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A Filosofia na Vida Abril-Junho 2014 | Revista Gratuita
“As pessoas fazem mudanças dramáticas na vida por causa de ideias.” Ran Lahav
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re vist a po rt u guesa de filosofia aplicada
Ficha Técnica Director e Editor Alves Jana jalvesjana@gmail.com Publicidade 968 404 380 Designer Clara Jana clarajana.design@gmail.com Redacção R. 5 de Outubro, 423 2200-371 ABRANTES Periodicidade Trimestral
Registo na E.R.C. 126186
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Apresentação
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Entrevista - Ran Lahav
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Seguida da Cronologia do AF
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Dossier | Alves Jana
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Filosofia na empresa – Livros
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Aristóteles + Giro…
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Clube de Filosofia de Abrantes
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Luís Barbosa
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nº07 A tese de base da FILOSOFalando é que a filosofia tem um lugar insubstituível na vida. Por isso voltamos explicitamente a este tema. Não se trata, é evidente, de anular outras dimensões da filosofia, mas de sublinhar e explorar esta, que tantas vezes é esquecida, embora não anulada. Vale a pena, por isso, ouvir Ran Lahav, que trabalha nessa dimensão e é um dos pioneiros da prática filosófica e em particular do aconselhamento filosófico. E o dossier versa justamente este mesmo tema, onde incluímos uma chamada de atenção para dois livros que tratam da “filosofia na empresa”. O mesmo se pode dizer do Clube de Filosofia de Abrantes, um caso que hoje trazemos a estas páginas e é só uma das muitas formas de intervenção da filosofia em Abrantes desde há décadas. Muito mais haveria a dizer, pois cada vez mais a filosofia ensaia novas formas de estar presente e ativa na sociedade. Mas os leitores já se queixam de que a nossa revista tem páginas a mais. Então, ficamos por aqui.
alves jana
Ran Lahav
a filosofia aplicada começa com ideias filosóficas abstratas, enquanto a prática filosófica começa com a vida real , por alves jana via email
Ran Lahav é uma figura conhecida no movimento da Filosofia Prática ou da Prática Filosófica. O seu nome ficou associado, com o de Lou Marinoff, à organização do I Congresso Internacional de Filosofia Prática, no Canadá, Universidade de British Columbia, em 1994. Esteve recentemente em Portugal, a convite da Universidade de Lisboa. Na ocasião, ministrou um workshop organizado por Jorge Dias e proferiu uma conferência organizada pela APAEF e pela Universidade Católica (Lisboa). Antes de lhe darmos a palavra, convém sabermos um pouco mais sobre quem é. Ran Lahav doutorou-se em Filosofia e fez o mestrado em Psicologia em 1989, na Univ do Michigan, USA. Passou a trabalhar e publicar nesses dois campos, numa atitude de procura de caminhos para trazer a filosofia para a vida de todos os dias. Em 1992, encontrou-se com a filosofia prática, que estava nos seus começos, e começou a praticar o aconselhamento filosófico (na Univ. de Haifa, em Israel). Em 1994 organizou com Lou Marinoff a primeira Conferência Internacional de Aconselhamento Filosófico, na Univ. Columbia, Canadá. Em 1995, publicou o primeiro livro em inglês neste novo domínio, (Essays on Philosophical Counseling), uma colecção de artigos dos principais praticantes nesse momento. De então para cá, tem praticado, escrito e ensinado em várias universidades. Durante este período, passou por experiências espirituais profundas que o levaram a uma procura não apenas académica mas também prática na filosofia. «Durante vários anos dediquei a maior parte do meu tempo à busca espiritual, que envolveu períodos de solidão em mosteiros, contemplação e meditação espiritual, encontros com pessoas espirituais e religiosas e escritos e leituras espirituais.» Desse percurso resultou o livro The Chambers of Heaven, uma novela. Em 2002, passa a dedicar-se de novo à filosofia prática e à procura espiritual, de modo que ambas se pudessem enriquecer mutuamente num processo unificado.
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Entrevista, por correio eletrónico, e tradução de Alves Jana O4
Você começou na filosofia e na psicologia académicas, mas depressa se voltou para a filosofia prática, ou melhor, para a prática filosófica, para a filosofia na vida quotidiana das pessoas comuns. Porquê essa viragem? Donde nasceu esse movimento para uma nova direcção? Comecei a pensar num tipo de filosofia prática quando ainda era um estudante BA de filosofia e psicologia na Universidade Hebraica de Jerusalém. Lembro-me de que a filosofia me tocou porque discutia questões fundamentais da vida. Eram os mesmos problemas acerca dos quais eu me interrogava. Mas eu também me sentia muito frustrado, porque as discussões filosóficas eram muito abstratas e intelectuais. Sentia que não tocavam a vida real da pessoa individual. Por essa razão, pensei muitas vezes em deixar a filosofia e fazer algo mais ligado à vida, mas de qualquer modo continuei os estudos. Penso que estava à espera de encontrar algum tipo de filosofia que pudesse tocar a vida mais intimamente. E assim continuei durante vários anos, meio atraído pela filosofia, e meio frustrado. Fui para os EUA e fiz o meu doutoramento em filosofia, mas também aí não encontrei o que procurava. Fiz um mestrado em psicologia, mas também não era suficiente para mim. Então comecei a ensinar filosofia numa universidade no Texas. Um dia, no início dos anos 90, a minha mãe enviou-me de Israel um recorte de jornal sobre algo que era chamado de “aconselhamento filosófico.” Foi a primeira vez que ouvi falar em tal coisa. A minha reação imediata foi: “Claro! Aconselhamento filosófico - é isto que eu quero fazer! “ Naquele tempo - cerca de 10 anos após o nascimento de prática filosófica - havia muito poucas pessoas no mundo neste campo. Encontrei-me com Shlomit Shuster, que já tinha começado a fazê-lo em Israel, e com vários praticantes na Holanda, e com Gerd Achenbach na Alemanha. Devo dizer que não estava satisfeito com o
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que tinha encontrado. Mas percebi que era o início de algo que estava ainda a crescer e tinha potencial para ser importante. Então disse para mim mesmo: eu quero ajudar a desenvolver esta área. Eu quero ajudar a prática filosófica a crescer. Distingue filosofia aplicada de filosofia prática. Quer precisar a distinção? Para mim, a filosofia aplicada começa com ideias filosóficas abstratas, enquanto prática filosófica começa com a vida real. Deixem-me explicar o que eu quero dizer. Nos EUA, o termo “ética aplicada” não está de todo ligada à prática filosófica. Nasceu nas universidades, não no movimento da prática filosófica. Este termo refere-se principalmente à ética aplicada: ética médica, ética empresarial, ética clínica, e assim por diante. Isto significa que os filósofos desenvolvem ideias filosóficas abstratas, e depois aplicam essas ideias a situações específicas - a dilemas morais no hospital, por exemplo, ou a dilemas no mundo dos negócios. A palavra crucial aqui é “aplicada”: os filósofos sentam-se no seu gabinete e desenvolvem ideias abstratas, e depois em “aplicam”-nas à vida. Pode dizer-se que o filósofo impõe a sua teoria à vida. Em contrapartida, a prática filosófica não começa com ideias abstratas, e não tenta impor ideias à vida. Pelo contrário, escuta a vida, ouve o que a vida tem para dizer, ouve o que a filosofia diz POR DENTRO da vida. Por exemplo, se eu sou um conselheiro filosófico e a minha aconselhada se queixa de solidão, eu não pego numa teoria filosófica sobre a solidão e, em seguida, “aplico”-a à sua situação. Pelo contrário, eu ouço o que a sua solidão diz sobre vida. Por outras palavras, eu escuto como a minha aconselhada se relaciona com a vida através do seu sentimento de solidão. Porque a sua solidão é a sua maneira de se relacionar com o mundo, exprime a sua maneira de interpretar a sua situação e de compreendê-la. Em suma, o seu comportamento e os seus sentimentos
expressam a sua filosofia de vida, embora geralmente ela não esteja ciente disso. Então, o meu ponto de partida na prática filosófica é sempre uma situação humana concreta. Eu não “aplico” ideias filosóficas à vida. Como era o mundo da prática filosófica nesse tempo, no início dos anos 90? Quando entrei neste campo, havia apenas dois grupos de prática filosófica, que tinham começado a operar 8-10 anos antes: o primeiro foi o grupo de Achenbach, na Alemanha. O segundo grupo foi na Holanda, com pessoas como Ad Hoogendijk, Ida Jongsma e outros. Para lá destes, havia algumas pessoas noutros países, como dois na África do Sul e um em Israel. Eu encontrei-me muito poucas vezes com os europeus, por isso não os conhecia muito
de Aconselhamento Filosófico, na Univ Columbia, Canadá. Foi um salto muito rápido, não? Sim, foi um salto muito rápido. Mas eu pensei que esse salto era necessário para trazer mais pessoas para este campo, especialmente pessoas da universidade, e para iniciar um diálogo internacional sério sobre a prática filosófica. É necessário perceber que eu não estava satisfeito com a situação neste campo. A prática filosófica estava confinada a dois pequenos grupos na Europa, na Alemanha e na Holanda. Muito poucas pessoas tinham ouvido falar sobre nós. Eu pensei comigo mesmo: “Nós temos um campo com uma grande visão, mas ainda não encontrámos o caminho para transformar esta visão numa prática.” A meu ver, a única maneira de sair desta situação era criar um diálogo internacional, com muitas
o meu ponto de partida na prática filosófica é sempre uma situação humana concreta bem, mas correspondia-me com eles e lia o que eles iam escrevendo. Recordo que fiquei impressionado com a sua seriedade e entusiasmo, e a sua visão de que a filosofia pode fazer coisas importantes. Mas também senti que havia uma lacuna entre as suas altas aspirações e o que eles faziam na prática. Não me parece que eles tenham conseguido encontrar formas profundas de concretizar a sua visão filosófica. Ainda assim, eles estavam a explorar e a procurar, e isso era o mais importante. Por esta razão, acredito que eles foram muito importantes na história do movimento, porque eles levantaram a questão: como é que a filosofia tornar-se significativa para a vida? Diz que em 1992, se encontrou com a prática filosófica, que estava nos seus começos, mas logo em 1994 organizou com Lou Marinoff a primeira Conferência Internacional ||||||||||||||FILOSOFalando
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pessoas de diferentes formações [backgrounds]. Foi por isso que comecei a escrever artigos, e que reuni artigos de praticantes e publiquei a antologia “Essays on Philosophical Practice” (1995). Naquela época, eu estava a ensinar numa universidade em Dallas, Texas. Quando ainda trabalhava nesta antologia, entrei em contato com várias universidades nos EUA e perguntei se gostariam de acolher uma conferência sobre aconselhamento filosófico. No início, ninguém concordou em envolver-se nesta coisa desconhecida. Mas, então, uma das pessoas que tinham contribuído com um artigo para a minha antologia, Lou Marinoff, teve uma ideia. Naquela época, ele era professor adjunto no Centro de Ética Aplicada da Universidade de British Columbia, em Vancouver, no Canadá. Sugeriu que ele e eu poderíamos ser capazes de convencer o seu chefe, o diretor do Centro, para acolher a referida conferência. No verão, fui de carro numa viagem ao Alaska.
Naquela época, eu costumava fazer longas viagens na América do Norte, numa espécie de meditação. No caminho parei em Vancouver, e encontrei-me com Lou Marinoff pela primeira vez. Almoçámos os dois com o diretor do Centro (lembro-me que era um restaurante cambojano), e falámos-lhe sobre o aconselhamento filosófico. Felizmente, conseguimos convencê-lo. Assim nasceu a Primeira Conferência Internacional sobre Aconselhamento Filosófico. Lou organizou muito bem a parte administrativa da conferência, e eu organizei o programa e os contactos com os participantes. Para mim, esta conferência foi um grande sucesso, porque colocou a prática filosófica no mapa e ampliou o campo para além dos dois grupos europeus.
“Nós temos um campo com uma grande visão, mas ainda não encontrámos o caminho para transformar esta visão numa prática.” Depois (quando?) houve uma nova mudança de direcção: da prática filosófica mais comum para a procura de uma sabedoria filosófica. Como foi? Com que resultados? Quando comecei a praticar o aconselhamento, em 1992, a princípio com voluntários e depois com clientes reais, eu tinha ideia de que a principal ferramenta da prática filosófica é o pensamento crítico [critical thinking]: analisar ideias, expor pressupostos ocultos, detetar erros lógicos, e assim por diante. Esta era a abordagem de muitos praticantes anteriores, e eu segui o que eles faziam. Mas depressa me percebi de que esse tipo de abordagem era muito limitado. O pensamento crítico não pode
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inspirar a vida e não pode fazê-la crescer. O pensamento crítico pode ajudar-nos a corrigir os erros que cometemos, mas não pode ajudar a vida a tornar-se mais rica, mais profunda, mais significativa. Eu também me sentia insatisfeito com os clientes que me chegavam. A maioria deles queria resolver um problema pessoal, como as tensões entre eles e a mãe, ou a falta de auto-confiança. Mas eu esperava mais da filosofia. Por isso, depois de um tempo decidi aceitar apenas pessoas que tinham questões sobre a vida, e não aqueles que queriam resolver um problema específico. A minha questão era: como posso usar filosofia no aconselhamento - mas sem banalizar a filosofia, e sem banalizar a vida? Como posso fazer aconselhamento filosófico sem diminuir a filosofia [without making philosophy small], e sem diminuir a vida? A filosofia é um imenso [huge] universo e a vida também é imensa: é complexa, profunda, com muitas dimensões ocultas. Se eu reduzir a vida a uma fórmula lógica simples, estou a banalizá-la. A vida é muito mais do que o pensamento crítico. Isto ajudou-me a articular o meu objetivo na prática filosófica: crescimento pessoal, ou o que eu também chamei de “sabedoria”, e depois “edificação”, e mais tarde “auto-transformação”. Todas essas palavras pertencem à mesma família. Querem dizer que a filosofia olha para a pessoa como um todo, não para problemas pessoais específicos, e que tenta abrir a pessoa para horizontes de vida mais largos. Este é o tema central do meu trabalho desde aquela época até hoje.
Como posso fazer aconselhamento filosófico sem diminuir a filosofia, e sem diminuir a vida?
A filosofia joga habitualmente bem com reflexão, argumentação, discussão… mas nada com contemplação. Contudo, no seu caso, propõe uma filosofia contemplativa. Quer explicar-nos? As ideias filosóficas - e as ideias em geral - têm um poder tremendo para nos tocar profundamente e inspirar-nos. As pessoas fazem mudanças dramáticas na vida por causa de ideias. Pensemos como as pessoas mudam a sua vida por causa de uma nova ideologia social ou por causa de uma ideia religiosa, ou uma nova consciência existencial. É por isso que a filosofia pode tocar a vida e inspirá-la e abrir-nos para novos horizontes. Mas pode fazê-lo apenas quando é mais do que ideias intelectuais. Ideias que permanecem no pensamento abstrato não nos fazem grande coisa. Elas devem penetrarnos o coração. Portanto, devemos abrir-nos às ideias não apenas nos nossos pensamentos, mas na nossa compreensão mais profunda, no nosso ser mais profundo. A contemplação e a meditação são formas de abrir o nosso eu mais profundo às ideias filosóficas. Esta não é uma abordagem nova podemos encontrar a meditação sobre ideias em quase todas as tradições espirituais. No catolicismo, por exemplo, encontramos a Lectio Divina, que é uma forma de meditação em sentenças das escrituras sagradas. A ideia é que, se abrimos o nosso eu profundo a essas sentenças, elas podem falar-nos e inspirar-nos. Foi por isso que, em 2005, eu sugeri a José Barrientos, de Espanha, que fizéssemos juntos um retiro de filosofia contemplativa. Ele fez um trabalho maravilhoso ao encontrar um lugar perto do mar, e organizar o retiro. Foi uma experiência interessante. Cada participante levou exercícios contemplativos e, juntos, fizemos experiências com eles. Por exemplo… Que espécie de exercícios? Posso dar alguns exemplos de exercícios contemplativos, porque durante algum tempo colecionei-os, e experimentei-os em vários
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grupos. Incluem técnicas onde uma pessoa abre um espaço interior de escuta em silêncio. Um exemplo é o que eu chamo de “Círculo de Discernimento”, onde a proposta é a pessoa prestar atenção a partir do seu silêncio interior às palavras dos seus companheiros, e também às suas próprias ideias. O grupo conversa sobre um tema ou texto filosófico, mas cada participante fala não a partir da sua mente tagarela, nem da sua agenda ou das suas opiniões, mas sim a partir do seu silêncio interior. Existem orientações específicas para garantir que as palavras são propícias ao silêncio - por exemplo, falar apenas quando se tem na mão o “objeto de falar,” falar em frases breves e compactas, tratar cada palavra como se fosse um presente para o círculo, e assim por diante. Outra técnica é o que eu chamo de “Lição Silenciosa”, que é uma adaptação da Lectio Divina católica ao contexto filosófico. Pode ser feita em grupo ou individualmente. É uma técnica que eu pratiquei pessoalmente durante anos. A ideia aqui é fazer com que um texto filosófico curto fale por dentro da pessoa. Não se trata de pensar sobre o texto, nem de analisá-lo – a pessoa deixa o texto falar na sua profundidade interior. Existem várias orientações que ajudam a fazer isso. E é impressionante quão profundos e inesperados são os discernimentos que afloram à mente do praticante. Além disso, existem técnicas baseadas em imagens, ou no desenho, ou na leitura muito lenta de um texto, que permitem pensar não na forma habitual, não a partir do eu habilidoso, mas de outras partes da pessoa. O que é, o que entende por transsophia? Há várias tradições espirituais, sobretudo de inspiração religiosa. Que traz de novo a trans-sophia? Eu criei o termo “Trans-sophia” para lá da frustração com o tipo usual de prática filosófica que se limitava à análise lógica e à resolução de problemas. Foi a minha maneira de dizer: se a “filosofia” significa análise lógica para resolver problemas pessoais, então isto não é suficiente
para mim. Eu quero ir para além (“trans”) dos limites do que muitos profissionais consideram ser “filosofia”. É claro que às vezes eu uso a análise lógica, mas também faço contemplação de ideias. Também analiso experiências do quotidiano das pessoas e deteto padrões comportamentais e emocionais. Uso textos filosóficos e ideias para inspirar os aconselhados no sentido da auto-transformação. Reflito sobre experiências da primeira infância. Em reacção, alguns praticantes diziam-me: “Mas isso não é filosofia! A filosofia é sobre análise lógica, não trata de contemplação ou de autotransformação ou padrões emocionais.” Então eu respondia: Tudo bem, então vamos chamar ao que eu faço “trans-sophia “- além da filosofia! Em concreto, o que pode esperar uma pessoa que vai a um seu workshop sobre estes domínios? Se tivesse de responder numa frase, diria: nos meus workshops e nas minhas sessões exploramos a forma de abordar as questões fundamentais da vida, a fim de nos abrirmos a horizontes mais ricos da vida. Creio que continua um projecto com Cármen Zavala. De que trata? Sim, estamos a preparar uma escola internacional online de prática filosófica. Estou a fazer isso com Carmen Zavala, do Peru, com Jon Graziano, de Itália, e Leon de Haas, da Holanda. Estamos a construir cursos de prática filosófica que possam ser feitos em linha em várias línguas. Cada unidade neste curso irá conter vídeos de entrevistas com praticantes de filosofia, além de fóruns de discussão, e exercícios. Na verdade, nós já começámos a entrevistar praticantes por esse mundo fora incluindo, claro, em Portugal: Alves Jana, Jorge Dias e Rosa Fernandes Oliveira. O objetivo não é anunciar a MINHA abordagem da prática filosófica, mas sim criar um espaço pluralista para as muitas “vozes” da prática filosófica que existem hoje. Há algo de muito poderoso numa “sinfonia” de muitas vozes diferentes. Eu não quero ser a única voz, eu ||||||||||||||FILOSOFalando
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quero ser um “violino” num grande e belo concerto. É por isso que nós queremos criar este espaço, e reunir a experiência e sabedoria de muitos praticantes ao redor do mundo. Nós também queremos curar este campo das divisões e lutas de poder que nos têm afligido. E, é claro, queremos ensinar às pessoas as potencialidades da prática filosófica. Quais são os seus filósofos de referência, aqueles que mais o inspiram no seu trabalho de prática filosófica? Eu inspiro-me nos pensadores que, ao longo da história da filosofia, abordaram a autotransformação. Esses pensadores acreditavam que a filosofia pode ajudar a transformar-nos, ou pelo menos mostrar-nos a direção que devemos tomar. Penso em filósofos como Platão, Marco Aurélio, Espinosa, Rousseau, Emerson, Nietzsche, Bergson, Buber e muitos outros. À primeira vista, parecem muito diferentes uns dos outros, mas na verdade todos eles são movidos por uma visão muito semelhante: que a vida normal é limitada, superficial, fragmentada, automática, mas que é possível transformar a vida e torná-la mais rica, mais profunda, mais completa. Eu chamo a esses pensadores Filósofos Transformacionais. Para mim, esses filósofos mostram-nos uma visão profunda da prática filosófica. E quais são, para si, os praticantes de filosofia aplicada de quem se sente mais próximo presentemente no mundo? E porquê? É difícil para mim dar nomes específicos. Mas eu diria que são meus companheiros todos os praticantes de filosofia que buscam transformar a vida e torná-la mais completa e mais profunda. As suas ideias e os seus métodos podem ser muito diferentes do meu, mas se o seu objetivo é edificar a vida e aprofundá-la, então estamos juntos na mesma caminhada.
Como está o movimento da prática filosófica no mundo actual? Temos de admitir, penso eu, que a prática filosófica ainda está a nascer, está ainda a explorar as suas potencialidades, ainda a procurar a sua voz. Não é por acaso que a prática filosófica não é popular em nenhum país do mundo, e não há muitas pessoas sequer a saber de nós. Eu acredito que um grande
são meus companheiros todos os praticantes de filosofia que buscam transformar a vida e torná-la mais completa e mais profunda. problema é que muitos praticantes de filosofia são tentados a seguir o modelo da psicologia. Querem dirigir-se às mesmas pessoas que procuram um psicoterapeuta. À semelhança da psicologia, eles querem transformar a filosofia numa ferramenta para resolver problemas e para fazer as pessoas sentirem-se melhor e a viver uma vida funcional, “normal”. Temos de compreender que o papel da filosofia ||||||||||||||FILOSOFalando
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não é “normalizar” as pessoas ou fazêlas sentirem-se contentes e satisfeitas. Isto certamente não é a filosofia de Sócrates ou Rousseau ou Nietzsche. A filosofia, por natureza, pretende sacudir-nos da nossa auto-satisfação, quebrar as paredes da nossa caverna platónica, provocar-nos, inspirar-nos a buscar novos horizontes. Queremos apelar às pessoas que estão a tentar encontrar sentido na vida, e não às pessoas que estão à procura de encontrar soluções satisfatórias para as suas vidas. Eu acredito que, quanto mais os praticantes de filosofia seguirem o caminho da psicoterapia, quanto mais tentarem resolver os problemas e normalizar as pessoas e as fizerem sentiremse satisfeitas, mais continuaremos a ser um movimento insignificante no mundo. Temos que ser mais ousados e provocadores, temos de ser verdadeiros desbravadores de caminhos e verdadeiros rebeldes, caso contrário não vamos sobreviver por muito tempo. Mas eu estou otimista. Acredito que, apesar das tendências conservadoras do nosso campo, novas direções vão desenvolver-se no futuro. Como foi a sua [recente] presença em Portugal? Eu adorei Portugal e adorei o povo português. Houve algo de muito humano e pessoal e terno na atmosfera, mesmo nos raros casos em que as pessoas se comportavam indelicadamente. Por exemplo, eu tive que ir para o hospital por causa de uma pequena infecção num polegar, e toda a gente - do guarda até ao médico – me tratou como uma pessoa. Eu não era um “caso”, mas uma pessoa, até mesmo para um funcionário que estava frustrado [frustrated] comigo. Eu, definitivamente, vou visitar Portugal de novo, espero que muito em breve. Bem vindo, caro Ran Lahav. Cá o esperamos. Até breve, então. Welcome, dear Ran Lahav. We are waiting for you, soon.
Aconselhamento Filosófico (AF) contributo para uma cronologia, por Alves Jana
Para uma melhor leitura da entrevista a Ran Lahav, bem como outros textos já antes aqui publicados, deixamos um esboço de cronologia sobre Aconselhamento filosófico ou Philosophical counselling ou Philosophical practice ou Philosophische Praxis und Beratung ou Asesoramiento filosófico ou Orientación filosófica ou … que são várias das designações em uso. Pré-história 1967 – John van Veen, na Holanda, abre uma consulta com incursões claramente filosóficas 1974 – Paul Sharkey trabalha como orientador filosófico em Filadélfia 1980 – Seymon Hersh escreve o primeiro (pequeno) artigo sobre o tema no The Humanist, “The counseling philosopher” História 1981 – Gerd B. Achenbach abre a primeira consulta filosófica, reconhecida como o início do AF 1982 – Gerd B. Achenbach cria a Associação Alemã para a Prática Filosófica, com 10 associados 1984 – O grupo de Amsterdão para a filosofia prática é fundado, na Holanda, e Ad Hoogendijk abre a primeira consulta de filosofia no país 1984 – Gerd B. Achenbach publica Philosophische
praxis, a primeira obra sobre o tema, reeditada em 1987 1987 – Petra von Morstein é entrevistado pelo Calgary Herald (11 setembro) 1988 – Ad Hoogendijk é entrevistado pelo Internationl Herald Tribune (16 setembro) 1988 – Fundação por Lou Marinoff da The American Philosophical Practitioners Association (APPA) 1989 – Ida Jongsman, holandesa, cria o “Hotel do Filósofo”, um lugar de reunião e discussão filosófica de fim-de-semana 1989 – Criação do Centro Sophon em Israel 1989 (?) – Criação da Israeli Society for Philosophical Practice and Counseling 1992 – A Associação Alemã para a Prática Filosófica converte-se na Internationalen Gesellschaft für Philosophische Praxis, com mais de 170 membros 1992 – Marc Sautet cria, em Paris, “Le cabinet de Philosophie” e o primeiro café filosófico, no Café des Phares, praça da Bastilha 1992 (?) - Steven Seagal e Barbara Norman criam na África do Sul o Instituto para a Arte de Pensar 1993 – O AF chega à universidade pela mão de Ran Lahav, na Escola Universitária de Educação da Universidade de Haifa, Israel 1994 – Primeiro Congresso Internacional de Filosofia Prática, no Canadá, Universidade de British Columbia, organizado por Ran Lahav e Lou marinoff 2004 – Criação da Associação Portuguesa de Aconselhamento Ético e Filosófico
A Filosofia na Vida
alves jana
filosofia
como um Fazer do Mundo
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A filosofia tem um problema genético. Nasceu num mundo onde os homens não tinham de fazer o mundo, seja porque isso era “trabalho de escravo”, seja porque o mundo era dado numa ordem eterna e imutável. E o problema continuou na Idade Média quando se encontrava entregue ao clero. Na modernidade, o problema manteve-se, mas foi aí que começou a mudar.
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Lembremo-nos de que a historicidade do mundo apenas foi “descoberta” recentemente. Hegel (Secs. XVIII-XIX), Darwin (Sec. XIX)e Edwin Hubble (Sec. XX) são alguns marcos simbólicos. Hoje sabemos que o mundo é em si mesmo processo e cabe a nós fazermos alguma coisa a partir daquilo que, em cada lugar e momento, ele é. Temos a tarefa de (re)fazer o mundo que nos faz.
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A filosofia não pode ser dita apenas como uma “contemplação” da Verdade eterna e imutável, mas como participação na (re)construção do mundo. O mundo não é apenas um facto, um feito, mas também uma constelação de possíveis. Fazer o mundo é estar aí, no mundo dado e feito e fazer emergir os possíveis e obstar os inadmissíveis.
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Fazer o mundo é uma tarefa de todos e a filosofia tem aí o seu lugar. Se não o ocupar, ele fica vazio. E como a sociedade tem “horror ao vazio”, ele depressa será ocupado por outros.
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Quando eu era jovem (anos 60), um professor deu-me uma definição de “cultura” que ainda hoje vejo como atual: cultura é saber quais são os problemas do mundo e saber quais as soluções para eles. Se substituirmos o termo “solução” por “que fazer”, temos a questão bem colocada. Quando eu era jovem professor a fazer a profissionalização (anos 80), o meu orientador perguntou-nos qual o lugar da filosofia na escola. Na escola, não no currículo nem na sala de aulas. Em Abrantes, onde esta revista tem raízes na água, pelo menos desde os anos 70 que a filosofia tem, de vários modos, um papel na cidade. Não um lugar especial de condução, mas de com-laboração.
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O mais importante da filosofia não é o que os filósofos disseram, mas a vida que é a nossa com os problemas que temos
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de enfrentar. Filosofar é, então, uma das formas de equacionar os problemas da vida, perspetivar as respostas e procurar que estas influam no refazer do mundo, que é um trabalho coletivo. O património filosófico de 2.500 anos não perde, em nada, o seu valor e a sua pertinência. Ele é essencial para perceber os problemas, para os formular ou equacionar, para resolver as eqações e para fazer chegar as respostas ao estaleiro do mundo.
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É na escola e na administração local, na família e na comunicação social, no tribunal e na empresa, na intervenção cultural e na vida privada, na pintura de um quadro ou na recolha do lixo… que se colocam e se resolvem de um certo modo os problemas filosóficos, porque é aí que estamos a fazer o mundo. E como os sistemas caóticos se caracterizam pela instabilidade em todos os pontos, é em cada um dos lugares do mundo que se dá forma ao mundo e se decide o futuro.
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Não se trata de reduzir a filosofia a uma praxis no mundo. Nem sequer de diminuir a importância da reflexão teórica ou da investigação fundamental. Trata-se, sim, de enriquecê-la com uma dimensão que, pelo menos entre nós, tem andado um pouco esquecida: a nossa responsabilidade filosófica no fazer do mundo. Ou melhor: do refazer do mundo. Que, bem vistas as coisas, sempre foi uma tarefa também da filosofia. Que o digam Sócrates e tantos outros.
9
Apesar disso, a tradição, sobretudo académica, tem vindo a reforçar a tese de que só há filosofia sob a forma de texto. Por isso, filosofar é escrever um texto escrito. Mas, se há nisso alguma razão, não está lá toda a razão. O grande texto que continuamente (re)escrevemos é o da cidade dos homens, o do mundo humano construído a partir do e por dentro do mundo natural.
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Uma escola ou uma empresa, por exemplo, são objectivações de uma filosofia, ou melhor, de um cocktail delas. Ali estão respondidas sob a forma de praxis, isto é, sob a forma de vida, todas as questões da filosofia: o que podemos saber? o que devemos fazer? o que podemos esperar? enfim, o que é o homem? isto para adoptar a conhecida síntese por Kant. Por isso é que é na escola e na empresa, mas não só, é claro, que os “verdadeiros” problemas filosóficos se colocam e precisam de ser respondidos. E quando a filosofia levanta voo e sai do mundo… torna-se uma atividade “do outro mundo”.
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A sociedade é-nos, de algum modo sempre dada, pois sempre nos encontramo num mundo já constituído. Mas nunca nos é garantida, pois só se mantém na medida em que um dia após o outro mantemos em vigor – ou não – aquilo que está dado. Uma greve é um exemplo de suspensão do que está, é a demonstração de que é pelos nossos atos, sempre, que o mundo humano se reproduz e é mudado. Sempre de um certo modo e não de outros. A cidade dos homens e mulheres, das instituições e dos projetos de futuro, enfim o mundo humano, é o grande texto em que a filosofia é chamada a inscrever a sua laboração. Isto em nada diminui ou sequer secundariza o texto escrito do discurso filosófico específico, pois sem este não há discurso filosófico no mundo. Um não substitui o outro.
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Sabemos como é fazer filosofia sob a forma de texto escrito, ainda que por vezes seja preciso um olho clínico para detetá-la em certas formas de texto. Mas temos de perguntar quais são os modos de estar da filosofia, de fazer filosofia, na escola, na empresa, na rádio, na família, na vida de uma pessoa… É certo que esses ‘sempre’ foram lugares da filosofia como atividade, como praxis. Que o digam, mais uma vez, Sócrates e tantos outros. Mas “todo o mundo é composto de mudança” e mais hoje que no tempo de Camões “não se muda já como soía.” Por isso, é importante descobrir as “novas práticas filosóficas” no mundo de hoje e criar as que ainda estão em falta para que a filosofia se cumpra com um fazer do mundo.
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A Filosofia, a cooperação e o altruísmo
utensílios determinantes do desenvolvimento humano,
das organizações e do sentido da tolerância luislmb@gmail.com
LUÍS MARQUES BARBOSA
Parte I Educação, Ensino e Formação profissional, esteios fundamentais
De facto perdeu-se a força da geração mais bem formada que Portugal já alguma vez possuiu. Parte II - organizar a cooperar
Este texto é uma adaptação do conteúdo de um seminário dado por nós na “ui&de”, Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Enfermagem de Lisboa, onde efectuamos actividades de investigação. O seminário serve de suporte ao programa de actividades do “Observatório de desenvolvimento humano e profissionalidade”, de que somos responsáveis. Um dos objectivos dos nossos cursos e seminários é mostrar como a institucionalização da assistência educacional, em redes de apoio social, pode contribuir, não só para o desenvolvimento humano, mas também para o desenvolvimento de organizações, lugares e regiões. O tema é-nos realmente muito caro, e foi já objecto de publicação na Alemanha, num livro titulado “Europa Forum Philosophie 62”, editado pela Association Internationale des Professeurs de Philosophie, em 2014. A problemática que encerra é de resto desenvolvida em profundidade, precisamente quando atacamos o problema da “Extensibilidade do si» e “Da ajuda ao outro” no quadro do que chamamos formação para as “atitudes de cidadania”, e quando propomos que se estude a relação estreita entre questões de altruísmo e de cooperação.
Partindo do diagnóstico anterior parece não ser difícil perceber por que afirmam certos governantes que, se o Portugal não se move correctamente hoje, na senda internacional, é porque os seus cidadãos sabem pouco, trabalham mal em grupo e não possuem competências para trabalhar em equipa. E dizem-no com desfaçatez, como se a esse fenómeno muitos deles não estivessem ligados. Tornou-se então normal ouvir dizer que uma das causas dos incêndios desastrosos tem a ver com o facto de os bombeiros não estarem prontos para trabalhar em equipa. É comum ouvir-se que algumas das falhas nos hospitais têm a ver com a mesma “deficiência”. Diz-se que se o trabalho nas escolas é ruim é porque os professores não trabalham como uma equipa, e é corrente afirmarse que se a equipa nacional de futebol não ganha é porque alguns dos seus jogadores são muito individualistas. De vários estudos efectuados podemos contudo extrair um facto concreto, se numa qualquer sociedade, o mundo do trabalho é organizado, sem a preocupação de combater as doenças anteriores, é porque essas sociedades têm já o seu tecido social corroído pelos germes da doença do individualismo. P$$ensando que a nossa sociedade está já de há muito, constrangida por esta doença, achamos então que o memento é de agir. Assim, como investigadores da unidade de investigação acima referida vimos procurando deixar a nossa marca. Por isso actuamos em empresas, em escolas, em hospitais, em tribunais e em associações diversas, tanto no mundo da enfermagem como no da Educação, e função do exposto temo-nos movido de forma a sensibilizar funcionários de níveis diversos para o que chamamos de “Pedagogia da ajuda ao outro”. Do ponto de vista social é uma intervenção com forte componente cívica e muito orientada para a problemática da negociação contratual, seja ao nível de grupos empresariais seja no que se refere à criação de meras competências pessoais.
Trata-se de uma formação fácil? Não. Entre outras razões não apenas porque a proliferação do individualismo, que cresce como erva daninha, está a minar a base do conhecimento, mas também porque a falta de preparação básica, de muitos dos utentes dos cursos, para o chamado trabalho em grupo, impossibilita a organização do trabalho em equipa. Uma das lacunas que se tornou bem notória está ligada aos baixos índices de motivação para trabalhar em conjunto. Logo, cooperar partilhadamente as vicissitudes da vida profissional, vem-se tornando dificuldade acrescida. Em consequência, são frouxas as atitudes altruísticas. O problema tornou-se uma chaga social. A ele está certamente não só ligada a paralisia do sistema de ensino mas também, o retrocesso significativo na formação profissional. ||||||||||||||FILOSOFalando
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Esta formação centra-se em cinco áreas de preocupação: Ajudar indivíduos e organizações a clarificar as suas necessidades de intervenção e formação. Auxiliar na criação de atitudes cooperativas. Incentivar comportamentos altruístas. Introduzir atitudes de tolerância. Adquirir mestria no chamado diálogo contratual orientado para a concertação de interesses partilhados. Talvez para muitos, os temas anteriores se pareçam com “slogans” de campanha política, ou com questões filosóficas e académicas sem espelho. No entanto, para nós, tal não é assim. Já que fazer com que os indivíduos de uma sociedade se habituem a partilhar sentimentos e expectativas que trazem na alma, face ao mundo e às situações que enfrentam, exige muito respeito pelo outro, prazer em partilhar interesses e claro está sentido da tolerância. São competências essenciais para que necessidades individuais se transformam, em eixos comuns de acções conjuntas. Fácil esta tarefa? Mais uma vez não. Mas facto é que dela todos, mas mesmo todos, precisamos. Luís Barbosa Nota: este texto foi concebido a partir do conteúdo inscrito em: Barbosa, L.M. Desenvolvimento Humano e Profissionalidade – M.I.D.O.S.T., seminários; Lisboa; ui&de/Âncora editora, pags. 189/215)
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… há uma séria de sinais, não ainda suficientes a meu ver, que indicam que as coisas estão a mudar no bom sentido: as grandes companhias sabem que os seus ganhos futuros dependem da preservação do meio ambiente. Então, eu respondo: há 51% de hipóteses de que vamos resolver os problemas do mundo, e apenas 49% de que vamos destruir o planeta.
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Jared Diamond, Philosophie Magazine, Maio 2014
A filosofia na empresa Alves Jana
Giro, logo existo “A ideia de escrever um livro que procura na Filosofia alguma aprendizagem a ser utilizada no mundo da Gestão, tem como razão de ser a tentativa de encontrar saídas para uma forma de gerir mais convencional, mais arreigada a paradigmas de estabilidade que recorrem, exclusiva e quase sistematicamente, a um modelo de racionalidade que deixa em aberto e sem resposta, muitos problemas que outros modelos pod4erão ajudar a resolver.” Assim explica a autora, Catarina G. Barosa (p. 13), como partiu para as seis entrevistas, que compõem o livro, a José Barrientos-Rastrojo, Joana Rita Sousa (que já encontrámos nestas páginas), António Castro Caeiro, Manuel Curado, Maria Luísa Ribeiro Ferreira e Miguel Real. Entrevistas “à procura de ajuda filosófica para a Gestão” (p. 13). No fundo, podemos sintetizar a procura da autora nesta pergunta: faz sentido a figura do conselheiro filosófico numa empresa? Se sim, para fazer o quê? A sensação com que se fica é que os dois primeiros entrevistados dão alguma ajuda, os outros nem sequer sabem bem do que se trata. Mas isso é natural e representa o estado da questão entre nós. Mendo Henriques, que assina o prefácio, diz que Adam Smith “concentrou-se nos meios da existência humana e suspendeu o debate das respetivas finalidades” e que, por isso, há qualquer coisa que importa recuperar para a Gestão. Mais uma razão para se ler esta indagação feita por alguém que é licenciada em Direito e estava a concluir a sua licenciatura em Filosofia e a trabalhar na área da Gestão, editada no final do ano passado.
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Catarina G. Barosa, Giro, logo existo: A filosofia pensa a gestão, Tema
Central, 2013.
A filosofia na empresa Alves Jana
Se Aristóteles fosse administrador da General Motors “Acredito que algumas ideias simples mas poderosas extraídas de Aristóteles e de muitos outros grandes filósofos do passado poderão dar novas energias às nossas formas de trabalhar, revigorar os nossos locais de trabalho e reinventar o espírito empresarial do nosso tempo.” Assim fala Tom Morris, o autor (p. 12), que foi professor catedrático de filosofia em Notre Dame (USA) mas que um dia foi convidado para “efectuar uma palestra sobre ética para um grupo de jovens empresários e líderes cívicos da cidade”. A partir daí, a sua vida mudou: “Viajei por todo o país, com viagens paralelas ao estrangeiro, para falar a grupos grandes e entusiastas de pessoas reais fora do ambiente académico sobre tópicos como sucesso, ética, felicidade, satisfação pessoal, vida empresarial, excelência criada em conjunto, e o significado de tudo.” (p. 25) O livro é resultado dessa experiência. A tese geral é simples. Às quatro dimensões básicas da experiência humana, intelectual, estética, moral e espiritual, correspondem quatro bases da excelência humana, verdade, beleza, bondade e harmonia. Esta, então, encontrada “a chave para redescobrir a satisfação pessoal no emprego e para reinventar o espírito empresarial na nossa era.” (p. 46). Não há como ler e testar. O livro é de 97 e foi publicado entre nós em 2009.
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Tom Morris, Se
Aristóteles fosse administrador da General Motors: A alma do negócio , D. Quixote, 2009.
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Se a nossa capacidade de julgar e agir moralmente subsiste sem referência a deus, repousa sobre o quê? Jared Diamond, Philosophie Magazine, Maio 2014
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clube de filosofia de abrantes O Clube de Filosofia de Abrantes nasce em 2012, quando quatro filósofos aposentados decidiram que queriam fazer alguma coisa no domínio da Filosofia em Abrantes: Alves Jana (coordenador), Luís Barbosa, Mário Pissarra e Nelson Carvalho. A ideia surgiu na sequência da publicação da Revista Filosofalando nº 1. A verdade é que a 3 de Setembro desse ano, o Clube veio a público justamente fazendo a apresentação do nº 2 da revista, a partir do qual os membros do Clube passaram a assumir o tema da revista. A primeira actividade a seguir-se foi uma série de sessões, de Outubro a Novembro, com os partidos representados na Assembleia Municipal (BE, CDS, CDU e PS; PSD recusou), não sobre política local, mas sobre o seu pensamento político. Pretendia-se “dar a palavra” aos partidos e criar um momento de encontro e diálogo, afirmando desde o início a importância da política, do pensamento político e mesmo dos partidos como sujeito colectivo. As conferências continuaram no ano seguinte, de Janeiro a Junho de 3013: “Nova Pobreza - Efeito da Globalização?”, Alexandre Evaristo ; “Identidade pessoal e interfaces virtuais: do humanismo à cibernética”, com Renato Martins; “Para onde vamos? Transitologia e Filosofia Política: da Primavera Árabe à crise das Dívidas Soberanas”, com Tiago Lopes; ”Reforma do sistema político”, com Nelson Carvalho e Santana-Maia Leonardo. Entretanto, em Fevereiro de 2013 começou o café filosófico semanal. A ideia foi pegar em “palavras” de uso comum, que nos surgem nas conversas e na comunicação social e refletir a partir delas em conjunto. Ficou claro desde o início: não é uma conferência, não é uma aula, não é uma exposição sistemática, não é uma cátedra onde os filósofos vão debitar o seu discurso. É um lugar onde as pessoas vão refletir entre si. O método adotado foi simples: uma exposição inicial de 20m seguida de intervenções curtas de todos os que o desejassem em pé de igualdade. Todas as segundas feiras, das 21h00 às 23h00, num café da cidade que aceitou acolher o projeto. Até hoje, com interrupção no Natal e no Verão. Foram já abordadas as seguintes “palavras”: crença, estratégia, ciência, liberdade, verdade, felicidade, consciência, poder, crise, responsabilidade, autoridade, globalização, esquerda / direita, ideologia, competição, energia, ser criança, geopolítica, crise, ética, saúde, desenvolvimento (humano), depressão, meritocracia, produtividade, (des)igualdade, envelhecimento, euro, apego (relação de), utopia, solidariedade, responsabilidade (social das empresas), cidade, crítica, certeza, solidão, cultura e sistema. As apresentações iniciais foram, na grande maioria, asseguradas pelos membros do Clube, mas foram também feitas por outras pessoas: um professor de educação física, um sociólogo, uma antropóloga, um terapeuta, um advogado, um gestor e um empresário. ||||||||||||||FILOSOFalando
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clube de filosofia de abrantes O modelo adotado tem como objetivo pôr em comum diferentes perspectivas. E, por esse pôr em comum, cada um descobrir outras abordagens, outros pontos de interesse que não tinha em consideração por si mesmo e sozinho. Trata-se de uma “investigação filosófica de café”, que começa por aí, por perceber – com os outros – que há outras abordagens possíveis, que é necessário ter em conta outros pontos de vista. Deste modo se é “obrigado” a pensar a partir das diferenças manifestas. Além disso, os contributos dos outros dão perspectivas de exploração em novas direcções e mesmo pistas de resposta tanto para as questões que cada um já transporta, como para as novas questões que se abrem entre os diferentes contributos. Não é propósito do café filosófico chegar a um consenso final. Nem sequer, no modelo que praticamos, se pretende submeter a exame os contributos de cada um, embora isso possa acontecer. O café filosófico que praticamos não visa tanto os conteúdos, numa perspectiva de posição final encontrada. Visa, sim, as pessoas, enquanto capazes de pensar, e sujeitos já de pensamento que trazem para o encontro. E visa, é claro, o encontro entre as pessoas. E nesse encontro contribuir para contrabalançar as muitas tendências para o fechamento, para o isolamento, para a hostilidade entre pessoas de pensar diferente, para o atomismo social. E, por essa via, justamente porque isso se processa através do exercício do pensar em conjunto, contribuir para uma sociedade mais fecundada por esse exercício de pensar.
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Uma sessão do Café Filosófico
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clube de filosofia de abrantes O número de participantes andou numa média de uma dúzia por sessão, tendo os extremos baixado a sete em dias difíceis, por exemplo de muita chuva e frio, e subido a mais de vinte. Entretanto, no segundo ano (2013-14), explorámos no café filosófico duas inovações. Já antes tínhamos uma outra atividade, o Livro do Mês. Na rádio local, o Clube sugeria a leitura de um livro e falava dele durante duas horas num programa mensal. A conversa podia ser entre os membros do Clube ou com convidados e era mais a partir do livro que sobre o conteúdo do livro, por isso podiam participar pessoas que não tivessem lido a obra recomendada. Ora bem, a partir de Outubro de 2013, passámos a dedicar a última sessão do café filosófico ao livro que tinha sido escolhido para esse mês. Assim, consersámos ao vivo a partir de: Ciência e Liberdade. Democracia, Razão e Leis da Natureza, de Thimothy Ferris; O animal social, de David Brooks; O preço da desigualdade, de Joseph E. Stiglitz; O Príncipe, Maquiavel; O que aprendi no caminho para o topo, Nuno Gomes; Foco, Daniel Goleman; Austeridade: A história de uma ideia perigosa, de Mark Blyth; As leis fundamentais da estupidez humana, Carlo Cipolla. Outra experiência no café filosófico partiu de um desafio natural. O Clube de Filosofia é um lugar de reflexão e conversa, onde tantas vezes são referidos os nomes dos filósofos. Não parece razoável que os filósofos enquanto tal fiquem completamente ausentes. E se experimentássemos dar a conhecer, ainda que sujeitos às condições disponíveis, um ou outro filósofo? Vamos a isso! Mesmo correndo riscos vários, incluindo o que a sessão não resultar. Foi assim que, ao longo deste ano foram abordados Descartes, Kant, Wittgenstein e John Rawls. E foram sessões muito animadas, muito participadas. A ponto de termos já decidido que no próximo ano vamos reforçar esta componente. Não já “do” Clube, mas da responsabilidade de membros do Clube, passam na rádio local duas rubricas semanais. Filosofalando (retransmitida por outras rádios) e Salpicos de Cultura. São mais dois contributos. Toda esta atividade tem já um pouco de sobrecarga. Foi por isso que as conferências foram deixadas de lado e também por isso o Clube de Filosofia de Abrantes vai baixar no próximo ano a intensidade da sua programação. O balanço geral é positivo para os membros formais do Clube e para os participantes das sessões. Pelo menos é o que dizem.
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Alves Jana (coordenador)
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