Isso exigiu dos historiadores a inserção de seus respectivos objetos – cidades, feitorias, fortalezas, estabelecimentos, territórios, regiões, bens, pessoas e interesses administrados pela Coroa portuguesa – num contexto bem mais amplo e plural do que até então se pensara.”

da sociedade em questão, e dotados das incongruências

para

20

18

Ritualizadas, como o casamento e não ritualizadas como o apadrinhamento. 19 Em contrapartida o conceito de império já é antigo conhecido da historiografia anglo-saxônica, talvez não seja coincidência que um dos primeiros trabalhos a utilizalo, para o caso de Portugal, seja de um inglês em BOXER, Charles Ralph. O Império Marítimo Português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 20 BICALHO, Maria Fernanda in SOUZA, Laura de Mello; FURTADO, Junia Ferreira, 2009, p.91


G N A R U S | 38 Destas novas metodologias a análise de

crescer cada vez mais na hierarquia social

“redes” vem se destacando cada vez mais entre

colonial, e uma dessas possibilidades se

os especialistas da área21, assim a constatação

encontrava

da existência de redes no interior da sociedade

governança, como por exemplo, conseguir

colonial portuguesa demonstrou uma lógica

exercer ofício na câmara municipal de alguma

única, em que os atores sociais ou a própria

cidade. Logo, está constatação nos leva a

coroa conseguiam através de relações como

perceber que a administração da coroa

parentesco, apadrinhamento, amizade etc.

portuguesa, longe de ser estática e formal era

criar laços que permitiam a organização em

flexível

grupos

consequentemente influenciava na dinâmica

que

melhor

representariam

seus

objetivos em comum ou até mesmo individuais.

justamente

e

em

cargos

informalizada

o

de

que

do poder administrativo local e central.

Uma vez formada determinada “rede” seus componentes poderiam articular-se acionando dispositivos

para

alcançar

Um Antigo Regime nos Trópicos?

determinado

objetivo. O que aqui nos interessa salientar é

Convergindo para as novas tendências

que as articulações, entrelaçadas socialmente,

apontadas anteriormente, e indo além, é

destas redes ao procurarem atingir seus

lançado em 2001 o livro O Antigo Regime nos

objetivos

e

trópicos: A dinâmica imperial portuguesa

interferiam, na governabilidade tanto do reino

(séculos XVI-XVIII) dos historiadores João

quanto do ultramar de modo que:

Fragoso, Maria de Fatima Gouvêa e Maria

poderiam

vir

a

interferir,

“sublinha-se o relevo dos laços e das conexões interindividuais para, em detrimento ou a par dos laços formais ou juridicamente definidos, descrever o funcionamento das diversas instâncias de poder e em última análise das próprias monarquias.” 22

Analisar a sociedade através de redes também

permitiu

identificarem

as

aos diferentes

historiadores estratégias

utilizadas para que indivíduos pudessem

Fernanda Bicalho, composto por doze artigos de diferentes autores a obra aborda diversos temas, mas tem como ponto principal a dinâmica relação que regia o império marítimo português, em especial o reino e a América portuguesa. No trabalho ficam explícitos os mecanismos

de

negociação

da

coroa

portuguesa com os seus súditos, e vice-versa, para alcançar determinado objetivo podendo ser desde a manutenção e conquistas de novo territórios no caso da coroa a ganhos pessoais,

21

Como exemplo do lado brasileiro podemos citar os trabalhos das historiadoras Maria de Fátima Gouvêa e Maria Fernanda Bicalho, para portugueses ver THOMAZ, Luís Filipe F. R. em “De Ceuta a Timor”. Lisboa: Difel, 1994 e sobretudo o texto de Mafalda S. Da Cunha e Nuno Gonçalo F. Monteiro, “Governadores e capitães-mores do império atlântico português no séculos XVII e XVIII” in Nuno G. Monteiro, Pedro Cardim e Mafalda Soares da Cunha (org), Optima Pars. Elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, pp. 191-252. 22 CUNHA in FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. 2010, p. 121-122

como a possibilidade de servir em ofícios administrativos para os vassalos do rei que prestassem bons serviços à coroa. Dito de outra forma a coroa fazia prevalecer seus interesses, mormente, através de favorecimento aos colonos e ou reinóis que se aventuravam nos territórios ultramarinos, que assim executavam


G N A R U S | 39 a sua vontade, e em contrapartida a coroa legitimava os poderes destes homens ou realizava a concessão de mercês. No entanto nem sempre está engrenagem funcionava simetricamente, gerando inúmeros momentos de tensão entre a coroa e os colonos no ultramar. O próprio sistema descrito no parágrafo acima ilustra certa limitação do Estado moderno português, entretanto nos parece que as limitações eram maiores e o historiador António Manuel Hespanha as identifica e as sintetiza

no

conceito

de

monarquia

corporativa23 que percebe que havia outros poderes

e

normas

que

se

tornavam,

respectivamente, concorrentes e limitadoras do poder real, neste quadro quatro noções o compõem, na primeira noção o poder “real”

sofrendo críticas, e recentemente nas palavras

partilharia seus poderes com outros de maior

da historiadora Laura de Mello e Souza através

ou

do seu livro O Sol e a Sombra. Política e

menor

encontraríamos

interferência, o

direito

na

segunda

comum

(dos

administração na América portuguesa do

costumes), na terceira noção os deveres

século XVIII (2006). Para está, Hespanha ao

políticos deveriam ceder perante os deveres

estender seu modelo interpretativo para a

morais e na quarta encontramos oficiais régios

América Portuguesa desconsidera o contexto

que gozavam de extensos privilégios, ao

particular da colônia, sobretudo devido ao

mesmo tempo em que seus interesses, muita

elemento da escravidão tão presente na

das vezes, iriam de encontro aos interesses

colônia e ausente em Portugal. Outra crítica da

reais.24

Tais fatores reforçavam mais ainda a

historiadora seria uma supervalorização do

necessidade de negociação do rei com os seus

aspecto jurídico e das suas consequências nas

súditos, ou seja, do centro com as periferias.

ações da coroa já que o mundo colonial “não

Entretanto este modelo explicativo não é

pode ser visto predominantemente pela ótica

unânime entre os historiadores e também vem

da norma, da teoria ou da lei, que muitas vezes permanecia letra morta e outras tantas se

23Tal

conceito é elaborado no seu livro As vésperas do

Leviathan: Instituições e Poder Político Portugal – séc. XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994 e exposto no capítulo escrito por ele: A constituição do império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes In FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Fernanda, 2001, pp. 163-188. 24 In FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Fernanda, 2001, p. 166

inviabilizava ante a complexidade e a dinâmica das situações específicas”.25 Nos alerta ainda para o cuidado que se deve ter ao nomear a

25

SOUZA, 2006, p.56


G N A R U S | 40 sociedade da América portuguesa de Antigo Regime nos Trópicos, para isto recorda que apesar das semelhanças existentes nos dois mundos a realidade colonial era diferente do Antigo Regime europeu descrito por Alexis de Tocqueville. Já na introdução de trabalho lançado em 201026 pelo centro de estudos do Antigo Regime nos Trópicos (ART) além de dar continuidade ao livro de 2001 responde as críticas, lembrando que apesar de ser uma sociedade dita colonial foi criada por reinóis que recriaram nos trópicos uma sociedade parecida com a que conheciam, e os novos elementos como a escravidão foram inseridos nesta lógica reforçando características já conhecidas da sociedade moderna portuguesa como a organização social hierarquizada, reconhecendo-se também que devido as incoerências e variações coloniais o sistema de normas do Antigo Regime era constantemente reinventado. Por fim o livro Na trama das Redes aponta ainda

para

o

conceito

de

monarquia

pluricontinental, que já vinha sendo discutido27,

Conclusão Longe da pretensão de esmiuçar o tema em tão poucas palavras procuramos ao longo deste trabalho

abordar

as

diferentes

posições

historiográficas sobre o período colonial, levando em consideração os trabalhos que alcançaram certa notoriedade no tema, em alguns casos legítimos clássicos, não nos esquecendo da importância destes últimos, tentamos também demonstrar como a história caminhou e avançou durante está trajetória até os dias atuais. Posto desta forma, acreditamos de fato que estamos no caminho certo ao percebemos a história colonial de modo mais complexo do que antes, sobretudo com base em uma história mais conflituosa e tortuosa, e não mais homogênea e com previsível destino, quanto aos debates aqui explorados somente enriquecem o tema, posto que para a história nenhuma generalização deve ser considerada como tradutora da realidade. Felipe Castanho é Licenciado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e pós-graduando em História do Brasil pela Universidade Gama Filho.

superficialmente na sua definição teríamos uma única monarquia e nela poderes locais

Referências Bibliográficas:

exercendo uma força centrífuga tendo sua autonomia

garantida

pelo

princípio

de

autogoverno praticado pela própria monarquia portuguesa. João e GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 26FRAGOSO,

2010. 27FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusanos séculos XVI–XVIII In Tempo vol.14 no.27 Niterói, 2009. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script= sci_issuetoc&pid =1413-770420090002&lng=pt&nrm=is> acesso em 19/03/2013.

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Império: O Rio de Janeiro no Século XVIII.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FAORO, Raymundo. Os donos do poder – formação do patronato político brasileiro.


G N A R U S | 41 Porto Alegre/São Paulo: 2º edição, Globo/Edusp, 1975. FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de F.

Portugal. séc. XVII. Coimbra: Livraria

Civilização Brasileira, 2001. FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima.

Almedina, 1994. HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Saraiva de Bolso, 2011. JÚNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1973. MAUSS, Marcel, Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979. SOUZA, Laura de Mello; FURTADO, Junia Ferreira; BICALHO, Maria Fernanda. O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009. SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra.

Janeiro: Civilização brasileira, 2010. GODELIER, Maurice O enigma do Dom, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. HESPANHA, António Manuel. As vésperas do

Companhia das Letras, 2006. VAINFAS, Ronaldo (direção). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808) - Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI–XVIII. In

Tempo vol.14 no.27 Niterói, 2009. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci _issuetoc&pid=1413770420090002&lng=pt&nrm=is> acesso em 19/03/2013. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Fátima; BICALHO, Fernanda (Orgs.). O Antigo Regime nos

trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:

Na trama das redes: Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de

Leviathan: Instituições e Poder Político

Para saber mais:

Política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo:


G N A R U S | 42

Artigo

A IMAGEM DO RIO DE JANEIRO DE PEREIRA PASSOS NAS CRÔNICAS DE JOÃO DO RIO. Por Cristiane de Jesus Oliveira Pimentel

O

Rio de Janeiro é uma cidade múltipla e

por toda a extensão da grande baia, até os dias

essa

ser

atuais, a cidade cresceu, recebeu muitos

denominada histórica. Dos primeiros

imigrantes vindos de todas as partes do mundo

portugueses que aportaram à terra chamada

e transformou-se na cidade maravilhosa – fruto

por eles de São Sebastião do Rio de Janeiro e

de inspiração de muitos compositores, poetas e

do encontro desses homens brancos com os

escritores – e principalmente, numa cidade

homens da terra, os índios, que se espalhavam

cosmopolita, nos moldes daquelas que em

multiplicidade

pode


G N A R U S | 43

outros tempos serviram-lhes de inspiração.

foram propostos, ainda no Império,1 mas por

Nos tempos coloniais, a cidade era referida, pelos grandes viajantes, que registraram sua

motivos diversos nenhuma dessas propostas se confirmou.

fisionomia em seus históricos relatos, como

Porém com a instauração da República e com

uma terra de negros, tamanha era a quantidade

a virada do novo século, que é sempre marcada

de escravos africanos que para atender a

por muitas incertezas e, sobretudo por

necessidade dos colonos, portugueses

e

expectativas, um novo clima paira sobre a

franceses, já aqui instalados, serviam ao

cidade. Nos primeiros anos do século XX,

trabalho braçal.

Rodrigues Alves, assume a Presidência da

Como cidade portuária e consequentemente, centro recebedor e distribuidor das novidades vindas do Velho Continente, a cidade se desenvolveu e seu número de habitantes cresceu extraordinariamente ainda no século XVIII pela necessidade de abastecimento das Minas Gerais, onde se descobria a cada dia

República com expectativas muitas quanto à transformação da cidade num grande centro urbano. Pensa-se em uma reforma com a finalidade de incluir o país, através de sua capital, no cenário internacional. A Belle Époque carioca é então, o momento propício para a realização desta reforma urbana, que mudaria não só a arquitetura, mas também o

novas jazidas de ouro e diamantes. A cidade foi ainda Capital de um grandioso

modo de vida das pessoas que ali residiam. A Reforma Federal teria, então, como

Império, quando a Família Real portuguesa a escolhe para instalar sua Corte ainda nos primeiros anos dos oitocentos. A chegada da Família Real, e todo seu aparato digno de uma corte tradicional europeia, dão novos modos de vivência à cidade que a marcaria para sempre como centro político e, para além disso, cultural de todo um país. É a chegada da

Posteriormente, em fins do século XIX, com a da

escravidão

obtenção de “um cenário decente e atraente aos fluxos do capitalismo internacional, tão refreados pelas precárias condições da capital, então ambicionado pelas elites atreladas aos grandes interesses exportadores instalados no governo

da

união”.2

Portanto,

para

o

Presidente Rodrigues Alves a Reforma seria o

civilização aos trópicos...

abolição

princípio básico a expectativa em torno da

a

cidade

sofre

novamente um inchaço populacional. Com uma estrutura precária desde os tempos coloniais, necessita de obras de melhoramentos para que pudesse se transformar numa cidade salubre e livre das pestes que grassavam todos os anos, tanto no inverno quanto no verão. Os primeiros planos visando uma reforma nesse sentido

projeto primordial da sua administração, não apenas pela questão da salubridade, que a 1

Maiores esclarecimentos sobre esse tema podem ser obtidos em: OLIVEIRA, Cristiane de Jesus. Nas entrelinhas

da cidade: A Reforma Urbana do Rio de Janeiro no início do século XX e sua imagem na literatura de Paulo Barreto;

Orientadora: Sônia Cristina da Fonseca Machado Lino. – Juiz de Fora: UFJF, Departamento de História, 2006. 2 MARINS, Paulo César Garcez. “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras”. IN: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da

vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 143.


G N A R U S | 44

muito era debatida por médicos e sanitaristas,3

fazer da Capital Federal a metonímia de um

mas também para atender ao desenvolvimento

país que caminharia rumo ao progresso.5

econômico do país. Segue-se a esse fato, uma série de outros que

A Reforma Federal teve início, então, num primeiro

eixo,

com

o

processo

de

motivaram a Grande Reforma anunciada pelo

modernização do Porto, sendo, coordenada

Presidente em novembro de 1902. Para além

pelo então Ministro de Viação e Obras

da questão da salubridade, a Reforma era

Públicas, Lauro Muller, e chefiada pelo

também uma forma de legitimação do Regime

Engenheiro Francisco Bicalho.

Republicano que se encontrava extremamente desgastado diante da grande maioria da população brasileira. Soma-se a isso, a necessidade de ampliar o comércio externo, tanto pela pressão da elite cafeeira, que necessitava de grandes empréstimos para o desenvolvimento dos seus negócios, quanto para um maior equilíbrio das finanças por parte do Governo Federal. O Historiador André Azevedo cita ainda, um quarto fator, a saber, “a tentativa de responder à crise da capitalidade4 do Rio de Janeiro, revigorando esta propriedade da cidade na perspectiva de 3

Segundo Benchimol foram justamente os higienistas, os primeiros a formular um discurso articulado sobre as condições de vida na cidade, propondo intervenções mais ou menos drásticas para restaurar o equilíbrio daquele “organismo” urbano que consideravam doente. BENCHIMOL, Jayme Larry. “O Haussmanismo na Cidade do Rio de Janeiro”. IN: AZEVEDO, André Nunes de (org.). Rio de Janeiro: Capital e Capitalidade. Rio de Janeiro: Departamento Cultural/ Sr-3 UERJ, 2002, p. 129. 4 A Capitalidade é um fenômeno tipicamente urbano que se caracteriza pela constituição de uma certa esfera simbólica originada de uma maior abertura às novas ideias por parte de uma determinada cidade, o que confere a esta um maior cosmopolitismo relativo às suas congêneres e uma maior capacidade de operar sínteses a partir das diversas ideias que recepciona. Este conjunto simbólico que se desenvolve nas vicissitudes das experiências históricas vividas por esta urbe, identifica a cidade como espaço de consagração dos acontecimentos políticos e culturais de uma região ou país, tornando-a uma referência para as demais cidades e regiões que recebem a sua influência. Esta esfera simbólica evolui, sendo redimensionada ao sorver novas experiências, constituídas e constituidoras da tradição da urbe. AZEVEDO, André Nunes de. “A Capitalidade do Rio de Janeiro. Um exercício de reflexão histórica”. IN: AZEVEDO, André Nunes de (org.). Rio de Janeiro: Capital e Capitalidade. Rio de Janeiro: Departamento Cultural/ Sr-3 UERJ, 2002. p. 45.

O segundo eixo da remodelação urbana foi a Avenida Central, pensada como uma obra de menor importância relativamente àquela do porto e seu entorno. Seu leito de dois quilômetros rasgou, de mar a mar, o labirinto de ruas estreitas e movimentadas da cidade velha. As demolições começaram em 26 de fevereiro de 1904, três dias antes da solenidade que inaugurou as dragagens para a construção do novo porto. Segundo Oliveira Reis, foram demolidos 700 prédios. Eulália Lobo fala de 641 casas de comércio desapropriadas,6 o que elevou a obra a um custoso orçamento, principalmente em virtude das indenizações. No projeto original, a finalidade primordial da Avenida Central era a solução de um problema histórico de infra-estrutura urbana do Rio de Janeiro, o da distribuição dos produtos do Porto com a rede de comércio estabelecida no centro da cidade.7 Não obstante a isso esta também representou o eixo

de

melhoramentos

propriamente

urbanísticos, pensados pelo Governo Federal e projetados com o intuito de transformar a 5

AZEVEDO, op. cit., p.241. BENCHIMOL, Jayme Larry. “A modernização do Rio de Janeiro”. IN: DEL BRENNA, Giovanna Rosso. O Rio de Janeiro de Pereira Passos: uma cidade em questão II. Rio de Janeiro: Index, 1985. p. 258. 6


G N A R U S | 45

cidade colonial portuguesa em metrópole

moderna, urbana e assalariada, resumida em

civilizada e cosmopolita, sempre tomando

um novo existir social e literário.

como referência as grandes capitais europeias, principalmente Paris.

Segundo Machado Neto, as mudanças sociais e as iniciativas modernizadoras decorrentes da

É então nesse contexto que viveu João do

abolição e da República transformaram a

Rio... João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos

literatura, o jornalismo e a boemia. A partir de

Coelho Barreto – mais conhecido pelo seu

1900 a literatura não se enquadra mais na

principal

boemia dos cafés e restaurantes. Era o início da

pseudônimo literário, inspirado no francês Jean

transição de uma mudança na boemia do

de Paris e adotado em 1904 – nasceu no dia 05

século XIX – caracterizada pelo romantismo

de agosto de 1881. Pessoa controvertida,

para uma boemia ligada ao modernismo. “A

amada por uns e execrada por outros, quando

proeminência cabe agora, à boemia dos salões,

se fala em João do Rio, sua imagem é

já que a literatura se assimilara ao mundanismo

imediatamente associada aos novos tempos da

da metrópole que se queria cosmopolita e

Capital Federal, à modernidade, à Avenida

civilizada”.9

pseudônimo

João

do

Rio

Central, ao Cinematógrafo e, ao mesmo tempo, ao submundo, à cidade dos vícios, dos prazeres e dos pecados.

João do Rio foi então, o literato que, como jornalista e cronista, viveu o dia-a-dia de uma cidade em constante remodelação, onde sua

João do Rio viveu nesse início de século

configuração se modificava permanentemente.

extremamente conturbado, onde as mudanças

Viveu no Rio de Janeiro dos novecentos; das

começaram a se suceder, de uma maneira

primeiras casas de chope, dos cabarés, das

muito rápida, em várias áreas, entre elas na

agremiações literárias e da Avenida Central

literatura, na imprensa e na boemia carioca.

como símbolo da civilidade carioca. Viveu

Esse é o momento que marca o fim de uma

numa cidade que se fazia representar moderna.

boemia intelectual de tradição européia, que dominou a vida da cidade durante as duas últimas décadas do século XIX e que se estendeu até os primórdios da República. Essa boemia teve como seu período áureo os momentos de luta dos jovens intelectuais abolicionistas e republicanos. Mas o que a

E como homem moderno, numa cidade que se remodelava, a imagem de João do Rio pode ser associada à do poeta francês Jean Baudelaire, pela sua condição de flaneur,10 ou seja, pelo fato de abrir mão de sua identidade como homem da cidade, para ganhar o mundo como um observador, o que só foi possível com a

sucede agora é o que Brito Broca chamou de uma “Boemia dourada”,8 ou seja, uma boemia 7

Ibidem. p. 249. 8 BROCA, apud, RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. José de Alencar: o poeta armado do século XIX. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000, p. 20.

MACHADO, Maria Cristina. Lima Barreto: um pensador social na Primeira República. Goiânia: Ed. da UFG; São 9

Paulo: Edusp, 2002, p. 61. 10 É de Baudelaire a ideia do artista enquanto flâneur. Através deste se resgata a posse da individualidade: o artista deixa de ser um homem perdido na multidão. Ele se caracteriza pelo prazer de olhar; é um voyeur e, enquanto tal, um rebelde ao déjà vu. BENJAMIN, apud, VELLOSO,


G N A R U S | 46

remodelação arquitetônica da cidade e a vasta

o burguês entre suas quatro paredes.12 “Saio. É

ampliação do mundo de experiência.

preciso sair. Não é possível deixar de sair. A

Segundo Benjamin, o hábito do flaneur só se torna possível no asfalto. Assim como a Paris

cidade é outra, a cidade toma um tom inédito”.13

anterior à reforma de Hausmman, a cidade do

Em Benjamin o flaneur é comparado a um

Rio de Janeiro também tolhia essa atividade

detetive, pois entre suas características estão a

urbana por apresentar raras calçadas largas e

arte de observar e a sensibilidade apurada para

pela pouca proteção que oferecia contra os

os indícios do novo, qualidades adequadas ao

veículos que começam a se multiplicar na

ritmo da cidade grande e da multidão que

cidade.

circula por ela.

“Dificilmente a flanerie poderia ter alcançado sua relevância sem as passagens, uma nova invenção industrial, [com] vias cobertas de vidro e revestidas de mármore [onde] os dois lados dessas vias recebem a luz do alto [e onde] se sucedem as mais elegantes lojas comerciais, de tal modo que uma dessas passagens é uma cidade, um mundo em miniatura.11

Devemos, então, atentar para o fato de que é inspirando-se em autores da modernidade europeia, sobretudo em Baudelaire, que João do Rio defende uma nova visão da literatura que vai radicalmente contra temas oficiais, privilegiando a temática da vida privada e a

Essa descrição utilizada por Benjamin para

própria subjetividade. Para João do Rio a

ilustrar a Paris reformada por Hausmman,

realidade sempre ultrapassa os modelos que

extraída de um guia ilustrado da Paris de 1852,

lhe são impostos. A cidade não se constitui em

poderia ter feito parte de um guia da cidade do

abstrações criadas a seu respeito, ela existe

Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX,

para ser vivida em todas as suas variantes

após a reforma da cidade. No Rio de Janeiro, a

possíveis; de um passeio em uma festa elegante

Avenida Central e suas fachadas originárias de

nos bairros sofisticados da zona sul do Rio ao

um concurso arquitetônico, podem tomar a

encontro com os populares nas festas religiosas

descrição da Paris de Baudelaire para se

e tradicionais da Penha e da Glória.

caracterizar como um novo lugar e um novo ambiente que possibilitava a partir daí, o ver e o ser visto, onde a modernidade representada pelas

avenidas

largas,

iluminadas

pelas

lâmpadas elétricas se constituía no destino final do flaneur. A rua se torna moradia para o flaneur que está tão em casa entre as fachadas das casas quanto Mônica Pimenta. As tradições populares na Belle Époque carioca. Rio de Janeiro: Funarte, 1988, p. 29. 11 BENJAMIN, Walter. Sociologia. 2ª. ed. São Paulo: Ática, 1991. p. 40.

João do Rio foi uma das grandes figuras dos salões cariocas e fez um grande sucesso no tempo das conferências, falando de coisas que jamais as pessoas tinham ouvido, sobre a cidade e o mundo.14 João do Rio soube como ninguém, 12

BENJAMIN, op. cit., p. 67. Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 19 de abril de 1908. 14 RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins “Em algum 13

lugar do passado. Cultura e História na cidade do Rio de Janeiro”. IN: AZEVEDO, André Nunes de (org.). Rio de Janeiro: Capital e Capitalidade. Rio de Janeiro: Departamento Cultural/ Sr-3 UERJ, 2002, p. 19.


G N A R U S | 47

fazer-se identificar ao cosmopolitismo de sua

modernos e vivências civilizadas. É por isso que

época.

a criação de novos espaços de civilidade, de

Desde o tempo do café do Rio, na esquina das ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias, que foi sua primeira experiência boêmia, teve interesse no aprendizado da retórica e da eloqüência. E foi

lazer, de troca de ideias e as sucessivas mudanças em várias áreas, como o trabalho e o conhecimento se constituem na temática do trabalho do nosso flaneur.

Café do Rio – Foto de Augusto Malta. Acervo do MIS-RJ

no Café Paris, no Largo da Carioca, entre os

João do Rio trata então, em suas crônicas, de

mosqueteiros das letras, das artes e da política

diversos assuntos, geralmente ligados ao

que adquiriu maturidade.15

cotidiano da cidade que se faz mudar

Era um novo mundo e um novo tempo onde seria possível presenciar as transformações na nascente Capital Federal, desde a despedida dos tempos coloniais até sua transformação numa

cidade

cosmopolita,

de

traçados

constantemente. As mudanças nas ruas e a criação dos boulevars como novos espaços de sociabilidade, as novas lojas de produtos importados, as festas populares que ora são proibidas, ora permitidas, as grandiosas festas da alta sociedade, o carnaval de rua e dos

15

Ibidem. p. 34.

salões. As novas proibições com argumentos


G N A R U S | 48

“(...) o doutor Pereira Passos, que aos 70 anos, depois de reformar uma cidade violentamente, parte para a Europa, corre o Egito montado em dromedários, embarca para o Japão e trabalha, lê, escreve sempre incansável e sempre extraordinário.”19

civilizacionais são os assunto mais recorrente em suas crônicas. Pode-se observar que estes estão ligados à reformulação arquitetônica e, automaticamente, cultural da cidade, ou seja,

Passos

direta ou indiretamente interferem na tradição

Um dos assuntos de grande destaque de sua se

figura

como

aquele

responsável pela promoção da cultura do povo,

cultura da cidade.

coluna16

também

relaciona

aos

mentores

e

executores da reforma urbana. É muito recorrente, em seus textos, assuntos ligados às figuras do então Presidente Rodrigues Alves e

“Mas Deus do céu! A cultura pode promover uma série de coisas. Quem, porém promove a cultura no povo? Os homens inteligentes e adiantados pregando-lhe o que é bom e as autoridades obrigando-o a obedecer”.20

do Prefeito Pereira Passos, sendo que tanto ao

Ao tratar de assuntos ligados à Reforma

tratar do Presidente quanto do Prefeito, estes

urbana pelas quais as áreas centrais da cidade,

sempre aparecem ligados à ideia de civilidade

passavam naquele momento, vemos um João

e suas pessoas são sempre glorificadas e

do Rio menos convicto e mais contraditório,

aplauso,

exaltando as obras e a inserção da cidade num

convençam o governo atual de que é

panorama maior de modernidade, ao mesmo

necessário continuar a obra encetada pela

tempo em que a despreza, como se ela fosse

direção do conselheiro Rodrigues Alves e por

um mal responsável pelo fim das tradições. A

esse [...] extraordinário – o doutor Pereira

aprovação/exaltação e a negação/saudosismo

Passos”17. Pereira Passos sempre figura como

são assuntos constantes em várias de suas

incansável, extraordinário, como o homem de

crônicas.

exaltadas.

“Talvez

o

grito,

o

grandes realizações. “Era o Doutor Passos o

A exaltação das obras da Reforma e da

autor da ideia. (...), os meus olhos admiraram a

Grande

sua energia, o seu comendo, a maneira pela

modernidade carioca, pode ser observada em

qual tudo quanto queria, realizava o Prefeito”

.18

crônicas como a do dia 18 de agosto de 1907

Escreve João do Rio no dia 22 de julho de 1907

onde o luxo e o prazer presentes na nova

para em agosto do mesmo ano novamente se

cidade e tão almejados pela boa sociedade

referir com grande admiração à figura do

carioca são exaltados em contraposição à

Prefeito:

cidade antiga e tradicional.

como

símbolo

da

“A grande esplendorosa avenida “scintilla” de toiletes raras, de jóias coruseantes, de belezas admiráveis. Passam, sem cessar, automóveis raros, de luxo, numa fila interminável.(...)

16

Nesse nosso artigo tomamos para análise uma coluna denominada Cinematógrapho que foi publicada por João do Rio, sob o pseudônimo de Joe, na Gazeta de Notícias, um dos jornais mais importantes do período e que se encontra em custódia da divisão de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 17 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 18 de agosto de 1907. 18 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 22 de julho de 1907.

Avenida,

19

Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 18 de agosto de 1907. 20 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 01 de agosto de 1909.


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É bem diferente este Rio do que nós suportávamos há cinco anos atrás!”21

Vemos ai um sentimento de desprezo pela cidade antiga que se repete também na evocação da mesma como sendo os “maus

É o fim da cidade tradicional, singular e única e o início de um novo tempo onde tudo é moderno, padronizado e igual e com a cidade não seria diferente.

lugares do Rio”. “(...) Pelos becos lúbregos –

João do Rio nos presenteia ainda, numa outra

passeamos os dois pelos maus lugares, os

crônica, com uma maravilhosa descrição do

curiosos maus lugares do Rio: becos estreitos,

ainda, Rio antigo, escrevendo no dia 23 de

vielas más, onde a gentalha formiga”.22 O fato

agosto de 1910, ou seja, três anos após o

de chamar a cidade colonial de “maus lugares”

término da “Grande Reforma”, sobre a festa da

já demonstra uma contraposição aos bons

Glória, uma festa muito tradicional nos tempos

lugares que à princípio seria a parte reformada

do Império, que independente da grande

da cidade, ajardinada, iluminada e “avenidada”.

reforma modernizadora ainda sobrevive em um

No entanto, essa comparação do Rio reformado, civilizado e bom com o de outrora

espaço da cidade, com suas características originais e coloniais. “E de repente a maravilha cessa. Nós vamos por cima, pelo Catete e passamos pelo outeiro da Glória, o célebre ponto da célebre festa há vinte anos. Foguetes modestos e reumáticos subiam ao ar dificultosamente dando algumas lágrimas discretas. Uma gente vagarosa e mole subia o morro ou descia com sono. A iluminação era de velas em mangas de vidro e embaixo [...] uma série de vendedores de doces ambulantes gritando cocadas e quindins.”24

como sendo ruim, virá acompanhada, tempos depois, de um saudosismo capaz de fazer com que um leitor que tome determinada crônica separada do conjunto a que pertence, possa ter uma ideia completamente contrária do seu trabalho. Se acima, a Grande Avenida que

“scintilla” é vista como a representação da panorama

Essa é a outra cidade. A cidade que se

internacional de civilidade e modernidade –

mantém intacta, imutável. A cidade que não

uma ideia comum a várias capitais – por outro

reconhece a Reforma, porque esta não chegou

lado, ela representaria a padronização da

até lá. É a cidade que abriga as pessoas que

cidade e a perda de singularidade por parte da

direta ou indiretamente não foram atingidas

mesma.

pela Reforma e que, consequentemente, não

inclusão

da

cidade

em

um

“- Que horror! Com efeito, tudo aquilo está calçado, arejado, avenidado. Há mesmo um projeto de canteiros de boulevard, e o novo mercado todo de ferro elegante e moderno é como todos os mercados. (...) Sim, como queres tu originalidade onde tudo é igual as que há em outras terras? As avenidas são a morte do velho Rio.”23

mudaram seus hábitos de tal forma que sua vivência fosse alterada. E João do Rio conclui a citação acima da seguinte maneira: “Parecia a

roça, parecia a Arábia, parecia tudo quanto quiserem menos o Rio admirável - Eis a cidade de há vinte anos! E reside ainda!”25

21

Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 18 de agosto de 1907. 22 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 12 de janeiro de 1908. 23 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 12 de fevereiro de1908.

24

Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 23 de agosto de 1910. 25 Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 23 de agosto de 1910.


G N A R U S | 50

A luz é a civilização meu velho: quando a luz falha, adeus civilização.”27

Essa era então a cidade que não merecia mais aparecer, era a cidade, que nesse momento, três anos após a Reforma, o próprio João do Rio não queria mais que existisse, mas que como sobreviveu, lá estava ele para descortinar e mostrar que ainda existia uma parte da cidade que não havia sido tragada pela modernidade.

É então no sentido de um testemunho do seu tempo que vemos as crônicas de João do Rio, pois se como cronista da alta sociedade, ele se encantou e se deslumbrou com as novidades trazidas por uma corrente modernizadora, por outro lado, como cronista do submundo, ele

Cabe destacar que nesses primeiros anos do

não abandonou a velha cidade que conseguiu

século XX o Rio de Janeiro já se constituia no

se preservar e, para além disso, em nenhum

centro cultural, econômico e político do país e

momento ele abandona seu hábito de flanar e

que João do Rio, como homem moderno, se

sua observação múltipla, seja numa festa

encantou

elegante ou numa festa popular.

com

introduzidas

por

todas

as

essa

transformações

modernidade.

O

cinematógrafo, a eletricidade, o luxuoso Pavilhão Mourisco no elegante bairro de Botafogo; aparecem em várias crônicas suas como valorosos elementos trazidos pelo processo modernizador no qual o país se inseria

Essa aparente contradição alta sociedadesubmundo é aceita em João do Rio, justamente pelo fato dele estar inserido na modernidade, aquela que para Schorske28 vive e vê a cidade para além do bem e do mal. Para além de um julgamento da cidade como

através da sua Capital. A exaltação à eletricidade aparece nas suas crônicas de várias maneiras, e de forma constante. Desde a imagem que se tem dos postes de iluminação elétrica na enseada de Botafogo como um espetáculo – “Assim, inteiramente iluminada, alastrada de focos elétricos aquela enseada e um golfo de luz é como uma serpente lendária”26 – até a

destinada a um fim, João do Rio está disposto apenas a viver-la e essa vivência só é possível enquanto ele mesmo se ver como um flaneur. Inspirado nos intelectuais e artistas europeus que viveram essa experiência da modernidade no século XIX ele a toma como inspiração e torna a cidade do Rio de Janeiro do início do século XX seu cenário.

utilidade que esta tem como protagonista na

Cabe ressaltar que como João do Rio viveu

mudança de hábitos. A civilização seria agora,

ainda no momento em que essa transição

impossível sem a luz elétrica.

acontecia, acreditamos que nas suas crônicas

“- Não dormi anti-ontem. Não dormi ontem. Não durmo hoje. É impossível dormir no Rio sem luz. (...) O homem só é homem porque domina o fogo que é a luz. 26

Joe (João do Rio): Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 23 de agosto de 1910.

ela aparece de uma maneira bem explícita e é 27

Joe ((João do Rio):Cinematógrapho. IN: Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro: 19 de abril de 1908. 28 SCHORSKE, Carl E. Pensando com a história: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Para um maior aprofundamento quanto à questão da cidade para além do bem e do mal, ver: OLIVEIRA, Cristiane de Jesus. Nas entrelinhas da cidade: A

Reforma Urbana do Rio de Janeiro no início do século XX e sua imagem na literatura de Paulo Barreto; Orientadora:


G N A R U S | 51

nesse sentido que sua percepção sobre a

e os acontecimentos, mesmo que grandiosos,

Reforma

suas

como a reforma urbana, não foram capazes de

contradições, são fontes ricas para a análise

mudar de um dia para o outro, toda a história

desse período.29 A cidade não é um bloco único

de uma cidade.

urbana

e,

principalmente

Sônia Cristina da Fonseca Machado Lino. – Juiz de Fora: UFJF, Departamento de História, 2006. Capítulo I. 29 Para um aprofundamento maior sobre a questão do uso das crônicas literárias como documentos, ver: NEVES, NEVES, Margarida de Souza. “Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas cariocas”. IN: CANDIDO, Antonio (et al). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Unicamp, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 76.

Para saber mais:

Cristiane de Jesus Oliveira Pimentel é Especialista em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.


G N A R U S | 52

Pesquisa

A ENTRADA DA MULHER NO CURSO TÉCNICO DE QUÍMICA INDUSTRIAL DA ESCOLA TÉCNICA DE BELO HORIZONTE Por Fábio Liberato de Faria Tavares Co-orientadora: Laura Nogueira Oliveira

O

presente trabalho tem por finalidade

tinha como objetivo qualificar mão de obra de

analisar por que e de que forma se deu a

forma rápida para o mercado de trabalho através

entrada da mulher no curso de Técnico de

de cursos de curta duração. O projeto teve início

Química de Industrial num ambiente até então

em 1963, e com o golpe militar o projeto foi

exclusivamente masculino e qual foi o impacto

alterado, havendo o financiamento para a abertura

dessa mudança para professores e principalmente

de cursos técnicos. Somente em 1982 o programa

para as primeiras alunas.

foi encerrado.

A pesquisa teve início no ano de 2012 com o

As

entrevistas

foram

realizadas

pela

projeto de pesquisa financiado pela FAPEMIG

orientadora do projeto, a professora Dra. Laura

(Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais)

Nogueira

e com o título “Ouvir para contar - construção de

participação minha nas anotações e também nas

um acervo de memórias de alunas diplomadas pelo

perguntas aos entrevistados, que são previamente

curso Técnico de Química Industrial matutino da

elaboradas a partir de informações existentes

Escola Técnica Federal de Minas Gerais, atual

sobre eles no Arquivo do Registro Escolar da

CEFET-MG, 1966-1970.” A ideia inicial era

referida instituição. Após a entrevista e a

entrevistar alunas do curso técnico de Química

assinatura do termo de cessão de direitos pelo

Industrial da Escola Técnica de Belo Horizonte

entrevistado, ela é transcrita previamente por

como parte das comemorações dos 50 anos de

terceiro. Assim que a entrevista é transcrita, ela é

criação do curso, que será completado em 2014.

devolvida e a mim coube fazer as correções na

Percebeu-se através de pesquisas realizadas no

transcrição e posteriormente a própria professora

Arquivo Geral do CEFET-MG que o curso, criado

realizou uma revisão de cada entrevista. Esse

em 1964 na esteira do PIPMOI (Programa

trabalho foi necessário para eliminar erros tais

Intensivo de Preparação de Mão de Obra

como nomes de pessoas, de órgãos, pontuação e

Industrial), um programa do governo federal que

outros da norma culta da língua portuguesa. Tanto

Oliveira

do

CEFET-MG,

com


a preparação da entrevista e a sua realização,

G N A R U S | 53 somente dos documentos do período não seriam

quanto à conferência das transcrições são

suficiente para responder as questões em aberto,

trabalhos bastante demorados. As entrevistas tem

que seriam o motivo que levou à escolha de um

duração média de 1h30, não incluso aqui o

curso técnico num ambiente predominantemente

trabalho para sua elaboração, que demanda,

masculino e as consequências dessa escolha para

conforme

as alunas.

documentos

mencionado, dos

a

depoentes,

consulta nos

aos

arquivos

institucionais. Já a revisão das transcrições pode chegar a durar em média 6h. Como a principal fonte para o trabalho são as entrevistas, como referenciais teóricos foram utilizados obras de historiadores especialistas no trabalho com a história oral com destaque para Paul Richard Thompson e Verena Alberdi.

A credibilidade da história oral é a mesma de um documento escrito, pois “a subjetividade é um dado real em todas as fontes históricas, sejam elas orais, escritas e visuais. O que interessa em história oral é saber porque o entrevistado foi seletivo, ou omisso, pois essa seletividade com certeza tem o seu significado”1. Ela também permite a criação de uma multiplicidade original de pontos de vista, e o

O trabalho com a história oral permite que sejam mais bem compreendidos os valores

domínio da evidência até onde ela se mostrar necessária.

coletivos que levaram essas mulheres a buscarem uma formação na Escola Técnica numa área que não era tradicionalmente feminina. Além disso, permite a construção de uma história mais democrática e consciente, ao dar voz a quem normalmente não seria dada, já que foi a tendência praticada por muitos anos na história de se privilegiar os grandes feitos e personalidades, e mesmo com as mudanças ocorridas, certos grupos continuam excluídos. Além disso, contribui para tirar a mulher da condição subalterna que ocupa

Figura 1 - Uma das entrevistas do projeto. Foto: Talita C. Alves.

na sociedade brasileira, mesmo com os avanços realizados após a abertura democrática. Tem também a função social de elevar, em muitos casos a auto-estima dos entrevistados na medida em que ele

percebe

que

as

lembranças

conhecimentos que trazem

tem

e

os

relevância,

auxiliando no entendimento das características de determinado período e local. Outro fator que foi levado em consideração na escolha de se utilizar a história oral foi o de os acontecimentos estudados serem relativamente recentes, e uma análise

THOMPSON, Paul Richard. A voz do passado: história oral. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. P. 18. 1


G N A R U S | 54

Em 1956, foi criado através da Lei 2800/56 sancionada pelo presidente Juscelino Kubitscheck,

A questão que surgiu foi: Porque desse aumento tão repentino?

o Conselho Federal de Química, e em 1957 foi

Passou a ser recorrente nas entrevistas com ex-

criada a seção regional do órgão. A partir da

alunas, a ideia de negação do magistério, profissão

regularização da profissão de químico, as

que foi ao longo do século XIX e início do XX

indústrias de Belo Horizonte e do Distrito

construída como predominantemente feminina. O

Industrial Coronel Juventino Dias (mais conhecido

que teria levado essas meninas a mudarem de

como

ideia? Para algumas das ex-alunas entrevistadas,

Cidade

Industrial

de

Contagem-MG) com

como a Sra. Vânia Mara Soares Penido, havia uma

profissionais formados em seus laboratórios, sendo

forte recusa ao magistério. Logo no início da

que a grande maioria usava profissionais com

entrevista ela diz: “Mãe, se eu tiver que fazer

formação prática.

magistério ou científico, eu vou parar de estudar”.

passaram

a

ser

obrigadas

a

contar

Nos dois primeiros anos do curso, o que se percebe é a presença exclusiva de homens e com média de idade alta. A partir de 1966, inicia-se a entrada de alunos mais jovens e também de

“Porque é o que tinha na minha... na minha coisa”, “Eu não quero ser professora, eu quero fazer um curso que eu possa me sustentar e para fazer o superior depois”.

alunas. Inicialmente elas ocupavam menos de 20%

Outra entrevistada, a Sra. Míriam Fernandes

das vagas, mas já em 1969 passaram a ocupar 23

Sepúlveda, que ingressou no curso em 1966 ao

das 40 vagas ofertadas para o curso, tornando-se

informar o que teria dito a sua avó que desejava

dessa forma maioria, como pode ser observado na

que ela fosse professora na cidade da Sabará, a

tabela a seguir. Além disso, elas passaram a ser

apenas 25 Km de Belo Horizonte:

também o maior grupo entre os alunos que se diplomavam no curso, ou seja, que faziam a carga de disciplinas e o estágio para garantir o diploma.

“Porque ela era diretora do colégio, ela era uma mulher assim que gostava muito de... Era


uma mulher muito culta, muito prendada e

G N A R U S | 55 Segundo a matéria da revista, uma normalista

queria que eu fosse professora e tal. Só que eu

receberia, em início de carreira, NCr$160,00 para

falei assim: “Não, eu não quero isso não. Quero

meio expediente de trabalho, no extinto Estado da

fazer um curso de Química, sai daqui pra Belo

Guanabara, um dos mais ricos da Federação.

Horizonte”. Ela ficou meio assim, mas...”

Tendo esse dado, pode-se imaginar a situação em

Naquele mesmo período, o Brasil passava por um

acelerado processo

de industrialização,

seguido do surgimento de uma sociedade de consumo de massa. Foi possível perceber nas entrevistas, que era desejo dessas meninas

Estados como o de Alagoas, do Maranhão e Piauí! Embora

na

reportagem

não

seja

dito,

provavelmente o salário de professor, pode-se supor, devia ser ainda mais baixo nos Estados das regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte do país!

entrarem nessa dinâmica de consumo, associado

Por outro lado, a mão de obra qualificada,

ao desejo do próprio mercado em tê-las como

mesmo que em nível técnico, recebia altos salários.

consumidoras.

Vânia por exemplo, citou várias vezes esse fato em

Apesar

do

historicamente

salário baixo,

no

magistério

percebe-se

pelo

ser alto

número de greves nos anos 1960 que essa situação sofreu uma piora considerável. Os salários oferecidos aos professores eram péssimos, o que causava

desestímulo

para

muitas

mulheres

seguirem na profissão, ou mesmo entrarem nela. A matéria de capa da revista “O Cruzeiro”, de 14 de setembro de 1968, trazia o seguinte título: “Ser ou

não ser professôra (sic)”. A reportagem expunha um quadro dramático. O país tinha 130 mil escolas e 135 mil professores qualificados para atividade docente, enquanto outros 154 mil professores em exercício, não tinham formação alguma. Isso fazia com que nada menos que cinco milhões de crianças e adolescentes ficassem foram da escola. Na referida reportagem é citado o caso de uma jovem, de nome Maria Álvares Campos, que preferiu ser atendente de posto de gasolina a trabalhar como professora devido às dificuldades de sobrevivência com tão baixos salários. Na mesma matéria é ressaltado que os baixos salários impediam a independência financeira da mulher, mantendo-a dependente da família e/ou do marido.

sua entrevista, que no seu local de trabalho, a então estatal Cia. Vale do Rio Doce, ela: “Ganhava

bem porque a Vale pagava bem, eram 16 salários e era salário bom”. Os dezesseis salários que ela cita eram recebidos ao longo do ano, não eram dezesseis salários mínimos por mês! Mas de qualquer forma, fica claro que os ganhos como Técnica eram maiores que os que ela poderia ter se tivesse seguido a carreira do magistério. Ela conseguiu a independência financeira que tanto queria. Trabalhou por onze anos na Companhia Vale do Rio Doce (privatizada em 1997 e atualmente denominada somente com Vale) e, depois de ter o seu segundo filho, se dedicou a um negócio próprio junto com o seu marido. Para garantir o orçamento doméstico, Vânia criou uma fábrica de cosméticos à base se mel e, graças a seu registro profissional, era a responsável técnica da empresa.


G N A R U S | 56 professores. Outra questão importante é que de acordo com as entrevistadas, elas não parecem ter sido movidas pela onda feminista que começava naquele momento, mas muito mais pelas questões econômicas. Ainda assim elas romperam com uma tradição e conseguiram abrir as portas de um ambiente masculino para as mulheres.

Fig. 1: alunas da turma de 1969 (arquivo pessoal de Vânia Mara Gomes Penido).

Fábio Liberato de Faria Tavares é Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestrando em Educação Tecnológica pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG).

Referências bibliográficas

Fig. 2: nesta foto aparecem 18 dos 20 alunos que se diplomaram na turma de 1969. Destes, 14 eram mulheres (arquivo pessoal de Vânia Mara Gomes Penido). Com o endurecimento do regime militar com o AI-5 em 1968, as brechas para greves que já eram poucas, tornaram-se impossíveis. Portanto, com a impossibilidade de resistência, tornava-se a melhor

alternativa

se

adaptar

à

situação

conseguindo um emprego numa profissão mais rentável. Também não pode ser desconsiderado o choque que representou a entrada dessas moças num ambiente exclusivamente masculino. É comum em suas falas as reclamações sobre a falta de adaptação da escola as suas necessidades, ou em muitos casos tratamentos diferenciados dos

ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005. ALBERTI, Verena. Contar ouvir: textos em história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. BRUSCHINI, Cristina e COSTA, Albertina de Oliveira. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992. CARDOSO, Vera Lúcia. A inserção da mulher no ensino técnico de nível médio: o caso a antiga Escola Técnica Federal de Minas Gerais – CEFET-MG. São Paulo: 2011. 184 p. Dissertação de mestrado, PUCSP. Conselho Federal de Química. Disponível em: http://www.cfq.org.br/historico.htm Acessado em 01/01/2013. CUNHA, Luiz Antônio. O ensino profissional na irradiação do industrialismo. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. GONÇALVES, Andréia Lisly. História & gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. Acessado em 06/01/2013. MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olho d’ Água/Fapesp, 2001. PATAI, Daphne. História oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010. PENNA, Gabriela Ordones. Vamos Garotas! Alceu

Penna: moda, corpo e emancipação feminina (19381957). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2010.

PRIORE, Mary Del (org.); BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das mulheres no Brasil. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 2004. THOMPSON, Paul Richard. A voz do passado: história oral. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. VEIGA, Cynthia Greive. História da educação. São Paulo: Ática, 2007.


G N A R U S | 57

Artigo

HERNAN CORTEZ: A CONQUISTA DO MÉXICO E A ADMINSITRAÇÃO ESPANHOLA Por Eron Santos Pereira

H

ernan Cortez nasceu em Medellín (atual

pais. Porém ele fracassou em seus estudos e dois

Badajoz), em 1485 e morre em Castilleja

anos depois abandonou a Universidade e se

de La Cuesta (Sevilha) em 1547. A história

dedicou ao que ele realmente se sentia mais à

o descreve com muitos adjetivos como um bom estrategista,

manipulador,

enganador,

vontade em fazer: a carreira militar.

herói,

piedoso, etc. Nunca saberemos ao certo como era,

A primeira vez que se tem notícia de que Cortez

de fato, o seu caráter. Com tudo, o que temos

esteve na América foi em 1504, em uma expedição

notícia é que aos 14 anos de idade foi enviado para

liderada por Alonso de Quintero. Mas Cortez

a Universidade de Salamanca, na Espanha por seus

poderia ter estado em solo americano muito antes se não fosse um acidente onde ficou acamado por certo período e consequentemente impedido de viajar. No ano de 1511 conheceu Diego Velásquez na campanha de conquista da ilha de cuba. Mas na expedição que surgira quando Cortez partiu para a península de Yucatán, surgiu a rixa entre os dois que receberá uma atenção especial nesse artigo, pois Diego

julgava

seus

feitos

na

localidade

insuficientes para a coroa espanhola. No dia 10 de fevereiro de 1519 Cortez parte de Cuba rumando ao continente e a partir desse momento começa o processo de conquista do México. Após esse longo período e até ao longo dele temos alguns aspectos que foram analisados a partir das fontes e das bibliografias e puderam-se Hernan Cortez

chegar algumas hipóteses. Entretanto o objetivo principal desse periódico é levar-nos a alguns


G N A R U S | 58 questionamentos a este período inicial de dominação hispânica no México.

E o primeiro personagem desse jogo político e sem dúvidas, o principal alvo de críticas de Cortez

O relato de Hernan Cortez tem um aspecto

era Diego Velásquez, governador de Cuba. Em seu

peculiar, aparentando o melhor possível, como se o

relato, parece que ele tem uma incrível mania de

ocorrido na América tivesse se dado de um modo

perseguição. Ele deixa claro que Velásquez sempre

pacífico e ordeiro, que a violência foi pouco

atrapalhava os seus planos e sempre que podia

utilizada, os nativos facilmente se rendiam a ele e

manchava a sua imagem com acusações, que

que os povos que estavam sendo dominados

segundo o relator, eram infundadas e que poderia

pareciam estar felizes por estarem debaixo da

ter feito mais se não houvesse intromissão. Além

égide hispânica. A forma com que Cortez expressa

disso, ele mesmo tentava difamá-lo, como

os mecanismos da conquista nas cartas está muito

podemos ver na primeira carta, quando os

atém aquém da realidade. Enfim, ele descreve um

colonizadores descobrem ouro na costa mexicana:

mundo perfeito, um relato surreal o que de fato,

“Ao saber disto, Diego Velásquez, movido mais pela cobiça do que pelo zelo, despachou seu procurador à rainha Espanhola com um relato aos padres de São Jerônimo, que ali residiam como um relato aos padres destas Índias, para que fosse às ricas terras pouco conhecidas.” 2

não foi. Ele encobre muita coisa, omitindo algumas verdades ou torcendo outras, sempre preocupado em passar ao remetente desta carta, a saber, o

Percebe-se que neste fragmento a tentativa de

monarca espanhol, uma imagem boa de si e de sua administração. O que será feito aqui é uma ótica política da fonte e auxiliado por uma pequena

incriminar o outro, afirmando que Velásquez agia por cobiça, interesse próprio na tentativa de retirar

bibliografia, alguns pontos que chamaram a

os olhares desconfiados dos reis ibéricos de si. Na

atenção do autor serão discorridos aqui.

verdade, o que ocorre é o fato de Cortez sempre se

Pela

observação,

podemos

ver

algumas

características da administração espanhola no início de tudo, das divisões internas e dos interesses que permeavam esse processo.

colocar como a grande vítima dos opositores que travavam o seu método de gestão da colônia. Mas grande questão era a razão de tamanha implicância. Temos algumas hipóteses e uma delas era que o México, até aquele momento, era

Tensões na américa espanhola

subordinado a Cuba. Ao sugerir mais autonomia ao rei da Espanha, a saber, Carlos I (V da Alemanha).

Cortez sempre tentava mostrar ao rei da Espanha que ele era o mais capacitado para cuidar dos seus domínios na Nova Espanha. Veja o que ele diz:

Seria muito conveniente para Cortez e isso não foi apenas

CORTEZ pag. 154

particularidade

dele.

Segundo

Schwartz e Lockart o processo de expansão “Era mais ou menos assim: um personagem ou personagens antigos e importantes de uma determinada área propunham a aquisição de um território próximo já conhecido, mas ainda não ocupado, e o governador local aprovava a iniciativa, até ajudando a organizá-la, na esperança de que a nova aquisição se tornasse parte de sua própria jurisdição. Mas assim que o líder da expedição fosse bem-sucedido, ele

“(...) Estando eu na província de Panuco, correu o boato de que eu voltaria para Castela, o que causou grande alvoroço. E a província de Tututepeque voltou a se rebelar (...). Tive que ir para lá a fim de dominar a situação.” 1

1

uma

2

Idem, pag. 16


G N A R U S | 59 escreveria à coroa pedindo uma governadoria separada, que em geral era concedida. (Muitas vezes era esta a primeira vez que a coroa ouvia falar do líder e da nova região). Deste modo Porto Rico e Cuba tornaram-se independentes de Santo Domingo, depois o México ficou independente de Cuba, e assim por diante (...)” . 3

Olhando por este ângulo, podemos partir do

era a aventura, e sim a pobreza e a rivalidade”.4 Se de um lado temos uma grande leva de imigrantes espanhóis tentando uma vida menos sofrida na América, de outro temos elementos da baixa nobreza que vêm para o Novo Mundo, sedentos por riqueza, glória e fama.

pressuposto que Velásquez teria arrecadado

A luta que havia nas colônias e dos funcionários

financiamento para Cortez a fim de que este desse

reais foi citada anteriormente era ao mesmo

desenvolvimento a fase continental da Conquista. E

tempo, benéfica e prejudicial à Coroa.

partir daí, pode trabalhar na hipótese de que

benefícios eram que a partir daí, e desde o início da

Cortez queria ganhar status político e social. E por

dominação, a Espanha translada seu modelo

quê? Uma vez estando subordinado a outro

administrativo diretamente para as Américas,

governador ele não teria tanta autonomia para

desde as áreas locais como os cabildos até as mais

governar. E ao possuir esta independência na

altas esferas como o Conselho das Índias e Casa de

gestão do local conquistado, ele ganharia mais

Contratação. Gruzinski afirma que

notoriedade

e

prestígio

diante

de

“Essa extensão irresistível foi acompanhada de uma política de uniformização da língua e da lei. (...) O castelhano foi o instrumento da administração, a língua dos vencedores, dos mestiços, negros e mulatos, e também das elites indígenas.” 5

seus

subordinados, da sociedade e da própria Coroa. Ao que parece, o poder metropolitano incentivava, ainda que de forma indireta, essa rivalidade entre

Para percebermos essa relação direta de

os próprios funcionários da sua administração. A busca por essa ascendência social tinha motivo. Para Ruggiero Romano, Cortez era um elemento da

dominação, basta olhar um fragmento da primeira carta de Cortez ao rei da Espanha:

baixa nobreza, título herdado por seu pai. Segundo

“No dia seguinte, entramos em nosso cabildo e mandamos pedir ao capitão Hernán Cortez, em nome de vossas altezas, que nos mostrasse os poderes e instruções que havia recebido de Diego Velásquez. Verificamos então que seus poderes já haviam expirado não podendo dali em diante aplicar a sua justiça .“ 6

os relatos que o autor recolheu em sua pesquisa, apesar do título de nobreza que ele tinha, era alguém

empobrecido,

sem

grande

representatividade na Corte. Os hidalgos estavam abaixo na hierarquia nobiliárquica dos Grandes Nobres, como romano diz em seu livro. Logo se justifica a busca de Cortez pelo enobrecimento de seu nome. E a exemplo dele, muitas pessoas deixaram a Espanha em busca do “El Dorado” na América, de uma mudança de vida, de ascensão que

Primeiramente percebemos que antes mesmo da consolidação do domínio espanhol já existia um

cabildo ali. A instauração de mecanismos administrativos era simultânea aos processos de conquista. Romano fala que “A América (...) não esperou os administradores seguros de seu poder para começar a se organizar; os próprios conquistadores começaram, e muito cedo, a constituir os quadros da vida administrativa. As cidades são “fundadas” por ata pública. Registra-se o nascimento do

na metrópole, a possibilidade disso ocorrer era praticamente nula. Não é à toa que Schwartz e Lockhart afirmam que “o motor da expansão não

3 4

SCHWARTZ e LOCKART, pag. 105, ano 2002 SCHWARTZ e LOCKHART, p. 103

Os

5 6

GRUZINSKI, pág. 95 CORTEZ, pag. 28,29


G N A R U S | 60 novo núcleo urbano; imediatamente convoca-se o cabildo (assembleia pública), cujas sessões são solenemente relatadas em um registro.” 7

mesmo tempo em que se colocavam os ideais espanhóis para unificar os povos nativos. As “Leis das Índias”, aplicadas em todo o Império

Pra ratificar essa afirmação, podemos observar que ao longo das cartas, Cortez afirma ter retirado

americano, reforçava, o que podemos chamar de uniformização da diversidade.

o quinto real, ou seja, os impostos. Isso prova mais

Outro ponto importante é que, ao olharmos para

um elemento de dominação utilizado pelos

a fonte primária, percebemos o processo de ruptura

grandes impérios para assegurar os seus domínios,

com o governo de Cuba e a necessidade gerada de

demonstrando assim que a égide espanhola sobre a

uma administração própria. Logo, os mecanismos

América veio para ficar.

utilizados na conquista deram a vantagem da

A compreensão que temos é uma reafirmação do próprio poder espanhol, uma vez que a união dos

imposição cultural e ideológica dos aparelhos estatais desde o princípio.

reinos ibéricos onde hoje, se localiza a Espanha,

Mas passemos as desvantagens do poder real, é

havia se realizado recentemente até então, ao

que a fiscalização da administração não era tão

Império Asteca - Império Pré-Colombiano 1325 – 1521

7

ROMANO, pag. 36


G N A R U S | 61 eficaz como parece. Talvez por conveniência do

ajudar, também podem atrapalhar. Seria, então,

próprio poder real naquele momento ou por

uma espada de dois gumes. E algo que nos chama

dificuldade de comunicação. Romano dirá que

atenção nos relatos e partindo da fala anterior de

“Na verdade, o “império” é um grande arquipélago cujas diferentes ilhas estão mal ligadas entre si, muito isoladas umas das outras. E como se isso não bastasse cada “ilha” desse arquipélago é animada por forças centrífugas difíceis de controlar (...). As “províncias” afastadas do centro do império têm, pois, naturalmente, tendência a constituir entidades autônomas, sobre as quais o poder central não pode se exercer devidamente (...).”8

Romano, é o simples fato de que na América havia forças centrífugas. Maquiavel afirma que um bom administrador

deveria

conter

essas

forças

centrífugas, que uma vez fora de controle poderiam facilmente desintegrar a ordem. Cortez chamava para si essa responsabilidade. Em outras palavras, ele se autodenominava no único capaz de controlar

Voltamos, então, para a questão da divisão interna entre as tensões dos nativos e dos próprios espanhóis, os

funcionários

reais.

Primeiro

abordamos

o tanto que em uma das cartas, ele diz que apenas o

relacionamento tenso entre Cortez e Diego Velásquez, rumor de que ele seria removido da liderança que foi um exemplo entre as divergências dentro da causou um grande tumulto entre os nativos. É importante lembrar que os princípios da Europa

burocracia hispânica: “(...) um bergantim vindo de Cuba, trazendo um tal Juan Bono de Quejo, o qual era portador de umas cem cartas de dom Juan de Fonseca, bispo de Burgos. Nestas cartas, que deveriam ser distribuídas a pessoas influentes destas terras, o bispo pedia que passassem a dar obediência a Cristóbal de Tapia e não a mim. Tapia àquelas alturas estava em Cuba e havia conseguido com Diego Velásquez que fornecesse o bergantim.” .9

Mas não era só com Diego Velásquez que os problemas

administrativos

se

resumiam.

As

divergências existiam dentro do próprio grupo aliado de Cortez. Um dos casos era de um líder nativo que planejava uma emboscada para matá-lo. Em outro contexto, Cristóbal de Olid foi condenado à morte por traição. Isso significa que apesar da

renascentista delineavam as marcas culturais da Nova Espanha (México) nos mecanismos de dominação e consequentemente, o pensamento do personagem histórico. Ao longo do processo haviam interesses dos dominados dos astecas, que se aliaram a Cortez em busca da libertação do jugo asteca e sabemos bem que, na verdade, foi uma grande decepção e só os espanhóis obtiveram vantagens. Se fôssemos usar a linguagem maquiavélica, ele soube se aproveitar da

fortuna (circunstâncias), da religião dos astecas e da insatisfação dos povos dominados por aquela etnia para dominar a todos.

administração espanhola ter um objetivo comum,

Corrupção na nova Espanha

havia interesses diferentes de ambas as partes e, portanto, os europeus não eram tão unidos como se imagina. E outro ponto importante que não se pode ignorar era que Cortez não era unanimidade entre os seus próprios aliados. E novamente tocamos em um ponto importante que não pode ser ignorado: os interesses individuais, que ao mesmo tempo em que podem

8

ROMANO, pág. 35,36

Cortez não foi diferente dos inúmeros casos de crimes contra a Coroa espanhola, ou melhor, crimes de lesa-majestade. Ele, além de administrador, era

encomendero. De acordo com Helen Osório, “Cortez (...) se utilizou de sua encomienda (400 índios) para extrair ouro, construir estaleiros e

9

CORTEZ, pag. 154


G N A R U S | 62 barcos e manter soldados nas terras recém-

Ele poderia ter usado a concessão que foi por ele

descobertas. Ainda que não houvesse conexão

cedida para proveito próprio. Nada o impedia, pois

legal entre encomienda e propriedade de terra, ao

onde não havia uma fiscalização rígida até então.

menos nas zonas mais importantes do império, a

Tal precariedade dava margem para freqüentes

relação é clara”. Ao que tudo indica, Hernan Cortez

abusos de poder por parte dos conquistadores.

tinha tanto a concessão de terras como a concessão

Romano utiliza uma frase comum dessa época para

do trabalho indígena outorgadas pelo rei da

resumir os mandos e desmandos por parte dos

Espanha.

conquistadores que ocorriam aqui: Dios está em el

Como sabemos a corrupção não é exclusividade dos dias atuais. Um exemplo é que no final da 5ª

cielo, El Rey está lejos, yo mando aqui (Deus está no céu, o rei está longe e aqui mando eu).

carta, ele se defende de acusações como crime de

O que aparentemente era conveniente a

lesa-majestade, que provavelmente teria sido uma

metrópole, passou a ser um problema ao rei, pois a

espécie de sonegação de impostos à Coroa, uma

mão-de-obra começara a morrer e a metrópole

vez que ele relata que está constantemente em

precisava obter maior controle sobre a colônia,

contato com as finanças e ele mesmo faz a

além do contrabando dos minérios extraídos aqui

contabilidade do que entra e sai nos gastos reais na

começava a dar prejuízos a Coroa. O monarca

colônia:

espanhol precisava deter o monstro que ele mesmo

“Pelo que tenho sentido, mui católico príncipe, muita gente tem posto alguma neblina ou obscuridade ante os olhos de vossa majestade, chegando a acusar-me de criminae lesae majestatis (...). Outra coisa que têm me acusado é de que tenho a maior parte destas terras para mim, me servindo e aproveitando delas, de onde se tem extraído grande quantidade de ouro e prata.” 10

Não podemos afirmar com certeza se ele realmente ludibriou o monarca espanhol, mas ele tinha condições propícias para fazê-lo. Ele tenta se justificar, dizendo que ele teve prejuízos tirando dinheiro de suas finanças pessoais para pagar os

havia deixado crescer. Por esta razão, foi necessário aumentar a fiscalização. Também na carta cinco, o rei envia um juiz chamado

na

de governador e juiz, o que, segundo ele, nega para melhor servir a sua Majestade. Observe o que ele diz: “Logo que o dito Luis Ponce passou desta vida para outra, (...) o cabildo desta cidade e os procuradores de todas as vilas vizinhas me pediram por parte de vossa majestade que eu juntasse ao meu cargo de governador ode justiça, como tinha anteriormente. Embora a insistência de todos e os argumentos usados, eu me neguei a aceitar e tenho me negado até agora.” 11

da Coroa e para expandir o império. Segundo suas próprias palavras, “(...) se eu descumpri a lei alguma

CORTEZ, pág. 214

ajudar

Cortez lhe oferecem a centralização do seu cargo

feito, mesmo que fosse ilegal, era para o benefício

10

para

adoece e morre pouco depois. Os homens de

longo dos relatos, afirma que tudo o que ele tinha

que ele poderia ter mesmo cometido um ato ilícito.

Ponce

América. Porém, o que ocorre é que o magistrado

nenhum superior a ele e pelo menos duas vezes, ao

forma, ele nos dá uma margem para acreditarmos

de

administração e por que não, ser os “olhos reais” na

custos da expedição, diz que não foi ajudado por

vez foi para bem servir vossa majestade”. De certa

Luís

Mas de fato, antes da chegada deste homem metropolitano, o que podemos notar a partir da fonte o fato de Cortez já ter esse poder centralizado

11

CORTEZ, pag. 213


G N A R U S | 63 em suas mãos e Ponce vem para vigiá-lo e para exercer a justiça aqui. Segundo Cortez, ele nomeia Marcos de Aguilar, alcaide maior de Ponce para o cargo que o superior ocupava antes de falecer, mas este também rejeita o cargo. “Resolvi inclusive nomear para o cargo Marcos de Aguilar, a quem Luis Ponce tinha como alcaide maior. Este, no entanto, também se negou a aceitar o cargo, dizendo que não tem poder para tal.” 12

Com o magistrado fora do caminho, e ninguém, supostamente, queria assumir tal responsabilidade, Cortez centralizava novamente o poder em suas mãos. Entretanto não podemos ser ingênuos ao ponto de acreditar piamente no que fonte primária nos diz. Analisando o contexto da América espanhola naquele período, podemos formular a hipótese de que Aguilar não teria assumido o cargo por ser coagido a não fazê-lo, uma vez que Cortez já tinha bastantes relações políticas na Nova Espanha. A partir daí entendemos o porquê de seus apoiadores terem oferecido o cargo de juiz a ele anteriormente, e torcendo um pouco os fatos, afirma em ter oferecido o cargo a Aguilar, que como fora dito antes, não aceitou. Conclusão Ele arroga para si os atributos de ser o mais capacitado para governar a Nova Espanha. Mas é sensível nos relatos dele que sua conduta aqui na colônia não era irrepreensível diante das leis hispânicas. Basta olharmos em tudo o que vimos anteriormente. Uma vez que ele tem problemas com seus superiores e até mesmo com seus subordinados espanhóis e não-espanhóis, pode-se concluir que ele não era um político virtuoso, apesar de tentar criar a aparência de ser um.

12

Idem, pag. 214

Era de se esperar que ele tivesse atritos com os nativos, pois um estranho que chega a uma terra e se afirma o dono dela, como os colonizadores chegaram, seria lógico que houvessem lutas em defesa da mesma. Porém, o que passa despercebida pelos historiadores e vemos isso refletido nos livros didáticos e às vezes, em acadêmicos, é o fato de que os espanhóis também estavam divididos entre si. No princípio dos mecanismos da conquista e ao longo de todo o período colonial o que muito vigorou nas Américas no passado e até mesmo hoje foram os muitos interesses individuais entre os próprios funcionários da Coroa e talvez seja esse um dos principais motores da conquista. Apesar de a ênfase ter sido nos relatos de Cortez, ele foi um exemplo de vários outros casos que teve um cunho parecido. Foi conveniente para o rei que houvesse esses interesses, mas ele não contava que isso iria


G N A R U S | 64 prejudicá-lo e que seria necessário obter maior controle com o que acontecia aqui. Cortez foi um

Bibliografia

exemplo de pessoas que abandonaram a metrópole europeia em busca de fama e fortuna na América ou, pelo menos, em busca de uma vida melhor. E a história se repete em outros lugares do planeta até hoje com fluxos migratórios para a Europa, para América e etc. Seja como for, a história nos revela que os mesmos problemas de outrora se repetem até os dias atuais, mudando o contexto, a situação e o tempo, ou seja, as necessidades continuam as mesmas. Mas de maneira alguma estamos colocando o personagem como vítima ou algoz de algo ou alguém. Porém, Cortez era parte de todo um sistema político arquitetado para explorar e expropriar a América. E infelizmente, a exploração continua. O que mudou foram os dominadores. Eron Santos Pereira é graduando do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ - Campus Nova Iguaçu/RJ)

CORTEZ, Hernan. A Conquista do México. trad. Jurandir Soares dos Santos. 2ª ed. Porto Alegre. L&PM, 2007. Na íntegra (pag. 218). OSÓRIO, Helen. Estruturas socioeconômicas coloniais In: WASSERMAN, Cláudia (coord.). História da América Latina: Cinco Séculos. Porto Alegre: Ed. da Universidade, UFRGS, 1996. ROMANO, Ruggiero. Os Fatos. In: Os mecanismos da conquista colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973. (p. 11-66) GRUZINSKI, Serge. Ocidentalização. In: O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. (p. 93-110) SCHTWARTZ, Stuart B. & LOCKHART, James. Das ilhas ao continente: a fase caribenha e as conquistas posteriores. In: A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. (p. 85112) TODOROV, Tzvetan. Conquistar. In: A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1988. (p. 49-120) ATLAS DA HISTÓRIA UNIVERSAL (Times Books Ltds., Sociedad Comercial y Editorial Santiago Limitada) Rio de Janeiro. O Globo Ltda. 1995 (p. 178 - 179)


G N A R U S | 65

Artigo:

PRIMEIROS ACORDES DISTORCIDOS: A CONSTRUÇÃO DE UM ROCK AND ROLL BRASILEIRO NA DÉCADA DE 1950. Por Gustavo Moura

E

ste artigo tem como objetivo analisar os

de dois mundos na Europa.

primeiros passos do Rock Brasileiro,

Com esse crescimento do Socialismo no mundo

partindo da chegada do Rock and Roll no

os EUA não viam com bons olhos que o socialismo

Brasil, este vindo pelas telas do cinema do eixo

tomasse países onde se tinham relações próximas

Rio-São Paulo. Percebemos também os impactos

e até mesmo a tomada do ideal de seus jovens,

que a juventude brasileira veio a sofrer naquele

nesta disputa entra a indústria cultural americana

momento com o novo estilo musical que crescia

com grande influência, divulgando o “American

cada vez mais no Estados Unidos. O Mundo vivia

Way of Life1”, principalmente com a veiculação de

um momento pós grande guerra, que influenciou

filmes, e com cinema começam a chegar as roupas,

diretamente em várias áreas, com as duas grandes

músicas dentro do padrão E.U.A.

guerras os EUA veio a crescer economicamente com

relevância,

sendo

um

dos

maiores

exportadores do planeta naquele momento. O mundo vivia uma guerra econômica e ideológica entre dois lados distintos, um lado trazia a União das Republicas Socialistas Soviéticas (URSS), onde o sistema socialista foi implantado e que era uma alternativa que começava a ser vista com bons olhos por alguns outros países e do outro lado tínhamos os Estados Unidos da América, os EUA, onde o sistema que naquele momento e até hoje é defendido seria o capitalismo. Dando início à Guerra Fria onde após a guerra essas duas grandes potencias dividiram a Alemanha, simbolicamente isso significa a divisão

O Brasil da década de 50 viveu um período onde começam acontecer avanços econômicos, com a chegada de várias mercadorias, o Brasil daquele momento, comparado ao modelo de 1

American Way of Life traduzindo significa “Modo de vida americano” que é relacionado ao “American Dream” que significa o sonho americano, que foi um período de consumo em massa da população estadunidense de produtos que antes eram de luxo e começam a se tornar mais acessíveis a grande população para ver essas transformações com mais detalhes ver a Era de Ouro in Era dos Extremos, Hobsbawm (1995)


G N A R U S | 66 Estadunidense, vivia um “atraso” relevante, era

grande diferença nos seus significados. O Rock and

como se estivéssemos a 50 anos atrás do resto do

Roll é um estilo musical que tem como

mundo. A industrialização brasileira e abertura

característica a sua capacidade de levar o ouvinte

para investimento estrangeiros era essencial para

à dança como retratou Bill Haley and His Comets2

o crescimento econômico, nisso chega por

na sua música “Rock Arond The Clock” que é

exemplo a indústria automobilística, também

considerado um dos marcos fundadores do Rock

começam a ter um maior acesso as músicas vindas

and Roll que durou de 1954 à 1958.

dos EUA, podemos até colocar como uma consequência

da

estratégia

americana

de

perpetuar o seu estilo de vida, com a chegada de filmes onde artistas como James Dean viviam um vida estilo Rock and Roll, mas não podemos deixar de perceber que o capitalismo tem as suas brechas onde oferece brechas e nisso alternativas, o Rock and Roll pode ser colocado como um início de movimentos que surgiram nos anos 60 e posteriormente como críticos ferozes do sistema capitalista ROCK AND ROLL & ROCK: DIFERENÇAS Antes de entramos nas características do Rock and Roll e sua utilização pelos jovens da década de 1950, como uma forma de escapar dos dogmas e paradigmas das gerações anteriores, devemos fazer uma breve diferenciação entre: o que é Rock and Roll e o que é Rock. “É possível caracterizar 3 estágios que marcaram o rock em seu processo evolutivo. De início, os blues ritmados que era música do público negro; depois surgiu o rock and roll pelo descobrimento e utilização dos blues pelos músicos brancos e, finalmente, nos anos 60, a música jovem passou a ser chamada simplesmente de rock, principalmente após a consolidação dos Beatles como grandes intérpretes e compositores. Segundo Robert Palmer, o rock é uma música baseada no rock and roll, embora mais complexa. (PAVÃO 1989, PG. 17)”

Para um apreciador do estilos, muitas vezes as duas denominações podem ser interpretadas com o mesmo sentindo, mas entre as duas há uma

Bill Halley and His Comets

O Rock vem a partir da década de 60, década em que há um grande levante da juventude para as questões políticas norte-americana, na qual aconteciam simultaneamente ao Rock lutas internas por obtenção de direito dos cidadãos e guerras. O Rock tem em sua essência a temática política tendo como um de seus marcos fundadores a música de Bob Dylan3, "Blowin’ the

Wind" de 1963, cantada como hino dos direitos na tumultuada

década

de

1960,

denominada

primeiramente de “Música de Protesto”, depois sendo denominada de Folk Rock4. Também começam a surgir bandas de Rock na Inglaterra dentre elas “The Beatles” e “Rolling Stones” que como Bob Dylan foram divisores de águas nessa diferenciação de denominação entre Rock and Roll e Rock. 2Cantor

americano de rock'n'roll, em atividade entre 1949 e 1981, quando morreu. 3Robet Allen Zimmerman, nasceu em Minesota, em 1941. Começou a tocar violão aos 12 anos e formou vários grupos ainda na escola. Foi na universidade que adotou o pseudônimo de Bob Dylan, provavelmente em homenagem ao poeta Dylan Thomas. (Kubrusly, 1984 pg. 75) 4Estilo musical que mistura a música folclórica norteamericana com as guitarras do Rock and Roll, sendo uma das raízes do Rock Psicodélico.


G N A R U S | 67 jovens no início da adolescência até o momento crítico da entrada nos tortuosos caminhos da linha de produção. Isto é, o nosso público é aquele que vai da primeira mesada ao primeiro salário.” (CHACON, 1983. PG.16)

Albert Pavão diz que a juventude dos anos 50 tinha um certo poder aquisitivo - ao contrário das décadas anteriores - o que se explica pela situação extremamente favorável da economia norteamericana nos anos de Eisenhower.5 Nessa fala de Albert Pavão vemos que o jovem começa a procurar caminhos de independência financeira, mas não devemos ser generalizantes, pois apenas Bob Dylan

uma parcela da classe média conseguia essa ascensão, com isso o público consumidor do Rock

ROCK AND ROLL: SUAS ORIGENS E ÍCONES No decorrer das épocas uma parcela da juventude era evidenciada e posta como um meio de evolução dos pensamentos que estruturavam a

and Roll geralmente não eram jovens de classe baixa, esse maior consumo das outras classe só virá a partir da década de 60 e terá força na década de 80.

sociedade em que viviam, muitas vezes indo de encontro aos dogmas e tradições mantidas pelos seus pais e parentes mais velhos, sendo sempre à juventude creditado o pensamento contra cultural de uma localidade, vemos no decorrer dessa

Com toda essa ascensão juvenil pós-guerra surge nos E.U.A. um novo estilo musical, que desacreditado por conta das misturas de estilos tradicionais, onde ao mesmo tempo agregava em si a música Negra e Branca.

história que a partir da segunda guerra mundial os jovens começaram a se encontrar em lugares que os levaram a questionar, governos, sistemas e até as pessoas, sendo que buscavam um amparo nas artes que em várias vertentes levava os gritos, daqueles que desacreditados e excluídos das

Existem três elemento que fazem com que o seu público seja amplo, elas são a pop music, o

rhythm and blues e a country and western music. Com a junção de três elementos distintos se constrói o seu estilo próprio, chamado de Rock and Roll.6

decisões queriam mostrar que poderiam também escolher e opinar nos rumos de uma sociedade. Com tudo isso as indústrias culturais começaram a perceber, que em um público jovem que começava a se surgir uma ascensão da sua liberdade individual, poderia haver um sistema consumidor em potencial, sendo lucrativo em duas vertentes a de produção e a de consumo. “Sim, mas quem é esse consumidor? Majoritariamente, ele é representado pelos

Como já observado na criação do Rock and Roll vemos que em uma das suas raízes temos a música negra americana, sendo ela um estilo que traz ao ouvinte a necessidade de interagir com a música, sendo moldado em um estilo dançante, que com essa característica conseguiu muitas críticas e repressões por parte de uma sociedade americana dos anos 50, que vivia com sentimentos racistas 5 6

PAVÃO,1989. PG.15 CHACON, 1983


G N A R U S | 68 expostos, os pais conservadores não queriam ver

Violência (...) plateias de todo o mundo provocavam tumultos que chamavam atenção para a insatisfação reinante entre os jovens e, sob o ponto de vista da comunicação, para o poder de mobilização contido no novo ritmo.” 8

seus filhos dançando sensualmente em público, atitude que inevitavelmente era feita pelos jovens que apreciavam a música. Para muitos, o maior intérprete do Rock and Roll, foi Elvis Presley, que

A chegada deste filme ao Brasil, que foi

em suas aparições na TV era proibido de ser

exibido no eixo Rio-São Paulo, foi sentida como

mostrado da cintura para baixo, por ser “obsceno

em outras partes do mundo, era um filme que

de mais” para aparecer dentro das casas

mostrava um drama juvenil que tinha como trilha

conservadoras americanas, com isso ganhou o

sonora o Rock and Roll.

apelido de Elvis “The Pélvis”. Vemos que mesmo com as suas restrições esse estilo começa a ser

“O Filme da Metro, "Sementes da Violência" é exibido no Rio e em São Paulo, mostrando para os jovens atônitos daqui, mais do que um drama juvenil dos vizinhos do Norte, mas uma música infernal e incontrolável que era o rock and roll.”9

anexado aos meios da indústria cultural. O cinema começa a se adequar a essa juventude, trazendo em seus conteúdos, questionamentos e temas que aquela

juventude

descobrir.

pós-guerra

começava

a

.

Com essa chegada do Rock and Roll no Brasil, começam

a

ser

abertos

novos

tipos

de

comportamentos, em uma parcela da juventude “No cinema sempre há um espaço para dançar”: a chegada do rock and roll no Brasil.

brasileira,

baseando-se

nos

ícones

norte-

americanos, esses jovens começam a ter no que ser

No Brasil uma parcela da juventude não ficou

espelhar e justificar atitudes, para a partir daquele

inerente a todos esses acontecimentos externos ao

momento liberar seus sentimentos e vontades que

país, começavam a surgir movimentos nacionais

na sociedade brasileira era reprimida por toda a

ligados ao Rock and Roll nos final dos anos 50,

conjuntura política e comportamental, construída

sendo as primeiras representações do Rock

por uma sociedade em sua maioria ainda

brasileiro.

conservadora. Uma amostra de

toda essa

liberdade que os corpos juvenis mostraram foi “Embora tenha surgido nos Est. Unidos e logo após feito enorme sucesso na Inglaterra e países de língua inglesa, o rock’n roll invadiu o mundo todo. Já nos anos 50, na grande maioria dos países ocidentais, se encontrava um ídolo de rock local. Isto sucedeu na França, Itália, México, Argentina e... Brasil. ”7

O Rock and Roll, chega no Brasil a partir do cinema na década de 50, mais precisamente em 1955, mas esse efervescência no mundo já

noticiada num jornal paulistanos, que mostra que sendo liberados das amarras dos dogmas da sociedade brasileira dos anos 50, os jovens foram de encontro a ela, desobedecendo suas leis e imposições. Vemos nesse logo trecho do livro “Rock Brasileiro 1955-65”, onde é importante para se exemplificar esse comportamento. Albert Pavão transcreve o noticiado nesse jornal:

começava em 1954:

“Rock and roll na cidade” “A fita ontem exibida era aguardada ansiosamente por certo tipo de moças, cuja

“Em 1954, após a projeção de Sementes de 8 7

PAVÃO,1989. p.18

9

RODRIGUES, 1994. PG. 15 PAVÃO,1989. p. 21


G N A R U S | 69 idade varia entre 14 e 18 anos (teenagers nos Est. Unidos). Não é ainda a adolescência; pelo menos para os garotos é ainda puberdade. Os meninos vestem blue jeans, calça de zuarte desbotada com bainhas dobradas, que entre nós são usadas como índice de grãfinismo e, no lugar de origem, utilizadas para a ordenha das vacas ou limpeza de chiqueiros. Também vestem blusão de camurça e uma camiseta de jersey; amarram o estojo de ray-ban na cintura, usam cabelos sobre as orelhas, descendo pela nuca e fofos no topete; fumam, leem gibis e imitam Marlon Brando ao enrolar os suéteres ao redor do pescoço. Estão matriculados em colégios caros. Já as meninas suspiram por James Dean, usam cabelos curtos despenteados, vestem calças compridas coloridas, apertadas e abertas abaixo dos joelhos; mastigam bubble gums e usam malhas colantes, óculos escuros e sapatos de salto alto ou sandálias de praia”. Na exibição do “Ao Balanço das Horas”, houve uma baderna como jamais se havia visto em São Paulo. Enquanto o filme era exibido, os jovens dançavam, gritavam e até queimavam rolos de inseticida. O tumulto foi tão grande que o governador do Estado (Jânio Quadros) foi obrigado a intervir. Informado, Jânio encaminhou despacho ao Secretário de Segurança nos seguintes termos: “Determine à polícia deter, sumariamente, colocando em carro de preso, os que promoverem cenas semelhantes. Se forem menores, entregá-los ao honrado Juiz. Providências drásticas”. Por sua vez, o Juiz de Menores, Aldo de Assis Dias, tratou logo de baixar Portaria proibindo o filme até 18 anos. Nela escreveu: “O novo ritmo divulgado pelo americano Elvis Presley é excitante, frenético, alucinante e mesmo provocante, de estranha sensação e de trejeitos exageradamente imorais”. E prossegue: “A música exerce influência prejudicial à juventude. Parece-me também conveniente que seja feito apelo às estações de rádio e televisão para que não transmitam música com esse ritmo, até que se restabeleça o equilíbrio dessa mocidade”.10

Como vimos na transcrição de Albert Pavão o governo de São Paulo se assustou diante dessa explosão juvenil emitindo uma "Nota Oficial", que dizia: "Determine à polícia deter, sumariamente,

colocando em carro de preso, os que promoverem cenas semelhantes. Se forem menores, entregá-los ao honrado Juiz. Providências drásticas". Esse

gesto mostra como foi reprimida uma nova atitude, sendo ela diferenciada dos padrões ditos normais estabelecidos pela sociedade. O filme como vemos no cartaz era tratado como “O mais sensacional filme da atualidade” e também tinha como classificação a idade de 18,

com isso

analisamos que era um filme direcionado não para aquela juventude que tinha 15 ou 16 anos, mas sim uma juventude que já obtinha um certo poder aquisitivo, onde isso fazia com que o consumo de produtos que apareciam no filme viessem a ser notados, sendo impresso na nota divulgada pelo governador de São Paulo no momento em que ele fala

de

jovens

que

“promoveriam

cenas

semelhantes”.

Cartaz filme Sementes de Violência

Influenciados por esse estilo musical que chegava no Brasil pelo cinema, como já vimos anteriormente, os jovens brasileiros começavam a imitar os personagens dos filmes, vestindo as mesmas roupas, anexando palavras em inglês a sua fala, isso mostra que parte da juventude brasileira começava a se inserir em um sistema que tinha como exemplo uma cultura estrangeira, mas que poderia se encaixar nas condições do Brasil, que

10

PAVÃO,1989. p. 23-24


G N A R U S | 70 poderiam ser reproduzidas em vários âmbitos, seja o família ou o social. Produção roqueira brasileira na década de 1950 O Brasil vivia um período chamado de “Anos Dourados”, estando como presidente Juscelino Kubitscheck, tinha como plano de metas do seu governo o desenvolvimento brasileiro referente a 50 anos em 5. Com esse plano de desenvolvimento e a chegada do Rock and Roll no Brasil dos anos 50, temos o registro da primeira gravação de Rock and Roll. “No Brasil, o rock comportamento teve muita importância durante todo o tempo, embora o rock música não mostrasse a mesma repercussão, pois não teve o apoio dos principais veículos de comunicação no período 1955-65, que mostravam clara e óbvia preferência pela bossa nova.”11

O Primeiro rock and roll feito por brasileiros é uma composição de Miguel Gustavo, com o título, “Rock and Roll em Copacabana” essa música foi gravada pro Cauby Peixoto pela RCA em Janeiro de 1957, mas só foi lançada em Maio, ela conta uma história de um jovem que com outras pessoas na porta do cinema começava a dançar o novo ritmo, mostrando como era contagiante e

Esse novo estilo inicialmente foi absorvido pelo

dançante.

pelas orquestras de Jazz, sendo o Jazz como já

Vemos que a produção roqueira é feita por

vimos anteriormente um dos pilares do rock e

artistas de outros gêneros, gravando músicas

talvez por isso seja coerente ele inicialmente ter

isoladamente. A chegada dos novos hits tinha uma

absorvido as canções roqueiras.

certa dificuldade para chegar no Brasil com isso a

A Primeira cantora no Brasil desse novo estilo

alternativa

foi Nora Ney, uma cantora de boleros e samba

brasileiros.

canção que gravou o primeiro rock, mostrando

a

regravação

por

artistas

“Em 1957, nossas principais fábricas de discos não tinham representação de importantes gravadoras dos Est. Unidos. Assim sendo, não poderiam lançar tudo que entrava no hit-parade de lá. A solução eram as gravações em inglês feitas por aqui mesmo, que vinham a substituir os lançamentos originais. Uma expoente desta fase de covers foi Lana Bitencourt, que cantava Little Darling no lugar da gravação de sucesso do grupo vocal Diamonds. O saxo-fonista Bolão, juntamente com seu conjunto (Rockettes), também se especializou nesse tipo de trabalho, destacando-se o sucesso de Short Shorts. O rock no Brasil já completava mais de um ano e nossos intérpretes jovens não apareciam. É bom lembrar que não existia cantor de rock, mas cantores populares que também cantavam rock, como Cauby, Agostinho, Lana, Nora Ney e outros.”13

mais uma vez como o cinema influenciou nessa massificação do novo estilo no Brasil, Nora Ney gravou a canção “Rondas das Horas” (Rock around the clock) em inglês, e em Outubro de 1955, em novembro do mesmo ano a gravadora Continental lança no mercado um disco de 78rpm12 contendo “Ronda das Horas”.

11

PAVÃO,1989. p. 19 O disco de 78 rotações ou 78 rpm era uma chapa, geralmente de cor negra, empregada no registro de áudio (músicas, discursos, efeitos sonoros, trilha sonora de filmes, etc.). Em geral, foram grandemente utilizados na primeira metade do século XX. Até 1948 eram o único meio de armazenamento de áudio, quando foi inventado o LP, mais resistente, flexível, e com maior tempo de duração.

era

12

13

PAVÃO,1989. p. 25


G N A R U S | 71 Os Primeiros artistas nascidos do rock and roll vieram no final da década de 1950, estes novos

“O terceiro momento de “crise” e mudança na música popular, vem depois da II Guerra mundial, com o advento do rock’n roll e da cultura pop, como um todo. O jazz também sofre mudanças. (BeBop, Free Jazz etc.). A experiência musical é o espaço de um exercício de “liberdade” criativa e de comportamento, ao mesmo tempo em que se busca a “autenticidade” das formas culturais e musicais, categorias importantes para entender a rebelião de setores jovens, sobretudo oriundos das classes trabalhadoras inglesas ou da baixa classe média americana.” 15

intérpretes começavam a disputar com grandes nomes como foi o caso de Celly Campello, com “Estupido Cupido”, cuja vendagem foi tão significativa que disputou com as de artistas internacionais, como Elvis Presley por exemplo. A TV teve grande importância na consolidação do Rock and Roll, sendo na Tv Record o primeiro programa de rock, comandado pelo irmãos A

Campello que já eram ícones da juventude da época,

nele

apareciam

grandes

atrações

juventude

brasileira

deu

uma

nova

significância a essa nova alternativa, com isso usou no decorrer das décadas a rebeldia que o Rock and

internacionais como Bill Halley.

Roll trouxe com sigo das suas raízes negras, onde eram expressas suas formas de comportamento na música popular brasileira em períodos de repressão , pois desde a palavra rock and roll que vem de um gíria dos negros americanos que tem conotação

sexual,

até

das

formas

de

comportamento que a juventude usou, esse comportamento se refletia na forma de vestir, na forma de cantar e de perceber as dificuldades encontradas na sociedade conservadora, onde no Brasil era muito forte, pois chegou a se fazer uma caminhada contra a guitarra elétrica na década de 60, onde artistas de renome participaram, com isso vemos o medo que o brasileiro trazia desse hibridização, que inevitavelmente temos nas

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os anos 50 foram um momento de crescimento do

homem,

aconteceram

muitos

avanços

tecnológicos que trouxeram uma maior variedade dos bens de consumidos e uma maior exploração do trabalho do homem.14 O Rock and Roll nasce de um terceiro momento da evolução da música popular esse momento é colocado como um “momento de crise” como coloca Marcos Napolitano: 14

RODRIGUES,1992. p 15.

nossas raízes culturais. O Rock se apropriou de uma das maiores virtude da juventude, que é a vontade de mudança, por que enquanto houver um jovem revoltado com a sociedade em que vive haverá Rock nesse local, pode até parecer uma concepção ou

palavras

religiosamente

expressas,

mas

historicamente o Rock and Roll é fruto da vontade de mudança e quebra dos paradigmas impostos e sempre haverá paradigmas a serem quebrados na 15

NAPOLITANO, 2002. p. 13.


G N A R U S | 72 busca por uma sociedade livre, Marcuse(1990) ao ver os movimentos que aconteciam onde o rock era a música que regia os protestos, coloca todas as suas fichas na Arte como um meio de liberdade do homem na sociedade capitalista, nela segundo Marcuse (1990) será feita a construção de uma nova realidade, mesmo que não tenham feito em algum momento a transformação coletiva temos certeza que a transformação individual foi feita em várias pessoas no mundo e no Brasil como vimos no decorrer desse trabalho. Gustavo Moura é graduando no Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) Campus Alexandre Alves de Oliveira. ParnaíbaPiauí.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO, Antônio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos Culturais da Juventude. São Paulo: Moderna, 1990. CHACON, Paulo. O Que é Rock. 3. Ed, São Paulo:

Brasiliense, 1983. DAPIEVE, Arthur; ROMANHOLLI, Luiz Henrique. Guia de rock em CD. 2. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma história social. 7. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX (1914-1991). 2. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. KUBRUSLY, Mauricio. Enciclopédia do Rock: Todos os nomes mais importante do mundo do rock de A a Z. São Paulo: Editora Três. 1984. LEMOS, José Augusto. Rock'n'Roll, São Paulo: Editora Abril, 2003. MARCUSE, Herbert. A Arte na Sociedade Unidimencional. In: LIMA, Luiz Costa (Org). Teoria da Cultura de Massa. 4. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pg. 245-256. MUGNAINI JR, Ayrton. Breve História do Rock. São Paulo: Editora Claridade, 2007. NAPOLITANO, Marcos. História & Música: História Cultural da Musica Popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. PAVÃO, Albert. Rock Brasileiro 1955-65: Trajetória, Personagens e Discografia, São Paulo: EDICON, 1989. RODRIGUES, Marly. A Década de 50: Populismos e metas desenvolvimentistas no Brasil. São Paulo: Ática, 1992.

Elvis, The Pélvis.


G N A R U S | 73

Resenha UM CONVITE A LEITURA DE “A CONSTRUÇÃO DA ORDEM E

TEATRO DE SOMBRAS”

Por Fernando Gralha CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem e Teatro de sombras. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2003.

O

livro de José Murilo de Carvalho, é formado de uma composição que envolve um vasto saber

histórico e teórico, estilo claro e criatividade intelectual, onde o autor proporciona ao leitor uma estimulante interpretação do período imperial, que tem por objetivo principal saber não apenas o “como”, mas fundamentalmente,

o

“porquê”

das

particularidades da trajetória política do Brasil da Independência ao fim do Império.

A construção da ordem e Teatro de sombras compõem a tese de doutorado do autor, defendida em dezembro de 1974 na Stanford University. Após a defesa, os dois livros

vieram

a

público

em

edições

separadas. O primeiro foi publicado em

exemplar resenhado aqui é uma reedição,

1980 com o título de A construção da

que tem o título conjugado dos dois

ordem: a elite política imperial; o segundo

trabalhos, justifica-se, assim, não apenas

somente oito anos depois, cujo título foi O

pela qualidade das análises ali contidas, mas

teatro de sombras: a política imperial. Em

também por recuperar a unidade existente

1996, a editora da UFRJ, em co-edição com

entre ambos.

a Relume Dumará, publicou em uma única edição

a

tese

em

sua

totalidade,

transformando-a em um único livro. O

Ao utilizar a metáfora teatral para caracterizar o período o autor oferece uma


G N A R U S | 74 ótica especial, que nos permite uma

forma não só a elite política, mas a própria

consistente análise das características das

capacidade do Estado de fazer cumprir suas

elites políticas brasileiras do Séc. XIX, de sua

decisões na periferia do sistema político

formação e da relação que elas travaram

nacional. Como bem diz o autor, esses

com os partidos políticos do Império,

"constrangimentos" é que fizeram surgir o

fatores que nos direcionam à compreensão

que

dos atores principais do enredo político

ambigüidade", isto é, o fato da elite política

Imperial.

imperial, apesar de atuar com uma boa

Em A construção da ordem, José M. de Carvalho faz uma análise da constituição e composição da elite política imperial e suas metamorfoses durante o período; em Teatro

de Sombras, faz um estudo da prática política desta mesma elite, elegendo para esta tarefa alguns temas essenciais. Nos dois livros, o autor dá grande importância na discussão dos efeitos dos sistemas eleitoral e partidário sobre a dinâmica da política imperial. A obra de José M. de Carvalho segue um caminho nitidamente “institucionalista", o autor ocupa-se essencialmente com a análise do peso das estruturas institucionais sobre as atitudes da "classe política", indo contra, dessa maneira, o "sociologismo" que, segundo ele, prevalece no estudo do tema. É bastante relevante sua recusa diante das interpretações que entendem o Império como resultado do comando instrumental dos proprietários escravistas ou dos grandes comerciantes. Talvez, na desmistificação dessas idéias está, ao nosso ver, o maior mérito dos dois livros. O autor nos fornece uma análise de como a escravidão e a política de terras deu

ele

chama

de

"dialética

da

autonomia frente aos interesses econômicos mais poderosos, ter na agricultura escravista o seu suporte material. Desta forma analisa os variados cenários em que a ação se processa, as províncias e a corte, os espaços da

política

formal

e

aquele

das

representações simbólicas, o universo das instituições e o das questões que se referem ao trabalho escravo e à política de terras, isso tudo traça o perfil da ação dos atores

sociais, ao mesmo tempo em que confere um particular relevo a interpretação da construção da ordem escravista e da unidade do Império. Se a Construção da ordem tem como tema o processo de formação da elite imperial e suas especificidades, o livro seguinte, O Teatro de sombras, é uma análise

detida

de

algumas

decisões

estratégicas tomadas por essa mesma elite no momento em que a questão da formação do Estado nacional já estava resolvida e novos problemas se colocavam aos donos das decisões. Carvalho procura investigar, assim, as relações entre a Coroa, a elite política e os proprietários rurais, nos anos de 1850 a 1889, a partir do estudo das políticas fiscal e de terras e do processo abolicionista.


G N A R U S | 75 Segundo o autor, as características da

contribuindo assim, para a rediscussão de

elite política imperial, são um fator

certas “verdades” sobre o período. Segundo,

primordial para a explicação dos resultados

faz isso combinando instrumental teórico

a que se chegou depois da Independência.

com erudição histórica. É este último ponto

Mais especificamente, as suas hipóteses são

que,

as seguintes: a) a solução monárquica, a

profundidade

unidade política e o governo civil são, em

interpretações, torna os livros de José

sua maioria, conseqüências da espécie de

Murilo de Carvalho, algo bem mais do que

elite política existente na época; b) essa

um relato de "como" as coisas aconteceram

elite tinha uma forte homogeneidade

e, uma referência imprescindível para a

ideológica e de treinamento resultante da

compreensão das complexas relações entre

passagem da maioria de seus membros pela

Estado e Sociedade no Brasil.

unidas

ao já

brilhantismo conhecidas

de

e

à suas

Escola de Direito de Coimbra, o que lhe deu coesão e relativo consenso quanto ao modelo político a ser seguido. Assim,

para

finalizar,

a

sociedade

imperial era marcada por ambigüidades em várias instâncias. Era formada por uma elite cujo suporte material se achava na grande agricultura escravista, mas que tinha certa autonomia em relação a ela; por causa dessa autonomia, tomava decisões que não correspondiam aos interesses mais urgentes dos grupos econômicos dos quais dependia, mas também não se desligava radicalmente deles; essa elite organizava uma sociedade a partir de instituições liberais, mas convivia

Prof. José Murilo de Carvalho

com a escravidão e aceitava o Poder Moderador;

pregava

econômico,

mas

protecionistas;

o

liberalismo

adotava

organizava

medidas

um

Estado

altamente centralizado, mas extremamente fraco no âmbito local. Os méritos da análise de Carvalho se guardam em dois pontos: Primeiro, em estudar, através de uma nova ótica, uma realidade

bastante

estudada,

Fernando Gralha é Mestre em História pela UFJF, Doutorando em História pela UNIRIO, Professor das Faculdades Integradas Simonsen e Editor fundador da Gnarus Revista de História.


G N A R U S | 76

Pesquisa UMA ANÁLISE DA OCUPAÇÃO DE JUÍZES POR GÊNERO, RAÇA OU COR NO BRASIL E POR UNIDADE DA FEDERAÇÃO Por Romeu Ferreira Emygdio

Foto da posse da Turma de Juízes Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (13/07/2012)

O

objetivo deste trabalho é descrever as mudanças ocorridas na ocupação de juízes no Poder Judiciário brasileiro por sexo, raça ou cor e faixa etária, por

unidade federativa, com base nos Censos de 1980 a 2000. Observando a série histórica da ocupação de juízes, o trabalho descreve como as desigualdades de gênero, associadas a cor ou raça estão presentes no sistema judiciário brasileiro, entendido este de maneira abrangente. Com análise e discussão dos dados

estatísticos,

buscamos

a

maior

representatividade regional e temática possível, inclusive no que se refere às articulações das relações de gênero com as desigualdades raciais. A metodologia do estudo baseia-se na análise de dados de pesquisas quantitativas e qualitativas. Foram utilizados como fonte os Censos de 1980,

1991 e 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), assim como a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) que compreende o período de 1995 á 2010, cuja à cobertura abrange todo o território Nacional. Os resultados estão disponíveis para o Brasil e grandes regiões, com produção de indicadores selecionados para o universo da ocupação da magistratura segundo sexo, faixa etária de idade, cor ou raça, além de pesquisa bibliográfica, composta pelo levantamento bibliográfico do material produzido sobre Gênero e Cor ou Raça, seleção de textos para a leitura e fichamento de alguns artigos ou capítulos considerados relevantes. O

levantamento

bibliográfico

inicial

correspondeu aos temas-chave: Gênero, Cor ou Raça.


G N A R U S | 77

Resultados Gráfico 1 - Distribuição da população da magistratura brasileira, segundo as Grandes Regiões, Censos 1980, 1991 e 2000 (em %).

Fonte: IBGE - Censo Demográfico


G N A R U S | 78 Gráfico 2 – Distribuição da população da magistratura brasileira por gênero, Brasil, Censos 1980, 1991 e 2000 (em %).

Fonte: IBGE - Censo Demográfico


G N A R U S | 79 Gráfico 2.1 - Distribuição da população da magistratura brasileira por gênero, Brasil, RAIS/MTE. (Relação Anual de Informações Sociais), 1990 à 2010 (em %).

Fonte: RAIS/MTE. (Relação Anual de Informações Sociais)


G N A R U S | 80 Gráfico 3 - Distribuição da população da magistratura brasileira por faixa etária de idade, Brasil, RAIS/MTE. (Relação Anual de Informações Sociais), 1990 à 2010 (em %).

Fonte: RAIS/MTE. (Relação Anual de Informações Sociais )

O

perfil

demográfico,

mostra

que

o

magistrado brasileiro típico é do gênero masculino; de cor branca; com média de idade de 30 à 49 anos. Os resultados supracitados observam uma combinação de referências RAIS (1990-1995-2000-2005-2010) e CENSO IBGE (1980-1991-2000).

Os resultados denotam

existirem correspondência e similaridade entre

taxa constante, observa-se um significativo avanço da participação de juízes do sexo feminino no universo de magistrados brasileiros. Fazendo-se um estudo de projeção da participação das mulheres no magistrado brasileiro, temos um coeficiente de correlação igual a r = 0,998 e uma equação de regressão Y% = -20.4421 + 0.010368* Ano

os mesmos, o que implica em potencialização da consistência dos mesmos.

Tal equação projeta para o Ano de 2020 uma participação feminina igual a 50.2%, implicando

O que se observa, para o parâmetro discricionário sexo, que ao longo dos últimos anos, existe uma tendência contínua de redistribuição de Juízes por sexo, onde numa

num equilíbrio segundo o parâmetro sexo.


G N A R U S | 81

Tabela 1 - Participação relativa da população de magistratura brasileira por gênero, Brasil, 1980 à 2010 (em %).

Homens Mulheres

1980

1990

1991

1995

2000

2005

2010

91.8% 8.2%

80.2% 19.8%

80.2% 19.8%

75.8% 24.2%

69.5% 30.5%

65.8% 34.2%

60.6% 39.4%

Fonte: IBGE - Censo Demográfico e RAIS/MTE. (Relação Anual de Informações Sociais)

Gráfico 4 - Distribuição da população da magistratura brasileira por gênero, Brasil, Censos 1980, 1991 e 2000 (em %).

Fonte: IBGE - Censo Demográfico


G N A R U S | 82 Os resultados denotam que para a variável

demonstram que o Magistrado brasileiro é

discricionária cor, observa-se uma significativa

preponderantemente Branco (85,9%) e o

discrepância entre as respectivas etnias

comportamento

declaradas pelos magistrados. Tomamos dois

estabilidade na distribuição indicando que

grupos concentradores – Branco e Não

ainda se levará alguns anos para se observar

Branco, visto que na estratificação por cor

distribuições que alterem o atual quadro.

específica tem-se baixas concentrações e

Comportamento bem diferente do que se

consequentes

observa no parâmetro Sexo.

informação

perdas analítica.

de Os

robustez

na

gráfico

sugere

resultados

Distribuição quanto a Raça ou Cor dos Magistrados Tabela 2 - Participação relativa da população de magistratura brasileira por cor ou raça, Brasil, Censos 1980 à 2000 (em %)

Branca Preta Amarela Parda Indígena Sem Declaração Total Branca Cor Não Branca Cor Branca Não Branca

1980 4098 10 25 481 0 10

1991 6667 54 83 1214 13 20

2000 10335 121 81 1403 25 69

4624

8050

12034

4098 1980 526 1980 88.6% 11.4%

6667 1991 1383 1991 82.8% 17.2%

10335 2000 1698 2000 85.9% 14.1%

Fonte: IBGE - Censo Demográfico

um


G N A R U S | 83

Fonte: IBGE - Censo Demogrรกfico


G N A R U S | 84 500

400 Branca Preta Amarela Parda Indígena Sem Declaração Total

300

200

100

0 % 1980 – 1991

% 1991 – 2000

-100

Uma quarta tabela entre o tamanho da população local (UF) e o número de magistrados da respectiva região (UF). UF

Razão (hab./juiz)

Roraima

42382

Maranhão

42320

Pará

29083

Ceará

19069

Pernambuco

17747

Rondônia

17451

Piauí

17414

Amazonas

16557

Tocantins

16475

Minas Gerais

16325

Alagoas

15510

Paraíba

15249

Rio Grande do Norte

15070

Bahia

15062

Paraná

14933

São Paulo

14601

Goiás

13377

Santa Catarina

12170

Mato Grosso do Sul

11589

Rio de Janeiro

11270

Sergipe

10672

Acre

10126

Mato Grosso

9799

Espírito Santo

9768

Rio Grande do Sul

9279

Amapá

6123

Distrito Federal

5353

Fonte: IBGE - Censo Demográfico


G N A R U S | 85 Gráfico 6 – Razão de população residente, por população da magistratura brasileira, segundo as Unidades da Federação - Censo Demográfico 2000.

Fonte: IBGE - Censo Demográfico

Fonte: IBGE - Censo Demográfico

O forte índice de correlação entre as

Pearson = Quanto mais próximo de 1,

frequências das Distribuições por UF da

maior é a relação. Isto é, numa região onde

população e o de Juízes Togados denota uma

tem um número alto de população e há um

proporcionalidade equitativa e equilibrada.

número alto de juízes.


G N A R U S | 86 Gráfico 8 – Distribuição da frequência da população da magistratura brasileira, segundo as Unidades da Federação, Censo 2000 (em %)

Fonte: IBGE - Censo Demográfico

Gráfico 9 – Retrata a distribuição por gênero, segundo a região geográfica, em (%).

Fonte: IBGE - Censo Demográfico


G N A R U S | 87 Distinguindo-se os magistrados de acordo com a região geográfica em que exercem a função jurisdicional, há apreciáveis diferenças na composição por gênero.

Fonte: IBGE - Censo Demográfico


G N A R U S | 88 formação da subjetividade e modelar a

Conclusão

identificação profissional.

Ativamente, elas

O cruzamento dos dados, tendo como

afirmam o apagamento das diferenças, a partir

parâmetro sexo, demonstra existir uma

da experiência da conquista de posições de

tendência contínua de redistribuição de

poder, elevando o status social que a

juízes por sexo e se observa um significativo

sociedade nega à mulher.

avanço da participação de juízes do sexo feminino

no

universo

da

Os impactos mútuos da diferença de sexo

magistratura na

brasileira.

carreira

da

magistratura

foram

relacionados neste estudo. Partiu-se do No entanto, enquanto no Brasil as mulheres

correspondem

da

1980 à 2000. Predominam as percepções

juízas

das diferenças de gênero, tal como já

brasileiras togadas. As questões políticas,

observado em outros estudos sobre as juízas,

econômicas e sociais afetam a ascensão das

onde se encontram narrativas que negam a

mulheres

a

persistência das diferenças de gênero na

predominância do sexo masculino ainda é

carreira, mesmo que os dados apontem em

muito forte. O que ratifica que a justiça

sentido contrário. Entendemos esta visão

brasileira e feita pelos homens. De outro lado,

como uma forma de atuar sobre o processo de

tendo a cor como fator discricionário, os

formação da subjetividade e modelar a

resultados

identificação profissional.

população,

somente

nessa

não

a

26,78%

profissão,

apresentam

50,52%

contexto de dados estatístico dos Censos de

são

onde

alterações

Ativamente, elas

significativas a médio e longo prazo. O

afirmam o apagamento das diferenças, a

magistrado brasileiro é preponderantemente

partir da experiência da conquista de

branco (85%) e os dados comprovam uma

posições de poder, elevando o status social

estabilidade na distribuição, indicando que se

que a sociedade nega à mulher.

levarão anos para que se tenha alteração do O

atual quadro.

que

podemos

concluir

é

que,

independente de sexo ou raça, o perfil do Predominam

as

percepções

das

magistrado

não

foge

a

sua

origem

diferenças por sexo, tal como já observado

socioeconômica, oriundo em sua grande

em outros estudos sobre as juízas, onde se

maioria da classe média alta. Isso nos remete

encontram

a

as raízes históricas que perpassam todos os

persistência das diferenças por sexo na

setores da sociedade. Nos leva a afirmar que o

carreira, mesmo que os dados apontem em

pensamento do magistrado ainda traduz a

sentido contrário. Entendemos esta visão

mesma ideia, vontade e reflexões das classes

como uma forma de atuar sobre o processo de

dominantes.

narrativas

que

negam


G N A R U S | 89 Nada melhor que a poesia para selar tal

o preconceito, afinal, um negro não poderia

conclusão e, ninguém mais apropriado que

ser formador de opinião, muito menos

um dos maiores gênios da literatura

influenciar na vida intelectual da cidade.

brasileira - Cruz e Sousa.

Em 1883 é nomeado promotor público em

Foi chamado de “Cisne Negro” da Literatura, buscou na arte a tradução de sua

Laguna, mas impedido de assumir o cargo por ser negro.

dor por enfrentar os duros problemas

Mudou-se para o Rio de Janeiro, com ideia

decorrentes do racismo. Em 1881 fundou a

de sobreviver do jornalismo, mas a capital do

Tribuna Popular, jornal abolicionista, onde era

império não detinha melhor sorte para ele e, o

diretor. Com influência na cidade de Nossa

máximo que conseguiu foi um mísero

Sra. do Desterro, ainda não Florianópolis,

emprego na Estrada de Ferro Central do Brasil.

chegou a merecida projeção social e, com ela, Cárcere das almas Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, Soluçando nas trevas, entre as grades Do calabouço olhando imensidades, Mares, estrelas, tardes, natureza. Tudo se veste de uma igual grandeza Quando a alma entre grilhões as liberdades Sonha e, sonhando, as imortalidades

Rasga no etéreo o Espaço da Pureza. Ó almas presas, mudas e fechadas Nas prisões colossais e abandonadas, Da Dor no calabouço, atroz, funéreo! Nesses silêncios solitários, graves, Que chaveiro do Céu possui as chaves para abrir-vos as portas do Mistério?! Cruz e Sousa.

Romeu Ferreira Emygdio é Tecnologista Informação Geográfica Estatística no IBGE

A feminização da Jurídico Investidura.

Referências Bibliográficas:

DIAS, Maria Berenice.

BARBALHO, Rennê Martins. A feminização das

Florianópolis/SC, 18 Dez 2005. Disponível em: www.investidura.com.br/ bibliotecajuridica/artigos/judiciario/2009. JUNQUEIRA, Eliane B. A mulher juíza e a juíza mulher. In: Bruschini, Cristina; Buarque de Holanda, Heloísa. Horizontes plurais: novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Fundação Carlos Chagas/Editora 34, 1998. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Revista de Educação e Realidade (Gênero e Mulheres), Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, 1999.

carreiras jurídicas e seus reflexos no profissionalismo. Tese (Doutorado) – Programa

de Pós-Graduação em Sociologia, UFSCar, São Carlos, 2008. BONELLI, Maria da Gloria. Profissionalismo, gênero

e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais. Contemporânea – Revista de Sociologia daUFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de pós-graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, n. 1, p. 103123.

magistratura,

Portal


G N A R U S | 90

Debate:

AS COTAS NOS CONCURSOS PÚBLICOS, UM DEBATE OPORTUNO Por Renato Ferreira “Nós queremos com essa medida iniciar a mudança na composição racial dos servidores da administração pública federal, tornando-a representativa da composição da população brasileira (...) a conquista da igualdade racial e da rejeição ao racismo no nosso país é uma tarefa conjunta, cada um vai fazer a sua parte.”1

começamos

um

processo

significativo

de

construção da igualdade racial. As políticas afirmativas, dentre elas as cotas, vêm ajudando na difícil tarefa de tornar mais equânimes as históricas e profundas desigualdades

N

o mês da consciência negra colhemos o

entre negros e brancos no Brasil. Fato marcante é

ensejo

que

para

trazer

algumas

hoje,

apesar

de

toda

a

polêmica,

considerações sobre um dos temas mais

institucionalmente, as políticas de promoção da

polêmicos da atualidade no Brasil: as políticas de

igualdade racial estão se estabilizando como uma

cotas, especialmente quando essas se aplicam em

questão de Estado, os três poderes já se

concursos públicos.

manifestaram neste sentido. O Governo Federal

Antes de adentrarmos propriamente na questão é necessário dizer que o racismo se desenvolveu como espécie de pilar ideológico na formação e estruturação

da

sociedade

brasileira.

A

discriminação racial mediou, compulsoriamente, por centenas de anos e por diversas gerações as relações sociais estabelecidas. Por outro lado, o fim da escravidão não foi sucedido de políticas públicas anti-racistas que teriam contribuído para romper com os séculos de atraso possibilitando o desenvolvimento da cidadania dos descendentes de escravizados. Somente há pouco mais de 10 anos

1Com

essas palavras, a presidente Dilma Rousseff anunciou (no início de novembro de 2013) o envio, ao Congresso Nacional, de projeto de lei que visa reservar 20% das vagas em concurso público para negros.

possui um Ministério para a questão, o Supremo Tribunal Federal declarou, por unanimidade, a constitucionalidade das cotas e o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Igualdade Racial e


G N A R U S | 91 a lei de cotas nas Universidades e Escolas Técnicas

que jovens brancos e têm probabilidades menores

Federais.

de encontrar um emprego. Se encontram, recebem

O

Estatuto

da

Igualdade

Racial

(Lei

12.288/2010/), por exemplo, trata-se de uma das leis mais debatidas de nossa recente história republicana. Produto de uma longa correlação de forças políticas que tencionaram o Parlamento, a

salário menor, etc, etc,. Em suma, pessoas negras vivem um processo de injustiça social ao longo de toda a vida e o combate ao racismo é a chave para superar

nossas

desigualdades

sociais

mais

arraigadas.

Sociedade Civil e o Governo, a referida legislação

O processo de promoção da cidadania dos

foi sancionada pelo presidente Lula no dia 20 de

negros por meio das políticas promoção da

julho de 2011.

igualdade é relativamente recente e precisa ter

Com o objetivo de superar as desigualdades, o Estatuto estabelece direitos fundamentais para a população negra no campo da Saúde, Educação, Cultura, Esporte e Lazer, Acesso à Terra e Moradia Adequada, Trabalho e Meios de Comunicação, dentre outros. Por conta disso, a promoção da igualdade racial efetiva-se como uma questão de Estado e o Estatuto tornou-se o principal marco regulatório sobre o tema das relações raciais no País, devendo ser utilizado como paradigma na elaboração, interpretação e aplicação das políticas de promoção de igualdade racial como formas de enfrentamento ao racismo. Esses fatos demonstram que estamos no caminho certo, mas é preciso avançar na promoção da cidadania dos mais excluídos. Isso porque a desigualdade racial é a mais cristalizada das desigualdades brasileiras. De acordo com os números do censo 2010, a sociedade brasileira têm 190 milhões de habitantes, e 95 milhões se consideram pretos ou pardos. Segundo o IPEA essas pessoas continuam a nascer com peso inferior ao

mais capilaridade junto às instituições. Dados do último senso educacional (2010) demonstraram que nas universidades públicas apenas 14 mil alunos foram provenientes das ações afirmativas para negros e indígenas. Por outro lado, apenas 4,1% dos novos alunos nos cursos de Medicina e Direito, por exemplo, eram provenientes de cotas étnicas. Os dados que chegam das universidades demonstram que, após a adoção do sistema de cotas, não houve queda na qualidade do ensino e o rendimento acadêmico dos chamados estudantes cotistas é tão bom (e por vezes superior) quanto dos alunos que não ingressaram pelo sistema de cotas. Esses números precisam ampliar e muito se quisermos avançar na promoção da igualdade fática do direito à educação. Outro ponto importante é o debate que se começa a travar sobre a adoção do sistema de cotas raciais nos concursos públicos. A presidenta da Republica enviou recentemente para o Congresso Nacional um projeto de lei que reserva 20% das vagas em concursos públicos federais para negros.

dos brancos, têm maior probabilidade de morrer

Dados

do

Ministério

antes de completar um ano de idade, têm menos

demonstram

chance de frequentar uma creche e sofrem taxas de

população negra nas ocupações do serviço público

repetência e abandono mais altas na escola. Jovens

federal, principalmente nas funções com maiores

negros morrem de forma violenta em maior número

remunerações. Inclusive nos cargos DAS, de livre

que

do

Planejamento

sub-representação

da


G N A R U S | 92

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) realizou no dia 18 de abril, em Brasília, a audiência pública "Cotas Raciais em Concursos Públicos". O evento irá discutiu a adoção, pelo Estado brasileiro, de medidas que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população afro-brasileira.

nomeação e exoneração, onde a presença de

institucional por conta do STF jugar como

negros é muito pequena.

constitucional o sistema de cotas raciais. As

O sistema de cotas é perfeitamente compatível com o republicano instituto do concurso público. É a própria Constituição que o consagra e o Estatuto da Igualdade racial determina que o Estado promova a igualdade entre negros e brancos no acesso aos cargos públicos. Neste caso, as cotas têm o objetivo imediato tornar a disputa pela vaga mais equânime,

permitindo

que

os

candidatos

pertencentes a grupos tradicionalmente excluídos

decisões judiciais que vários tribunais vieram assentando no Brasil nos últimos anos demonstram que as cotas se consubstanciam como instrumento jurídico socialmente necessário e razoavelmente legítimo para ajudar na redução das desigualdades sociais. É uma medida excepcional e por isto deve ser temporária e conjugada com outras medidas como a melhoria da educação pública e maior distribuição de renda para os mais pobres.

possam disputar com pessoas que estão em

Alguns Estados e Prefeituras já adotam cotas em

situações histórico-sociais mais próximas das suas.

seus concursos. Mas os avanços que citamos

Assim, ocorre mais democracia nas condições de

impõem a implementação das cotas para negros no

acesso à vaga permitindo maior igualdade de

serviço público, principalmente o federal. Trata-se,

condições e oportunidades.

Por outro lado,

como bem disseram os ministros do Supremo, de

diversificam-se as elites no serviço público, onde

um desdobramento legítimo do principio da

tradicionalmente a ausência de negros, nos três

igualdade em sua face material.

poderes, é um flagrante absurdo passados 125 da abolição da escravatura. As políticas afirmativas foram legitimadas nos últimos anos e adquiriram estabilidade jurídica

Renato Ferreira é Mestre em Políticas Públicas pela UERJ, Advogado especializado em Direitos Humanos e Professor no curso de Direito da UCAM.


G N A R U S | 93

Artigo

DUQUE DE CAXIAS (1953 – 1958): A FIGURA MÍTICA DE TENÓRIO CAVALCANTI E SUAS PRÁTICAS CORONELISTAS Por Jordan Luiz Menezes Gonçalves

INTRODUÇÃO

Coronelismo e seu início

Apresentação de como se deu a construção de

A constituição brasileira de 1891 foi inspirada na

toda a política republicana no Brasil, o que nos faz

constituição dos Estados Unidos da América,

pensar em como se deu a origem e a manutenção

caracterizada pela descentralização de poderes,

desta prática coronelista no Brasil em geral e na

sendo que no caso brasileiro passa-se a dar grande

Baixada Fluminense. Começamos falando sobre a

autonomia aos municípios e às antigas províncias,

Constituição de 18911, constituição essa que

que acabaram por ser denominadas de Estados,

permitiu que os Estados tivessem uma autonomia,

cujos dirigentes são os "Presidentes de Estado"2. Os

permitindo a criação de novas práticas de poder,

Estados começam a se organizar de acordo com

como o coronelismo.

seus peculiares interesses, desde que não

Discussão Bibliográfica, baseada no conceito de

contradissessem a constituição.

coronelismo. Vamos desde os autores clássicos, até

Dentro deste cenário podemos destacar o

os não tão “badalados” assim, como o autor

sistema oligárquico, sistema esse que mantinha a

Guimarães, que traz dois autores para auxiliar a sua

oligarquia local e seus comandantes no poder. O

pesquisa, Barbosa Lima Sobrinho e Eul-Soo Pang. A

poder neste período era dividido entre dois

partir desses três autores, que fundamentamos o

Estados, São Paulo (produtor de café) e Minas

nosso trabalho.

Gerais (produtor de gado e seus derivados). Para poder governar o país com tranquilidade, essas

1

Visando fundamentar juridicamente o novo regime, a primeira constituição republicana do país foi redigida à semelhança dos princípios fundamentais da carta estadunidense, embora os princípios liberais democráticos oriundos daquela Carta tivessem sido em grande parte suprimida. Isto ocorreu porque as pressões das oligarquias latifundiárias, por meio de seus representantes, exerceram grande influência na redação do texto desta constituição, daí surgindo o Federalismo, objetivo dos cafeicultores paulistas para aumentar a descentralização do poder e fortalecer oligarquias regionais, esvaziando o poder central, especialmente o militar. A influência paulista, à época detentora de 5/6 do PIB nacional, é determinante, tendo ali

surgido o primeiro partido republicano, formado pela Convenção de Itu. Posteriormente, aliar-se-iam aos republicanos fluminenses e mineiros, e aos militares. 2 Art 1º - A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil. Art 2º - Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Município Neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte.


G N A R U S | 94 oligarquias do Sudeste faziam acordos com os

instância do poder civil e como legitimadora e

“comandantes políticos” da região Nordeste e

reforçadora da estrutura social então vigente no

Norte, os chamados coronéis.

país. A sua estruturação interna refletia as

O coronelismo é um tema muito recorrente dentro do conteúdo Histórico, pertencendo a um contexto nacional que, segundo um de seus teóricos, Vitor Nunes Leal, está contido no que denominamos de Primeira República e que

diferenciações de renda e prestígio da sociedade brasileira. O Coronel, mandatário superior da corporação, era arregimentado entre pessoas de maior poder econômico e de maior influência, especialmente no interior do país.4

compreende o período de 1889 a 1930. Essa prática

Alguns autores dedicaram-se a estudar o

ocorria principalmente no meio rural, sendo que

fenômeno do coronelismo e do mandonismo local

estes

grandes

no Brasil. Dentre eles, destaca-se Queiroz (1972).

proprietários de terras, utilizadas em práticas

Em sua obra O Mandonismo Local na Vida Política

econômicas diferentes.

Brasileira, identifica o Coronelismo como uma

líderes,

os

coronéis,

eram

forma específica de poder político, criada Discussão Bibliográfica

oficialmente no período imperial, mas que temporalmente ultrapassa tal período, tanto

O conceito de Coronelismo está amplamente

através da estrutura de poder semifeudal

ligada aos fenômenos político, cultural, social e

consolidada desde o Brasil colônia quanto através

econômico de significativa permanência na história

de novas e atualizadas formas de coronelismo que

brasileira, sendo um conceito que traduz uma

sucederam ao período imperial e à primeira

forma de controle do poder privado sobre o poder

república.

público através, principalmente, do mandonismo local. Sustentando-se em uma estrutura social hierarquizada, o Coronelismo contribui tanto para a reprodução dessa mesma hierarquia quanto se consolida através dela. O pressuposto da hierarquia inerente à prática do Coronelismo tem sua origem na Guarda Nacional, criada durante o Império no período regencial.

Leal (1975), em seu livro Coronelismo, Enxada e

Voto, indica que o fenômeno do Coronelismo no Brasil relaciona-se ao federalismo brasileiro que, ao dispersar territorialmente a vigência do poder civil, fez do poder regional o sustentáculo do poder central através da cadeia de controle do voto pelas oligarquias locais. Já Faoro (1977), autor de Os

Donos do Poder – Formação do Patronato Político

A Guarda Nacional3 constitui-se como milícia

Brasileiro, além de destacar que o Coronelismo se

civil, encarregada da segurança das diferentes

insere no esquema da supremacia estadual e das

regiões do país. Concebida como corporação paramilitar, acabou por funcionar como uma 3

A Guarda Nacional foi uma força paramilitar organizada por lei no Brasil durante o período regencial, em agosto de 1831, para servir de "sentinela da constituição jurada", e desmobilizada em setembro de 1922. No ato de sua criação liase: "Com a criação da Guarda Nacional foram extintos os antigos corpos de milícias, as ordenanças e as guardas municipais." Em 1850 a Guarda Nacional foi reorganizada e manteve suas competências subordinadas ao ministro da Justiça e aos presidentes de província. Em 1873 ocorreu nova

reforma que diminuiu a importância da instituição em relação ao Exército Brasileiro. Com o advento da República a Guarda Nacional foi transferida em 1892 para o Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Em 1918 passou a Guarda Nacional a ser subordinada ao Ministério de Guerra através da organização do Exército Nacional de 2ª Linha, que constituiu de certo modo sua absorção pelo Exército. 4 Dicionário Crítico do pensamento de Direita organizado pelo Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva.


G N A R U S | 95

As próximas eleições... “de cabresto”. Charge de Storni para a revista Careta (1927). Legenda original era: Ella – É o Zé Besta?; Elle – Não, é o Zé Burro!

eleições sancionadoras, destaca também que na

da superposição de formas desenvolvidas do

República Velha o coronel integrava-se ao poder

regime representativo a uma estrutura econômica

estadual, constituindo-se na espinha dorsal da vida

e social inadequada.” (LEAL, 1975,40)

política, representando, muitas vezes, uma forma peculiar de delegação do poder público no campo privado.

Para o autor o papel do coronel não necessariamente deve ser daquele que possui bem capital ou terras, podendo ser uma pessoa que

O coronel, ao reunir em si poderes de controle

possua ensino superior, já que esta prática se

sobre a vida da população submetida a seu mando,

difunde muito no Brasil, formando advogados e

exercia função intermediadora entre o poder

médicos.

privado e o poder público. Em outras palavras os coronéis controlavam o eleitorado e, através de uma rede que envolvia os chefes políticos locais, sustentavam tanto seu próprio poder privado como de seus apoiadores.

O aspecto que logo salta aos olhos é o da liderança, com a figura do “coronel” ocupando o lugar de maior destaque. Os chefes políticos municipais nem sempre são autênticos “coronéis”. A maior difusão do ensino superior no Brasil

Para Leal (1975), o fenômeno do coronelismo

espalhou por toda parte médicos e advogados, cuja

tem muito a ver com a falta ou a ausência do poder

ilustração relativa, se reunida a qualidades de

estatal em um determinado local, essa ideia fica

comendo e dedicação, os habilita à chefia. Mas

bastante clara na seguinte passagem: “Como

esses mesmos doutores, ou são parentes, ou afins,

indicação introdutória, devemos notar, desde logo,

ou aliados políticos dos “coronéis”. (LEAL, 1975,41)

que concebemos o “coronelismo” como resultado


G N A R U S | 96 A figura do “coronel” não muda para os moradores da região, eles em sua maioria, têm o “coronel” como uma figura rica, influente e militarizada. Tirando pela sua realidade, os moradores locais têm razão, os “coronéis” são ricos sim, mas muitas vezes esse pensamento de riqueza é exagerado, ele é visto sempre como um dono de terras e de cabeças de gado. ¨o roceiro vê sempre no “coronel” um homem rico, ainda que não o seja; rico, em comparação com sua pobreza sem remédio. Além do mais, no meio rural, é o proprietário de terra ou de gado quem tem meios de obter financiamentos. Para isso muito concorre seu prestígio político, pelas notórias ligações dos nossos bancos. É, pois, para o próprio “coronel” que o roceiro apela nos momentos de apertura, comprando fiado em seu armazém para pagar com a colheita, ou pedindo dinheiro, nas mesmas condições, para outras necessidades. ¨ (LEAL, 1975, 43)

origem aos partidos republicanos), o Município, o Estado, a Federação (autoridade nacional), etc. Entre várias questões abordadas pelo autor, nos chama atenção a questão do poder do coronel em si, isto é, o poder político, econômico, militar que apresentavam e que se associavam a outra perspectiva, que é destacada pelo autor, a questão da posse de terra. Os coronéis em sentido tradicional apresentavam como característica o fato de serem grandes proprietários de terras, a terra

era

um

elemento

importante

para

configuração do poder real destes atores. No contexto

em

que

pretendemos

analisar,

percebemos que esta não é uma característica fundamental, pois nosso ator (Tenório) não possui grandes propriedades de terra. Mas ao mesmo tempo, é revelado no imaginário, um exemplo disto

Portanto, o “coronel” que o autor define não se

encontramos no cinema (com o filme O Homem da

assemelha necessariamente com aquele do

Capa Preta)5, que o mesmo era considerado

imaginário popular, em geral o ultrapassa. O

naquele período o ¨dono” de Caxias ou fazendo

“coronel”, para o autor, é assim, um homem que

alusão a ideia de que ¨Caxias era ele”.

está em uma situação de dependência com diversos sistemas de poder dentre estes os Partidos Republicanos (partido que assim que a República foi fundada, concentrou os grupos regionais, dando

5 A vida de

Tenório Cavalcanti, um político reacionário e muito polêmico da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro dos anos 50, que nasceu em Alagoas e teve a violência como companheira logo no início de sua vida, ao presenciar o assassinato de seu pai. Empunhando uma metralhadora e usando uma capa preta e uma cartola, ele se tornou uma espécie de justiceiro, desafiando os corruptos e poderosos que dominavam Duque de Caxias. A sua trajetória mistura os papéis de político e bandido, coisa recorrente ainda hoje. Temos que tomar cuidado com as fontes audiovisuais, pois em sua grande maioria elas podem ser tendenciosas, e nesse caso (O Homem da Capa Preta), o diretor não foi tendencioso, ele apenas retratou a vida de Tenório Cavalcanti com base nos originais dos livros: Tenório, o Homem e o Mito, Maria do Carmo Cavalcanti Fortes; Minha vida com meu pai Tenório, Sandra Cavalcanti F. Lima; e Capa preta e Lurdinha, Israel Beloch. 6 “Em 1984 o diretor Sérgio Rezende registrou em equipamento de vídeo amador à fortaleza de Tenório Cavalcanti em Duque de Caxias”. Tenório Cavalcanti: A verdade é esta. Fui vereador. Fui deputado estadual. Presidente de uma Câmara. Primeirosecretário de uma Câmara de Nova Iguaçu. Nunca perdi uma

Em seus relatos (um em especial que chamou a nossa atenção, foi a de uma conversa, gravada “clandestinamente” pelo diretor do filme, que entrou no menu sendo uma cena extra)6

eleição. Sempre venci uma eleição e nunca vivi fora dos meus limites padronais. Quer dizer, nunca vivi fora das nossas angústias. Sempre vivi perto das angústias, de sofrimento. E cheguei à conclusão que, no mundo das coisas reais nada de concreto realmente se consegue a não ser por meio de uma política organizada. Então, fui tratar de participar da política para vê se organizava. E lá me encontrei com uma adversidade roxa. Com a noite tenebrosa da maledicência da mentira, da baixeza moral. (...) O vídeo é editado. Isso aqui o que era? Isso aqui era uma favela abandonada. Quantas pessoas tinham aqui? 30. Quantas morriam por dia? E quem viveu esta vida, viveu a realidade histórica de humanidade. Esses sentiram meu dilema. Esses estão lá naquele morro. Estes estão aqui nessa rua. Estes estão ouvindo o eco das multidões sem nada. Estes estão sentido a realidade histórica. Os gemidos das multidões sem nada me fizeram sentir melhor. Os gemidos das multidões sem nada. Você ouve o eco. Ó, olha só. Esse é o ruído da multidão. Esse eco influi no meu espírito, me dá um sentido de legitimidade à minha luta. Eu sinto o gemido da multidão sem nada. Eu sinto na alma o verbo da angústia. Esse gemido da multidão, de madrugada, diz assim: “Doutor, salve meu filho!” E eu acordo de madrugada para salvar o filho. A minha mulher já nem pergunta pra onde vou.


G N A R U S | 97 observamos falas que descrevem o fato de que ao

Nesta linha de pensamento poderia nos

chegar naquela terra, ¨Caxias não era nada¨, era

apropriar da visão desenvolvida pelo autor coreano

apenas um “mosquiteiro”, um ¨pântano¨ que

Eul-Soo Pang (retirada da obra do autor Guimarães)

transmitia a seus moradores diversas doenças.

que diz que “a base patriarcal social e econômica

Segundo o mesmo cabe a ele as obras de

do coronelismo teve suas origens nos engenhos de

saneamento básico realizadas.

açúcar e nas fazendas de gado do século XVI [...] entretanto essa forma de poder político atingiu a culminação entre 1850 e 1950” (GUIMARÃES, 2008, 159).

Perspectiva que aumenta a

abrangência do fenômeno em duas instâncias, a primeira, é a temporal, e nos permite pensar a atuação de Tenório em Duque de Caxias nos anos de 1960, avançando ainda mais com a possibilidade de remanescência deste fenômeno. A segunda, diz respeito a possibilidade de compreendermos a questão do coronelismo não como um resquício do fim da Guarda Nacional, como aponta Leal. Já que esta estaria assentada na construção e consolidação de uma estrutura/modelo econômico. Segundo Pang (2008) a prática do coronelismo inclui como elemento importante de sua dinâmica a esfera de recrutamento e influência de seus membros. O recrutamento poderia se organizar por laços consanguíneos ou não, mas necessariamente Estes fatos nos permitem indagar se outras relações e outros elementos existentes nas práticas do coronelismo não estariam envolvidas no contexto que pretendemos analisar e/ou se nesta região específica podemos falar em uma reapropriação do conceito e a instalação de novos

definiam o alinhamento dos recrutados com os interesses do coronel (GUIMARÃES, 2008, 159). Fato importante para pensarmos os alinhamentos e alianças organizadas por e em torno de Tenório Cavalcanti, ou seja, que forças e poder político ele organizava?

mecanismos que reeditam e ao mesmo tempo

Um fato merece observação, independente até

reelaboram esta prática. Permitindo-nos perguntar

das interpretações distintas sobre o fenômeno, é a

quais as características que este coronelismo de

percepção de que este se estrutura como um

Tenório Cavalcanti apresenta?

sistema no qual o uso da violência é um elemento fundamental, mesmo que para muitos isto apareça

“Pra onde vai?” (...) A entrevista continua com a mulher de Tenório e com uma de suas filhas. – 02:13 02:39 – Porque chegamos num período que, para ser deputado aqui, era preciso ter uma arma ... um objeto de defesa. E o mundo todo, mas não ia deixar matar. Naquele tempo, se

matava aqui sem motivos. – 02:56 A entrevista continua, mas ela não trata do assunto que desejo.”


G N A R U S | 98 como um elemento banalizado, o uso da violência e

interpretação

inclusive a ideia da legitimação de seu uso por

coronelista no período e na região por nós

quem o pratica, é essencial para compreensão da

delimitada.

ocorrência e permanência do fenômeno, tanto em um período histórico como no outro.

da

existência

desta

prática

Esta abordagem implica no entendimento do efeito de isolamento e representação das classes

Na baixada o uso da violência não foi diferente,

trabalhadoras

no

estado

burguês

e

em

já que dentro deste período (1950 a 1964), vimos

compreender como se processaram as relações de

relatadas diversas chacinas, cujo intuito era a

produção pré-capitalistas como meação, parceria e

eliminação de opositores e a demonstração do

outras formas de prestação de trabalho, que

poder,

produziram e produzem relações de dependência

com

a

manutenção

das

estruturas

instituídas. Segundo Pang: ¨A legitimação da violência foi frequentemente obtida, pelos membros do clã, através do exercício de cargos públicos. [...] Na prática, os grupos armados sob o comando de um fazendeiro escapavam ao controle das autoridades reais ou imperiais, que se viram forçadas a dar-lhes um status legal, ou quase legal, como unidades militares. Tendo sido a violência assim institucionalizada, a transformação do poder privado em poder público foi um processo rápido. [“...] Em algumas ocasiões ocorreram confrontos entre grupos armados públicos e particulares, e tornaram-se cada vez mais frequentes na medida em que os potentados estaduais e locais muitas vezes travaram lutas eleitorais nos séculos XIX e XX.” (GUIMARÃES, 2008, 160)

Para dar subsídios a nossa interpretação

pessoal. Assim, para o autor, “a classe hegemônica é aquela que controla a política de Estado e consequentemente tem poder de definir a política de desenvolvimento que favoreça aos seus interesses,” (SAES, 1998, 74) fato que corrobora para pensarmos a trajetória e a atuação política de Tenório Cavalcanti. Logo, o coronelismo é identificado como sendo: ¨Um conjunto de práticas que caracterizam um modo concreto de funcionamento das instituições políticas democrático-burguesas. É um conjunto de práticas político-eleitorais que participam de um modo peculiar da dupla função do Estado burguês que é a de desorganizar as classes trabalhadoras e unificar a classe dominante sob o comando hegemônico de uma de suas frações.¨ (SAES, 1998, 74)

recorremos a Saes (1998), segundo o qual o coronelismo é pode ser interpretado como um fenômeno político composto por um conjunto de práticas só possíveis e funcionais no tipo de Estado burguês7ou capitalista, visto que este estado age na desorganização das classes trabalhadoras na medida em que as isola. Visão que se aproxima de nosso objeto por dar conta dos processos de transformação e reorganização da sociedade brasileira e particularmente da sociedade carioca, podendo ser um instrumento adequado para 7

Esse Estado burguês é caracterizado por uma dupla funcionalidade, que é a de desorganizador das classes trabalhadoras e de organizador da classe dominante.

Dessa forma, o coronelismo seria um fenômeno político verificável no quadro de um Estado burguês democrático e por si só já indicaria a existência desse Estado, mas ele só nasce e se desenvolve diante de algumas condições especiais, sendo a primeira delas as relações de dominação e dependência pessoal que só estão presentes em relações produção pré-capitalistas, visto que a cessão da terra por parte dos latifundiários ao


G N A R U S | 99 trabalhador implica uma obrigação de lealdade e fidelidade ao chefe local. O desenvolvimento desta abordagem nos permite instaurar uma perspectiva semelhante para pensarmos as relações de produção econômica e política do estado capitalista moderno. O coronelismo em áreas rurais não implicava na inexistência de luta de classes no campo, a forma de

“O homem da capa preta o rei da baixada Ajudava o nordestino amigo da criançada (bis)”. 10

"Pistoleiro? Herói? Vilão? Demagogo? Populista? Divisionista? Revoltado? Vingador dos pobres e oprimidos? Tenório Cavalcanti leva para o túmulo todas as interrogações não totalmente esclarecidas pelos que se aventuraram a estudar sua vida e obra. Mas são justamente estas contradições que fazem de Tenório um dos mais ricos exemplos do faroeste - disfarçado ou exposto - que caracterizou parte da vida política brasileira". 11

luta não era no terreno eleitoral, mas tornava-se explosiva e violenta nos movimentos sociais de rebeldia como o cangaço e os messianismos (Antônio

Conselheiro

e Padre Cícero), ou

manifestava-se através do êxodo rural, onde as pessoas por não terem alternativa de sobrevivência no campo fugiam para as cidades.

As décadas de 1930 a 1960 foram marcadas pela associação da Baixada à violência, pobreza e criminalidade. Com a política não foi diferente. Trajetórias como a de Tenório Cavalcanti foram marcantes e a construção de sua persona pública nos permite pensar na possibilidade de utilização

Até o ano de 1930, o coronelismo estava a

da violência e da coerção como expedientes

serviço da burguesia comercial cafeeira. O PSD

políticos legítimos. Nesse sentido, o homem de

(Partido Social Democrático) foi criado por essas

"corpo fechado", o "corajoso" que tinha a gratidão

classes como representante legal dos seus

"do povo" de Caxias, encerrava um paradoxo ético,

¨contraditoriamente¨8,

como ressaltou Beloch: era aquele que "mata, mas

iria se pôr as forças sociais pró-industrialização que

faz", ou ainda "faz porque mata (os maus)".

controlavam a política do Estado. Saes afirma que

(BERLOCH, 1986, 67)

interesses. A partir de 1945,

durante esse período o PSD tirou os grandes proprietários de terras do ostracismo político em que

viveram

durante

o

Estado

Novo,

“recorenelizando-os”. (SAES, 1998, 74)

Encontra-se acima, nos trechos destacados, as ideias principais que as pessoas tinham de Tenório Cavalcanti, mais conhecido no meio político por Homem da Capa Preta.12 Começa a sua “trajetória” de imposição do

Tenório e a Faceta Coronelista

poder pela violência, começa a acontecer algumas

“Inseticida Tenório – ÚNICO QUE MATA DE VERDADE: Moscas, Mosquitos, Baratas, Pulgas e demais insetos caseiros.”9

particularidades que envolvem Tenório, e toda a

A ideia era que ao acabarem as questões ditatoriais de Getúlio Vargas, o Brasil entraria em uma democracia plena e com isso, iria acabar com a questão do coronelismo, só que foi o contrário, ao se reagruparem, isso deu uma sobrevida aos Coronéis. 9 Anúncio catado do jornal Luta Democrática, do mítico Tenório Cavalcanti… Único que mata de verdade… (encontrado no site: http://lurdinha.org/site/?p=141, acessado no dia 06 de maio de 2012.) 10 Acadêmicos do Grande Rio - Samba-Enredo 2007; Composição: Márcio Das Camisas, Prof°. Elísio, Mariano Araujo

Robson Moratelli (encontrado no site: http://www.vagalume. com.br/academicos-do-grande-rio/samba-enredo-2007.html , acessado no dia 06 de maio de 2012.) 11 “5 de maio de 1987 - Morre Tenório Cavalcanti, o homem da capa preta. (Reportagem do Jornal do Brasil”, encontrado no site: http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid= 26688, acessado no dia: 06 de maio de 2012.) 12Como Tenório Cavalcanti era conhecido, devido sua vestimenta, uma capa preta e o auxílio de uma cartola. Vestimenta essa que era utilizado para esconder a sua arma, na qual chamava carinhosamente pelo nome de Lurdinha.

8

sua figura mítica. Tenório tem uma particularidade,


G N A R U S | 100 Esses mesmos líderes da

região,

políticos

do

inimigos Deputado

Pistoleiro

como

conhecido

por

era esses

mesmos opositores. Esses foram

atrás

de

um

Delegado Paulista para que ele colocasse ordem na região. O delegado especial Albino

Imparato,

foi

destacado especialmente para conter a qualquer

até parece ser um preconceito, mais se mostra uma questão corriqueira. Muitos adversários de Tenório passam a criticálo pelo uso da violência, mas como um homem que nasceu com a “violência” e cresceu com a mesma, iria deixa-la de lado para assumir um papel importante em uma região que a “lei do homem”, não imperava, mas sim a “lei do poder”, poder esse que se esbarrava no âmbito econômico e no âmbito militar (lembremos que o pai de Tenório foi assassinado e ele o vingou). A vida de Tenório passa por uma reviravolta tão grande, que quando ele consegue ser eleito a Deputado Federal, ele começa a obter mais e mais poder, o que deixou seus adversários políticos “umas feras”. Uma cena muito corriqueira no filme são os discursos de Tenório Cavalcanti. E no meio de um desses discursos mostrados no filme, temos diversos eleitores aplaudindo todo o discurso pirotécnico (com direito a tiros e fogos), temos a presença de inimigos dele com “jagunços” e matadores profissionais para tentarem matar Tenório (o que não poderia ser realizado por ali, já que havia muitos populares).

preço a carreira do deputado Tenório Cavalcante na baixada fluminense. Um elenco de medidas arbitrárias foi tomado pelo novo delegado que, pretendiam a todo custo prender ou mesmo matar o parlamentar em caso de confronto armado. A “fortaleza” foi metralhada, os amigos e parentes passaram a ser hostilizados, enquanto o delegado procurava fechar o cerco. Dia 28 de agosto de 1953, Imparato e seu assistente Bereco foram encontrados mortos, metralhados dentro do carro que utilizavam. O caso obteve repercussão nacional, e as investigações apontavam Tenório como responsável pelos dois crimes. A “fortaleza” e um apartamento que o deputado possuía em Copacabana, foram cercados pela polícia. Com a intervenção dos amigos Nereu Ramos, presidente da Câmara Federal, Afonso Arinos e Oswaldo Aranha, foram possíveis levantar o cerco. Um grande jornalista foi convocado por Tenório após esse “escândalo”, para que esse mesmo ajudasse Tenório a abrir um Jornal. Mas por detrás de um formato de mudança de figura (mudança de sua figura, que era muito ligado a violência, ele


G N A R U S | 101 gostaria de dar aos seus eleitores um informativo,

Deputado Federal, Para defesa do Povo Fundou hoje este Jornal “Seu” Getúlio, o Presidente, Lhe chamou publicamente De um mártir nacional.13

um Jornal que falasse a voz da comunidade). Ainda em 1954, Tenório Cavalcanti veio a Alagoas, vendeu as terras da fazenda Xucurus, que possuía no município de Palmeira dos Índios, e fundou na cidade do Rio de Janeiro, o jornal

Como analise do verso a cima, esse poema se

intitulado “Luta Democrática”, que marcou uma

encontra com rimas fáceis, tranquilas de se gravar.

nova etapa na história da imprensa no Brasil,

Esta possui um viés explicativo do porque o jornal

fazendo um jornalismo popular de caráter

foi criado, a quem este mesmo pertence e como irá

sensacionalista. O jornal sempre fez oposição a

agir com as notícias e ainda mais com a sociedade

vários governos. Durante a construção de Brasília,

em si.

criticou

o

presidente

Juscelino

Kubitschek:

Na primeira estrofe deste poema apresentado

“Enquanto isso, Brasília é o sorvedouro da renda

na capa do Primeiro volume do Jornal Luta

nacional, suor e sangue de um povo empobrecido

Democrática, vemos que está presente toda a ideia

para que resplenda esse reinado da encarnação

de Tenório Cavalcanti, dele ser um combatente do

republicana de Luís XIV” (Luta Democrática, em

povo, uma espécie de “Guardião”, encontra-se

agosto de 1958). Através do jornal ele fazia severas

também uma dura crítica ao período do Estado

críticas aos seus inimigos, e abria espaço para o

Novo14.

povo registrar suas reivindicações. O

Jornal

Luta

Democrática

Na segunda estrofe deste poema é a abrigou

e

apresentação da figura mítica de Tenório

encaminhou bons jornalistas alagoanos que

Cavalcanti.

brilharam na imprensa nacional. Alguns lá

característica” de “todos os coronéis”, que é a

chegaram espontaneamente, procurando crescer,

afirmação de um adversário político e até mesmo a

outros foram levados por perseguições políticas. A

afirmação de um líder de “poder” maior (neste caso

todos, Tenório deu guarida, ajudou no que foi

de Tenório Cavalcanti, temos os dois munidos no

possível, encaminhando-os na vida profissional.

mesmo personagem, Getúlio Vargas, o Presidente

Desses alagoanos que trabalharam na “Luta

do Brasil).

Este

mesmo

apresenta

“uma

Democrática”, destacam-se dentre outros: Ivan Barros, que depois foi para a revista Manchete, José Alves Damasceno, José Jurandir e José Machado. Tenório e Baldessarini, A quem no momento em louvo, Fundaram este jornal Para defesa do Povo E dar combate cerrado A quem for interessado Na volta do estado Novo

Conclusão A “espinha dorsal” do trabalho, gira em torno de uma pergunta: Há condições de falarmos em coronelismo no século XX? Para respondermos a essa pergunta, recorremos a discussão apresentada

Senhor Tenório Cavalcanti, 13

Um quadro falando do Jornal, encontrado na Capa do Primeiro Jornal, o jornal de estreia, no dia 03 de fevereiro de 1954. Escrito e feito por um dos capangas mais fiéis a Tenório.

14

O Presidente Vargas fecha o Congresso Nacional em 1937, instala o Estado Novo e passa a governar com poderes ditatoriais. Sua forma de governo passa a ser centralizadora e controladora.


G N A R U S | 102 por Guimarães e os autores que ele cita em seu

os seus períodos, de 1930 a 1945; foi deputado

artigo.

federal por 20 anos, valendo-se largamente do

Para esta pergunta, a nossa resposta é sim, há como dizermos que havia práticas coronelistas presentes em regiões distintas no século XX. Para o

clientelismo

coronelista

e

incentivando

os

loteamentos clandestinos. Fechou seu ciclo de influência na região:

autor Pang, o coronelismo se estende até os anos de

Quando vieram as emancipações, e o município de Nova Iguaçu foi dividido em quatro, ele colocou em cada novo município um lugartenente seu: em Duque de Caxias, Tenório Cavalcanti; em São João de Meriti, a família Hazuk; ele mesmo em Nova Iguaçu, e a família Simão em Nilópolis. Além disso, indicou o nome da maioria dos donos de cartório da Baixada. (ALVES, 2003, 82)16

1950, o que nos permite sim discutirmos a presença de uma prática coronelista em Duque de Caxias, “sob a batuta” de Tenório Cavalcanti. O jurista João damasceno, ao mencionar sobre a morte da juíza que ocorreu no Rio de Janeiro, começou a pesquisar e escrever sobre assuntos ligados ao “comando paralelo”. Logo, este autor, que pertence a Associação Juízes para a Democracia, escreveu um artigo para a bancada de

Jordan Luiz Menezes Gonçalves é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHIS/UERJ).

Magistrados, e mencionou sobre o coronelismo presente no Rio de Janeiro, desde “sua fundação”.

Referências Bibliográficas:

Logo ele entra no século XX, meados do século XX,

ALVES, José Cláudio Souza. Baixada Fluminense: a violência na construção do poder. São Paulo, tese de Doutorado em Sociologia, USP, 1998. BELOCH, Israel. Capa preta e Lurdinha: Tenório Cavalcanti e o povo da Baixada. Rio de Janeiro: Record, 1986. DANTAS, Ibarê. Coronelismo e Dominação. Aracaju, UFSE, PROEX/CE-CAC. Programa Editorial, 1987. FAORO, Raimundo. Os donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro. Porto Alegre, Editora Globo, 1977. GUIMARÃES, Alberto Passos. As Classes Perigosas Banditismo urbano e rural, Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. LEAL, Vítor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo, Alfa Omega, 1975. PINSKY, Carla Bassanezi (organizadora). Fontes Históricas. São Paulo: Ed. Contexto, 2006. QUEIROZ, Maria Isaura. O Mandonismo Local na Vida Política Brasileira e Outros Ensaios. São Paulo, Alfa Omega, 1972. SAES, D. Coronelismo e Estado burguês: elementos para uma reinterpretação. In: Estado e democracia: ensaios teóricos. Campinas: UNICAMP, 1998.

ocorreu

um

fenômeno

que

ele

denomina

coronelismo urbano. Que tem seu expoente máximo, Tenório Cavalcanti. Somente durante o governo Vargas as milícias e os coronéis tiveram seus poderes contrastados pelo Estado. Mas bastou o fim daquele governo e elas se reorganizaram. Na Baixada há bons exemplos de coronéis urbanos. Em Duque de Caxias, um usava uma capa preta assumindo poderes de magistrado. Prolatava suas sentenças e as executava com auxílio da ‘Lurdinha’, uma metralhadora. Outro chegou a tomar com seu bando o prédio da Prefeitura de Nova Iguaçu em episódio ainda pouco estudado e chamado de Revolução Iguaçuana. 15

Para o sociólogo Alves, primeiro cabe o patriarcado dessa nova formação em curso. Getúlio de Moura foi interventor no Município de Nova Iguaçu pós-revolução de 1930 e líder político local afinado e leal ao Governo Getúlio Vargas, em todos

15

A reportagem exibida antes do debate ao vivo entrevistou jornalistas, juízes e juristas. O representante da Associação Juízes para a Democracia, João Batista Damasceno, destacou que é preciso lembrar que a luta das oligarquias locais contra o poder central é um problema historicamente presente nas relações institucionais no Brasil.

16

As emancipações se deram, respectivamente em: Duque de Caxias, 1943; São João de Meriti e Nilópolis, 1947. Em sua tese, ele descreve esse grupo como membros da rede coronelista na Baixada Fluminense, tendo na figura de Tenório Cavalcanti seu expoente máximo.


G N A R U S | 103

Artigo OS LOGRADOUROS DOS IMIGRANTES GALEGOS NO PARAÍSO TROPICAL: AS CADEIAS MIGRATÓRIAS E AS REDES DE SOLIDARIEDADE NO RIO DE JANEIRO1 Erica Sarmiento da Silva

Percorrendo os logradouros cariocas “A travessa do comércio ostentou ontem à noite o mesmo triste espetáculo (...) Dezenas de imigrantes espanhóis e italianos ali procuravam abrigar-se e passar a noite em promiscuidade e abandono que quaisquer que sejam as causas é deprimente para a administração pública. Acreditemos que eles não têm direito ao acolhimento nas hospedarias do Estado, nem razão justificada para se queixarem da falta de ocupação, mas a sua vagabundagem e a sua miséria, ainda que merecida, não podem continuar daquele modo sem grave responsabilidade dos poderes públicos. Dêem-se lhes agasalhos, ou permita-se-lhes que voltem aos países de onde vieram ainda mesmo com o sacrifício do Estado. Os interesses da boa imigração são muito mais importantes do que os motivos regulamentares que possam explicar e até justificar o abandono daquela gente 2.”

N

o ano de 1889, período auge da imigração de massas, o jornal O Paiz pede que as autoridades se responsabilizem pelos emigrantes, ao mesmo tempo em que os julga merecedores da situação em que se encontram, submersos na vagabundagem e na miséria. O discurso ambíguo, veiculado pelo periódico carioca, faz parte do cenário que se formava na então capital brasileira: o Rio de Janeiro. Receptora de imigrantes e vivendo o seu período de modernização, a cidade, no ano de 1920, já abrigava 20% de população estrangeira. No censo de 1906, dos 210 515 imigrantes, 133 mil eram portugueses, 25 557 italianos e mais de 20 mil eram espanhóis. No censo de 1920, o quadro se repete com os espanhóis mantendo o terceiro lugar como contingente imigratório no Rio (MOTTA, 1982, p.141). Nos primeiros anos do século XX, no governo do prefeito Pereira Passos a cidade passou por uma radical reestruturação. Era necessário modernizar o país, começando pela capital. Fazer das suas ruas um espaço digno de se viver, seguindo os padrões europeus. Remodelar a cidade significava destruir o que não correspondia esteticamente ao cenário de beleza idealizado para o convívio de uma elite. As camadas populares que habitavam as áreas centrais da cidade, onde estava localizado o comércio e grande parte do Este artigo foi apresentado na Revista de Estudos Migratorios: Revista Galega de Análise das Migracións, vol. V, n.1 (2011), Santiago de Compostela. 2 O Paiz, terça-feira, 8 de fevereiro de 1889. 1


G N A R U S | 104 mercado de trabalho, foram as primeiras a serem atingidas pelas mudanças. Para seguir os padrões estabelecidos pela modernidade, foram destruídos os cortiços, as estalagens, todas as moradias baratas que enfeavam o cenário e não combinavam com o planejamento urbano idealizado pelos engenheiros e políticos da época. A população de baixa renda foi a mais afetada, tendo que se deslocar para a periferia, criando novos bairros, ou permanecendo nas pensões ou cortiços que resistiam às reformas urbanísticas. A cidade começou a crescer de forma contínua. Suas ruas e avenidas despontavam em um rápido ritmo, surgiam os novos transportes como o bonde e o automóvel, apareciam os bancos e as indústrias. A demografia carioca também apresentou importantes transformações em sua estrutura populacional, com a chegada de centenas de migrantes rurais e o aumento da imigração. A população do Rio, em 1870, se limitava a 235.381 pessoas, já em 1890 contava com 522.651 e 15 anos depois, em 1906, eram 811.443 os que habitavam a “cidade maravilhosa”. A população continuou aumentando desenfreadamente e em 1920, a cifra alcança o total de 1.157.873 3 . Junto com esse crescimento, aparecem também as epidemias de varíola, peste e febre amarela. As enfermidades contaminam as zonas mais pobres da cidade, onde se aglomeram os prostíbulos e os cortiços. São as duas faces de um Rio de Janeiro que se desenvolvia ignorando as classes populares. Dentro desse contexto, a imigração se intensifica, acompanhando a transição para uma ordem capitalista, desde uma sociedade constituída por uma massa de ex–escravos analfabetos e despreparados. O aumento do custo de vida era agravado pela chegada dos estrangeiros. Ampliava-se a oferta de mão-de-obra e a luta pelos escassos empregos disponíveis. Foi convivendo nesse cenário que muitos galegos disputaram e conviveram nesses espaços centrais do Rio de Janeiro. Alguns bairros, como vermos nas páginas seguintes, constituíram-se em reduto da coletividade galega, que encontrou moradia e trabalho, reforçando suas cadeias imigratórias (CARVALHO, 1987, p.21). Através do cruzamento de fontes nominativas, realizamos um estudo sobre a inserção sócio-profissional dos galegos no Rio de Janeiro. As fontes que nos ofereceram dados substanciais sobre a localização dos galegos pelos logradouros cariocas foram os arquivos MENDONÇA MOTTA, Mary Hesler de. Imigração e trabalho industrial- Rio de Janeiro (1889-1930). Dissertação de mestrado 3

apresentada na UFF, Niteroi, p.141. A autora alerta a imprecisão dos dados dos censos do Rio de Janeiro dos anos de 1906 e 1920, alegando que entre os dois censos, para o mesmo ano, os

privados do Hospital Espanhol e do Consulado Espanhol. Essa documentação foi a base inicial para o diálogo com outras fontes qualitativas, como podem ser os processos de expulsão, os periódicos da época ou as entrevistas realizadas com os imigrantes. Os testemunhos dos imigrantes serviram para corroborar a existência e importância das localidades e, ao mesmo tempo, ajudar a identificar a classificação do imóvel, se este era uma casa de cômodos, pensão ou estabelecimento comercial. A partir da amostra retirada das matrículas dos sócios do Hospital e dos inscritos no Consulado Espanhol, formada por mais de 3500 indivíduos, extraímos as primeiras informações da coletividade galega como os municípios de origem, a profissão, o ano de chegada, o número de repatriados, o estado civil, a alfabetização e a localização espacial dos imigrantes nas ruas do Rio de Janeiro. Por primeira vez, vinculou-se o lugar de origem com a sociedade de destino, encontrando, dessa forma, os focos migratórios. Apesar da diferença da natureza das duas fontes, alguns dados como a profissão, o município de origem e a residência na sociedade receptora foram aproveitados numa única base de dados. Nas matrículas dos sócios do Hospital Espanhol, recolhidas em três livros correspondentes aos anos de 1859 até a década de 20 do século passado, foi a fonte que mais contribuiu com informações sobre os pioneiros da emigração de massas. Entre os anos de 1859 e 1880, encontramos 218 imigrantes galegos matriculados no Hospital Espanhol. Essa informação, junto com os dados pessoais de cada sócio, possibilitou a localização geográfica dos pioneiros pelos bairros cariocas, assim como a construção das cadeias migratórias e a antiguidade da emigração galega no Rio de Janeiro. Foi possível, por exemplo, distribuir os galegos pelas ruas do Rio de Janeiro, classificar as suas atividades profissionais e a partir daí, formular uma série de perguntas: se as atividades exercidas estavam associadas ou não aos espaços físicos onde se desenvolviam; se estavam próximos a outros grupos de imigrantes de maior tradição histórica e relevância numérica; se havia concentrações de galegos em determinadas ruas; se os pioneiros procediam de zonas com tradição migratória a Rio de Janeiro ou se exerciam atividades que foram seguidas pelos grupos migratórios posteriores; se esses pioneiros exerceram o papel de mediadores nas redes de socialização, ajudando os recém-chegados a conseguir o resultados não correspondem. Por exemplo, a população do Rio para o ano de 1872 está registrada nos dois censos com diferentes resultados. As estatísticas oficiais sempre contém uma porcentagem de erros.


G N A R U S | 105 primeiro emprego e a primeira residência, etc. A riqueza da documentação relacionada às listas consulares e de associações em geral, sem dúvida, permite construir tipologias e ampliar o conhecimento acerca do objeto de estudo.

A Freguesia de Santo Antonio e A Lapa: Os Arcos da Lapa, A Lapa e a Rua do Lavradio Bairro que se tornou famoso na história da cidade pela sua vida noturna dissoluta, bairro de cabarés baratos, de casas de baixo meretrício, de malandros, de jogadores, valentões e invertidos, e do “trottoir” de pobres mulheres ditas perdidas, como consta de muitos crônicas e livros... (BRASIL GERSON, 2000, p.236) Essa era a imagem da Lapa e seus arredores desde o Oitocentismo em diante. Um bairro boêmio, cheio de pequenos hotéis que serviam de encontros amorosos para a classe baixa ou simplesmente para hospedar trabalhadores que não tinham condições de ter uma casa própria ou pagar aluguel nas áreas mais privilegiadas da cidade. As suas ruas, como a Joaquim Silva ou as Marrecas, no começo do século XX, se converteram em ruas cheias de prostíbulos que aí permaneceram até depois da década de 1940. Nas Ruas do Lavradio, Lapa, dos Arcos, Joaquim Silva e Visconde de Maranguape, viveu, trabalhou e teve negócios uma boa porcentagem da imigração galega do Rio de Janeiro. Se somarmos os galegos que estiveram nas três ruas principais da freguesia de Santo Antonio e do bairro da Lapa (Lavradio, Arcos da Lapa e Rua da Lapa), temos um total de 258 emigrantes, o equivalente a 7,6% de toda a amostra recolhida4. A província de Pontevedra concentrou 50% dos 258 emigrantes que viviam nesta zona; A Coruña contribuiu com 36% e Ourense com 14%. Das três ruas mencionadas, a do Lavradio foi a de maior importância numérica, aglomerando 135 emigrantes (3,8% do total de toda emigração), seguida da Rua dos Arcos (2,25%) e por último, a Rua da Lapa (1,23%). Esta área do Rio de Janeiro acolheu galegos de todas as províncias, porém com uma maior concentração em determinadas províncias, como Pontevedra e A Coruña.5 A província de Ourense, por exemplo, estava bastante 4

A amostra utilizada neste artigo, como explicada no item anterior, é referente a 3500 imigrantes, recolhidos nas matrículas dos sócios do Arquivo privado do Hospital Espanhol do Rio de Janeiro, a partir de 1859 até os anos 20 do século XX, e do Consulado Espanhol, a partir de 1877 até 1939. 5 Resultados extraídos da matrículas do Hospital Espanhol e das fichas do Consulado Espanhol, ambas localizadas no Rio de Janeiro, entre os anos de 1850 a 1939.

dispersa entre as ruas do Centro do Rio, e também nos subúrbios. Aí temos uma realidade condizente com as características da emigração ourensana, que, ao contrário das províncias de Pontevedra e A Coruña, não tiveram concelhos (com a exeção de Melón) com altos índices de emigração. Entretanto, encontramos alguns focos tanto na freguesia de Santa Rita (Ruas Senador Pompeu, Camerino e Barão de São Félix), como na freguesia de Santo Antônio (Rua do Lavradio) ou na Lapa. Nesta última freguesia, contabilizamos 5,5% do total da emigração ourensana, que se divide entre vários concelhos de diferentes áreas geográficas da província, como podem ser Melón, Pereiro de Aguiar ou Xinzo de Limia. Cada concelho oferece um pequeno número de emigrantes, que na maioria das vezes, não ultrapassa cinco pessoas. Daí a dificuldade de analisar, em nível micro, as cadeias migratórias desta província e de construir um perfil dessa emigração, tanto pela sua dispersão por diferentes bairros do Rio de Janeiro, como pela pouca concentração de vizinhos em uma mesma localidade. Supostamente, o fato de não ter um grande contingente dividido em zonas (caso dos municípios pontevedreses) ou concentrado em um único concelho (caso de Santa Comba) pode ter colaborado para a sua maior dispersão, se comparado às outras províncias, como consequência da busca de apoio nas cadeias migratórias mais antigas e fortalecidas originárias de outras províncias. Seria uma cadeia em nível interprovincial. Também no caso de Ourense, ao ser uma emigração mais tardia para o Brasil, se comparada aos outros concelhos, predominando nas primeiras décadas do século XX, obrigou os seus vizinhos a buscarem sua inserção sócio-profissional naquelas localidades onde já existiam concelhos com maior tradição6. Na província de Pontevedra, apareceram 21 concelhos distribuídos por essas três ruas do Rio de Janeiro, entretanto algumas zonas apresentam maior contingente migratório que outras. Na Lapa e na freguesia de Santo Antonio prevaleceram numericamente os municípios que limitam com o norte de Portugal e alguns do litoral sul da Galiza, como As Neves, Arbo, Tui, Gondomar ou O Rosal. Um dos fatores explicativos para a escolha dos Destinos migratórios dos galegos é a emigração 6

Para ver a distribuição da emigração galega a Rio de Janeiro por províncias, vid. SARMIENTO, Érica. Galegos no Rio de Janeiro (1850-1970). Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Geograf[ia e História. Universidade de Santiago de Compostela, 2006.


G N A R U S | 106

intrapensinsular. Para o caso do Brasil, está relacionado a municípios ou áreas com forte tradição migratória a Portugal. Como exemplos, segundo estudos realizados por vários especialistas, temos a área geográfica do sudeste de Pontevedra, mais especificamente os concelhos de Pontecaldelas, Fornelos de Montes, A Lama e Cotobade; o município de Santa Comba, da província de A Coruña, e, por último, o Concelho de Melón, localizado na província de Ourense7. Esses municípios são os que apresentam o maior contingente emigratório a Rio de Janeiro dentre todos os municípios de suas respectivas províncias8. Alguns municípios da província de Pontevedra, aqueles localizados no centro e no sul, têm uma antiga tradição emigratória ao Brasil, já registrada desde a década de 50 do século XIX. Segundo estudos realizados por González Lopo (2000, pp.270-278), nos arquivos paroquiais pertencentes aos municípios de Ponte Caldelas, Fornelos de Montes, A Lama e Cotobade aparecem informações que indicam um claro predomínio de emigração a Portugal, o que facilitaria os primeiros contatos dos galegos com o Brasil. Em outra zona pontevedresa, na chamada Terra de Montes, que engloba os municípios de Beariz, Cerdedo e Forcarei, a partir de meados do século XIX, Brasil passa a ser o principal destino de atração americano, principalmente as cidades de Santos e São Paulo e, em menor medida, Rio de Janeiro (FERNÁNDEZ CORTIZO, 1990, p.182). Ainda que nos deparemos com índices emigratórios em quase todos os concelhos pontevedreses, o centro-sul da província de Pontevedra é, sem dúvida, a zona de maior fluxo a Rio de Janeiro. No limite com o Minho português e sofrendo influência desses vizinhos, essa região galega foi desencadeando uma emigração que atingiria quase todos os municípios pontevedreses (com maior ou menor intensidade), mantendo uma continuidade e a sobrevivência de cadeias migratórias ao longo de mais de um século. Os portugueses se adiantaram a essa emigração, claro está, por questões históricas, alternando, assim como os galegos, os destinos entre Brasil e as regiões intrapeninsulares (FERNANDES ALVES, 1994).

7

Vid. GONZÁLEZ LOPO, Domingo. “Una aproximación a la emigración de la Galicia Occidental entre mediados del siglo XVII y el primer tercio del XX, a través de las fuentes protocolares y archivos parroquiales”. Revista da comisión galega do quinto centenario, nº 6, 1990, pp. 135- 169; BARREIRO MALLÓN, Baudilio. La jurisdicción de Xallas en el siglo XVIII. Población, sociedad y economia. Santiago de Compostela: Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Santiago de Compostela, 1977; FERNANDEZ RODRIGUES, M.A. “Evolución migratoria en el municipio de Melón: mediados del siglo XVII a comienzos del siglo XX”. In: Eiras Roel (ed.). Aportaciones al

Na Rua do Lavradio, onde está a maior concentração de pontevedreses, com 135 emigrantes (52% do total das três ruas), o município de As Neves representa 7,75% do total das três ruas e 15% dos que viveram no Lavradio. É o município com maior número de emigrantes tanto na Rua do Lavradio como também na Rua dos Arcos. Foi o único concelho, para a toda a Galiza, que contou com mais de 20 emigrantes vivendo na Rua do Lavradio. No número 77, da mesma rua, existiu uma hospedaria, onde residiram vários galegos. A documentação, muitas vezes, não deixa entrever o tipo de moradia que existia nos endereços: se era quarto, casa de cômodo, comércio, etc. As fontes orais, nesses casos, contribuíram para relatar este tipo de informação. Assim ocorreu com o n° 77, onde viveu M. G. G., nascido no concelho de As Neves: “Quando cheguei fui morar sozinho. Era ali no morro de Santo Antonio, na Rua Lavradio, 77. Moravam muitos galegos, era o chamado cabeça-de-porco, que se disse aqui. Eram mais de 50 famílias que moravam ali. Havia muita família portuguesa e brasileira também.”9 Esse emigrante chegou no ano de 1950 e, ainda nessa época, os galegos continuavam utilizando as pensões do Centro do Rio como a forma mais econômica de sobreviver, tal como ocorria no começo do século. A diferença da segunda emigração de massas em relação aos que emigravam no começo do século XX é que, quando conseguiam juntar as suas economias, buscavam uma casa para alugar ou para comprar nos subúrbios ou nos arredores da área central, como podia ser o bairro do Méier, Penha ou, no caso do emigrante entrevistado, o bairro de São Cristóvão. Os que podiam se permitir comprar um imóvel nos bairros mais privilegiados, mudavam-se para a zona sul, perto da praia, nos bairros do Flamengo, Botafogo ou Copacabana. Encontramos em décadas anteriores, vivendo no número 77, da Rua do Lavradio, outros emigrantes: dois do concelho de As Neves, quatro de Santa Comba, 1 de A Baña, 1 de Ponteareas, 1 de Salvaterra do Miño e 1 de Ourense. O mais antigo era do Concelho de As Neves. Chamava-se Eduardo Sanchéz Gil e se registrou no consulado no ano de 1915. Ou seja, desde 1915 até a década de 50 é provável que muitos galegos procedentes do concelho de As Neves tenham residido nesta estudio de la emigración gallega. Un enfoque comarcal. Santiago de

Compostela: Xunta de Galicia, 1992, p. 167-176. 8 Vid. SARMIENTO, Érica. Galegos no Rio de Janeiro (1950-1970). Tese de doutorado, Faculdade de Geografia e História, Universidade de Santiago de Compostela, 2006. 9 Entrevista a M. G. G. no dia 4 de novembro de 2003, no Rio de Janeiro. Os emigrantes entrevistados pela autora deste artigo serão identificados pelas iniciais do nome e sobrenome.


G N A R U S | 107 localidade. Como as hospedarias eram lugares temporais, era relativamente comum encontrar um segundo endereço nas fichas do consulado. O próprio Eduardo Sanchéz Gil, na década de 40, vivia na Rua Mem de Sá, outra localidade próxima à zona central do Rio. Este concelho pontevedrês, onde mais se aglomeraram seus vizinhos foi no número 41 da Rua do Lavradio: de 14 galegos, 10 procediam de As Neves. As pensões populares, como os pequenos hotéis, os cortiços e as “cabeças-de-porco”10 foi uma realidade da emigração galega e portuguesa no Rio de Janeiro. O número 77, não era a única casa que alugava quartos. Nas fichas do Consulado Espanhol, por exemplo, os números 38, 63 e 170 da Rua do Lavradio também eram casas. Nos dados pessoais do emigrante Maximino Gesteira Loural, de Redondela, aparece o seguinte endereço: “Rua do Lavradio, n° 63, Casa 2”. A antiguidade dessa rua como moradia de galegos remete-se ao século XIX. A partir de 1879 até o ano de 1899, aparecem 12 emigrantes vivendo aí. A emigração continuou, segundo as fontes escritas até a década de 1930 e segundo as fontes orais, até a década de 1950. As áreas centrais que serviam de moradia estavam unidas à vida profissional. Por isso, muitos galegos tiveram seus hotéis, restaurantes ou pequenos comércios também no centro da cidade. Nas fichas do Consulado Espanhol do Rio de Janeiro, aparecem no item referente ao endereço, nomes de hotéis, que podiam tanto ser a residência como o local de trabalho ou ambas as coisas. No Largo da Lapa, por exemplo, encontramos o “Grande Hotel” e o “Hotel Guanabara”. No primeiro deles, localizado no número 47, encontramos seis emigrantes vivendo nesta localidade na década de 1920, oriundos de todas as províncias galegas. Na Rua do Lavradio, os emigrantes se hospedavam e também alugavam quartos. Aproveitaram a conjuntura e a demanda do mercado para abrir suas hospedarias. Não só os do sul de Pontevedra e os de Ourense estiveram pela Rua do Lavradio, também os de Santa Comba e municípios vizinhos deste concelho habitaram essa parte do Rio de Janeiro. M. M. C., de Santa Comba, não só viveu na Rua do Lavradio, como também foi sócio de um dos hotéis, no número 68: “Quando cheguei estava fazendo negócio com um hotel na Rua Lavradio, 68, hoje Hotel Casablanca, naquele tempo Hotel Lavradio. Eram de rapazes conhecidos e meu pai comprou uns pontos para mim e eu fui trabalhar ali 6 meses, desde o 31 de agosto de 1957 até os primeiros dias de abril de 1958. Saí dali 10

Casas de cômodo, muito comum no começo do século XX, no Rio de Janeiro, antes das reformas urbanísticas, a partir de 1906. Eram habitações coletivas, com banheiro e cozinha também coletivos.

porque meu pai construiu o Hotel São Cristóvão. No lavradio eu tinha 6 pontos de sociedade e em São Cristóvão tínhamos 25 pontos. Uma casa nós dividíamos em porcentagens. O Lavradio continuou bastante tempo, depois eu vendi.”11

Os emigrantes costumavam chamar de “pontos” as pequenas parcelas que compravam em sociedade. À medida em que as economias aumentam, os “pontos” também cresciam ou, em outros casos, compravam-se “pontos” em melhores áreas da cidade. Nesse caso, o Hotel Lavradio, como disse M. M. C., “eram de rapazes conhecidos”, ou seja, de vizinhos de Santa Comba ou de galegos. A presença dos xallenses nesta freguesia era muito mais antiga. O primeiro emigrante foi encontrado no ano de 1912 e a cadeia migratória seguiu até a década de 50. A emigração de Santa Comba ocupou 20,3% do total dos galegos que viviam na Rua dos Arcos, no Lavradio e na Lapa. Uma cifra que só está por debaixo do concelho pontevedrês de As Neves. Somente na Rua do Lavradio, entre 1912 e 1939, viveram 20 xallenses, a maioria dele nos números 122 (de 18 moradores, 6 eram de Santa Comba) e número 125. No que diz respeito à emigração intrapeninsular do concelho de Santa Comba, Portugal está entre os destinos preferidos dos seus habitantes. Segundo Baudilio Barreiro, nos seus estudos realizados sobre a jurisdição de Xallas, os emigrantes vão diretamente à cidade do Porto como moços de serviço, porque é a única capaz de absorver um número elevado de empregos temporais e de ambulantes. Entre os anos de 1757 e 1784, a porcentagem de 18% dos varões casados havia estado em Portugal: “Las preferencias a la hora de elegir destino se las lleva Portugal ampliamente sobre Castilla. En porcentajes correspondería el 86 % a Portugal y el 14 % a Castilla. A Portugal van como mozos de servicio en sus múltiples variantes: por eso Portugal equivale a decir Oporto, única ciudad que puede absorber un número elevado de empleos temporales y callejeros. Allí trabajan de aguadores, recaderos y mozos de mercado. A castilla van, en cambio a trabajar en el campo, a las labores de siega y tal vez de esquileo y carbôneo.”(BARREIRO MALLÓN, 1977, 253-254).

A atividade complementar do município também possibilitou a emigração a Portugal. Apesar das famílias de Santa Comba viverem predominantemente da agricultura, com terras arrendadas ou trabalhando nas suas próprias fincas, havia um trabalho que predominava na zona e que ajudava a aumentar a economia doméstica: a arriería. Através dos transportes de mercadorias,

11

Entrevista com M.M.C. no dia 12de novembro de 2003, no Rio de Janeiro.


G N A R U S | 108 principalmente de cereais (trigo, sal e vinho), de carvão e areia, os camponeses conseguiam o dinheiro necessário para pagar seus impostos e cobrir o déficit das colheitas. Levavam as mercadorias a várias cidades galegas, como Santiago ou Pontevedra e, muitas vezes, se deslocavam até as fronteiras de Castela e de Portugal, para venderem vinho ou outros produtos (BARREIRO MALLÓN, 1977, p. 422-440).

de Melón, e um dos sócio-fundadores e diretores do Recreio dos Anciãos. A Rua do Passeio começou nas proximidades da Rua da Ajuda, a antiga localidade onde viveram diversos galegos no final do século XIX. Acreditamos que, com a extinção da Rua da Ajuda, a freguesia de Santo Antonio foi ganhando espaço e passando a ser uma das freguesias centrais de maior emigraçãogalega.

Na década de 60, os galegos continuaram comprando hotéis na Rua do Lavradio. J. A. I., de Mazaricos, foi um deles. Chegou no Rio de Janeiro em 1963 e junto com os irmãos que já estavam na cidade, comprou uma hospedaria nessa rua. Segundo palavras do emigrante: “é um lugar muito ruim, daquela não tanto. Na minha época tinha menos galegos, mas ainda era um lugar que tinha muitos galegos. Os galegos aqui no centro moravam na Rua do Lavradio, na Gomes Freire...”12

Dos galegos que viveram na freguesia de Santo Antônio, a maioria deles trabalhou no comércio (67,2%). Não podemos comprovar em que tipo de comércio, já que prevalecem as definições de caráter mais geral como “negociantes” e “empregados”. Entretanto, nos arriscamos a vincular a profissão dos emigrantes com o setor da hotelaria, não só pelos depoimentos dos entrevistados, como também pelas características do próprio bairro, dotado de restaurantes e pensões. Isso não exclui, por suposto, o pequeno comércio.

Nos livros de prófugos do Concelho de Santa Comba, na década de 50, encontramos 15 emigrantes vivendo na Lapa, na Rua dos Arcos e na Lavradio. Os endereços aparecem a partir da década de 50, mas sabemos que nestas ruas já havia galegos vivendo desde a primeira emigração. Na Rua da Lapa, entres os anos de 1951 e 1955, moravam cinco vizinhos, e nas ruas próximas, como a dos Arcos, a Visconde de Maranguape e a Joaquim Silva, no mesmo período, havia cerca de 10 emigrantes de Santa Comba. O que está claro é que muitos xallenses se agruparam nesta freguesia carioca tanto na primeira emigração massiva como na segunda. Os municípios vizinhos de Santa Comba, como Mazaricos, Vimianzo ou Outes também tinham emigrantes nesta zona. Foi o caso de S. J. P., de Vimianzo, que emigrou em 1960. Decidiu sair da Espanha, porque já tinha o irmão no Rio de Janeiro, além de outros familiares que emigraram antes dele. O primeiro lugar onde morou foi na Lapa. O bairro lhe servia somente como residência, pois se deslocava todos os dias até Copacabana para trabalhar de garçom. Quando comprou seu próprio restaurante, foi viver em Nova Iguaçu, um município da chamada Baixada Fluminense, onde os imóveis eram mais acessíveis que nas áreas nobres. Dizia que “na Lapa tinha muito espanhol. Era tudo espanhol”.13 Na Rua do Passeio, nº 70, ainda no bairro da Lapa, estava o famoso “Restaurante Cosmopolita”, cujo proprietário era Raimundo Rodríguez Martínez, natural 12

Entrevista a J. A. I. no mês de outubro de 2000, no Rio de Janeiro. Entrevista a S.J.P., no dia 26 de setembro de 2000, no Recreio dos Anciãos, Rio de Janeiro. 14 Arquivo Nacional, Processo de expulsão, Pac. IJJ7 169. Só encontramos o processo de Manuel Gerpe Blanco. No seu expediente aparecia a informação de que o seu irmão Celestino já 13

Nos processos de expulsão de estrangeiros, uma fonte rica em informação acerca do cotidiano dos imigrantes, analisando os casos de crimes de lenocínio, crimes contra a ordem e moral pública pelo uso da prostituição, percebemos que muitos galegos eram acusados devido ao tipo de negócios que tiveram no Rio de Janeiro: as hospedarias. Por exemplo, o caso dos irmãos de Santa Comba, Celestino e Manuel Gerpe Blanco, acusados de lenocínio. O primeiro foi expulso e o segundo teve um pouco mais de sorte, porque teve condições de contratar um advogado e foi posto em liberdade.14 As hospedarias e casa de cômodos, abundantes no começo do século XX por oferecer serviços baratos aos trabalhadores das classes baixas, também se transformaram em lugar de prostituição do baixo meretrício carioca. Localizadas nas ruas centrais do Rio de Janeiro, esses hotéis serviam de moradia e de “comércio do prazer” para os brasileiros e estrangeiros que combinavam as jornadas de trabalho com o ócio. Os donos do comércio alugavam quartos por hora para todos os tipos de cliente, inclusive para as prostitutas que trabalhavam nas vizinhanças. Neste tipo de comércio, muitos galegos investiram as suas economias, comprando pequenas participações em sociedade, sem se importarem com a localização e o tipo de cliente que freqüentava esses espaços. Era um negócio rentável, de baixos investimentos e rápida ascensão. A clientela não era exigente e a escassez e a carestia dos havia sido expulso por lenocinio (não encontramos o ano da expulsão). Os dois aparecem nos livros de Censo do Concelho de Santa Comba do ano de 1919 e Manuel Gerpe Blanco estava inscrito no Hospital Espanhol no ano de 1919.


G N A R U S | 109 aluguéis aumentavam a demanda pelos quartinhos de pensões e hotéis baratos. A classe trabalhadora não tinha muita opção, não podia permitir-se o luxo de pagar um aluguel de um imóvel e era necessário viver próximo ao local de trabalho para evitar longos deslocamentos entre um bairro e outro. No jornal A Gazeta de Notícias, do dia 9 de janeiro de 1908, numa série de reportagens sobre as hospedarias do Rio de Janeiro, intitulada Os quartos do vício, um ex- proprietário de hospedarias, cuja identidade não é revelada pelo jornal, conta para os leitores o dinheiro que angariou num “quartelzinho de vício bem atreguezado”: “A hospedaria? O senhor não calcula que bom negócio é esse. Acredite, se eu não tivesse velho (...) eu tinha desviado alguns cobres do meu capital para fundar uma; apesar, sim, apesar das muitas que agora estão aparecendo e que se fazem uma concorrência dos diabos. Mas há gente para todas, há gente para todas.”

O comerciante, que depois de enriquecer com as hospedarias, se aposenta e se dedica a emprestar dinheiro à juros, lembra, com satisfação, do começo da sua inversão e dos “conhecimentos” utilizados para abrir esse tipo de negócio: “Saiba o senhor que com uns dois

contos de réis (...) e uns conhecimentos entre algumas mulheres, e a hospedaria está preparada a olhos vistos. Os dois contos seriam para a mobília, só o essencial- camas, cadeiras, lavatórios; para os quartos nobres mesinhas de cabeceira.” Tudo estava muito bem calculado, tostão por tostão. O aluguel da casa podia custar 400$ (réis), o ordenado de um encarregado uns 150$, os gastos 120$, somando uma despesa mensal de 660$. Havia truques para diminuir os gastos, como por exemplo, utilizar os mesmos lençóis de um quarto para o outro, até mesmo num período de uma semana! Para ter uma clientela abundante, durante todo dia, era necessário “um conhecimento entre algumas mulheres”, o que transformava a pensão, durante o dia, em um “lugar de encontros”, e à noite, em quartos de dormir. “Numa casa de 400$ consegue-se muito bem uns dez quartos (...) esses dez quartos nunca se alugam uma vez, às vezes se alugam três e quatro vezes por dia- a questão é ser a casa bem afreguezada!...Demos-lhe, porém, uma média de quinze vezes por dia. Cada quarto, numa hospedaria, -assim, assim- dá (...) nada menos de 5$. Temos, portanto, por dia 75$, o subsídio de um deputado! É ou não é um bom negócio! Num ano, com o capital de dous contos, numa hospedaria modesta e uma freguesia regular, um homem embolsa nada menos de vinte contos, limpinhos, sem guarda-livros, nem cobrador!”15 15 16

A Gazeta de Notícias, 9 de janeiro de 1908.

Entrevista a F. L. L., no dia 10 de setembro de 2003, em Santa Comba.

Como as primeiras economias só permitiam comprar pensões a preços módicos, em locais de baixo meretrício, muitas foram confundidas com casas de prostituição de baixa categoria. Entretanto, os comerciantes não tinham vínculos com as prostitutas, unicamente alugavam os quartos e se aproveitavam da situação. O emigrante de Santa Comba F. L. L. toma com bom-humor seus começos no Rio de Janeiro como dono de hospedarias. Depois de deixar seu trabalho de camareiro, comprou uma pensão com quatro sócios galegos no Centro do Rio de Janeiro onde estavam as mulheres (...) eram onde estavam aquelas mulheres. Era o sítio reservado para isso, naquele tempo era assim. Tínhamos o preso certo para cobrar e elas estavam ali praticamente nuas (risos). Tudo pelo Centro eram só hospedarias. Depois mudei de local e me senti melhor, já não tinha aquele mau ambiente.16 O dono de uma agência de viagens, J. S. S. conhecia bem a atividade dos xallenses no Rio de Janeiro: “Ellos tenían hoteles, pensiones. Era pensión de origen barato, ¿no? Baratas. Pero entre ellos allí, eran parejas que iban allí… en Río de Janeiro hay muchos moteles que pertenecen a gallegos. Hoy en día son hoteles de lujo, pero de aquella eran (risos)…Hoy, siguen con el mismo sistema, pero son moteles de lujo.”17

As casas de meretrício, a prostituição e o lenocínio invadiram o Centro da cidade no começo do século XX e, junto com o tráfico de mulheres brancas, viraram motivo de preocupação para a polícia e os órgãos judiciais da República. Segundo a estatística apresentada pelo delegado do 12º Distrito Federal, no ano de 1914, contabilizavam-se na sua circunscrição 94 casas ocupadas por meretrices, compreendendo as ruas do Lavradio, Gomes Freire, Rezende, Arcos, Senado, Visconde do Rio Branco, Riachuelo, Mem de Sá e Praça dos Arcos e Governadores. Nestas casas habitavam 299 mulheres, das quais a maioria, 160, estava composta por estrangeiras, sendo que desse total, 33 eram rusas, 30 italianas e 20 espanholas (Medeiros de Menezes, 1992:51). Na maioria dessas ruas como a do Lavradio, Arcos, Senado, localizadas na freguesia de Santo Antonio e no bairro da Lapa, era onde estavam muitos hotéis de galegos, ademais das suas residências. O processo de expulsão de Manuel Gerpe Blanco, no ano de 1921, comprova, mais uma vez, a participação de galegos nas hotelarias cariocas 18 . Em 1915, sofreu a primeira detenção, responsável por ser proprietário de três hospedarias frequentadas pelo baixo meretrício. Foi posto em liberdade e vendeu todas as hospedarias que 17 18

Entrevista a J.S. S., em junho de 2002, em Santa Comba. Arquivo Nacional . Processo de expulsão, Pac.IJJ7 169.


G N A R U S | 110 estavam vigiadas pela polícia, comprando dos prédios na rua da Harmonia e na Rua Senador Pompeu (uma das ruas mais frequentadas por galego). Para esse caso em específico, não acreditamos que o acusado fosse cáften ou adquirisse hotéis com a única intenção de utilizá-los como bordéis, ainda que os quartos fossem alugados para prostitutas. No seu processo, não aparecem depoimentos de prostitutas, nem acusações que o indicie como explorador de mulheres, unicamente o processo denuncia a utilização do imóvel pelas meretrizes. O advogado contratado para defender Manuel Gerpe alega a expulsão injusta, explicando que o acusado já cumpriu a sua pena, mesmo que de forma injusta, já que ele se desfez dos seus primeiros negócios, passando a viver da renda dos seus imóveis, um deles, alugado como casa de cômodos. Não existia nenhuma prova contra Manuel Gerpe, que depois de ter cumprido a pena que lhe fora imposta, tratou de procurar novo meio de vida honesto e digno.19 Para comprovar tal fato, bastava ver as escrituras de venda das antigas casas. Tais documentos provam perfeitamente que o paciente nada tem com as casas que a polícia diz serem exploradas por ele, com o comércio do metrício, por assim expulsá-lo do território nacional, onde vive há 17 anos, só tendo unicamente contra a sua pessoa a única condenação que sofreu, cuja pena cumpriu logo após, com um meio de vida honesto.20 Ademais, o advogado contava com outra arma de defesa: a expulsão do irmão do seu cliente, Celestino Gerpe Blanco, “sócio de Francisco Lima na hospedaria da rua D. Manoel, nº60”, expulso “com as falsas declarações dos comissários Péricles Barreto e investigador Bosseli, negando- lhe o direito de regeneração”. Dessa vez, havia um advogado brasileiro, envolvido na trama, e um cliente que tinha condições econômicas para pagar esse tipo de serviço. A polícia nada pode fazer e, no dia 26 de outubro de 1927, o delegado enviou uma carta ao Ministro de Justiça declarando que as provas recolhidas não eram suficientes para expulsar Manuel Gerpe Blanco e que o acusado havia sido posto em liberdade.

a forma de atuação desses excluídos do sistema, existiu de forma não organizada, dispersa pelas ruas da cidade, coincidindo com o cotidiano contraditório da cidade, que vivia entre o atraso e o progresso.

Percorrendo outros logradouros: As Ruas Camerino, Senador Pompeu e adjacentes Continuamos utilizando as ruas do Rio de Janeiro como um fator explicativo da concentração espacial dos galegos. Sabemos que a localização das moradias é uma variável que não explica totalmente a mobilidade social de um grupo migratório. Quando encontramos uma rua onde viveram muitos galegos ao longo de várias décadas, por detrás desse endereço sabemos que existe uma série de fatores de ordem cultural e econômicos (as motivações, os projetos) que envolvem o custo da casa, as possibilidades de economizar para ser proprietário, ou para um possível retorno, a proximidade da casa do local de trabalho ou a busca de uma vivenda próxima a familiares ou vizinhos. Além disso, os endereços devem ser estudados como um dado inicial que pode ser alterado facilmente, já que os emigrantes mudavam de rua, ao longo de suas vidas, segundo a mobilidade profissional e econômica. A primeira moradia sempre estava associada com a precária condição econômica na qual chegava o estrangeiro, por isso costumavam escolher quartos coletivos e vivendas populares.

A história dos indesejáveis da Capital Federal e sua conseguinte expulsão foi um instrumento utilizado pelas autoridades brasileiras para impor a ordem pública contra aqueles estrangeiros pobres e contestadores do sistema. A história oficial durante muito tempo quis esconder a participação das massas populares nos períodos mais conturbados da sociedade brasileira, recriminando o caráter passivo da população. Entretanto,

O que era mais importante: as possibilidades que oferecia o mercado de trabalho do lugar escolhido (como a relação entre a distância casa/trabalho) ou as possibilidades que ofereciam os conterrâneos que já estavam estabelecidos em determinados bairros cariocas? Para os pioneiros, podíamos escolher a primeira alternativa, mas para aqueles que desembarcaram no Rio de Janeiro na emigração massiva, as redes de relações sociais é um fator clave tanto na busca do primeiro trabalho como da primeira casa. Samuel Baily explica, em seu estudo sobre os italianos em Buenos Aires e em Nova York, que as variáveis estruturais (localização e disponibilidade de trabalho, o mercado da vivenda) influenciaram os pioneiros, mas os indivíduos que chegaram posteriormente na cadeia migratória foram influenciados, em boa parte, pelas redes de vínculos pessoais já existentes (BAILY, 1985, p.42). Acreditamos que para o caso dos galegos no Rio de Janeiro ocorreu o mesmo processo. O seu espaço social, a priori, estava influenciado pelas condições sócio econômicas da própria cidade, mas com o tempo, com a chegada

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Arquivo Nacional. Processo de expulsão, Pac.IJJ7 169.

Arquivo Nacional. Processo de expulsão, Pac.IJJ7 169.


G N A R U S | 111 sucessiva de novos emigrantes, algumas ruas passaram a ser pontos de referências, não só pela sua localização estratégica, perto dos lugares de trabalho, como também porque já se havia estabelecido uma rede de parentesco e de vizinhança que oferecia apoio afetivo, econômico e profissional. A localização das principais ruas e bairros onde se concentravam os galegos serviu como base para definilos dentro do contexto urbano carioca, além de vincular o local de moradia com as profissões exercidas e se essa ocupação geográfica e profissional tinha relação com as redes sociais. Próximos às zonas portuárias, na chamada freguesia de Santa Rita, moraram vários galegos no início do século XX. Esse dado já era conhecido por algumas bibliografias relacionadas com a emigração no Rio de Janeiro, que ressaltavam a concentração espacial de determinados grupos de estrangeiros.21 O censo de 1906, por exemplo, distribuía a população espanhola pelas freguesias de São José, Santa Rita, Santo Antonio e Gamboa, em ordem de importância numérica. A freguesia de São José teve especial relevância na comunidade galega desde a segunda metade do século XIX, como foi o caso da Rua da Ajuda, do bairro Cinelândia e das suas ruas adjacentes. Como já comentamos nas páginas anteriores, esse espaço do centro da cidade foi ocupado por redes que ultrapassavam os limites de uma aldeia ou de um concelho. Na freguesia de Santa Rita, no ano de 1890, dos 43.601 habitantes, 12.315 eram portugueses e 1.720 eram espanhóis. Era uma zona próxima ao porto, onde se concentravam os estivadores, os carregadores de café, formado por um contingente de negros escravos e libertos. No início do século XX, o porto do Rio de Janeiro era um enorme complexo de unidades independentes que se estendia por diversas ilhas da baía de Guanabara e se espalhava, no continente, da região fronteira ao Paço Imperial até as praias das Palmeiras e São Cristóvão. Em uma sucessão de mais de 60 trapiches, quase sempre colados um ao outro, o sistema ocupava uma extensão de 12 quilômetros, aproximadamente, tomando toda a orla marítima das freguesias de Santa Rita e Santana. É importante marcar, contudo, que os trabalhadores da

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Entre muitas obras bibliográficas, podemos citar a de Lená Medeiros de Menezes. Os indesejáveis: desclassificados da

modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890- 1930). Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996, e a dissertação de Lucia Maria Paschoal Guimarães, Espanhóis no Rio de Janeiro (1880- 1914). Contribuição a historiografia da imigração. Tese de concurso à livre docência de Historiografia apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Rio

área não viviam apenas do porto. Segundo Velasco e Cruz: “A região era um importante centro artesanal e manufatureiro (...) Na região existiam inúmeros estabelecimentos comerciais, armazéns de secos e molhados, botequins, restaurantes e várias firmas de transporte de mercadorias. As duas freguesias constituíam, portanto, um mercado de trabalho diversificado, dinâmico, e cujo crescimento contínuo ao longo da segunda metade do Oitocentos ajudou a transformar os bairros da Saúde e Gamboa em importantes locais de moradia” (CRUZ, 2000, pp. 275-276).

Na Freguesia de Santa Rita, entre negros e portugueses, pequenos comércios e grandes exportadores de café, viveram os galegos nas Ruas Camerino, Senador Pompeu, Barão de São Félix, Visconde da Gávea, Saúde (atual Sacadura Cabral) e Prainha (atual Rua Acre)22. Conseguimos chegar até eles também, como nos casos anteriores, através dos endereços recolhidos nas matrículas do Hospital Espanhol e nas fichas do Consulado Espanhol. Na Rua Camerino e Senador Pompeu viveram 198 (5,6% do total da amostra) emigrantes galegos desde 1881 até o ano de 1938. Quem foram os galegos que viveram na Camerino e na Senador Pompeu? Diferentemente da Rua da Ajuda, onde encontramos emigrantes do concelho de Santa Comba e da província de Pontevedra, os concelhos pontevedreses se aglomeraram arredor dessas ruas formando uma cadeia intermunicipal que abrangia 86,5% do total de galegos que viviam nessa localidade. Na Camerino, 23% do total era do concelho de Cerdedo, 21,1% de Cotobade, 11% de A Lama e de Forcarei; e na Rua Senador Pompeu, 13,6% pertencia ao concelho de Cotobade. Está claro que nesta zona havia habitações coletivas, pensões ou hotéis onde se hospedavam os emigrantes e que, através das cadeias migratórias, eram informados da existência de vizinhos ou parentes que já estavam ali. Na Rua Senador Pompeu, por exemplo, havia uma conhecida estalagem na passagem do século XIX para o XX, que servia como residência para trabalhadores e que foi demolida com as reformas urbanísticas do Prefeito Pereira Passos (Gerson, 2000: 209 e Aquino Carvalho, 1995:134). Na Antiga Rua dos Cajueiros, paralela à Senador Pompeu, se localizava a maior das cabeças-dede Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 1988. Ambas as autoras utilizam os recenseamentos do Rio de Janeiro dos anos de 1906 e 1920. 22

Vamos analisar principalmente as Ruas Camerino e Senador Pompeu, porque eram as que reuniram maior número de imigrantes galegos (mais de 50). As outras ruas serão mencionadas, mas não se fará uma análise detalhada.


G N A R U S | 112 porco do Rio, com 4 mil moradores, destruída nas primeiras décadas do século passado. Em outra rua, chamada Sacadura Cabral (antiga Saúde), que se encontrava com a Rua Camerino, havia um hotel, chamado Hotel Europa, onde viveram 9 galegos na década de 3023. Na década de 1940, quando chegou, desde o concelho de As Neves, o emigrante F. F. C., as pensões continuavam servindo de pousada para os galegos. Na Rua General Caldwell, atrás da Praça da República, no número 219, estava a casa da sua sogra, também galega, que alugava quartos para estrangeiros e nacionais. “Eu vivia num quarto. A minha sogra sobrealugava quartos na Rua General Caldweel, 219. Eu lhe paguei tudo: a passagem, quarto, lhe paguei tudo. Não me regalaram nada. Paguei tudo, tudo24”. A sogra havia conseguido o seu primeiro trabalho, em um restaurante de galegos em sociedade com um português, e o primeiro lugar para morar. Uma residência coletiva, sem exceções nem sequer para o próprio genro. As dificuldades para começar a vida, com dívidas contraídas com parentes para pagar a passagem de navio, fazia com que as pensões e habitações coletivas fossem a primeira alternativa para os emigrantes recém-chegados. Alguns acomodavam toda a família dentro de um quarto, como o foi o caso de A. C. G., de Xinzo de Limia, que, da mesma forma, que o emigrante anterior, conseguiu seu primeiro trabalho por intermédio da sogra, em um restaurante também de um emigrante português. A.C.G foi viver num quarto na casa de uma família portuguesa e quando, posteriormente, levou a esposa e os dois filhos para o Rio de Janeiro, continuou vivendo com a família em um quarto. Ainda assim se considerava uma pessoa com sorte, já que a maioria dos espanhóis compartilhavam espaço com 4 ou 5 patrícios: “Tinha lugar que tinha 4 ou 5 espanhóis que moravam juntos, no mesmo quarto. Eu morei num quarto, com uma família que tinha um apartamento e me alugavam um quarto. Minha sogra quando eu cheguei me arranjou para eu morar ali. Quando chegou minha esposa e meus dois filhos ficamos num mesmo quarto 219. Antes vivia na Rua do Lavradio, 122, uma rua onde viveram vários galegos de Santa Comba. Havia um espaço e uma cozinha e o banho era coletivo. Não havia recursos e teve que ser assim.”25

negócio, certamente, frutífero, já que a imigração galega no Rio de Janeiro não cessou até a década de 60 do século passado. A dependência afetiva e econômica entre parentes e vizinhos não era uma característica exclusiva dos galegos no Rio de Janeiro. Em Cuba, por exemplo, as relações entre familiares e vizinhos eram freqüentes no setor terciário, dominado por espanhóis e galegos. O comércio encontrava-se majoritariamente nas mãos de espanhóis. Devido à estrutura da propriedade e o sistema agrário cubano, as possibilidades de ascensão social e econômica estavam basicamente na cidade e o setor terciário nãos mãos dos espanhóis, entre os quais, muitos originários da Galiza. Os comerciantes espanhóis, segundo Malaquer de Motes, proporcionavam um trato privilegiado a familiares e patrícios (MALUQUER DE MOTES, 1992, p.140). Havia motivos de afinidades e solidariedades, além da confiança e da eficiência empresarial. A maioria dos balconistas aspirava ser comerciantes ou donos do seu próprio negócio e, para isso, estavam dispostos a sacrificar-se ao máximo no trabalho, vivendo com extrema modéstia e investindo todas as economias na consolidação do negócio. Frequentemente, empregados e balconistas, que costumavam ser escolhidos entre parentes ou patrícios, eram obrigados a investir a maior parte do seu salário na participação do negócio. Outra informação de interesse vinculada com a Rua Senador Pompeu foi a fundação do Centro Galego. Abriu as suas portas no ano de 1900 e a sua primeira sede foi na Rua da Constituição, justamente a transversal à Senador Pompeu, antes da Construção da Avenida Getúlio Vargas no Estado Novo. As associações étnicas tendiam a estar localizadas nas áreas próximas aos seus emigrantes. Assim foi também com os italianos no Rio de Janeiro, que fundaram uma das suas primeiras sociedades do Brasil, o Círculo Italiano de Instrução, na Praça Onze, freguesia de Santana, uma localidade onde vivia a maior parte desses emigrantes (BRASIL GERSON, 2000, p.185).

Assim, os imigrantes galegos não só de dedicaramuma parte deles- ao setor da hotelaria, como também utilizaram as hospedarias para os recém-chegados. Um

Os índices de retorno (temporal ou definitivo) estiveram presentes entre os vizinhos da Senador Pompeu e da Camerino. Entre as retiradas de passaporte no Consulado Espanhol do Rio de Janeiro, 10,4% era de galegos que viviam nessas ruas. Curiosamente em esta localidade, encontramos não só emigrantes que voltaram à Galiza, como também casos de mobilidade dentro país,

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Arquivo do Consulado Espanhol do Rio de Janeiro. Informação encontrada nas fichas do Consulado Espanhol. 24 F. F. C., entrevista realizada no dia 27de setembro de 2000 no Hospital Espanhol (Rio de Janeiro). No ano de 1939, nas fichas consulares, encontramos um emigrante de Santa Comba, chamado José Rodríguez Pose, vivendo também na Rua General Caldwell.

Entrevista a A. C. G. o dia 14 de setembro de 2000, no Recreio dos Anciãos (Rio de Janeiro). O entrevistado não se lembrou o nome da rua da sua primeira residência no Rio de Janeiro.


G N A R U S | 113 principalmente nos estados de São Paulo, Bahia. As cidades de São Paulo, Santos e Bahia fizeram parte da emigração de Cotobade. Os municípios vizinhos, como Pontecaldelas, Pazos de Borbén, A Lama e Cotobade tiveram uma importante emigração à Salvador da Bahia (BACELAR, 1994, p.45). De fato, nas listas de Censo do Arquivo Municipal de Cotobade, encontramos emigrantes de todos esses concelhos que já haviam estado na Bahia ou que partiram do Rio de Janeiro para esse estado. Foi o caso do emigrante José Maria Sueiro, de Cerdedo, de profissão da canteria, que estava na Bahia em 1934; ou Francelino Vilar Martinez, de Pazos de Borbén, que antes de estar no Rio de Janeiro, em 1937, já havia vivido na Bahia. A maioria dos emigrantes que retiraram passaporte era casada (69%) e maior de 30 anos, o que reforça a ideia do alto índice de retorno vinculada à hipótese de ver a esposa e os filhos que haviam permanecido no lugar de origem com as possessões familiares 26 . Esses homens casados estavam sozinhos no Rio de Janeiro, segundo dados estatísticos referente ao sexo nessas duas ruas, onde só residiam três mulheres galegas. O emigrante Segundo Souto Couto, por exemplo, de Pontecaldelas, ausentou-se desde 1922 até o ano de 1933, quando retornou ao Brasil. O mesmo ocorreu com o emigrante José Alonso Cerviño, de Cotobade: matriculou-se em 1922 no Consulado e, nas observações da sua ficha, encontramos uma segunda data de chegada no Rio de Janeiro, no ano de 1935. Desse último emigrante, não encontramos nenhum membro da sua família nas fontes brasileiras, mas sim nas fontes galegas. O seu irmão, Avelino Alonso Cerviño, também estava no Rio de Janeiro, dado comprovado no censo de 1955, no concelho de Cotobade, paróquia de Carballedo. Estava casado com Andréa Fernández Vidal, que vivia na mesma paróquia com uma tia dos irmãos Alonso Cerviño. Além do seu marido e cunhado, também estavam no Brasil (não aparecia a informação referente ao Estado), os seus sobrinhos Valentim e Manuel Vidal. Assim, não só o imigrante José Alonso Cerviño tinha a esposa em Cotobade, como também o seu irmão. A prova da existência de uma colônia galega sólida nessa freguesia é o número de galegos que viveram na Rua Camerino. Nesse espaço, encontramos a concentração mais importante do começo do século XX. No número 96, da Rua Camerino, residiram nada menos que 103 galegos do total de 126. O tempo em que 26

Os emigrantes que retiraram passaportes entre os 20 e 22 anos de idade foram repatriados para o serviço militar. As informações são retiradas da interpretação feita das mais de 3 mil inscrições de

moraram nesse número ou o ano em que chegaram é algo quase impossível de saber. O único dado que disponibiliza essa informação é o ano consular, que começa a aparecer, de forma frequente, somente a partir da década de 20 do século passado. Ou seja, dos 103 galegos que viveram no número 96, sabemos que 93% deles haviam se inscritos no consulado entre o ano de 1920 e 1938. Essa porcentagem não demonstra que foi o primeiro endereço dos emigrantes, mas sim revela que viveram ou trabalharam nesse local durante essas duas décadas, havendo também a possibilidade de ser o local de referência de algum imigrante empregador. O que havia no número 96? Uma pensão ou um estabelecimento comercial? Ou seria simplesmente um endereço de referência para os que se matriculavam no Consulado? Não podemos descartar nenhuma dessas possibilidades. O endereço do trabalho podia ser mais importante que o da própria casa, principalmente nos primeiros anos de chegada, quando o emigrante vivia como inquilino em quartos de hotéis, pensões ou em casa de patrícios, mudando constantemente de endereço, conforme a sua ascensão econômica ou troca de emprego. Entretanto, algumas características da emigração galega da Rua Camerino, nº 96, nos leva a pensar na existência de algum tipo de pensão ou estalagem que abrigou, durante a primeira metade do século XX, uma importante parcela dos galegos de Cotobade, A Lama, Cerdedo e Forcarei. Primeiramente, as profissões eram muito variadas. Ainda que a maioria (60%) estava constituída de jornaleiros, um termo generalizado, que pode englobar tanto um ofício rural (vinculado ao lugar de origem) como urbano, os trabalhadores da construção (pedreiro, carpinteiro, canteiro) formavam 17% e do comércio 22% e o restante se dividia entre um motorista, um padeiro, duas donas de casa e um operário. Uma variedade de ocupações que não podiam estar sob a ordem de um mesmo estabelecimento, unicamente que fosse um grande centro comercial, opção que descartamos para o período temporal utilizado. Um segundo fator seria a inscrição consular desses moradores, que indica uma grande concentração de vizinhos em um mesmo ano ou em poucos anos. Só no período de 1926 a 1934, foram registradas 14 e 13 pessoas, respectivamente, e entre 1925 e 1930, apareceram 40 galegos residindo no número 96 e, por último, entre os anos de 1931 e 1938, o total de 43 vizinhos. Seguimos com a hipótese de que, no caso de galegos do arquivo morto do Consulado Espanhol do Rio de Janeiro, desde os anos de 1870 a 1939.


G N A R U S | 114 que fosse um comércio, teria que ser uma empresa dinâmica e grande, para abrigar uma diversidade de profissões e um considerável número de empregados. Além disso, a freguesia de Santa Rita era uma das mais frequentadas por espanhóis. Na Rua Camerino nº 80, por exemplo, havia um sobrado, que funcionou para alojar emigrantes desde a década de 20 até a década de 50. Descobrimos que era uma casa, quando investigamos os livros de prófugos do Arquivo Municipal de Santa Comba, onde no ano de 1950, o emigrante José Maria Espasandín Serrano apresentava como endereço, a “Rua Camerino, nº80, sobrado”. Na década de 20, viveu outro emigrante de Santa Comba, da paróquia de Mallón, chamado Ramón Santos Varela, um jovem de 19 anos que teria chegado ao Rio de Janeiro no ano de 1924. As casas estavam perto do local de trabalho, não descartando, assim, a possibilidade do emigrante morar no próprio emprego. Tudo estava próximo, moradia e trabalho, no século XIX e começo do século XX, do Centro da cidade. Na Rua Visconde da Gávea, n° 70, cruzando com a Senador Pompeu, havia outra casa de cômodos. Aí viveu F. L. L., da paróquia de Grixoa (Santa Comba), com mais três vizinhos, na década de 30 do século passado 27 . Todos no mesmo quarto. No mesmo período, encontramos, nas fichas do Consulado Espanhol do Rio de Janeiro, dois vizinhos da paróquia de Grixoa que também viviam nessa casa de cômodos. Eram José Suárez Gulín e Benigno Suárez García, cujas inscrições consulares correspondiam aos anos de 1934 e 1928, respectivamente. Seriam os companheiros de quarto de Francisco López Landeira? Poderia ser, já que eram, inclusive, da mesma aldeia: Vilar de Céltigos. López Landeira buscou seu primeiro quarto numa rua próxima ao seu primeiro local de trabalho, na Rua Camerino n. 62. Era o restaurante “União Ibérica”, de propriedade de galegos da província de Pontevedra. Aqui temos um exemplo da extensão das redes de solidariedade que estavam estabelecidas desde um complexo sistema de relações de paisanagem e de estrutura, montadas segundo a disposição geográfica do Centro da cidade. A importante cadeia migratória das Ruas Camerino, Senador Pompeu e adjacentes agrupou três tipos de relações: entre compatriotas de concelhos vizinhos, entre vizinhos do mesmo concelho e entre parentes. Do município de A Lama, encontramos vários irmãos e parentes, todos vivendo no número 96 da Rua Camerino, Foi o caso dos imigrantes Venancio e Arturo Cerdeira Barreiro, que viajaram a sua aldeia no ano de 1935 ou

27

Entrevista a F. L. L. (Grixoa-Santa Comba) realizada no dia 10 de setembro de 2003, em Vila de Céltigos (Santa Comba).

Manuel e Delfina Cendón Cota, que, com outro parente, Ricardo Cota Fernández, residiu também na Camerino, n° 96. O concelho de Cotobade, que do total da amostra de emigrantes recolhida das fichas consulares, contribuiu com 18,4% dos vizinhos da Rua Camerino (todos vivendo no número 96), reuniu diversos familiares nesse logradouro do Rio de Janeiro. Os irmãos José, Benjamin e Ludvina, da paróquia de Rebordelo foram alguns deles. As idas e vindas fizeram parte da tradição migratória dessa família. José foi repatriado no ano de 1927, mas regressou em 1935, e Benjamin voltou à Galiza no ano de 1930. Os dois eram casados e não encontramos referências de suas esposas no Rio de Janeiro, o que nos leva a concluir que permaneceram em Cotobade. No século XIX e nas primeiras décadas do século XX encontramos somente dois emigrantes de Santa Comba vivendo nessa rua e quatro na Rua Senador Pompeu. Entretanto, nas ruas vizinhas, com menor índice migratório, mas que, possivelmente, sofreram a influência das cadeias migratórias dos logradouros com mais contingente, como a Sacadura Cabral (antiga Rua da Saúde), aparecem, na década de 50, seis emigrantes de Santa Comba vivendo no número 129. Eram todos jovens, com idades entre 19 e 21 anos, que constavam nos livros de alistamentos militares deste concelho desde o ano de 1951 até 1955. Mesmo com a possibilidade de mais xallenses terem habitado esta zona, os que predominaram, sem dúvida, foram os de Pontevedra, com maior concentração de alguns concelhos. Com isso, queremos demonstrar a versatilidade da emigração galega, distribuindo seus concelhos por áreas cruciais do zona central carioca. É normal que municípios com alto índice emigratório, como o caso de Santa Comba, estivessem dispersos por muitas ruas do Rio de Janeiro e que os emigrantes fossem mudando de endereço segundo as possibilidades do mercado de trabalho. Mas, no caso da freguesia de Santa Rita, a concentração dos xallenses pelas suas ruas era pequena, apesar de ser contínua no tempo, já que encontramos emigrantes até a década de 50 vivendo nos seus arredores. Concluímos que a Rua Camerino e Senador Pompeu, mais especificamente a Camerino n° 96, reuniu um importante contingente de galegos dos concelhos de Cotobade, Forcarei, Cerdedo e a A Lama. Esta emigração era formada por varões casados, que retornaram à Galiza, definitiva ou temporalmente. Eram trabalhadores do comércio e da construção, que compartilharam casa e/ou


G N A R U S | 115

trabalho numa freguesia central disputada por negros e portugueses. Reconstruir essa história pelos logradouros do Rio de Janeiro do século XIX/XX, significa compreender a emigração galega não só desde a perspectiva do lugar de origem, como também desde a sociedade receptora, analisando as transformações políticas, econômicas e sociais da sociedade brasileira e carioca e os outros grupos de emigrantes que compartilhavam espaço no mesmo período.

Érica Sarmiento é professora do curso de Mestrado do PPGHUNIVERSO e pesquisadora do Laboratório de Estudos de imigração (LABIMI)-UERJ

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configuração e cotidiano do pequeno comércio do espaço central da Cidade do Rio de Janeiro, 1899-1903. Dissertação

de mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1998. MEDEIROS DE MENEZES, Lená. “Jovens portugueses:

histórias de trabalho, histórias de sucessos, histórias de fracassos”, em Ângela de Castro Gomes (org.), Histórias de imigrantes e de imigração no Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, 7 letras, 2000, pp.164-182. . Os indesejáveis: desclassificados da modernidade.

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G N A R U S | 116

Coluna:

HISTÓRIA ORAL, METODOLOGIA E O CMRP Por Leonardo Tavares Santa Rosa

A

metodologia de História Oral surgiu

Neste caso a entrevista ou o método de

como uma forma de valorização das

História Oral busca essa síntese e sentido a todo o

memórias e recordações, recolhendo

momento, sendo essa presente não só na trajetória

informações através de entrevistas de indivíduos e

de vida do entrevistado, mas no conjunto geral de

grupos que vivenciaram fatos ou que são

todo o passado em questão. Todo o relato ganha e

“guardiões” de memórias ou histórias passadas de

forma um sentido, constrói um caminho na medida

gerações em gerações. Narrar e ouvir uma história

em que vai sendo narrado juntando-se a outros,

ou uma experiência de vida faz do indivíduo parte

tendo o historiador como organizador desses

da formação e da conjuntura do passado, Philippe

fragmentos soltos na busca do sentido e da

Lejeune salientando a questão da autobiografia

coerência desses relatos. O indivíduo, o agente

com relação do indivíduo na própria estrutura do

histórico, sempre busca algo com um objeto,

texto afirma: “Não se pode assumir sua vida, sem

lembrança,

de certa forma, fixar-lhe um sentido nem engloba-

fragmento para construir o início de seu caminho

la sem fazer sua síntese; explicar quem éramos sem

(sua narrativa), isso acontece em todos os métodos

dizer quem somos” 1.

históricos, tendo na história oral um diferenciador,

momento

ou

qualquer

outro

a “construção de uma história viva” por cada ALBERTI, V. A vocação totalizante da história oral e o exemplo da formação do acervo de entrevistas do CPDOC. In: INTERNATIONAL ORAL HISTORY CONFERENCE CPDOC/FGV/FIOCRUZ, 1998. p.509-515 1

indivíduo que utiliza esse método para reviver a partir de um objeto ou mesmo de uma lembrança


G N A R U S | 117 a visão de um passado no presente, tornando o tempo

passado

rico

e

vivo,

com

Minayo em “O desafio do conhecimento” narra

suas

outro fator decorrente no método da história oral,

características, aromas e formas, reconstruindo os

o conjunto de quantidade de narrações e seus

vestígios do tal caminho com suas emoções,

receptivas qualificações: “o conjunto de dados

detalhes, opiniões e até sua respectiva “verdade”.

quantitativos e qualitativos não se opõem. Ao

Todas essas características são essenciais para a

contrário, se complementam, pois a realidade

narração do indivíduo por dar alma a história

abrangida por eles interage dinamicamente,

contada, não esquecendo de levar em conta que

excluindo qualquer dicotomia”3.

não existe o fechado em nenhuma área ou

Sendo assim a quantidade de depoimentos ou

metodologia da História, não sendo diferente na

dados orais somam na formação do trabalho por

história oral, por tudo fazer parte de um

sua dinâmica e vivacidade. Cada depoimento é

conhecimento na busca da essência e do “porquê”

único porém incompleto, a junção de cada

das atitudes expressas pelo indivíduo durante seu

depoimento é essencial para dar ao método mais

relato. O papel do historiador surge nesse

“ligamento” às novas histórias que irão aparecer.

momento como de um administrador que analisa e

Nem toda entrevista pode ser considerada

organiza minuciosamente a história contada, não

como história oral, pois a mesma necessita para se

se deixando

construir um “caminho” e um método para sua

narrativas

submergir ou influenciar por particulares

e

respectivas

formação e validação, sendo esses, por exemplo,

subjetividades, contudo não se deixando de fora

por registro de depoimentos em dispositivos

por completo da narração como um simples

digitais com imagem e som. Na visão de Philippe

ouvinte. Alberti define história oral como:

Joutard: “... desde o início dividiram a história oral,

[...] um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica, etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participam de, ou testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões de mundo como forma de se aproximar do objeto de estudo [...] Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, etc., à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou os testemunharam2.

uma próxima das ciências políticas voltada para as

O autor define essa metodologia como um

determinar quem é elite e quem não é, e assim

meio de aproximação do objeto estudado, dando

sendo, quem merece ser ouvido e registrado e

voz aos “esquecidos” ou “atropelados” pelo tempo,

quem merece ser calado e esquecido.

elites e os notáveis, outra interessada nas populações “sem história” situada na fronteira da antropologia.”4 Percebendo

então

uma

metodologia

democrática por dar voz aos “grandes” e “pequenos” da história, mostrando que todos merece ser ouvidos, porém ao mesmo tempo mostrando uma separação e preconceito por

conectando inúmeras visões de classes, raças e/ou

O começo dos registros orais teve como

religiões grupos antes calados ou impedidos de

primórdio o gravador criado nos anos de 1950 nos

tornarem seus patrimônios imateriais parte do caminho histórico. ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990. 2

MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento. Pesquisa Qualitativa em Saúde. HUCITEC ABRASCO. São Paulo: 1993. 4 JOUTARD, Philippe. História oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de 3

Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.


G N A R U S | 118 Estados Unidos, na Europa e no México,

por apresentar detalhes e cargas emotivas muitas

expandindo-se chegando a ter muitos adeptos

vezes não presentes em uma fria folha de papel.

como

Comprovamos isso:

historiadores,

sociólogos,

pedagogos,

“Por História Oral se entende o trabalho de pesquisa que utiliza fontes orais em diferentes modalidades, independentemente da área de conhecimento na qual essa metodologia é utilizada.”6

teóricos da literatura, antropólogos e outros. No Brasil a metodologia foi introduzida na década de 1970 com a criação do programa de História Oral do CPDOC, tendo sua expansão a partir dos anos de 1990. Em 1994 foi criada a associação brasileira

Dentro dessas técnicas existem as práticas que

de história oral que juntava membros de todas as

apresentam quatro modalidades de ação, onde

regiões do país em reuniões regionais e nacionais.

cada uma exerce um papel.

Em 1996 foi criada a associação internacional de

O estilo arquivo: onde os que participam (os

história oral. Em todos esses encontros há

documentalistas) criam e organizam documentos,

publicações de livros, revistas e boletins sobre o

sendo e estando esses transcritos. O estilo do

tema que corroboram o que foi dito até aqui.

difusor populista: são os que criam acervos e meios

A história oral pode ser dividida em duas

de preservar a memória, porém não tentado

formas se tratando de relatos: Existindo uma

avançar

tradição oral, a qual representa de forma de

reducionista: onde usam o método como um

transmissões de gerações a história do pioneiro da

complemento para outros métodos. O estilo do

família, ou da época que o mesmo viveu. Essa

analista completo: onde esses usam e aprovam a

mediação é importante por fazer os descendentes

história oral como método, ficando mais próximo

serem e permanecerem ligados ao passado dos

aos seres que mesmo que não participaram da

seus, entendo e valorizando sua história e a

história contada ou não foram ouvidos receberam

tornando viva e contínua. O problema dessa

informações do tempo me questão.

seus

conhecimentos.

O

estilo

primeira divisão é a monopolização presente em

Os que entendem a história oral como técnica

apenas um determinado grupo, onde não é

se focam nos meios de captura do depoimento,

difundida e às vezes esquecidas pela falta de

nos tipos de som, gravação, organização, sendo

descendentes. A segunda parte da divisão é a

assim o método se torna um procedimento técnico

reminiscência pessoal onde quem conta é o

de conservação do passado. Meihy avalia a história

mesmo que participou da história, dessa forma os

oral como um conjunto de procedimentos que

detalhes são mais ricos, presentes como em um

percorrem do planejamento até a captura e

documento

como

arquivamento de depoimentos, não escapando do

problema neste caso a supervalorização ou

termo “método” por apresentar dentro do

primário,

autopromoção do

apresentando

indivíduo.5

caminho práticas, técnicas, e demais aspectos

A história oral é mais um método da história

importantes para o objetivo final, que nesse caso

geral que possui dentro de si práticas de capturar

(da história oral) preserva a memória de

por meios/relatos orais depoimentos para a

indivíduos/grupos para o registro do passado na

“reconstrução” de um passado mais “rico” e “vivo”

visão desses “baús vivos”. 6

PRINS, Gwyn. In: Burke, Peter. A escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. 5

Estatuto da Associação Brasileira de História Oral, fundada em 1994, Art.1º, par.1º; In: Revista de História Oral, nº1, 1998:14


G N A R U S | 119 Porém muitos historiadores ainda defendem a

A memória e a imaginação possuem o mesmo

ideia da história oral como teoria esquecendo que

radical, mantendo certa ligação ao inventar ou

a partir dos relatos podem se existir análises e

lembrar. Le Goff nos recorda que os gregos antigos

estudos filosóficos, deixando de ser apenas uma

fizeram da Memória uma deusa (Mnemosine), mãe

técnica de gravações de depoimentos. “[...] Ela é

de nove musas inspiradoras das chamadas artes

fruto do cruzamento da tecnologia do século XX

liberais, ente elas a história (Clio). Percebe-se

com a eterna curiosidade do ser humano.”7

assim que a história é filha da memória e irmã das

Para outros a história oral é como todas as

musas guardiãs de outras artes.

metodologias que apenas estabelece e ordena os procedimentos

do

projeto,

sendo

Já para Peter Burke a memória é uma

assim,

reconstrução do passado, sendo uma construção

entrevistam, e possibilitam meios para pesquisas,

feita “agora” pelas vivencias do “ontem”. Pode-se

analisam e fazem uma transição de depoimentos,

definir também a memória como um discurso de

organizando assim o “caminho” a ser preenchido.

algo guardado, lembranças e esquecimentos, que

Percorrendo e mantendo junto em parceria meios

num processo de construção revivem a história. A

práticos e técnicos e efetuando os meios para se

memória torna a homem mais vivo e o proporciona

chegar ao que não seria o fim, mas o contínuo

autoconhecimento podendo fazer internamente

“caminho” a história oral de se estabelecer como

estudos de fatos ocorridos no passado e ocorridos

método.

no seu presente, o tornado mais sábio e preparado

Nesse método há uma maior percepção do

para o mundo. Conforme Henry Rousso, “seu

tempo e espaço, da cor e do cheiro de

atributo mais imediato é garantir a continuidade

determinados tempos. O indivíduo “coloca luz”

do tempo e permitir resistir à alteridade, ao

sobre o que está descrevendo e narrando, por

‘tempo que muda’, as rupturas que são o destino

lembrar do que vestia, comia e como se sentia ou

de toda vida humana; em suma, ela constitui – eis

queria, mesmo que não fale por palavras o olhar e

uma banalidade – um elemento essencial da

ouvidos atentos de uma historiador capturam tais

identidade, da percepção de si e dos outros”8.

vestígios “soltos” formando textos com histórias e

Sendo a memória um dos, se não o, meio mais

detalhes que nem mesmo buscava.

importante para a pesquisa da história oral. “A

Alguns “apoios da memória” podem ser usados

memória, onde cresce a história, que por sua vez a

para que a entrevista não saia do caminho e para

alimenta, procura salvar o passado para servir o

auxiliar o indivíduo no caso de esquecimento.

presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma

Esses apoios podem ser fotografias, objetos e

que a memória coletiva sirva para libertação e não

outros mecanismos para ajudar o indivíduo a

para a servidão dos homens”9.

recordar do fato passado. Nessa dinâmica o passo se torna presente e as memórias adormecidas ressurgem havendo uma conversa entre tempo de histórias passadas ou vividas. ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína &FERREIRA, Marieta. (Coords.). Usos e abusos de história oral. Rio de Janeiro: FGV,1996, p. 93-101. 9 LE GOFF, Jacques. “Memória”. In: História e Memória. 8 7

FERREIRA, Marieta de M.; AMADO, Janaina; (org). “Apresentação” In: Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: ed. Fundação Getúlio Vargas, 1996.

Campinas: Ed. UNICAMP, 1994.


G N A R U S | 120 Como já foi citado neste trabalho a História Oral busca trazer a experiência de vida de pessoas e seus grupos, uma história viva, que por meio de depoimentos registrar o passado com todas as características próprias da subjetividade, emoções, esquecimentos, rupturas etc. Isso mostra que a história oral não busca uma “verdade” ou mesmo confrontar depoimentos em busca de mentiras, o fato

mais

importante neste

método

é

a

identificação de aspectos que permitam a observação de fatos/detalhes do mundo na visão desses indivíduos apagados, esquecidos ou mesmo sem importância para a história, assim, torna inúmeros

indivíduos

ocultos

ou

mesmo

indeterminados, em seres geradores de “luzes” e de história, proporcionando visibilidade por meios

donos ou pertencentes do “verdadeiro” relato,

de seus relatos. Adotando essa postura a história

cada indivíduo tem e deve ter seu valor e sua

oral mostra sua democracia e sua importância nas

importância no conjunto continuo da produção

aberturas de discussões e debates importantes

histórica.

para a construção do patrimônio.

Para

A história oral respeita as diferenças e até

muitos

historiadores

tradicionais

a

memória ainda não é válida com um recurso de

prefere indivíduos de classes, raças, gêneros e etc.,

fonte

diferentes

de

influenciada e até esquecida, certamente como

informações e visões de mundo. Além disso a

disse Le Goff, “A memória é uma construção

pessoa ou grupo entrevistado deve se considerado

psíquica e intelectual que acarreta de trato uma

como parte da qualificação do objeto de

representação seletiva do passado, que nunca é

investigação, sendo assim o historiador deve

somente aquela do indivíduo, mas de um indivíduo

considerar de cada pessoa os seus meios de vida,

inserido num contexto familiar, social nacional”10.

para

expandir

seu

“leque”

histórica,

por

poder

ser

distorcida,

sua história, e etc., a pessoa deve entrar no

Consequentemente mesmo o entrevistado ao

processo de pesquisa, mostrando aí a história oral

se autocelebrar, fantasiar, criar trajetórias e fatos

em uma “conversa” com outras disciplinas e suas

inexistentes, acaba com isso, revelando as

práticas

intenções dos feitos, suas crenças, mentalidades,

de

investigação,

por

exemplo,

a

antropologia.

imaginário

e

pensamentos

referentes

às

Portanto o indivíduo e sua memória se tornam

experiências vividas, tornando o “problema” a

parte essencial da metodologia, onde jovens e

solução do método. Essa solução acontece pela

idosos, pobres e ricos, homens e mulheres e

compreensão e pelas perspectivas “inverdades” do

qualquer outra condição, classe e etc., se tornam “heróis” de suas próprias histórias não podendo ser (esses indivíduos) supervalorizados como únicos

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. 10


G N A R U S | 121 indivíduo, onde se tornam meios para entendê-lo dentro dos acontecimentos de sua época.

ser um sagaz observador dos acontecimentos,

Sempre que o indivíduo narra sua história ele trás

subjetividades

trazendo

assim

O papel do historiador nesse caminho oral é de

o

deixando o entrevistado falar, sempre tentando

que

leva-lo ao “caminho” da pesquisa proposta caso o

acreditava, seus anseios, sonhos e etc., porém para

mesmo se desvie. O historiador dentro da

Paul Thompson nenhuma fonte está longe ou fora

metodologia nunca deve influenciar ou manipular

de alcance dessa subjetividade, mesmo sendo ela

a entrevista, deve sim procurar dialogar com o

escrita, oral ou visual, todas podem apresentar

mundo ao seu redor, em busca da recuperação das

aspectos escassos, modificados e/ou induzidos.

informações, mesmo que essa não possa ser

Thompson afirma que a metodologia oral além dos

recuperada por completo. Ao analisar e unir as

percalços pode trazer algo maior do que está

narrações o historiador nunca deve fechar ou

evidente, “a evidência oral pode conseguir algo

determinar um assunto por finalizado (isso em

mais penetrante e mais fundamental para a

todas as áreas e métodos da história) por

história. [...] transformando os objetos de estudo

apresentar outras fontes ou “vozes”, outros

em sujeitos”.11 Dessa forma tornando a história

caminhos a serem percorridos, podendo assim

algo vivo e empolgante, transformando essa

acrescentar ao trabalho em questão.

subjetividade relatada muitas vezes percebida, em

Um outro fator presente na história oral é que

um diferencial do método, por percorrer além das

nunca se sabe onde determinada entrevista vai

histórias do grupo ou indivíduo o todo no passado

chegar e o que vai acontecer, mesmo que haja um

contado de uma forma dinâmica, tornado o objeto

planejamento (sendo esse mais que necessário

de estudo em sujeito “vivo” e pronto para ser

para o método) para um caminho a ser seguido,

minuciosamente analisado.

improvisos acontecem e o historiador deve saber aproveitar esses momentos para transformar esses

THOMPSON, P. A Voz do Passado: Historia Oral. Tradução de: Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 11

percalços em “pontes” para outras perguntas não


G N A R U S | 122 presentes no planejamento, sempre seguindo

oralidade busca preservar seus relatos do presente

dentro da dinâmica do trabalho.

para o futuro, para formar assim seu passado.

Alguns

pesquisadores

acreditam

que

os

documentos escritos são “mais confiáveis” ou os

Neste trecho percebe-se a importância que a história oral tem e traz: “[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos”13

únicos meios de conhecer ou pesquisar sobre o passado, desacreditando assim nas fontes ou relatos orais. Edward Hallet Carr crítica esse “fetichismo” dos documentos, ao referir: “...nenhum documento pode nos dizer mais do que aquilo que o autor pensava – o que ele pensava que havia acontecido, queria que os outros pensassem que ele pensava, ou mesmo apenas o que ele próprio pensava pensar. Nada disso significa alguma coisa, até que o historiador trabalhe sobre esse material e decifre-o.” 12

Nota-se que todos os documentos escritos não passaram antes de transmissões orais, entrando em confronto com historiadores que desdenham este do método oral. Como nenhum livro ou “vestígios” são totalmente confiáveis às narrativas presentes no método oral também devem ser estudadas e apresentadas com cuidado, deixando “largo” o caminho para interpretações e definições dos que a estudam. Outro problema presente neste método seria que a fonte oral somente refere-se às pesquisas sobre temas atuais, por depender de pessoas e suas memórias. Porém essas críticas somente se tornam reais quando o trabalho executado não se constitui de organização e preparo. Muitos “centros de memórias” preservam fitas, gravações e arquivos em geral de testemunhos dos indivíduos e grupos onde possibilitarão a historiadores e outros pesquisadores no futuro distante a pesquisa e estudos de tempos passados e não do seu

Observasse-se

aqui

uma

valorização

do

indivíduo e do grupo na preservação de suas memórias e como fontes históricas, onde não se é totalmente e unicamente essencial ao estudar ou conhecer o passado os textos escritos. Neste método a possibilidade do indivíduo geralmente excluído da história oficial de serem ouvidos e registrados deixando para futuros fins sua visão de mundo se tornando grandes e notáveis. Esses grupos de indivíduos marginalizados, excluídos e calados do contexto da história geral, antes mulheres, negros, escravos, índios..., hoje pobres, idosos..., se tornam “atores” principais desse método contemporâneo, erguendo uma nova expectativa e observação da história. Como exemplo positivo dessa nova perspectiva e visão da história são os relatos orais de escravos libertos ou/e

seus

descendentes

no

documentário

“Memórias do Cativeiro” produzido pelo LABHOI, nele são apresentados relatos na visão desses exescravos, nos quilombos, nas casas dos senhores, nos seus trabalhos e rotinas, dando assim voz a esse grupo antes “mudo”.

próprio presente. Assim como no início de quase todos os métodos históricos o estudo através da

BURKE, Peter. História como memória social. In: Variedades de história cultural. CARR. Edward H. Que é história? Paz e Terra: 1982. 12

THOMPSON, P. A Voz do Passado: Historia Oral. Tradução de: Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 13


G N A R U S | 123 Segundo Pollak, “Ao privilegiar a análise dos

excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõe à "Memória oficial", no caso a memória nacional.14 Contudo como qualquer documento, os relatos e fragmentos históricos da história oral merecem uma minuciosa análise, critica e interpretação para que esse recurso possa ser usado de formar útil,

auxílio do filosofo Wilhelm Dilthey (1833-1911)

desse modo um historiador deve saber dividir o

uns dos principais responsáveis, no final do século

que é importante para seu trabalho/projeto e o

XIX, pelo surgimento das ciências humanas onde

que não é (pelo menos para o momento em

teve diretamente a importância do estudo do

questão). De acordo com Alberti,

passado.

“[...] a história oral apenas pode ser empregada em pesquisas sobre temas contemporâneos, ocorridos em um passado não muito remoto, isto é, que a memória dos seres humanos alcance, para que se possa entrevistar pessoas que dele participaram, seja como atores, seja como testemunhas. É claro que, com o passar do tempo, as entrevistas assim produzidas poderão servir de fontes de consulta para pesquisas sobre temas não contemporâneos”.15

A hermenêutica segundo Dilthey é um recurso essencial da história oral para compreensão do “eu no tu”, portanto para compreender o homem e sua historicidade, tendo sua “visão, alma e coração” para entender o passado relatado em questão, consequentemente se colocar no lugar do outro e entendendo suas necessidades, atitudes, modos de

Desta forma o autor, relata o “problema” do

vida, sonhos e etc., sem um julgamento, e com isso

método em se restringir em temas atuais já

por tomar posse de seu passado. Já o indivíduo

discutidos acima e exalta a importância da

como valor também caminha junto com a

memória do indivíduo que é essencial para a

compreensão hermenêutica, Dilthey coloca o

construção e andamento da história oral. Sendo

indivíduo como um importante armazenador de

essa memória também parte da análise da

memórias vivas ou de fragmentos “soltos” imóveis

pesquisa do historiador, cada detalhe do relato e

esperando para serem agrupadas, entendidas e

das lembranças do indivíduo devem ser analisados

interpretadas, dessa maneira um indivíduo apenas

e estudados como parte do conjunto. Posto isso

não podendo ser supervalorizado com um

como atributos a memória e o indivíduo formam e

autônomo “dono do passado” ou dono da

dão vivacidade ao passado sem forma e sem “cor”.

“verdade” a percepção e demais relatos de

Alberti explica também a relação de dois paradigmas que podem explicar a fascínio que a

inúmeros indivíduos é essencial para o ligamento dessas histórias “individualizadas”.

história oral pode exercer: A hermenêutica e a

Um método da história “democrático” por

ideia do indivíduo enquanto valor. Isso com o

escutar a todas as classes ou grupos e não só uma camada apenas, formadora assim de uma

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vértice, 1989. 15 ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de 14

Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990.

vitalidade

inquestionável,

com

importantes

atribuições para pesquisas de história do tempo


G N A R U S | 124

Cena do Documentário “Memórias do Cativeiro” produzido pelo LABHOI-UFF

presente e de formação das histórias e relatos para

manter viva as memórias destes gurpos. Pessoas

o futuro, construindo assim seu passado.

interessadas em

dar continuidade a esses

Entre os “centros de memória” que preservam e

verdadeiros “HDs vivos” se doam nesse trabalho de

trabalham para a contínua história dos esquecidos

dar voz a esses moradores muitas vezes esquecidos

e excluídos do contexto da história geral um em

pela história geral.

particular que será destacado aqui foi criado a fim

Nassar cita: “[...] Recuperar, organizar, dar a

de preservar e deixar “pegadas” na história da

conhecer a memória da empresa não é juntar em

formação do estado do Rio de Janeiro, sendo esse

álbuns velhos fotografias amareladas, papéis

“O Centro de Memória de Realengo e Padre

envelhecidos. É usá-la a favor do futuro da

Miguel”. Foi criado a partir de um “sonho” da

organização e seus objetivos presentes. É tratar de

professora

e

um de seus maiores patrimônios. Depois com a

professora na região, em resgatar e preservar a

memória na cabeça, é preciso contar as

memória do “seu” lugar e destacar a importância

histórias”.16 (2004, p. 21)

Martha

Nogueira,

moradora

dessas regiões na ligação da história e formação

O acervo na área das entrevistas - História Oral

população, econômica, cultural e demais fatores

- é o ponto de partida para demais produções

para o estado e por que não, para o Brasil.

como elaborações e analise de textos, edição de

Nesse

acervo

(em

construção)

são

depoimentos, produção de DVDs, livros de fotos

apresentados caminhos desses bairros; caminhos

sobre temas tratados nas entrevistas etc. Os

esses que lhe trazem até os dias de atuais,

depoimentos serão abertos á consulta e ficarão à

formando uma linha continua histórica pronta para ser preenchida por história de outros bairros vizinhos a fim de chegar ao objetivo final que é de

NASSAR, P. Sem memória, o futuro fica suspenso. IN: _________ (Org.) Memória de empresa: história e comunicação de mãos dadas, a construir o futuro das organizações. São Paulo: Aberje, 2004. p. 15-22. 16


G N A R U S | 125 disposição dos que buscam mais informações

comuns, muitas vezes ignorados da história, grupos

sobre os bairros, na forma de textos e vídeos.

esses desprezados até mesmo hoje em nossos dias

Outro

acervo

atuais, mas que tem grande valor para esse

proporciona é em abrir oportunidades dos

método. Em exemplo, podemos citar os idosos um

cidadãos e moradores desses bairros darem e

grupo com história e memórias guardadas muitas

mostrarem sua visão da história, de tornarem vivas

vezes esperando alguém para ouvir, na verdade

as memórias e vivencia do começo até os dias

uma forma de troca por “ajudarmos” esse grupo a

atuais se colocando com atores principais de suas

ter mais confiança e valor na sociedade e eles nos

histórias.

“ajudando” oferecendo suas ricas memórias.

fator

importante

que

este

Essas entrevistas individuais servirão

como uma forma de “quebra cabeça” a ser

A noção e olhar de cada grupo, classe, gerações

montado para contar pela voz dos próprios, o

são formas de comparar e entender o mundo e sua

surgimento, evolução e demais detalhes só

história de vários ângulos e posições. Desse modo,

conhecidos por esses “guardiões da memória”. Por

uma metodologia que contribui até na formação

isso o mais apropriado será buscar da infância a

do cidadão, por proporcionar ao mesmo tempo

vida do entrevistado, no caso, levantando temas

uma reflexão de sua vida a partir de suas

específicos como o porquê de mora nos bairros

lembranças. Todo homem em um ponto da vida

e/ou porque da permanência e/ou como veio

deve rever sua história e analisar suas ações para

morar e demais perguntas para a dinâmica da

ver onde errou e quem sabe recomeçar

narração e do percurso do caminho da história

completando seus “espaços vagos” e analisando

local.

ações do passado no presente. Quando o homem

Esse método vem somar aos demais fatores

se auto crítica ou auto estuda, se conhece, se

presentes no projeto permitindo o arquivamento e

tornando mais forte, por encarar o que estava

divulgação dos testemunhos vivos dos agentes

adormecido.

construtores da história para estudiosos e curiosos.

Portanto uma metodologia, formadora do

Deste jeito exaltando o patrimônio cultural local e

“caminho” da memória dos indivíduos esquecidos

tornando a sua história visível e acessível a todos e

ou “mutilados” pela história geral, que dá voz e

principalmente ao futuro.

importância aos indivíduos os valorizado junto a

Após este estudo sobre a história oral,

seu grupos.

avaliamos uma história construída em torno de pessoas, onde revive e dá vida à histórias guardadas na memória, alargando assim seu campo de ação dessas histórias já conhecidas porém de uma forma geral. Uma história que dá força aos menos favorecidos, às classes e pessoas

Leonardo Tavares Santa Rosa é graduando do curso de Licenciatura em História das Faculdades Integradas Simonsen e Pesquisador CMRP – Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel.


G N A R U S | 126

Artigo

AS ESCARAMUÇAS ENTRE BANDEIRANTES E JESUÍTAS PELO GENTIO DA TERRA NA REGIÃO DO GUAIRÁ, TAPE E URUGUAI NO PERÍODO DE 1602 A 1641

Por Miguel Luciano Bispo dos Santos

P

ara compreendermos a relevância e a

designar

justificativa

dissertações críticas1”.

da

nossa

proposta

é

necessário que reflitamos sobre algumas

produções

historiográficas

em

relação

à

historiografia da vila São Paulo colonial. A história da dessa vila é bastante antiga e

de

instrumentos

de

pesquisa

ou

A partir da fundação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo em 1894, iniciou-se uma produção acadêmica mais sistemática da história de São Paulo. Uma historiografia que forjou a

debatida na historiografia brasileira, normalmente

imagem

é inserida no contexto da expansão territorial do

empreendedor independente e leal, cuja síntese

Brasil e nas expedições bandeirantes ao interior da

seria o bandeirante. A ideia dos homens de São

colônia. Os primeiros estudos sobre São Paulo

Paulo como “raça de gigantes” – que Ilana Blaj

remontam à época colonial. Os trabalhos mais

nomeia como perfil da historiografia de fins do

representativos são de Frei Gaspar da Madre de

século XIX até a década de 1930 – edificou a

Deus (1715-1800) “Memórias para Historia da

imagem

Capitania de São Vicente”; e de Pedro Taques de

bandeirante, desbravador e expansionista.2

Almeida Paes Leme (1714-1777), dentre suas obras, destacam-se a “Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica”

e a “História da

Capitania de São Vicente”. Ambos os autores pertenciam às Academias Históricas, instituições iluministas de intelectuais destacados. A Academia dos Renascidos, da qual Frei Gaspar fez parte, tinha um programa historiográfico “orientado para a composição de memórias históricas, ou seja, para

do

da

homem

capitania

paulista

sobre

destemido,

o

heroísmo

Já entre as décadas de 1940 e 1970, a ideia perpetuada de subdesenvolvimento do Brasil consagrou São Paulo como área marginal, secundária, atípica, apenas articulada de forma insuficiente à engrenagem colonial. Nessa visão, São Paulo colonial era abordado como região periférica, isto é, somente como fornecedora de mão de obra indígena ou como centro das expedições

sertanistas

realizadas

pelos

elaboração do que, nos termos atuais, poderíamos 1 RIBEIRO,

Fernando V. Aguiar. Poder Local e Patrimonialismo: a Câmara Municipal e a concessão de terras urbanas na vila de São Paulo (1560-1765). São Paulo-SP: Departamento de História Econômica da USP, 2010. p.13. 2 BLAJ, Ilana. Mentalidade e Sociedade: revisitando a historiografia sobre São Paulo colonial. op. cit. p.241-242


G N A R U S | 127 bandeirantes. Construía, assim, uma nova imagem

escravos no litoral, e não fornecer mão de obra

com relação ao planalto de Piratininga: “o de uma

compulsória para suas fazendas que produziam

sociedade

alimentos de subsistência para abastecer as

extremamente

pobre,

isolada,

praticamente sem dinamismo e voltada apenas à

capitanias envolvidas no mercado externo.

subsistência”.3

As produções historiográficas mais recentes, no

Contudo, naquela época já existiam trabalhos

entanto,

contrapõe-se

diretamente

a

essa

que contestavam essa abordagem historiográfica

interpretação da historiografia tradicional sobre a

que caracterizava a sociedade paulista voltada

sociedade paulistana. Essas novas abordagens

apenas para a agricultura de subsistência. Estamos

estabelecem conexões entre a escravidão indígena

falando de Caio Prado Junior e Sérgio Buarque de

e

Holanda, dois grandes nomes da historiografia

necessidade mercantil interna da sociedade do

brasileira. O primeiro, no livro “Formação do Brasil

planalto de Piratininga. A Historiadora Ilana Blaj

Contemporâneo”4, refutou a ideia de uma

(2002), por exemplo, aponta que se estabeleceu

economia autárquica ao ressaltar a importância da

uma

produção de gêneros agrícolas que se destinava ao

sociedade

abastecimento do mercado interno e, por

crescentemente

conseguinte, conferiu um papel fundamental às

doação de terras e no braço indígena, consolida-se

redes hidrográficas e terrestres que ligavam o

em São Paulo a ordem escravista-senhorial”6.

planalto paulista às demais regiões da Colônia. Já

Proporcionando assim uma sociedade hierárquica

Sérgio

“Monções”5

e fortemente estratificada, tendo em seu topo uma

compreendeu a dinâmica interna específica de

elite que acumula a maior parte da riqueza em

São Paulo colonial valorizando a importância

suas mãos, ligada também atividades sertanistas

social e cultural do indígena na sociedade paulista.

de apresamento de índios no interior da colônia.

Buarque,

na

obra

as

bandeiras

paulistas

mentalidade paulista,

dentro

de

uma

senhorial-escravista “com

uma

mercantilizada,

na

produção

baseada

na

Apesar das inovações trazidas pelas obras acima

A obra mais significativa, no entanto, dessa

citadas, os historiadores das décadas de 1960-70

mudança de historiográfica foi do historiador

continuaram com aquela visão de pobreza e

norte-americano John Monteiro, com o livro

economia de subsistência da vila de São Paulo,

“Negros da Terra e bandeirantes nas origens de

tendo o aprisionamento de índios como a única

São Paulo” (1994). O autor considera que o surto

mercadoria capaz de integrar comercialmente o

das

planalto paulista às regiões açucareiras, pois os

motivado pela necessidade de mão de obra nas

indígenas

fazendas paulistas.

apresados

no

sertão

eram

comercializados para as lavouras canavieiras do nordeste da América portuguesa. Nessa visão, a finalidade das bandeiras era suprir a carência de 3 BLAJ,

Ilana. Mentalidade e Sociedade: revisitando a historiografia sobre São Paulo colonial. Revista de História. 142-143, 2000. p.242 4 PRADO Jr, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.151-160. 5 HOLANDA, Sérgio Buarque. Monções, 2a ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. p.19.

expedições

bandeirantes

foi

somente

Ainda segundo John Monteiro, o trabalho indígena em São Paulo não se limitava à mera lógica comercial. Na verdade, praticamente todos os aspectos da formação da sociedade e economia paulista durante seus primeiros dois séculos 6

BLAJ, Ilana. A Trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). op. cit. p.132.


G N A R U S | 128 confundem-se de modo essencial com

os

A história do surgimento da Capitania de São

processos de integração, exploração e destruição

Vicente

de populações indígenas trazidas de outras

personagens: João Ramalho e Martim Afonso de

regiões. Nesse sentido, o historiador norte-

Sousa. Em 1513, o português João Ramalho (genro

americano procura demonstrar as principais

do cacique Tibiriçá), fundou no planalto paulista a

estruturas da sociedade colonial na região

vila de Santo André da Borda do Campo;

surgiram de um processo histórico especifico,

começando a conquista e desbravamento dessa

subordinada a uma estrutura elaborada visando

área. Em 22 de janeiro de 1532, com o claro

controlar e explorar a mão de obra indígena7.

objetivo de estabelecer núcleos de povoamento,

Nessa

breve

discussão

bibliográfica,

pretendemos que o leitor entenda que o nosso artigo está inserido nas renovações historiográficas realizadas nos últimos anos sobre a história

está

amplamente

ligada

a

dois

Martin de Afonso fundou a primeira vila do Brasil, a vila de São Vicente. Ele também fundou outros povoados, como o Santo André da Borda do Campo e Santo Amaro8.

colonial de São Paulo. Nesse sentido, o nosso texto

Martim Afonso de Sousa em 1532, embora, ao

tem como finalidade compreender a importância

fundar a vila de São Vicente (a primeira vila do

econômica e social da mão de obra indígena na

Brasil), tenha lançado as bases da lavoura

sociedade paulista nos primeiros séculos do

canavieira em São Paulo, a produção de açúcar na

período colonial da América portuguesa e,

região não se desenvolveu como as Capitanias de

sobretudo,

estruturas

Salvador e Pernambuco, principalmente pelos os

socioeconômicas do planalto de Piratininga com

ricos solos de massapés nordestinos, contra o solo

as

os

arenoso do litoral paulista. Mas temos que

bandeirantes paulistas em torno do gentio da terra

ressaltar que se manteve um pequeno cultivo de

na região do Guairá,Tape e Uruguai, no período

cana-de-açúcar no litoral da Capitania.

relacionar

escaramuças

essas

envolvendo

jesuítas

e

compreendido entre 1602 a 1641.

Neste cenário econômico, a vila de São Paulo isolou-se no comércio ultramarino durante a

Colonização da Capitania de São Vicente Mas antes de abordarmos diretamente as expedições sertanistas paulistas nas reduções jesuíticas no Guairá, Tape e Uruguai, devemos contextualizar o início da colonização da Capitania de São Vicente, para inferirmos melhor o processo histórico que possibilitou aos colonos paulistas a organizarem as bandeiras em direção ao sertão da Colônia.

segunda metade do século XVI, voltando-se para o abastecimento do mercado interno da Colônia, com produtos agrícolas de subsistência, tendo o trabalho escravo indígena como principal mão de obra em suas terras. Temos que frisar que havia também agricultura de subsistência nas terras das grandes lavouras canavieiras, como maneira de garantir o alimento dos trabalhadores e moradores das propriedades rurais, mas não era suficiente para alimentar a todos. “Embora a capitania de São Paulo não estivesse no eixo central da economia colonial, por não

7

MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: op. cit. p. 89.

8

HOLANDA, Sérgio Buarque. História Geral da Civilização Brasileira, Vol I. São Paulo: Difel, 1961. p. 274.


G N A R U S | 129 produzir gêneros rentáveis, não se pode afirmar que não houvesse uma produção econômica na capitania. Havia uma produção que visava o abastecimento local (planalto) e do litoral (Santos e São Vicente) [...].Mas muito desses índios eram utilizados como transportadores, no difícil caminho que ligava o porto de Santos até a vila de São Paulo (Caminho do Mar) e na agricultura paulista nas roças de milho, mandioca e, principalmente, nas roças de trigo.”9

como aponta o historiador Arno Whelling, a atitude do governo português relação às questões indígenas foi caracterizada, por uma parte da historiografia, de hesitante e contraditória, com uma “legislação casuística e vacilante12”. A primeira legislação indigenista foi trazida juntamente com o Regimento de Tomé de Sousa, em 1549. Neste documento, o rei delegava o

Para a maioria dos colonos que buscava

poder de decretar a guerra justa para o

estabelecer-se na sociedade do planalto paulista a

Governador Geral. Os índios considerados aliados

opção do apresamento de índios representava a

(os aldeados e convertidos) tinham a sua liberdade

maneira mais significativa de constituir uma base

legalmente assegurada, e aqueles, considerados

produtiva de alguma envergadura econômica. Até

inimigos (hostis à ação colonizadora) eram

mesmo a própria Coroa portuguesa e seus

passíveis de escravização legal.

funcionários utilizavam-se dos serviços dos gentios da terra, como em expedições direcionadas aos descobrimentos de metais preciosos e, sobretudo, na defesa militar da própria Colônia perante inimigos externos e tribos indígenas inimigas10. Na procura por trabalhadores indígenas, os

Em vários momentos os colonos conseguiram burlar estrategicamente as ordens reais sobre o estabelecimento de guerra justa contra os nativos, por exemplo, os paulistas atacavam os índios, alegando que foram atacados, e enquanto esperavam que as autoridades deliberassem se o

colonos buscavam suprir-se, inicialmente, de duas

cativeiro

maneiras: através do escambo ou da compra de

impunemente escravizavam os negros da terra,

cativos.

utilizando-os como mão de obra em suas terras13.

Entretanto,

estratégias

nenhuma

mostrou-se

dessas

eficiente,

duas devido,

principalmente, à recusa dos índios em colaborar à altura das expectativas portuguesas. Segundo historiador John Monteiro foi desse momento que surgi

o

trabalho

compulsório

na

América

portuguesa11.

justou

contraponto

à

ou

não,

dizimação

os

colonos

deliberada

praticada pela maioria dos colonos na busca de força de trabalho compulsório dos nativos, os jesuítas

sugeriram

o

estabelecimento

dos

aldeamentos, os padres inacianos buscaram com isso controlar e preservar o índio através de um

Em relação às legislações indígenas, a Coroa portuguesa

Em

era

sempre

assegurou

a

processo

de

transformação

do

nativo

em

liberdade

trabalhadores produtivos. Os jesuítas admitiam o

indígena durante todo o período colonial. Mas

trabalho do gentio como forma de civilizá-lo e integrá-lo à sociedade. Aceitavam que os índios

9

PINHEIRO, Joely Aparecida Ungaretti. Conflito entre Jesuítas e Colonos na América Portuguesa (1640-1700). Campinas-SP: Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Economia da UNICAMP, 2007. p. 72. 10 BLAJ, Ilana. A Trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). op. cit. p. 130. 11 MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. op. cit. p.18.

12

WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C.M. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Era, 3ª Edição, 2005. p. 320. 13 LIMA, Sheila Conceição Silva. Rebeldia no Planalto: A Expulsão dos Padres Jesuítas Vila de São Paulo de Piratininga no Contexto da Restauração. Niterói-RJ: Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, 2006. p.67.


G N A R U S | 130 trabalhassem para os brancos, desde que esses

de Américo Vespúcio de 1504. A partir do século

pagassem “salários” aos índios (pago geralmente

final do século XVI, além das entradas oficiais,

em forma de pano para vestimenta) e que fosse

foram organizadas as expedições patrocinadas por

por um período determinado.

particulares, chamadas “Bandeiras”.

Os colonos paulistas, a princípio, apoiaram o

À medida que se tornava cada vez mais aparente

projeto jesuítico dos aldeamentos, que lhes

a insuficiência do projeto dos aldeamentos,

garantiam mão de obra abundante e barata por

enquanto forma de suprir as força de mão de obra,

meio da contratação do serviço dos índios.

os colonos passaram a intensificar as expedições

Todavia, a experiência dos aldeamentos logo se

em direção ao sertão em busca de índios, que

mostrou problemática. Para os colonos, o controle

iniciara a partir da década de 1580, no

excessivo dos padres sobre os índios acarretava a

estabelecimento de guerra justa contra os índios

dificuldade de dispor satisfatoriamente da força

Carijós, localizados no sul da Capitania de São

de trabalho. Em 1611, os principais da terra através

Vicente.

da Câmara da Municipal se opuseram abertamente contra a administração dos padres jesuítas sobre os índios aldeados. Como aponta a acta da Câmara de São Paulo de 15 de agosto daquele ano: “Aos 15 dias do mez de Agosto do Anno de 1611 nesta Villa de S. Paulo na Caza do Conselho della a requerimento de Dom Jorge de Barros Fajardo Procurador do Conselho [...] estando junto a maior parte do povo, e moradores, e homens da Governança da Terra [...] dizendo: [...] Que se não largasse o Dominio dos Padres mais do que somente doutrinarem-nos como Sua Magestade manda, e quando os ditos Padres os não quizerem doutrinar desta maneira que elles officiaes fizessem requerimento ao vigario desta Villa para pôr cobro nisso, o que se podia fazer facilmente(...)”14

O bandeirismo foi um fenômeno tipicamente paulista, a pé, a cavalo ou em canoas, os bandeirantes entravam pelo sertão em busca de riquezas e ultrapassavam a linha de Tordesilhas. Vale lembrar que durante o período da União Ibérica, a divisão estabelecida pelo tratado de Tordesilhas perdeu a validade, uma vez que todo o território estava sob o domínio espanhol. Do ponto de vista de sua organização, a expedição bandeirante era composta por brancos, mestiços e índios. O Armador era o líder responsável pela organização das expedições ao sertão, o qual fornecia dinheiro, equipamentos,

O surgimento das expedições sertanistas no Planalto de Piratininga Os gêneses das bandeiras paulistas estão diretamente ligados às entradas oficiais, que eram expedições organizadas pela Coroa portuguesa como o intuito de explorar o território da Colônia em busca de metais preciosos, como a expedição

índios e assumia todos os riscos da viagem, em troca da perspectiva de ganhar a metade dos cativos eventualmente presos. Sob seu comando, estavam os indígenas tupis que eram usados como batedores de caminhos, coletores de alimentos, guias e carregadores. O número de componentes de uma bandeira era variável, podia ser uma expedição de 15 a 20 e também podia chegar centenas de participantes.

14

PIZA, Antonio de Toledo. “Expulsão dos jesuítas e causas que tiveram para ella os paulista desde o anno de 1611 até o de 1640, em que os lançaram para fora de toda a capitania de S. Paulo e S. Vicente”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo. São Paulo: Typographia de “El Diario Español”. Vol. III, 1898. p.59.

Como vimos, os paulistas iniciaram as bandeiras com estabelecimento de guerra justa contras os índios Carijós, na década de 1580, no entanto, os


G N A R U S | 131 principais ataques dos sertanistas do planalto de

era de cercar a aldeia e convencer os nativos,

Piratininga aconteceram contra as missões jesuítas

usando de violência ou de ameaças.

espanholas, na região do Guiará (localizada no atual estado do Paraná). O sertanista Nicolau Barreto, em 1602, realizou o primeiro ataque. Nesse momento inicial, os moradores de São Paulo aprisionaram os silvícolas que não se encontram sob administração dos padres inacianos espanhóis.

Sete anos após dessa entrada sertanista liderada por Raposo Tavares na região do Guiára, a Acta da Câmara de São Paulo de 12/05/1635 aponta, para o citado ano, que as expedições bandeirantes intensificaram-se na região dos Patos. A Câmara deliberou que:

A presença dos religiosos da Companhia de Jesus

“Aos 12 dias do mês de maio da era de mil seiscentos e trinta e cinco, requerido pelo procurador das casas do conselho, um inventário da pólvora e chumbo que na terra houvesse, recebera um aviso que veio do capitão-mor Pero da Mota Leite, que põe seus interesses particulares, dava licença aos homens armadores, para irem aos patos e estas pessoas não levavam mais que pólvora, chumbo e correntes, (...) estando em auto de guerra indo mais de 200 homens aos ditos patos(...)”16.

não gerava nenhum tipo de empecilho para os interesses dos sertanistas paulistas, pois havia um grande contingente de nativos em aldeias livres. Esse quadro de não conflito entre os jesuítas e os bandeirantes no Guiará logo irá se modificar com o passar dos anos. A principal razão foi pelo pouco volume de índios não aldeados na região, graças aos efeitos acumulados pelas expedições de apresamento dos paulistas, as doenças contagiosas e o processo de aldeamentos. A partir desse momento, as maiores concentrações de indígenas encontram-se nas reduções jesuíticas. “Neste sentido, os paulistas passaram a assaltar as

Os escritos do padre jesuíta Montoya sobre o ataque dos bandeirantes na região do Guairá em 1636, dar-nos a dimensão de como eram compostas as tropas lideradas pelos bandeirantes paulistas. Em suas palavras, “(...) a voz anunciava que as gentes de São Paulo iam naquela direção, levando os índios a se defenderem, mas logo foram surpreendidos. A entrada na redução de Jesus Maria, encabeçada pelo ímpeto desbravador e apresador Antônio Raposo Tavares, deu-se no dia de São Francisco Xavier, ano de 1636, com 140 homens de armas, acompanhados de 150 tupi, todos bem armados com escopetas e vestidos com gibões, protegidos dos pés à cabeça contra as setas”.17

reduções não por motivos geopolíticos ou morais, mas, porque era justamente nelas que se encontravam

números

consideráveis

de

Guarani15”. O primeiro dos empreendimentos em larga escala, conduzido por Antonio Raposo Tavares, partiu de São Paulo em 1628. Essa bandeira iniciou suas atividades com uma certa cautela, o armador

O mapa a seguir ilustra as Entradas dos

da expedição estabeleceu um arraial às margens do Tibagi, na entrada do território do Guairá. A

sertanistas na região do Guairá, Tape e Uruguay:18

partir dessa base, os paulistas começaram a assaltar as aldeias guarani, logo apelando para as reduções. A estratégia mais comum dos paulistas

15

MONTEIRO, John Manuel Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. op. cit. 70-71.

16

Archivo Municipal de São Paulo. Actas da Câmara da Villa de São Paulo. São Paulo: Duprat & Cº, 1915. v. 4. p. 252-253. 17 MONTOYA, Antônio Ruiz de. Conquista Espiritual. Feitas pelos Religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. 1º ed. Brasileira. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1985. p. 243 18 Fonte: Desenho J.J. Lopes. Apud LIMA, Sheila Conceição Silva. Rebeldia no Planalto: A Expulsão dos Padres Jesuítas Vila


G N A R U S | 132 defender as Missões, munindo os indígenas com armas de fogo, ao que era proibido. Com os índios aldeados armados, as missões puderam conter os bandeirantes por algum tempo. Além disso, os padres começaram a concentrar as reduções em locais mais inacessíveis, sobretudo ao longo dos rios Uruguai e Paraguai. Em 1638, no entanto, esse quadro desfavorável dos padres jesuítas espanhóis nesse conflito contra os sertanistas paulistas muda. Guerreiros guaranis trucidaram dezessete sertanistas de São Paulo e Até 1641, as sucessivas invasões haviam destruído boa parte das aldeias guarani e

tomaram outros dezessete cativos, a conhecida batalha de Caaçapaguaçu20.

virtualmente todas as reduções do Guairá. Desta forma,

milhares

de

cativos

guarani

foram

introduzidos em São Paulo, sendo ainda um número menor negociado em outras capitanias.

A derrota mais contundente, todavia, ocorreu em 1641, quando a vultosa bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros esbarrou na resistência indígena em Mbororé. Após uma batalha aquática e

É o que mostra o crescimento da concentração

terrestre, os paulistas tiveram que bater em

dos índios arrolados nos inventários de bens de São

retirada. Derrotada no campo militar, a expedição

Paulo e de Santana de Parnaíba no período de

foi aniquilada de vez pela fome e pelas doenças21.

1620-1650.19

No ano seguinte, para ressaltar o simbolismo de tão importante evento, os índios de Mboreré

Década

Proprietários

Índios

Posse Média

regalaram um visitador jesuíta com uma peça de

1600-09

12

154

12,8

teatro na qual era reconstituída a heroica vitória

1610-19

49

863

17,6

contra os lusitanos. Ainda que algumas poucas e

1620-29

38

852

22,4

isoladas expedições tenha voltado ao território

1630-39

99

2804

28,3

guarani, o “desastre” de Mbororé marcou o fim de

1640-49

111

4060

36,6

uma época. É provável que este último fator tenha

1650-59

142

5375

37,9

sido determinante do fim das grandes expedições contra os povos guarani.

Diante dos constantes ataques, os jesuítas espanhóis resolveram solicitar assistência a Madrid e

Roma.

Inicialmente,

os

padres

jesuítas

conseguiram autorização do Rei da Espanha para

Contudo, a resposta dos jesuítas espanhóis não parou aí, eles, paralelamente, conduziram uma campanha contra os paulistas, propagando a imagem destes como um perigoso bando de 20

de São Paulo de Piratininga no Contexto da Restauração. op. cit. p.148. 19 Fonte: Inventários de São Paulo e Parnaíba

TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. História da Cidade de São Paulo. Textos literários em meio eletrônico. Disponível em: <http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action= download&id=6082#iii >. Acesso em: 7/04/2013. 21 TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. História da Cidade de São Paulo. op. cit.


G N A R U S | 133 ajuntou o povo, e, junto, o procurador do povo João Fernandes Saavedra, da janela da Câmara leu a última e final sentença da junta, do destino dos Padres da companhia. Desterraram a Companhia por amor do Papa e da virtude e liberdade dos índios [...] e assim ficando os oficiais da Câmara senhores de nossas chaves, casas, igreja e mais bens [...]. Este é o sucesso da expulsão dos Padres da companhia [...] e certifico e juro; in verbo sacerdotis e aos Santos Evangelhos, que tudo quanto aqui dito é verdade, e o jurarei as vezes que for necessário em juízo24.

desordeiros e foras-da-lei tanto no vaticano quanto na corte espanhola. Os jesuítas nessa intensa campanha não voltaram para América portuguesa de mãos vazias, eles conseguiram do papa Urbano VIII, a publicação no Brasil da bula papal de 1639, que afirmava a liberdade dos índios e excomungava aqueles que os cativassem e vendessem22. Esse documento, no entanto, não teve o resultado esperado pelos padres jesuítas, ao declarar livre o “gentio” da América e condenar à excomunhão todo aquele que o cativasse, a bula papal gerou revoltas e motins contra os padres da Companhia de Jesus na América portuguesa. Na capitania de São Vicente, os conflitos entre colonos e jesuítas acabaram ocasionando a expulsão destes da vila de São Paulo e Santos em13 julho de 1640, os padres inacianos foram obrigados a refugiar-se na capitania do Rio de Janeiro, sob a proteção do governador Salvador Correia de Sá. “Aos treze dias de julho, requereu-se que se desse a execução o que da vila de São Vicente, cabeça desta capitania viera determinado deitando fora desta vila os padres de companhia de Jesus para paz e quietação desta vila e capitanias pelas razões já alegadas e por outras mais que dariam a sua majestade e sua santidade”23

“A Arte da língua Guarani” de Montoya. Edição de 1724.

Expulsos da capitania de São Vicente pelos colonos locais e pelos oficiais camarários, por meio do Padre Jacinto de Carvalhais, os jesuítas não

Conclusão

deixaram de registrar sua interpretação sobre o

Identificamos, ao longo da nossa leitura, que o

episódio. “E assim, aos treze de julho, a uma sexta-feira, às duas horas da meia noite, mandavam os da Câmara de São Paulo tanger o sino, ao que se 22

Breve do Papa Urbano VIII, Comimissum Nobis, de 22 de abril de 1639, sobre a Liberdade dos Índios da América, Apud LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil – tomo VI , Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1943. p.624. 23 Archivo Municipal de São Paulo. Actas da Câmara da Villa de São Paulo. São Paulo: Duprat & Cº, 1915. v. 5. p. 35.

conflito entre os padres jesuítas e bandeirantes paulistas

estava

relacionado

às

estruturas

socioeconômicas do planalto de Piratininga, a qual estava intimamente ligada ao trabalho escravo indígena.

24

Fora

isso, percebemos

que

esta

Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil. op. cit. p. 258 - 263.


G N A R U S | 134 territorial, com uma preocupação de defender as terras da coroa portuguesa, mas sim com o claro objetivo de conseguir uma maior quantidade de escravos guaranis para suas fazendas. Além disso, explanamos que os conflitos entre Bandeirantes e Jesuítas pelo gentio da terra naquela região só terminou quando os padres inacianos passaram equipar os índios com arma de fogo para defesa das reduções missionárias espanholas. A batalha de Caaçapaguaçu de 1638 e, sobretudo, a batalha de Mbororé em 1641, foram determinantes para o fim das grandes expedições sertanistas paulistas contra os povos guarani no sul da América portuguesa. Nessa perspectiva, observamos que a mão de obra

indígena

tinha

grande

significância

econômica e social na sociedade paulista no "Os Bandeirantes" (óleo sobre tela de Henrique Bernardelli - 1889)

período colonial e, principalmente, que os

escaramuça acabou envolvendo participação de

Tape e Uruguai não era para abastecer um suposto

outros atores e instituições, como a Câmara

mercado das fazendas açucareiras do nordeste

Municipal de São Paulo (atendendo os interesses

brasileiro, e sim, para suprir uma demanda interna

dos colonos paulistas), funcionários régios, e até

da capitania de São Vicente. Enfim, diante desse

mesmo o Papa Urbano VIII (na defesa dos padres

fato

inacianos).

encontramos elementos que permitem torná-lo

Também

realizamos

uma

breve

discussão

bibliográfica sobre a história colonial de São Paulo, com objetivo de refletirmos sobre a

milhares de escravos feitos na região do Guiará,

extraordinário

do

nosso

passado,

inteligível para o nosso leitor. Trazendo consigo assim uma compreensão da dinâmica e processo da nossa História colonial.

historiografia da temática e evidenciar que a nossa pesquisa

está

inserir

nas

renovações

historiográficas realizadas nos últimos anos sobre a temática. Apontamos que esses ataques sertanistas as reduções

jesuíticas

espanholas

não

foram

constituídos de objetivos geopolíticos ou expansão

Miguel Luciano Bispo dos Santos é Graduando do Curso de História na Universidade Gama Filho e Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.


G N A R U S | 135

Artigo:

IRMANDADES DE HOMENS PRETOS NO BRASIL COLONIAL

Por: Luis Tadeu de Farias Goes

A

s irmandades de homens pretos foram um

África, bem como nas tradições portuguesas. O

dos poucos espaços de associação

presente artigo tem como foco tentar compreender

permitidos aos escravos. Era através

a relação dos africanos e seus descendentes com

dessas irmandades que africanos e descendentes

essas irmandades de homens pretos no Brasil

alcançariam uma maior integração e aceitação na

colonial.

sociedade colonial. Apesar dos maus tratos dos senhores e do trabalho excessivo, esses africanos construíram uma cultura religiosa bastante rica, com base em suas tradições culturais oriundas da

Por volta de 1496, em Lisboa, os negros tinham formado suas próprias irmandades em torno da devoção a Nossa Senhora do Rosário. As irmandades já nasceram com a preocupação


G N A R U S | 136 especial em cuidar do corpo após a morte, ou seja,

apoio da Coroa portuguesa no Cap. 17, art. 43 do

era de suma importância nessas irmandades cuidar

Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do

dos enterros e das preces destinada às almas após a

Rosário e São Benedito dos homens pretos do Rio

morte. Com a presença portuguesa em costas

de Janeiro (1759/1760)

africanas, a devoção ao Rosário de Maria também

Estão estas duas Irmandades unidas em huã, e creadas na Capela de Nossa Senhora do Rozário e Sam Benedito cuja Igreja foi feita à custa dos membros irmãos, ajudados com fervorosa devoção do Governador que foi desta praça, Luiz Vahia Monteiro, e dela são os ditos irmãos padroeiros, como o tem declarado Sua Majestade fidelíssima de El Rey Nosso Senhor que Santa Glória haja por provisão de 14 de janeiro do anno 1700 firmada por sua real mão expedida pelo seu Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens, registrada no Arquivo do Senado da Câmara no livro décimo de Ordens Reais a folha 118.2

se fez presente na África, o que fez surgir irmandades em Angola. Logo, muito dos escravos que aqui chegavam, já estavam familiarizados com a devoção a Nossa Senhora do Rosário. Sendo assim, as irmandades aqui estabelecidas, se tornavam atrativas e despertavam uma certa sensação de “lar” nesses escravos.1 Apesar de serem comandadas por negros, como veremos, as Irmandades do Rosário, em especial, tinham total apoio do Coroa portuguesa e da Igreja Católica, pois, era um instrumento de conversão dos africanos escravizados. Podemos perceber esse

Era de responsabilidade dessas irmandades ajudas diversas àqueles que a pertenciam: assistência quando doentes, famintos, ajuda na compra de suas alforrias e principalmente no que se refere à morte de seus membros. Aliás, uma das mais importantes, senão a mais importante atribuição dessas irmandades era proporcionar, aos associados, funerais, sepultamentos dentro das capelas, missas e cortejos fúnebres. Analisando o Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos homens pretos do Rio de Janeiro (1759/1760), podemos perceber o quão importante é a questão da morte. O cap. 19, art. 45 discorre sobre a morte dos membros da irmandade. Quanto maior for o grau hierárquico do irmão, mais próximo da capela mor o corpo será sepultado e mais missas terão em auxilio à sua alma: “He esta irmandade obrigada a mandar dizer pella alma de qualquer irmão que tiver servido de Juiz ou Juíza, tanto de Nossa Senhora como de Sam Benedito 24 missas, e morrendo no tempo em que actualmente estiverem servindo, como depois, serão sepultados na Capela Mor junto aos presbíteros, e os que tiverem servido de Escrivão, Thesoureiro e Procurador e Juízas do Ramalhete, dezesseis missas, e serão sepultados abaixo do

Para saber mais

1

KARASH, 2010

2

Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – AHU/CU. Códice 1950


G N A R U S | 137 arco Cruzeiro e os Reys e Raynhas terão 26 missas e o serão logo na boca do Arco Cruzeiro, e os que não tiverem ocupado cargo algum se lhe dirão dez missas por sua alma, e serão sepultados no corpo da Igreja; Também gozam de huã missa que se diz aos sábados de todo o anno com sua ladaynha a Nossa Senhora do Rozário, e outras que se dizem dia de Nossa Senhora da Conceição, da Purificação, da Anunciação, Sam Domingos, da Assumpção da Senhora, da Natividade e de Senhora do Rozário, e as três de dia de Natal, e a estas devem acestir os irmãos com suas opas brancas vestidas, e tochas acesas e recomendamos muito ao irmão Juiz a acistencia destas missas principalmente os que forem de meza, e gozão do benefício de huã indulgência [...] na hora da morte, e das mais concedidas a esta irmandade.”

O Cap. 20, art. 46, também nos demonstra a preocupação da irmandade com a questão da morte: “Logo que se fundou esta irmandade, e se foi estabelecendo o aumento dela, pella summa

pobreza dos irmãos por serem além de pretos, pobres e escravos atendendo ao reparo e utilidade dos corpos dor irmãos que falecião principiarão a ter o seu esquife o qual o conservarão sempre no tempo de mais de secenta e seiz anos, sem dele pagarem contribuição alguã; o que ordenamos nos fique perpetuado na mesma forma que do seu princípio estipularão, atendendo ajusta caridade que devemos usar com os cargos dos nossos irmãos defuntos sem que em tempo algum por nenhum motivo haja de se contribuir com o mais mínimo estupendio por cauza do referido esquife, mas antes sem penção ficaçe sempre servindo à Irmandade.”

Segundo João. J. Reis, “a irmandade representava um espaço de relativa autonomia negra, no qual seus membros – em torno de festas, assembleias, eleições, funerais, missas e da assistência mútua – construíram identidades sociais significativas no interior de um mundo às vezes sufocante e sempre incerto.”3 Dentro dessa

Estatutos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (Manuscrito - Lisboa 1768) Acervo da Biblioteca Nacional 3

REIS, 1996.


G N A R U S | 138 “autonomia” negra, podemos perceber que os

Rosário. Esta é apenas uma das correntes que

negros recriavam suas identidades africanas,

justificam a associação de negros nas confrarias e

readequando-as a um novo modelo, uma vez que

irmandades do Rosário.

lhes eram incorporados à fé católica.

Marina de Mello e Souza,5 em seu livro,

A participação dos brancos dentro dessas

levanta a hipótese de José Ramos Tinhorão que

irmandades estava também, ligada à política de

conclui que os negros elegeram Nossa Senhora do

controle sobre os negros. Essa presença branca foi

Rosário

aceita por diversos motivos, como por exemplo,

estabelecido uma relação direta entre o seu rosário

cuidar dos livros (uma vez que os negros não sabiam

e o “rosário de ifá”, usado por sacerdotes africanos.

ler, escrever e contar), receber ajuda financeira desses brancos ou até mesmo por imposição do próprio branco. Na maioria das irmandades, era exigido que o tesoureiro fosse branco e que tivessem bens.

para

objeto

de

culto

por

terem

A Igreja Católica teve um importante papel social no Brasil colônia, uma de suas atribuições, era a inserção dos “homens de cor” no interior da Cristandade. Para promover esta inserção, a Igreja usava como exemplos de virtudes cristãs a serem

Segundo o jesuíta Antônio Vieira, um dos

seguidos, os santos pretos, tais como, Santo

primeiros a refletir sobre a questão, os negros

Elesbão, São Benedito, Santa Ifigênia dentre outros.

deveriam ser gratos pelo fato de terem sido trazidos

Esses santos pretos auxiliavam, e muito, na

para o Brasil e terem sido inseridos na fé católica,

conversão de africanos e seus descendentes, ao

pois, na condição de escravos, estes estariam

catolicismo. A partir deste método de conversão ao

melhores do que estivessem continuados no

catolicismo, as irmandades de homens pretos

gentilismo dos reinos africanos. Vieira, defensor da

começaram a cultuar seus oragos, que na maioria

escravidão, dizia que a glória dos pretos residia na

das vezes eram negros tais como os africanos

condição de escravos e na devoção a Virgem do

devotos. Para muitos, na época, a cor negra é quase

Rosário, que fez dos pretos, seus filhos prediletos,

que um castigo divino, porém, uma vida levada nos

pois, eles mais que todos os outros povos,

moldes da cristandade superaria este castigo.

vivenciavam a paixão de Cristo através do Imitatio

Anderson José Machado de Oliveira, em seu artigo

Christus, que no caso dos africanos, estava

diz que:

relacionado ao cativeiro e os mistérios dolorosos da

“Apesar da cor, Elesbão e Efigênia não estariam inferiorizados na corte celeste, em função de suas almas cristãs. Aqueles que seguissem seus exemplos, apesar do acidente da cor, seriam atingidos também pela graça divina.”6

paixão, porta de entrada para a Salvação. A Imitatio

Christus, foi um grande modelo usado pela igreja católica que tem suas origens na Idade Média

A partir daí, podemos observar claramente o

central com o surgimento das ordens mendicantes. Logo, a força para os africanos suportarem a dor do cativeiro e redimir seus pecados, seria através da devoção do Rosário de Maria.4 Isso explica a grande

discurso da Igreja católica para a conversão dos negros africanos e seus descendentes. Porém, muito embora esses negros tenham se convertido à

devoção que os pretos tinham pela Senhora do 4 5

VAINFAS, 2011. SOUZA, 2002

6

OLIVEIRA, 2006


G N A R U S | 139 fé católica, esse catolicismo, principalmente o que acontecia dentro das irmandades, era um catolicismo miscigenado. Podemos perceber uma singela semelhança entre o Cristianismo e as religiões africanas, ou seja, ambas creem em um “outro mundo” e em seres que promovem o intercâmbio entre este mundo e o mundo invisível. Com base nessas semelhanças, não foi difícil ver nascer dentro das irmandades o conhecido sincretismo religioso, uma vez que os africanos se apropriaram dos santos católicos sincretizando-os com divindades tribais ou espíritos ancestrais,

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretinhos (A atual Igreja do Rosário foi construída em 1767 pela irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Sobral-CE)

rogando a estes, a solução de problemas de toda

das igrejas os escravos cultuavam seus deuses

sorte.7

através do sincretismo, se organizavam através de Uma das obrigações dos irmãos devotos, era

suas etnias e seus reinos de origem, recriavam suas

servir aos santos. Servir deve ser entendido no

hierarquias e de uma forma ou de outra, faziam com

sentido de dar assistência ao santo através das

que sua cultura fosse perpetuada. Uma vez dentro

esmolas, participar das celebrações e festas e

das igrejas, estes negros não poderiam apresentar

principalmente seguir os exemplos de virtudes

um problema para a sociedade, logo, eles eram

cristãs de seus padroeiros. Os irmãos deviam seguir

“livres” para que pudessem recriar em novos

os exemplos da vida do santo que escolhia para

moldes a fé, a cultura e a hierarquia longe dos olhos

cultuar.

de seu senhor.

Estas irmandades reuniam em volta de si,

Toda uma política de negociação entre

grupos étnicos específicos. Os angolas pertenciam

senhor e escravo era e sempre foi usada ao longo da

a uma determinada irmandade, os minas a outras, e

escravidão. João José Reis, entende que se só o

por assim por diante. Os escravos acabaram

chicote e outras formas de coerção tivessem

recriando em suas confrarias identidades étnicas

vigorado, o regime escravocrata não teria durado

trazidas da África. O principal critério de

tanto tempo. Era preciso definir limites, negociar

identidade dentro das irmandades foi a cor da pele

com os negros suas autonomias para que

e seu local de origem. Haviam irmandades de

celebrassem seus festejos, sua cultura e assim,

brancos, pardos, negros e mulatos. Podemos

dentro dessa constante negociação, evitar revoltas.

entender que essas associações, eram quase um

Essa quase “autonomia” negra pode ser vista

parentesco étnico.

perfeitamente dentro das irmandades de devoção

Devemos perceber também, a importância que estas irmandades tiveram como forma de resistência negra ao longo da escravidão. Dentro

7

Idem

aos santos católicos.


G N A R U S | 140 João José Reis: “É incontestável o valor que tiveram (as irmandades) como instrumento de resistência. Permitiram a construção ou a reformulação de identidades que funcionaram como um anteparo à desagregação de coletividades submetidas a imensas pressões.”8

O ingresso dentro de uma irmandade, era para o negro, a principal forma de ser inserido na organização social da colônia, além de ser uma oportunidade de se organizarem, festejarem e cultuarem seus padroeiros com a aprovação dos senhores e da administração da colônia. Para os negros que eram aprisionados em suas aldeias e comercializados nas Américas, as confrarias foram rapidamente

identificadas

como

forma

de

MAURICIO, Augusto. Templos históricos do Rio de Janeiro, 2.ed. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert, 1946. OLIVEIRA, Anderson José Machado. Devoção e

identidades: significados do culto de santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais do setecentos. Rio de Janeiro:

Revista tempo, v.7, 2006, p.60-115. ______ . Igreja e escravidão africana no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Cadernos de Ciências Humanas – Especiaria, vol. 10, n.18, dez. 2007, p. 355-387. KARASCH, Mary. Construindo comunidades: As irmandades dos pretos e pardos no Brasil Colonial e em Goiás. Goiânia: Revista da faculdade de História e do Programa de Pósgraduação em História, vol.15, n.2, jul/dez.2010, pp. 257-283. SOARES, Mariza de Carvalho. O império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro, no século XIII. Rio de Janeiro: Topoi, mar. 2002, pp. 59-83.

construção de laços de solidariedade, encontros e afirmação de suas culturas. Podemos concluir que, nos espaços das irmandades foram recriados os

Para saber mais:

laços sociais quebrados pelo tráfico.

Luis Tadeu de Farias Goes é graduando em História pela UNESA (Univ. Estácio de Sá)

Bibliografia SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII, 2.

edição. São Paulo: Editora Brasiliana,1976. SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil

Escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista.

São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ______ . A Morte é uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. ______. Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão. Rio de Janeiro: Revista tempo, vol. 2, n.3, 1996, p.733. VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira. São Paulo: Companhia das letras, 2011. 8

REIS, 1996

Os convidados para a ceia do Senhor: as missas e a vivência leiga do catolicismo na cidade do Rio de Janeiro e arredores (17501820) de Sergio Chahon.


G N A R U S | 141

Artigo:

PRÁTICA RELIGIOSA BRASILEIRA: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO Por Pedro Tavares

O

termo cultura é mais amplo e denso do

construindo assim uma nova forma de viver e

que pensamos, uma vez que este

explicar a vida. Contudo, Brustolin (2010) observa

conceito permeia diversas áreas como

que o ser humano não tem total domínio da

no caso a Filosofia que apresenta dois conceitos de

natureza uma vez que não tem controle sobre os

iluminista.1

fenômenos naturais e a morte, esses fatos

Antropologia ressalta as qualidades cognitivas do

constituem “a ordem do não-sentido”, ou seja, o

ser humano, uma vez que o mesmo tem uma série

que não pode ser explicado. Esta busca frustrada

de posturas e reações que não estão presentes em

por significados faz com que o ser humano busque

outros animais somando a isto a noção de

no transcendente a resposta para aquilo que

comportamento

pertence à “ordem do não sentido”:

cultura,

um

clássico

e

ensinado

outro

e

aprendido

em

detrimento do intuitivo utilizado pelos animais de

“Os fatos naturais deixam os seres humanos desamparados. Em decorrência, nasce a necessidade de cultivar uma relação com o transcendente, com o que está além da realidade visível e que não pode ser controlável. Nesse sentido, toda cultura tem, na essência, um sentido religioso.”3

um modo geral. Essa teoria nos leva à psicologia analítica de Freud que defende que o ser humano evoluiu distanciando-se da natureza, e esse fato se deu quando o homem “começou a cultivar, a criar,

A partir desta relação entre ser humano e

a cultuar, a fazer cultura.”2 Segundo esta corrente a “separação” ocorre quando o humano consegue dominar a natureza

1

“(...) No primeiro sentido, a Cultura é o aprimoramento da natureza humana pela educação em sentido amplo, isto é, como formação das crianças não só pela alfabetização, mas também pela iniciação à vida da coletividade por meio do aprendizado da música, dança, ginástica, gramática, poesia, retórica, história, Filosofia, etc. (...) No segundo sentido, isto é, naquele formulado a partir do século XVIII, tem início a separação e, posteriormente, a oposição entre Natureza e Cultura. Os pensadores consideram, sobretudo a partir de Kant, que há entre o homem e a Natureza uma diferença essencial: esta opera mecanicamente de acordo com leis necessárias de causa e efeito, mas aquele é dotado de liberdade e razão, agindo por escolha, de acordo com valores e fins. (...)” (CHAUÍ. 2000, p.372) 2 BRUSTOLIN, LEOMAR A. Religião e Cultura. São Paulo, 2010.Pp.03

transcendente levantasse a questão: a religião é a base última da cultura? Apesar de não ser consenso, intelectuais como Toynbee, Dawson e Tillich defendem o conceito de que a religião seria, entre diversos fatores, elemento último da cultura.

3

Ibid, P.03


G N A R U S | 142 privada no período colonial e como a mesma se inverte durante o Império. Anos antes de o Brasil ter sido “descoberto” (1500) por Cabral, a Igreja já havia concedido ao rei de Portugal o direito de “Padroado”, que fora dado ao monarca ibérico devido ao grande envolvimento do Estado português com a conversão de “infiéis”. O Papa concedeu à Coroa É necessário, portanto, que se entenda que a

lusa o direito de administrar as novas igrejas,

religião não é fruto da cultura, mas sim, elemento

tendo para isso, o rei de Portugal o dever de

central da mesma, constituindo a sua estrutura

converter novas almas e implementar um sistema

elementar e vital. Porém, assim como a religião

eclesiástico que ia da edificação de templos à

exerce influência direta sobre a cultura, a mesma

nomeação e remuneração dos clérigos nas novas

também influencia a religião.

terras.4

Este

fato

evidencia-se

ao

analisarmos

a

Este acontecimento nos ajuda a compreender o

religiosidade no período colonial, onde se buscava

fato de o Brasil, primeiramente como colônia e

reproduzir na América portuguesa os cultos de

depois como Estado soberano, se manter católico

forma idêntica aos praticados na Europa. Estes

por quase quatrocentos anos.

encontraram nos trópicos, muitas dificuldades para serem proferidos devido ao abismo existente entre a realidade da colônia e a corte lusitana.

O cristianismo enquanto religião sistematizada nos apresenta uma dualidade litúrgicana que diz respeito à necessidade de rituais públicos e

O século XIX reservou muitas transformações ao

privados a fim de alcançar o almejado reino dos

Brasil; estas vieram de diversas partes e não se

céus. Esta dualidade litúrgica parte do próprio

deram exclusivamente pelo fato de em menos de

Jesus, que em diversas passagens da sua vida se

um século termos coroado um rei e dois

alternou entre rituais individuais e coletivos. Essa

imperadores. Mas advêm de o fato do nosso país

tradição é perpassada de geração em geração até

receber influência de uma série de povos que

cruzar o oceano e aportar na colônia portuguesa

vieram para o Brasil, uns com viajantes em busca

na América.

de conhecimento (americanos e europeus) e outros de forma compulsória para servir de mão de obra (africanos). Essas culturas, em diversos pontos

No início da História cristã já é possível observar essa dualidade. “Primitiva igreja cristã, tal como podemos vislumbrar nos Atos dos Apóstolos, desde seus primórdios, reuniu essas duas posturas na prática religiosa: a contemplation, ou a oração pessoal, privada, e a liturgia, que no latim eclesiástico medieval equivalia a “ culto público e oficial instituído pela Igreja.” ”5

opostas, interagiam no cotidiano e se misturaram até formarmos o que conhecermos hoje como Brasil. Não me debruçarei sobre os diversos festejos ocorridos no Império, pois a proposta central deste breve trabalho é analisar de modo geral como se professavam a religiosidade predominantemente

4 5

PIERUCCI in GAARDER 2010, P.300. MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp. 159.


G N A R U S | 143 As obrigações do ser católico iam muito além das orações diárias e individuais “convinham alimentar sua vida espiritual privada e comunitária”6. Os rituais

religiosos

Portuguesa

como

funcionaram “um

na

América

contrapeso

social

significativo para compensar a dispersão espacial e isolamento social dos colonos”.7 No âmbito colonial muitos dos rituais que na metrópole eram realizados nas ruas e praças aqui tiveram de ser relidos ou seja foram levados para dentro de igrejas e mosteiros, devido aos perigos que rondavam os espaços públicos e à aridez climática8 no período inicial da colônia. No que concerne aos rituais individuais existiam instruções bem definidas quanto às obrigações individuais dos fiéis. Na concepção medieval existiam horas no dia de melhor comunicação com o transcendente (horas canônicas) iniciando à meia noite com a oração de matinas e a última às

da gentalha de cor, isolando-se por de trás de

oito da noite com a completas9. Nos trópicos essa

balaustradas e colunatas próximas ao altar-mor.”12.

concepção fora adotada apenas nos templos mais tradicionais. Em geral costumava se rezar em três momentos do dia, as “principais horas litúrgicas”10, que eram marcadas pelas badaladas dos sinos das igrejas e mosteiros espalhados pela colônia11. No Brasil, diferente de Portugal onde não existia

Os mais ricos membros da elite colonial afim de não se misturar com essa “arraia-miúda” e “gentalha de cor”, mandavam construir templos dentro de suas residências ou nos arredores afim de que os mesmos atendessem sua família, escravaria e agregados.

um precipício tão grande entre as classes sociais, “a

elite

branca,

acastelada

e

minoritária

demograficamente, protegia-se da arraia-miúda e

Esses templos eram construídos próximos à casa grande e lá eram realizados atendimentos religiosos prestados pelo pároco local ou oriundo de uma região próxima.

6 7 8

Ibid. Pp160 Ibid. Pp 160

“muita poeira no verão e lama na estação chuvosa, as praças ameaçadoras pela presença inesperada de animais selvagens, índios e negros indômitos” (MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.163) 9 Entre essas duas orações existiam outras seis oração “de laudes às três da madrugada, às seis da manhã a prima, às nove a terça ,oração de sexta ao meio dia, noa ás três da tarde, vésperas quando surge a estrela vespertina” (MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.163) 10 I Ibid 11 “às seis da manhã- hora de ângelus-, ao meio dia- a hora que o diabo está solto- e às seis da tarde, hora das Ave Marias” (MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.164)

O principal argumento para a construção destas capelas era de que a tentação rondava as igrejas e podiam atentar “as mulheres de famílias de respeito”13. Porém havia membros da elite que repudiavam tal atitude, pois afirmavam que os templos se esvaziavam ou, como afirmou Moniz 12 13

MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.161

Ibid


G N A R U S | 144 Barreto, “o não procurar igreja para ouvir a missa,

Esta religiosidade, que na colônia, buscou

mas sim o seu oratório, e isto é mais vulgar nos

refúgio

nacionais do que nos da Europa(...)”14.

oferecidos ora pela vontade de uma elite colonial

Devido a isto, grande parte dos recém-chegados da metrópole tinham de diminuir sua regularidade religiosa, o que fez com que o desapego dos colonos para com as práticas religiosas fosse maior

Igreja perde parte de seu controle sobre os cultos interior

das

propriedades

particulares, o que abriu “espaço para desvios e heterodoxias”15. Com o crescimento da colônia o número de

pelos

perigos

favorecidas, no Império foi “para a rua”,17 saindo do âmbito privado e indo para o público por meios das diversas festas.

marcada pelo víeis político, vez que deveria produzir simpatia dos súditos ao regime visando à manutenção

progressivamente ao passo do desenvolvimento da colônia. Com o findar do período colonial, a chegada da modernidade trazida pela corte recém-chegada

posteriormente o império de elementos culturais africanos somaram-se elementos da cultura indígena que já interagiam com os europeus desde

forma

os

As festas religiosas não só congregavam diferentes classes sociais, mas também colocavam o povo que na colônia e mesmo no império nas festas cívicas era apenas expectador, assumindo um papel atuante. Estas

festividades

congregavam

nobres

e

plebeus, senhores e escravos, mães de santo e padres, sendo possível ver no interior de celebrações

cristãs

fortes

elementos

da

religiosidade africana. “Percebe-se a coexistência entre monarcas (reis oficiais e reis populares) como se a festa suspendesse por algumas horas o conflito e congregasse autoridades de ordens diferentes: padres e mães de santo, senhores de escravos e seus cativos.”19

como elemento fundamental desta cultura que foi constantemente reinventada ao longo de todo o século XIX também se reinventou.

Dessa forma, a religiosidade do Brasil foi se recriando a cada novo elemento agregado a mesma, desta vez com expressiva participação não 17

Apud MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.161. 15 MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.163 16 SCHARCZ 1998, P. 247

Desta

represente máximo do Estado.18

a chegada dos mesmos em 1500. A religiosidade,

“(...) estamos falando de uma série de personagens que lideravam as festas populares e que, proveniente de reinos distantes- presente na memória dos escravos africanos ou nas lembranças dos saudosos colonos portugueses(...)“16

mesmo.

quase como uma entidade longe do rei como

fugida das tropas francesas, a intensificação do fluxo do tráfico negreiro, que inundava o reino e

do

imperadores passavam a ser vistos pelos populares

capelas e oratórios particulares foram diminuindo

14

ora

A religiosidade no Império foi fortemente

Com o aumento da vida religiosa, privada a no

residências

de não se misturar com as classes menos

do que o dos lusitanos.

realizados

nas

“as ruas inóspitas pela muita poeira no verão e a lama nas estações chuvosa, as praças ameaçadoras pela presença inesperada de animais selvagens,índios e negros indômitos, muito das suas celebrações religiosas que no Velho Mundo tinham lugar ao ar livre, na América portuguesa ou foram abandonadas ou tiveram de se transferir para dentro dos templos ou ainda ficaram restritas as celebrações domesticas” (MOTT In: NOVAES, F.A e SOUZA, L. de M.1998. Pp.161) 18 Ibid, P. 248 19 SCHWARCZ 1998, P. 248 e 249.


G N A R U S | 145 só da elite colonial, mas também das classes menos abastadas da população. Conclusão.

Referências Bibliográficas:

Um dos traços lusitanos mais fortes na cultura brasileira se dá no tocante á fé católica que fora trazida nas caravelas lusas que rasgavam o oceano em busca não só de novas rotas comerciais, mas também na lógica do padroado da conversão de novos povos á fé cristã. Fé cristã que apresenta seu caráter dual desde sua raiz mais profunda, o próprio Cristo, que em diversas passagens de sua vida, defendera por vezes ora rituais individuais de ligação com o Deus criador, ora cultos públicos de contemplação da fé. Esta dualidade fora trazida pelos europeus na proa das naus portuguesas para a colônia e aqui através do choque deste cristianismo europeu com a realidade dos trópicos, fora constantemente reinventada a partir das necessidades dos colonos. No período colonial buscava-se a segregação das raças visando uma não “contaminação” das elites coloniais. Já no Império, essa relação foi constante nos festejos religiosos, servindo como um instrumento de interação social. O que vale observar nessa mudança de pensamento e da prática religiosa, é o fato da ritualística religiosa se moldar á realidade sociopolítica

e

principalmente

cultural

da

sociedade na qual que a mesma está inserida.

Pedro Tavares é Licenciado em História pela Faculdades Integradas Simonsen e Aluno da Pós Graduação Lato Sensu em Ciências da Religião pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro.

BRUSTOLIN. LEOMAR A. Religião e Cultura. São Paulo, 2010. CHAUÍ. Marilena. Convite a Filosofia. São Paulo; Ed. Ática: 2000. GAARDER, J. HELLERN, V. E NOTAKER, H. O Livro das Religiões. São Paulo; Cia das Letras, 2010. MOTT, In: NOVAES, F.A (direção) e SOUZA, L. de M. e (org.). História da Vida Privada no Brasil. Volume 1. São Paulo; Cia das Letras:1998. SCHWARCZ, Lilia M. As Barbas do Imperador. São Paulo; Cia das Letras. 1998. Para saber mais:


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Equipe de Redação: Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS/UCAM/UAB) Prof. Jessica Corais (FIS)

Conselho Consultivo: Prof. Dr. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Profª. Drª. Érica Sarmiento da Silva (UERJ/UNIVERSO) Profº. Felipe Castanho (UGF/FIS) Prof. Dr. Julio Gralha (UFF) Prof.ª. Drª Luciana Arêas (FIS) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Ricardo Santa Rita (FIS) Prof. Dr. Rodrigo Amaral (UCAM/FIS) Prof. Dr. Sérgio Chahon (UGF)

Apoio:  Faculdades Integradas Simonsen (FIS)  Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP)


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