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Textos e Contextos Publicação Semestral do Centro Universitário da Bahia – FIB

Centro Universitário da Bahia – FIB Reitor Nelson Cerqueira Pró Reitor de Graduação Tomm Joe Elliott Pró Reitora de Pesquisa e Pós Graduação Sylvia dos Reis Maia Pró-Reitor de Arte e Cultura Heitor Reis Pró Reitor de Administração e Finanças Antônio Mário Nunes Laranjeira da Silva

Editora FIB Coordenação Editorial Maria Vicentini Apoio Técnico Marcela Thuillier

Comitê Cientifico Dante Galleffi – FACED/ UFBA Dyane Brito – FIB Lindinalva Rubim – FACOM/ UFBA Milton Moura – FFCH/ UFBA Rosanita Baptista – Escola de Saúde Pública / SESAB Roseli Amado – FIB Vilson Caetano – FIB (coordenador científico desta edição)

Ficha Catalográfica Catina Cerqueira Revisão Shaula Sampaio e Lys Mireia Santanche Revisão de Inglês Elisabeth Elin Dahlstrom Foto da Escultura Catálogo Mestre Didi (doação do artista) Escultura Òpá Osanyin Nilá Ati Igba - 1993 - Mestre Didi Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica AmaisD amaisd@gmail.com Impressão EGBA


ISSN 1679-2041

TEXTOS E CONTEXTOS

SALVADOR

ANO 3

Nยบ 3

96 P.

JAN/JUN 2005


Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, jan/jun 2005

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, cientifico e cultural. Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.

B Textos e Contextos / FIB - Centro Universitário da Bahia. Ano. 3, n.3 (jan./jun., 2005) –. – Salvador: Editora FIB, 2005. Semestral ISSN 1679-2041 1. Cultura brasileira 2. Educação 3. Produção acadêmica – Periódicos I. FIB-Centro Universitário da Bahia. CDD 306.0981

Endereço: Editora FIB Rua Xingu, 179 – Jardim Atalaia – Stiep 41770-130 – Salvador – Bahia – Brasil Telefone: (71) 2107 8313 Fax: (71) 2107 8322 E- mail: revistatextosecontextos@fib.br / vicentini@fib.br Tiragem: 100 Exemplares


Sumário

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Editorial

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Apresentação

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As Diversidades Juana Elbein dos Santos

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Diversidade Cultural e Educação Mestre Didi: Educador Contemporâneo Narcimária Correia do Patrocínio Luz

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Diversidade Cultural e Democracia Milton Moura

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É pobre porque é negro e é negro porque é pobre: A triste imposição do racismo brasileiro. Vilson Caetano de Sousa Júnior

47

O Ser Negro: candomblé, imaginário e estereótipos verbais Cecilia Soares

57

Costumes afro-brasileiros e o projeto de europeização no contexto de Salvador* Taynar Pereira

67

Inquietudes: capital social, direitos humanos e questões de raça? José Raimundo J. Santos

77

Entre a lei e a desordem: escravos e forros em Itaparica na segunda metade do século XIX Wellington Castellucci Junior

87

Viagens científicas no Brasil oitocentista: a diversidade racial na construção da identidade brasileira Olívia Biasin Dias


Summary

7

Editorial

9

Introduction

13

The Diversities Juana Elbein dos Santos

17

Cultural and Educational Diversity: Mestre Didi, Contemporary Educator Narcimária Correia do Patrocínio Luz

29

Cultural Diversity and Democracy Milton Moura

39

Black, therefore poor; poor, therefore black: The sad imposition of Brazilian racism Vilson Caetano de Sousa Júnior

47

Being Black: Candomblé, imaginary and verbal stereotypes Cecilia Soares

57

African-Brazilian Customs and the “Europeization” process in Salvador Taynar Pereira

67

Anxieties: Social capital, human rights, and racial issues José Raimundo J. Santos

77

Between Law and Disorder: Slaves and freed slaves in Itaparica during the second half of the 19th century Wellington Castellucci Junior

87

Scientific Journeys in 19th century Brazil: Racial diversity in the creation of Brazilian identity Olívia Biasin Dias


EDITORIAL /EDITORIAL

A necessidade de melhorar a compreensão pública sobre a Ciência, a busca pelo fortalecimento do sistema de avaliação das revistas científicas, a autonomia do campo científico e sua inserção em benefício da sociedade, são apontados como importantes fatores que levam a considerar que a produção de artigos é uma das finalidades essenciais dos pesquisadores e membros de laboratórios de pesquisa. O espaço acadêmico apresenta-se como local adequado para a produção e transmissão de conhecimento, aliando ensino, pesquisa e extensão. Buscando interpretar o mundo através dos textos e seus contextos as pesquisas desenham tendências, repensam conhecimentos, fazem emergir celeumas, adicionam ingredientes para que o ser humano interpele constantemente e de forma dinâmica a sua relação consigo mesmo e com o meio ambiente. A inserção da pesquisa na instituição universitária revela o seu compromisso em produzir e disseminar o conhecimento, situando no momento contemporâneo as alternativas de interpretação, inserindo questões que merecem ser estudadas e re-conceituando as evidências e abordagens. A Revista Textos & Contextos consolida sua integração no ambiente acadêmico do Centro Universitário da Bahia – FIB, reunindo artigos de pesquisadores da FIB e de outras instituições do estado analisa e discute assuntos de interesse educacional, cientifico e cultural da atualidade. Nesse sentido, o tema abordado neste número da revista Textos & Contextos – Identidade e Diversidade Cultural porta esta marca de origem, e mostra como o conflito com o Outro, com o diferente sempre esteve presente na história, e como a intolerância pode mudar os rumos de muitas vidas. Seja como for, a remontagem da identidade e da presença africana nas Américas, no Brasil e, mais particularmente, na Bahia é emblemática para a reconstituição da nossa memória e nosso patrimônio.

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APRESENTAÇÃO / INTRODUCTION

As culturas negras dispersas no Novo Mundo enfrentaram variados desafios frente aos diferentes contextos a que desde cedo foram expostas. As variadas matrizes culturais não somente percorreram caminhos diversos como também produziram respostas imprevisíveis. Também não deixaram de se defrontar com uma série de conflitos. Considerando estes aspectos, a Revista Textos e Contextos nº 03 reúne uma série de trabalhos em torno da temática: Diversidade e Identidade Cultural - conceitos que já vem sendo explorados em diversos campos científicos. O tema da Diversidade abre uma série de questões que vão desde a necessidade de assumir o outro como ele é às posturas políticas de inclusão de grupos sociais que, ao longo do processo histórico, têm ficado à parte do projeto mundial, ora porque é negro, ora porque é pobre, mulher, camponês, gay e assim por diante. Refletir sobre tal tema exige postura ética e também coragem de quebrar paradigmas que vêm fundamentando “as verdades” de pequenos grupos privilegiados que manipulam o poder econômico. É preciso, antes de tudo, denunciar que os problemas sociais mais específicos e que se repetem na maior parte das Américas - como a fome, a falta de moradia, o desemprego, a falta de assistência médica, a violência e os vários tipos de mortalidade - têm cor. Último a abolir a escravidão africana, o nosso país foi o primeiro a reivindicar para si a imagem de um paraíso racial. A negação do passado africano tem custado muito caro aos descendentes de africanos, sobretudo no que diz respeito à sua auto-estima e à construção de identidade. Este é, também, um dos temas que encontraremos neste número. É digno de nota que no conflitante mundo das relações raciais entre brancos e negros, retomando uma imagem muito revisitada por alguns pesquisadores, a cultura negra, melhor entendida no plural, vem dando respostas significativas, resultantes de inúmeras negociações, criações e recriações que, desde cedo, ocorreram com afinco. Prova disso são as inúmeras “expressões africanas” manifestadas no mundo da arte, da literatura, da religião, das formas de organização e produção do conhecimento. Diversidade: poesia é a essência de todos os povos, texto da antropóloga Juana Elbein, abre a discussão em torno do tema. A partir de passagens do cenário atual, a autora chama a atenção para as necessidades da compreensão da diversidade para além de diferenças biofísicas ou fenotípicas. Na mesma direção, a Professora Narcimária Correia do Patrocínio Luz, no seu artigo Diversidade Cultural e Educação, a partir da experiência educativa da Mini Comunidade Oba Biyi, fala sobre iniciativas possíveis de serem realizadas como caminhos para uma educação inclusiva mediante a inserção de elementos da cultura afro-brasileira. A partir do cenário sócio-cultural em que vivemos, profundamente marcado por uma série de relações e conflitos, o texto Diversidade Cultural e Democracia, do Professor Milton Moura discute os vários desafios colocados para a experiência da diversidade cultural

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na contemporaneidade. Um destes desafios é abordado no texto intitulado É pobre porque é negro e é negro porque é pobre, escrito pelo Professor Vilson Caetano. Este artigo aborda temas em torno do chamado “racismo brasileiro”, dos diferentes tipos de exclusão produzidos por ele e das chamadas ações afirmativas. O ser negro no Candomblé, texto de Cecília Moreira Soares, é uma reflexão sobre a identidade negra construída dentro das comunidades-terreiro, através da valorização da auto-estima. Segundo a autora, no contexto da religiosidade afro-brasileira, o ser negro possui conotação diferente daquele encontrado em situações cotidianas e conflitos corriqueiros associados ao racismo e ao preconceito. Em seguida, o artigo Costumes afro-brasileiros, de Taynar Pereira, traz uma reflexão sobre os movimentos negros contemporâneos e sobre como os negros têm valorizado a construção de suas identidades a partir da valorização de um passado histórico e de sua situação social como grupo estigmatizado. Tendo em vista a emergência de novos direitos e a perpetuação de modelos de exclusão racial, o Professor José Raimundo lança a pergunta que dá título ao seu artigo: Inquietudes: capital social, direitos humanos e a questão da raça? Neste texto, o autor aborda temas, como capital social, raça e exclusão racial. Entre a lei e a desordem: escravos e forros em Itaparica na segunda metade do século XIX, de Wellington Castellucci, é uma pesquisa histórica que discute as estratégias de luta dos escravos para alcançarem a liberdade. Além disso, o autor discute as mudanças econômicas ocorridas na ilha de Itaparica e o impacto do fim do tráfico de escravos na região. Por fim, Olívia Biasin Dias nos oferece um texto chamado Viagens científicas no Brasil oitocentista. Trata-se de uma leitura de como as imagens negativas sobre a miscigenação influenciaram a criação da chamada identidade brasileira a partir do século XIX. O tema “Diversidade e Identidade Cultural” pretende, assim, abrir este debate a partir de uma série de experiências que vêm acontecendo no seio das comunidades negras. Longe de querer esgotar o assunto, este número visa alimentar uma discussão que nos últimos anos vem ganhando fôlego por exigência do próprio Movimento Negro. Com isso, o tema em torno do qual os textos se agrupam não visa fornecer respostas nem encerrar questões, mas alimentar um diálogo que tem homens e mulheres negras como principais interlocutores e a cultura afro-brasileira como referência. Se estes debates não conseguirem trazer algumas respostas aos leitores, ao menos acenderão uma chama que lhes permitirá perceber o quanto é urgente a elaboração de conceitos baseados numa lógica diferente da que exclui e a reinvenção de relações baseadas, se não mais na igualdade, no direito à diferença e à diversidade. Boa leitura! Prof. Dr. Vilson Caetano de Sousa Júnior

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ARTIGOS



Diversidade Cultural e Democracia Breve Reflexão sobre os Desafios da Pluralidade Milton Moura*

RESUMO

Inicialmente, o texto trata de como é dramática a instalação da reflexão sobre a diversidade cultural nos países centrais, em virtude da visibilidade dos imigrantes das ex-colônias inclusive na expressão acadêmica. Em seguida, passa em revista algumas contribuições que apontam as dificuldades no âmbito das sociedades modernas no que diz respeito ao pluralismo. No final, propõe elementos para pensar a diversidade nos nossos dias, quando a cena sóciocultural alcança uma complexidade considerável e se transforma aceleradamente, colocando desafios para a experiência da diversidade cultural e para reflexão sobre este item.

PALAVRAS-CHAVE

Diversidade; Cultura; Contemporaneidade; Democracia; Pluralismo.

ABSTRACT

Cultural Diversity and Democracy First, this text deals with how dramatic the installation of reflection on cultural diversity is in the central countries, in the face of the visibility of immigrants from the former colonies, including in academic expression. Then it reviews some contributions which indicate the difficulties in the sphere of modern societies with respect to pluralism. Finally, it proposes elements to consider diversity in today, when the sociocultural scene reaches a considerable complexity and transforms rapidly, posing challenges for the experience of cultural diversity and for reflection on it.

KEY WORDS

Diversity; Cultural; Contemporaneity; Democracy; Pluralism.

(*) Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA.2001. Membro do Programa Multidisciplinar de Pós Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA, atuando como pesquisador no Grupo de Pesquisa O Som do Lugar e o Mundo.

Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, p. 29-38, jan/jun 2005

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Milton Moura

Na Antiguidade Clássica, não havia propriamente uma reflexão sobre processos culturais. A conceituação de cultura só vem acontecer no final do século XVIII, sobretudo a partir de pensadores alemães. Seria incorreto, assim, dizer que a discussão sobre a diversidade cultural data daquele período. Não o seria, contudo, afirmar que o problema da relação entre unidade e diversidade é tão antigo quanto a Filosofia. Na Metafísica, Aristóteles o coloca como um dos binômios fundamentais para a compreensão do mundo. Diversos autores, como JeanPaul Vernant (1976), vêem aí uma elaboração amadurecida sobre o dilema civilizatório grego: como compatibilizar uma cidade-estado forte e células constituídas pelos genos, organizadas como clãs? Este problema é formulado já desde as grandes tragédias, a exemplo da Antígona de Sófocles, cuja trama se dá em torno do impasse entre a prevalência da ética familiar ou da ética do grupo político ampliado. Ao longo dos séculos, este problema se coloca de diversas formas, alcançando importância singular na constituição das grandes religiões ocidentais. No Judaísmo, a constituição do povo de Israel, a partir da reunião das doze tribos, corresponde a um processo lento de negociação entre tradições próximas, que vieram a confluir na remissão a um texto sagrado fundante. Na história do Cristianismo, em diversas situações foi problemática a convivência de diferentes maneiras de compreender e viver a fé em Jesus. A própria catolicidade (literalmente, o que é para todos) era colocada em cheque cada vez que uma vertente se individualizava em demasia, colocando em risco a unidade da Igreja. O colonialismo capitaneado pelos ingleses e franceses a partir do final do século XIX representou um grande impulso para os estudos sobre a cultura. A Antropologia, como disciplina acadêmica, nasceu e se fortaleceu em virtude das demandas e investimentos dos metropolitanos no sentido de compreender aqueles seres humanos tão... tão diferentes. Afinal, seriam mesmo humanos? Em que medida? De que forma? Nos últimos vinte anos, tem se colocado com freqüência a temática da diversidade cultu30

ral. Não somente a Antropologia, como também os estudos de Literatura Comparada e da Sociologia do Desenvolvimento desempenharam aí um papel significativo. Ora, uma reflexão exigente sobre a diversidade cultural demanda, inicialmente, discutir o modo pelo qual a pluralidade cultural se coloca, no mundo contemporâneo, como objeto sobre o qual se debruça um número considerável de estudiosos. A ênfase com que essa diversidade vem se impondo à consideração dos pesquisadores parece decorrer, em boa medida, da própria transformação demográfica verificada na configuração social dos países centrais, a partir dos anos sessenta, com o advento de contingentes numerosos de migrantes de suas ex-colônias. Este movimento, que alcançou seu clímax nos anos setenta e oitenta, teve como resposta, em termos políticos, a criação de dificuldades, às vezes extremas, ao fluxo migratório antes mesmo da virada do milênio. Entretanto, esta não é uma dinâmica de mão única. Um dos aspectos mais interessantes desta transfiguração étnicocultural dos países centrais é a presença de intelectuais oriundos de regiões periféricas ou de setores acadêmicos ainda não consolidados. Quando se observa a preeminência de Stuart Hall, negro e jamaicano, que se estabeleceu como referência na vetusta Inglaterra, não se deve perder de vista sua forma de inserção na cena acadêmica. As pesquisas de Hall decolaram devido à própria necessidade de integração de migrantes e seus descendentes à sociedade inglesa, sobretudo no âmbito da educação. A partir desta experiência na Universidade de Birmingham, nos anos setenta, os Centres of Cultural Studies começaram a surgir em diversos países. Diversos outros pesquisadores, como os indianos Homi Bhabha, Gaiatri Spivak e Arjun Appadurai e o ganense Kwame Appiah, apresentam trajetórias semelhantes. Por sua vez, o historiador britânico Paul Gilroy é negro e sua identificação com a estética rastafari soa muito distante do que se esperaria de um intelectual de seu nicho acadêmico. O que poderia unificar estes autores do ponto de vista do lugar existencial, que se entrelaça com o lugar geográfico e o lugar acadê-

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Diversidade Cultural e Democracia

mico, é que sua própria biografia já é, por si, indicadora de novidade na cena do pensamento sobre a cultura. São cidadãos de diversos países que, em condições favoráveis, estabeleceram a problemática da identidade também como numa performance, ou seja, o que dizem é especialmente significativo a partir de que são eles mesmos que dizem e nas circunstâncias e estilos em que atuam. É a periferia do mundo que toma da palavra nos centros mais prestigiosos de elaboração e difusão do saber acadêmico para formular dilemas que, por sua vez, não podem mais ser encarados como pontuais ou localizados. Trata-se, enfim, da alteridade estampada biograficamente na cena do pensamento sobre a diversidade cultural. Vejamos, a seguir, como pode ser percebida a instalação da diversidade cultural na agenda intelectual e política de nossos dias.

O Drama da Afirmação da Diversidade Cultural A constatação da alteridade e mesmo atitudes e posturas como a admiração, o maravilhamento, o temor e a simples curiosidade decerto não são novidade, se percorremos referências muito conhecidas como as aventuras de Marco Pólo. Não há evidência de que esta figura literária corresponda a um indivíduo biográfico. Independentemente disto, pode ser tomada como uma chave de compreensão do deslumbramento do homem ocidental diante da diversidade e da riqueza encontrada no Oriente, bem como das possibilidades de enriquecimento do próprio Ocidente a partir desse encontro. A propósito, a denominação Oriente, desde a Antiguidade, corresponde, literalmente, a uma denominação comum. Todas as regiões que se encontravam a leste de Roma ou de Constantinopla eram chamadas orientais. A posição em relação à capital do império poderia importar mais que a especificidade da região;

o mundo árabe-muçulmano, as inúmeras formações culturais conhecidas como a Índia e os mundos da China e do Japão, tão diferenciados internamente quanto entre si, tudo isto passou a ser conhecido como o Oriente. O palestino Edward Said (1978), provavelmente mais que outro pensador, contribui para consolidar a compreensão de como o mundo oriental se formou como uma forma de distribuição de saber geopolítico no âmbito estético, econômico, sociológico, histórico e epistemológico. A simples denominação comum corresponde a uma elaboração em que seu enunciador domestica as diferenças na unidade civilizatória enunciada e cristaliza, assim, sua postura e prerrogativa de onipotência. Cabe incluir nesta reflexão, uma rápida passagem pela constituição das nações modernas. Esta remissão se faz importante, inclusive, porque quase tudo que se costuma colocar hoje como hábitos ou tradições seculares parece ter raízes bem mais recentes que imaginamos. A constituição da maioria dos Estados na Europa Ocidental coincide com a formação e consolidação do capitalismo. Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1997) chamam a atenção para o cuidado com que as elites que controlam o poder político-institucional procuram desenvolver e cultivar referências de identificação, promovendo, assim, a coesão social em torno de um projeto burguês. Mesmo a historiografia mais convencional costuma se referir à Itália e à Alemanha como Estados que se constituíram como tais na segunda metade do século XIX, mediante a unificação de unidades tradicionais menores. Isto não parece representar novidade. Contudo, os historiadores da cultura conseguiram mostrar que unidades como a França resultaram de processos de relativa homogeneização em que, não só o Estado no sentido de aparelho de governo, mas outras agências, como os intelectuais, os serviços públicos, as forças armadas e as instituições religiosas tiveram papel destacado. A língua que se conhece hoje como o francês não era conhecida pela maioria da população francesa no início do século XIX, assim como aquilo que se conhece hoje como o flamen-

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É pobre porque é negro e é negro porque é pobre: A triste imposição do racismo brasileiro. Vilson Caetano de Sousa Júnior*

RESUMO

O racismo brasileiro é algo que se reveste de uma série de particularidades. Dissimulado através de práticas sutis não institucionalizadas, ele engendra uma série de relações construídas ao longo da história. Resultam disso, não somente a não identificação do negro com os valores advindos das culturas africanas introduzidas no Brasil, mas também a expectativa da sua ascensão social mediante a aquisição de valores do mundo branco. Este fato colabora com a exacerbação da exclusão das populações de origens africanas, que historicamente vivendo em situações desumanas de risco, são campeãs na miséria. O sutil racismo brasileiro, escamoteado através da suposição de que vivemos num paraíso harmônico, democrata racial, aumenta o fosso existente entre negros e branco. Nos últimos anos, estes fatos foram levantados pelo movimento negro, o que suscitou uma série de discussões em torno das políticas compensatórias. Trata-se de medidas que visam corrigir a desigualdade de oportunidades entre os diversos grupos que compõem a sociedade. Esta questão tem suscitado uma série de questionamentos sobre a identidade negra no Brasil. Na medida do possível, o Governo Federal vem implementando Ações Afirmativas, as quais, nos mais diversos setores, vêm provocando reações e questionamentos variados, dentre estes o que diz respeito à peculiaridade de como se opera “o racismo à brasileira”. São algumas destas questões que o texto pretende abordar.

PALAVRAS-CHAVE

Educação; Cultura negra; Ações afirmativas; Racismo.

ABSTRACT

Black, therefore poor; poor, therefore black: The sad imposition of Brazilian racism Brazilian racism is characterized by a series of peculiarities. Hidden behind subtle, non-institutionalized practices, it has produced a series of relations throughout history. The result of this is not only the lack of identification on behalf of the Negro, with African cultures introduced in Brazil, but also the expectation of social ascent by means of acquiring Caucasian values. This fact contributes to the exaggerated increase in the exclusion of populations of African origin, which

(*) Antropólogo, Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Participa do Grupo “Religião, Memória e Identidade”, na mesma Instituição. Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde é líder do Grupo “Gestão da Informação, Memória e História”. Coordenador do Núcleo de Pesquisa do Centro Universitário da Bahia (FIB), onde ministra a disciplina “Cultura Afrobaiana” e coordena o Núcleo de Referência e Estudos Afro-brasileiros (NUREAB). Membro do Centro Atabaque de Cultura Negra e Teologia, realiza pesquisas na área de religiões afro-brasileiras, pela qual tem publicado vários trabalhos, dentre eles o livro “Orixás, Santos e Festas”.

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Vilson Caetano de Sousa Júnior

historically have lived under inhumane conditions, and are leaders in poverty. The subtle Brazilian racism, disguised under the notion that we live in a harmonious, racially democratic paradise increases the gap between blacks and whites. In the last few years, these issues have been raised by the black movement, and involve discussions regarding compensatory politics, that is, measures that aim to correct the inequality of opportunities between the different groups that make up society. This discussion has raised questions regarding black identity in Brazil. As a result, the federal government has, as much as possible, implemented affirmative action in different areas, creating reactions and raising such questions as to how this peculiar Brazilian racism works. These are some of the issues this text deals with.

KEY WORDS

Education, Black culture, Affirmative action, Racism.

Os descendentes dos mercadores de escravos, dos senhores de ontem, não têm hoje, de assumir culpa pelas desumanidades provocadas por seus antepassados. No entanto, têm eles a responsabilidade moral e política de combater o racismo, as discriminações e, juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros, construir relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto seres humanos e cidadãos. (FANON, 1979).

Em certa ocasião, eu me hospedei na casa de uma piedosa senhora (ela própria se intitulava desta maneira). Não me lembro mais de como iniciamos a conversa, apenas que, de repente, ela apresentou o seguinte exemplo para ilustrar que não distinguia as pessoas, mas que, ao contrário, as tratava com igualdade. Ela disse: “Olhe professor, se as pessoas fossem como eu, o mundo seria diferente; mas cada cabeça é um mundo... Veja o senhor, eu criei meus dois filhos. Meu marido morreu cedo, mas eu os eduquei da melhor forma possível. Renata é a mais velha, hoje está casada, fez medicina e Renato, o mais novo, está concluindo o curso de engenharia, profissão do pai. Assim que se formar vai especializar-se na Inglaterra. Tem também a Pretinha – A mulher chamou a menina que deveria ter uns quatorze anos - Ela mora conosco desde pequena.” A menina se aproximou o suficiente para a “bondosa” senhora mandar que ela retornasse aos seus afazeres... E continuou: “Pretinha é da família,

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sua mãe era lavadeira e morreu no parto, como deixou muitos filhos, seu pai me deu para criála desde cedo. Ela cresceu junto com os meus filhos. Ela é como uma filha para mim.” Diante do destino de sucesso dos seus filhos, arrisquei a perguntar sobre a especialidade da menina, que se chamava, na verdade, Silvia; todavia foi batizada com o nome de “Pretinha” assim que chegou, porque seus filhos acharam engraçado, disse ela. A senhora respondeu: “a Pretinha desde cedo não prestou para nada, não quis estudar; as poucas vezes que foi à escola perdeu o ano; até que eu decidi deixá-la em casa me fazendo companhia. Ela ainda não aprendeu a lavar como a sua mãe, acho que é porque não tem forças nos braços; mal sabe ler, apenas copia o seu nome, mas já é uma cozinheira de mão cheia. Se as pessoas fizessem como eu, o mundo seria diferente.” Pensei comigo: o mundo é, de fato, assim; precisamos mudá-lo. Acredito que esta história é bastante ilustrativa, não somente das relações entre negros e brancos no Brasil, mas também das chances e oportunidade que os primeiros têm, se comparados aos segundos. Ou seja, se é verdade que no Brasil, segundo a atual Constituição, existe uma igualdade de direitos, isso não se traduz em chances iguais. Nos últimos anos, o tema das ações afirmativas, entendidas como um conjunto de medidas que visam corrigir as desigualdades entre

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É pobre porque é negro e é negro porque é pobre ...

grupos, tem estado em pauta em diversos setores que compõem a sociedade brasileira. Em contrapartida, muitas são as interpretações em torno do seu significado. Quem são os negros no Brasil? Esta é uma das perguntas mais corriqueiras. É certo que, por trás de tal proposição, nada ingênua, se esconde mais uma tentativa de escamotear o racismo brasileiro - discreto, sutil, silencioso, dissimulado, mas muito eficaz. Muito mais do que saber quem é preto ou quem é branco, é importante nos perguntarmos sobre as relações que, no cotidiano, brancos e pretos estabelecem. A expressão “negro”, introduzida no contexto da escravidão, já surgiu com um conceito pejorativo. Tal expressão passou para os dicionários com este sentido e, ainda hoje, circula nas conversas cotidianas, paralelamente à luta dos Movimentos negros por resignificá-la. Podemos ainda encontrá-la empregada no sentido carinhoso, terno, mas, a depender da entonação, como algo definitivamente pejorativo. É muito comum o questionamento sobre a camisa que exibe o layout: “100% negro!!!”. E o mais interessante é a contrapartida a estas camisas, como a que exibe: “100% mestiço”. Longe de querer suscitar esta discussão em um nível biológico, a afirmação “100% negro” visa fazer uma série de interlocuções a partir de elementos étnicos-culturais até então definidos pela cultura hegemônica como inferiores. Em uma determinada situação, ouvi o seguinte questionamento: “Mas por que o branco não pode usar uma camisa semelhante?” Respondi: “Ele pode até fazer, mas ele não precisa afirmar-se branco.” Como o mestiço que se representa como branco ou não se identifica com o negro, o branco não precisa afirmar-se como tal, pois assim o faz todos os dias. No mundo do trabalho, eles ingressam primeiro. Eles ocupam os melhores cargos. Nas universidades, são eles que concluem os cursos superiores com mais facilidade etc. Inversamente, no Brasil, a falta de chances para os negros é algo historicamente construído. Isso fez dos descendentes de africanos os mais pobres e os que menos oportunidades possuem para alterar esta situação.

Retomando a provocação inicial, não acredito que a apologia à mestiçagem, através da suspeição de quem seja realmente negro no Brasil, possa, de fato, enfraquecer ou desautorizar as iniciativas que vêm tentando corrigir as relações de desigualdades historicamente constituídas entre os grupos assim entendidos como negros e brancos. Até porque, “sobre quem é preto e quem é branco”, a polícia militar, os programas de televisão, as novelas, os anúncios, os jornais, as músicas, os blocos de carnaval, entre outros, têm essa questão muito bem definida. Os anos 90 presenciaram a popularização de um novo termo: afro-descendente. A palavra afro-descendente possui uma conotação política que busca reunir aqueles e aquelas que trazem, no corpo, traços mediantes os quais são excluídos. Este conceito se reveste de significativa particularidade no caso brasileiro, o qual, a partir de finais do século XIX, assistiu o que autores, como Lilia Moritz Schwarcz, chamaram de “naturalização da diferença”. A partir das teorias pseudo-científicas importadas da Europa, um grupo de médicos liderados pelo legista Raimundo Nina Rodrigues, além de estabelecer, na Escola Baiana de Medicina, uma relação entre raças e doenças, construiu a idéia de que formas chamadas “primitivas” geravam organizações da mesma natureza. Medidas normativas elaboradas pelas Faculdades de Direito, ao lado da preocupação com a preterida “higienização das cidades”, concorreram, assim, para fundamentar através de discursos racistas uma série de práticas que obrigavam as populações pobres, carentes e negras a ocuparem níveis mais inferiores na sociedade. Ao lado da repressão policial, o início do século XX apreciou, também, todo aparato da imprensa escrita comprometida em denunciar “os maus costumes”, tendo em vista a civilização almejada. O chamado medo da “onda negra” vai, ainda, se enfronhar pelos anos 30 e é expresso através do pensamento de Gilberto Freyre, que, de uma forma sutil, tenta aniquilar as culturas negras, pulverizando-as através da perigosa

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O Ser Negro: candomblé, imaginário e estereótipos verbais Cecilia Soares*

RESUMO

O texto pretende apresentar e discutir o significado de ser negro no contexto da religiosidade afro-brasileira, passando, também, por outras imagens edificadas pelo imaginário popular, refletidas em algumas ocorrências verbais onde negros e negras são tratados de forma depreciativa. A análise dessas construções lingüísticas pode descortinar os estereótipos que reforçam a exclusão do afro-descendente. Nas situações mais inusitadas do cotidiano, conflitos corriqueiros conduzem a considerações preconceituosas e racistas sobre o ser negro na sua totalidade. As ocorrências verbais terminam por fazer vir à tona a discriminação étnica e social, cultivada no período escravista e ratificada pelo cientificismo do século XIX. As locuções aqui trabalhadas exemplificam a permanência, no imaginário popular, dessa imagem distorcida e desrespeitosa por parte considerável da população baiana. Ao contrário, nas comunidades-terreiro, o sentido de ser negro ganha amplitude, resgatando-lhe a auto-estima e enaltecendo os valores culturais referenciais da matriz religiosa.

PALAVRAS-CHAVE

Identidade Negra, Candomblé, Religião Afro-brasileira, Racismo.

ABSTRACT

Being Black: Candomblé, imaginary and verbal stereotypes The text intends to present and discuss the meaning of being black in the context of African-Brazilian religion, moving on to other images created by popular imagination, reflected in some verbal expression in which black men and women are treated in a depreciative manner. The analysis of these linguistic constructions may unveil the stereotypes that reinforce the social exclusion of African descendants. The simplest daily situations, the most meaningless conflicts, lead to racist considerations about being black in a general way. The verbal expressions end up bringing to surface ethnical and social discrimination, cultivated during the period of slavery, and ratified by the pseudo-scientific writings of the 19 th century. The expressions mentioned here exemplify the permanence of these distorted and disrespectful images in the popular imagination that affect a considerable portion of the Bahian population. The opposite happens in communities where the religious ceremonies of Candomblé are practiced; the meaning of being black gains significance, rescuing their self-esteem, and exalting cultural values of religious origin.

KEY WORDS

Black identity, “Candomblé”, African-Brazilian religions, Racism.

(*) Doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco, professora da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS, vem se dedicando ao estudo da presença da mulher negra na Bahia. Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, p. 47-56, jan/jun 2005

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Cecilia Soares

Não podemos acreditar que o uso de certas imagens é inconsciente pelas pessoas que as fazem. Se forem inconscientes, por que os professores “inconscientemente” não comparam as crianças negras aos coelhos, aos gatos e aos pombos? Talvez porque estes sejam os símbolos da páscoa, da beleza e da paz? Nunca lembro, por exemplo, de ter ouvido ou visto a associação da criança branca ao macaco, ao porco, ao urubu, ao gambá e ao burro. O primeiro, porque se diz que “ é feio demais”. É comum ouvirmos: “ele é feio demais, parece um macaco!”. O porco porque é sujo. Eu sempre tive um medo terrível de me tornar um desses animais, afinal já era papagaio. Papagaio e porco era demais (Souza Júnior, 2004, p.10/11).

Numa tentativa de compreensão de alguns aspectos marcadamente africanos na cidade de Salvador (Bahia), recorremos a um levantamento preliminar de ocorrências da expressão “negro” como sinônimo de descendentes de africanos e à sua importância como denominador comum identificador dos diversos grupos étnicos importados durante o tráfico de escravos1. O termo é igualmente utilizado na identificação de significativa parcela da população que hoje recorre à expressão afro-descendente para caracterizar sua descendência étnica 2 e fator de auto-estima social. Para alcançar os objetivos propostos, discutiremos duas situações sócioculturais nas quais a expressão “negro” ganhou maior difusão e significado especial. Os principais trabalhos que tratam mais especificamente da religiosidade africana e sua reinvenção nos levam à eleição do candomblé como exemplo de resistência cultural. Na leitura da semântica peculiar da expressão negro, faremos referência ao sentido especial que ela adquire no interior da comunidade religiosa afro-brasileira, pois, no universo religioso dos terreiros, a expressão negro nunca aparece como referência negativa, posto que todos estão identificados por uma noção peculiar de identidade étnica, onde ser negro é um elemento de referência permanente de auto-estima e valorização pessoal. Para além da tentativa de compreensão da recorrência à expressão “negro” no contexto religioso, nos propomos, também, à sua leitura analítica no imaginário social, através do 48

exame de alguns estereótipos verbais recorrentes no discurso depreciativo, que desqualificam o negro em diferentes circunstâncias sociais, sobretudo pelo estigma da cor. O material de que dispomos, entretanto, apenas possibilita uma primeira compreensão dessas ocorrências lingüísticas e somente um levantamento posterior, mais abrangente, permitirá reflexões mais avançadas a partir de uma primeira classificação geral. Os exemplos que apresentaremos ao longo deste texto são uma amostra da veiculação, no imaginário popular, de aspectos negativos de deliberada distorção do caráter do negro como pessoa. É muito comum, por exemplo, a relação que se faz das partes do corpo de homens e mulheres negros com as de animais irracionais, ridicularizando, de modo perverso, as formas e a estética de seus corpos. Entendemos que essas ocorrências lingüísticas reproduzem o olhar discriminatório da sociedade às diferentes peculiaridades étnicas e físicas dos descendentes de africanos no Brasil, chamados, genericamente, de negros. O negro (e suas variações na cor) representaria esse ser ambíguo, ora prestigiado como elemento da integração étnica e cultural, ora criticado como elemento deturpador da cultura do branco.

Negros no Candomblé Buscando compreender o sentido da expressão negro e sua ressonância no interior dos candomblés baianos, temos, como suporte teórico, a leitura preferencialmente baiana sobre as religiões africanas, além da experiência

(1) Sobre tráfico de escravos para Bahia ver, dentre outros: FILHO, Luís Viana. O negro na Bahia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988 e VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravo entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos dos Séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987. (2) Sobre tráfico de escravos para Bahia ver, dentre outros: FILHO, Luís Viana. O negro na Bahia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988 e VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravo entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos dos Séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.

Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, p. 47-56, jan/jun 2005


O Ser Negro: candomblé, imaginário ...

da observação, resultado da nossa vivência naquele universo religioso. As análises prestam-se à compreensão do cotidiano dos terreiros de origem jêje-nagô ou nagô-vodunce, como expressou a respeitada ialorixá Olga de Alaketu 3. A eleição dessas casas de candomblé não deve ser entendida como indiferença à presença da cultura religiosa de origem bantu, tão bem representada pelos terreiros de nação angola – e eles são numerosos -, nem tampouco como o não reconhecimento da importância de outras tantas nações, como jêje e ijexá, componentes, todas, do mundo religioso afro-brasileiro. Entendemos que a expressão “negro” assume outra carga semântica nos candomblés, oposta às ocorrências verbais que geralmente depreciam negros e negras na sociedade. Ali parece haver a valorização da noção de pessoa pelo uso da palavra negro, diferentemente do que geralmente ocorre em determinadas circunstâncias do cotidiano da sociedade brasileira. A palavra negro, quando utilizada na identificação da pessoa de cor, está relacionada à visão discricionária da sociedade e o seu sentido é quase sempre pejorativo. Bacelar (1989), ao tratar da etnicidade do negro em Salvador, lembrou que as características físicas, sobretudo a cor, é uma fonte permanente de distinção e identificação das relações entre brancos e negros na Bahia. Neste sentido, ele acentua que, “com ênfase, a cor da pele tem servido como insígnia de escravidão e liberdade, de dominação e sujeição” (p.77). Nos candomblés, aparentemente ocorre uma inversão simbólica, na qual a expressão alcança uma carga de prestígio e “ultrapassa o campo especificamente religioso para engendrar nos seus participantes, profundo sentimento de apropriação da herança africana como paradigma da noção de identidade étnica” (idem). O candomblé é, historicamente, uma religião de negros, onde foi possível o diálogo e interação étnico-cultural dos africanos importados. Nessas comunidades desenvolveu-se um conceito singular da palavra negro e de outras correlatas. O uso dessa palavra é muito freqüente e está definitivamente incluído na linguagem do povo-de-santo. Porém, sua utilização nunca é feita com uma carga semân-

tica ofensiva ou de diminuição da qualidade da pessoa, o que seria anacrônico dentro dessas construções culturais. Nos terreiros de candomblé parece ter ocorrido a redefinição da noção de ser negro como indicativo de reforço do sentido de negritude, além da primazia e valorização da identidade étnica. Neste sentido, ser negro, ultrapassa a questão fenotípica para, de forma emblemática, reafirmar a identidade cultural e ampliar a noção de ser portador de uma herança africana, preservada e recriada nos candomblés da Bahia. E grande é o número daqueles que, não podendo ser considerados negros pela cor da pele, esforçam-se para acentuar alguma característica qualquer, que os façam mais próximos de uma estética negra. Assim, muitas mulheres não negras, no contexto religioso, nos dias de grandes festividades, aparecem com seus cabelos trançados ou usando de outros expedientes para que seus cabelos se aproximem da contextura e arrumação do cabelo das mulheres negras, para ficarmos apenas com este exemplo. Como se sabe, a trajetória da sobrevivência dos candomblés está marcada por conflitos, desrespeitos e violência, que, num movimento ou sentido inverso, acabaram por consolidar espaços privilegiados onde cotidianamente se revivem e se rememoram valores culturais africanos para aqui transplantados. As décadas de 20, 30 e 70 do século passado representam períodos importantíssimos nesse processo de resistência, luta e reconhecimento das casas de culto. Mas, paralelamente à luta pela preservação da herança religiosa, representada, muitas vezes, pela resistência à repressão policial, o candomblé parece ter realizado um passo significativo, marcado pela aceitação plena de pessoas de vários matizes e posições sociais, sem que isto eliminasse a idéia consensual de que essa religião é de negro, na base e na perspectiva de sua história 4. Ao contrário, a presença,

(3) Encontro de Nações de Candomblé, Salvador, 1989, p. 15. (4) Sobre repressão policial aos candomblés na Bahia, ver: BRAGA, Julio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos

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Costumes afro-brasileiros e o projeto de europeização no contexto de Salvador* Taynar Pereira**

RESUMO

Com o texto, ora apresentado, objetivamos, de modo geral, contribuir com os estudos críticos sobre o processo de construção da identidade negra no contexto de Salvador e, especificamente, investigar os fatores constituintes da centralidade dessa identidade no contexto da globalização, que, no seu caminhar de homogeneização, arrasta as fontes tradicionais que fornecem a matéria prima da identidade, entre elas o parentesco fundamentado na “raça” ou “etnia”, a classe social, as relações de gênero etc. No que concerne aos movimentos negros contemporâneos, eles tentam construir sua identidade a partir da tomada de consciência das peculiaridades do seu grupo: seu passado histórico como descendentes de escravizados e sua situação social como grupo estigmatizado e excluído do pleno exercício da cidadania, cujas culturas e humanidade foram inferiorizadas.

PALAVRAS-CHAVE

Identidade Negra, Salvador, Europeização.

ABSTRACT

African-Brazilian Customs and the “Europeization” process in Salvador This text is aimed at contributing to the critical studies concerning the process of developing black identity in Salvador, and especially to inquire about factors that constitute this identity in a context of globalization. Bearing in mind globalization’s tendency to homogenize, it drags away traditional sources that provide the “raw materials” of identity, among them kinship, based on “race” or “ethnicity”, social class, gender relations etc. Regarding contemporary black movements, they attempt to build their identity from the awareness of the group’s peculiarities: their history as descendants of slaves, their social status as a stigmatized group excluded from the complete exercise of citizenship, and as a group whose culture and humanity has been undermined.

KEY WORDS

Black identity, Salvador, to make European.

(*) Texto apresentado no I Congresso de Pesquisadores Negros, Pernambuco, Recife, 2000. (**) Taynar Pereira é mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo - USP, Professora do Centro Universitário FIB/Salvador –Bahia e membro do grupo Raça e Democracia nas Américas.

Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, p. 57-66, jan/jun 2005

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Taynar Pereira

Introdução Fundada em 29 de março de 1549, a primeira capital do Brasil serviria, a partir de então, como base do projeto de mundialização capitalista. A tentativa de fazer da primeira sede administrativa do país uma sociedade homogênea, aos moldes da coroa portuguesa, desde sua origem, logo foi derrocado. A diversidade de valores culturais que foram confrontados transformara o cenário de Salvador em um território demarcado por uma mistura de línguas, crenças e símbolos. As tensões experienciadas entre o projeto de ocidentalização e as manifestações culturais do continente africano não seriam suficientes para impedir que o exuberante legado africano fosse reordenado em vários contextos sociais e que, por conseguinte, permanecesse perceptível até os dias de hoje em Salvador. Para que se compreenda como ocorreu esta experiência, torna-se importante remontarmos os contextos específicos - sócioeconômico e cultural - pelos quais atravessou a Bahia durante o período de formação da sociedade brasileira. Instaurou-se, no Brasil, um regime de escravidão, no qual as relações de produção e de exploração serviam como base da economia do país. No século XVIII, a conjuntura econômica brasileira proporcionou aos grandes engenhos de cana-de-açúcar do Recôncavo Baiano uma posição de destaque em relação ao restante do País. Era, sobretudo, por força da mão-de-obra escrava africana que se fabricava o açúcar, fazendo da exportação deste produto a principal atividade econômica baiana. Ainda nesse século, Salvador expressou-se como núcleo comercial, dada a sua condição portuária, ocorrendo, com isso, um incessante intercâmbio com partes da América, Europa e África. Os serviços de exportação e importação de produtos que a Bahia não produzia destacavam a sua capital como uma metrópole regional, cuja abertura ao mercado internacional intensificava-se cada vez mais. Posteriormente, por influência das condições favoráveis nas quais se encontrou alguma região do país, a primeira capital do Brasil enfrentaria momentos censuráveis, ca58

racterizados por percalços sócio-econômicos. Ao se ponderarem alguns fatores, tais como a rápida penetração do capitalismo no centro-sul do país, bem como a perda de posição dos seus produtos no mercado internacional, não só Salvador, mas a Bahia como um todo experimentou, em finais do século XIX, um desencantamento no setor econômico. Mesmo assim, ainda como sede do poder administrativo, a capital baiana, com seus quase duzentos mil habitantes, manteve sua tradição urbana. Foram, sobretudo, os excedentes de bens produzidos em outras regiões do país destinados a Salvador que colaboraram, paulatinamente, com a industrialização, os novos serviços e as vias urbanas da cidade1. Fizeram-se ressoar, a partir de todo este implemento capitalista, as desigualdades sociais, o preconceito de cor, as ideologias religiosas, liberais e nacionalistas da época, como também, os movimentos sociais que repercutiram na Bahia, neste período, contrapondo-se à ordem estabelecida vigente 2. A permanência da escravidão negra, em grande parte de ganho ou de aluguel, como base do trabalho na sociedade, não impediria que muitos negros livres pudessem assegurar o controle do seu próprio trabalho 3. A heterogeneidade urbana a que chegou a cidade de Salvador, especificamente no setor de serviços, em finais do século XIX, permitiu que uma parcela dessa população negra pudesse controlar os seus próprios meios de produção nas oficinas, no artesanato, na construção civil, no pequeno

(1) Ver: SANTOS, Milton. O Centro da Cidade de Salvador. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1959. p. 10 - 25; BACELAR, Jeferson. A Hierarquia das Raças: Cor, Trabalho e Riqueza Após Abolição. Estudos CEDHAL, São Paulo, Humanitas/USP, nº9, 1997. (2) Um dos movimentos organizados que emergiu durante o século XIX de maior expressividade foi a “revolta da cemiterata”, encabeçada pela irmandade e ordens terceiras de Salvador, organizações leigas. Sobre este assunto, ver: REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. (3) Sobre o assunto, consultar, dentre outros: AZEVEDO, Thales; LINS, E. Q. Vieira. História do Banco da Bahia: 1858-1958. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1969; Traços da História Econômica da Bahia no último Século e Meio. Planejamento, Salvador, Fundação de Pesquisas, v.1, nº1, set/out, 1973.

Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, p. 57-65, jan/jun 2005


Costumes afro-brasileiros e o projeto ...

comércio e nos serviços de ganho. A condição na qual se encontravam estes negros pouco influenciou para que, dentro daquele cenário, se desencadeasse uma significativa mobilidade social, promovendo, a partir de então, a sua ascensão na sociedade e no mundo do trabalho (MATTOSO, 1981; 1992).

A Diversidade cultural e a desigualdade social na Bahia nos séculos VIII e XIX Admitindo-se a existência de cerca de cinco mil escravizados em 1884, a sociedade baiana ainda permanecia sob o sistema de valores e práticas escravistas. Fatores proporcionados pela égide deste regime, tais como os incontestáveis padrões de discriminação em relação aos negros, impregnados no meio social, e a divisão entre os negros, produzem algumas das mais consideráveis implicações políticas por, sobretudo, envolverem outros segmentos da sociedade. Aspectos como estes asseguravam a hierarquia social com fundamento na desigualdade entre os grupos raciais, sustentavam os laços paternalistas e os vínculos pessoais prescritos nas emancipações e alforrias, bem como nutriam a divisão entre libertos e escravos, africanos e crioulos. Torna-se imprescindível destacar uma das principais atividades sociais desenvolvidas pelas irmandades religiosas compostas por negros neste contexto. Além de assumir a assistência médica e jurídica (o socorro em momentos de crise financeira e os funerais, tanto de membros dessas associações quanto de seus familiares), estas irmandades se responsabilizavam pela compra de alforrias de outros escravos. Os períodos que antecederam a abolição da escravatura em Salvador também foram caracterizados pelo desejo latente da elite brasileira de implementar no Brasil, em seu mais alto nível, os padrões culturais europeus de civilidade, escamoteando os traços culturais africanos. “O negro era o outro inferior e incivilizado, em relação ao branco superior e portador dos padrões civilizatórios europeus” (ALBUQUERQUE, 1996). Não foi por entusiasmo do ideário liberal proclamado na República - a partir do

qual todos os segmentos raciais da sociedade brasileira foram reconhecidos como cidadãos, detentores de direitos e deveres perante toda a sociedade, integrando, deste modo, todos na ordem social - que os valores culturais africanos foram facilmente aceitos na sociedade brasileira. Os estigmas atribuídos ao negro, visto como ser inferior, se fez sentir em toda estrutura social, principalmente na esfera religiosa (ibid.). O processo de “desafricanização” do espaço urbano de Salvador se fez muito presente nos discursos de intelectuais e políticos durante os primeiros anos republicanos. Nas ruas da cidade, manifestavam-se de várias formas as práticas culturais de uma majoritária e diversificada população negra. Mas o que se tornava emergencial era a aspiração por desfazer-se das batucadas e sambas de roda motivados por grupos de negros. A pretensão era buscar o modelo cultural urbano europeu vigente no período. A tensão entre as formas tradicionais de expressão cultural africana e a ordem republicana foi uma constante em um período da historia baiana que se pretendia culturalmente inovador (ALBUQUERQUE, 1996). O processo de romanização, empreendido pela Igreja Católica brasileira, representou uma das ações mais radicais do setor eclesiástico neste período da história baiana. Tratava-se de purificar os valores legítimos da fé, sancionando os aspectos “atrasados” da religiosidade “sincrética” professada pelos brasileiros. Na Bahia, o desagravo aos reformadores eclesiásticos por parte dos católicos assegurava algumas peculiaridades de culto: O fausto dos templos, as alegorias extravagantes dos rituais, a suntuosidade das celebrações públicas da fé constituíam o catolicismo popular no século XIX. Esta exteriorização da fé talvez seja um dos traços mais característicos do catolicismo dos baianos (MONTES, 1998).4

(4) Sobre catolicismo barroco, consultar, dentre outros: MONTES, Maria Lúcia. Entre o Arcaico e o Pós Moderno: Heranças Barrocas e a Cultura da Festa na Construção da Identidade Brasileira. Revista Sexta-Feira, São Paulo, nº 2, p.142-159, 1998; REIS, João José. A

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Inquietudes: capital social, direitos humanos e questões de raça? José Raimundo J. Santos*

RESUMO

Este texto pretende apresentar um debate sobre o conceito de capital social enquanto estruturante do pensamento social brasileiro, num processo histórico de consolidação da democracia e de exclusão moral de grupos minoritários. Tal enfoque será abordado sobre a ótica das violações dos Direitos Humanos, a emergência de novos direitos e a perpetuação de modelos de exclusão racial.

PALAVRAS-CHAVE

Capital social e cultural, Ações afirmativas, Raça, Exclusão racial.

ABSTRACT

Anxieties: Social capital, human rights, and racial issues This text intends to present a debate regarding the concept of social capital as a structuring force in Brazilian social thinking, in a historical process of consolidation of its democracy and moral exclusion of minorities. It approaches the subject in light of the violations of Human Rights, the emergence of new rights, and the maintenance of models for racial exclusion.

KEY WORDS

Social and cultural capital, Affirmative action, Race and Racial exclusion.

(*) Mestre em Ciências Sociais - UFBA, Professor da FIB Centro Universitário, Pesquisador do Núcleo de Referência e Estudos Afro Brasileiro – NUREAB/FIB.

Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, p. 67-76, jan/jun 2005

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José Raimundo J. Santos

Introdução A herança política de cada sociedade influencia diretamente a construção de uma forma de capital denominado por alguns teóricos como social. Isto possibilita que indivíduos e grupos se tornem o produto de um acúmulo histórico fruto da participação política e engajamento cívico, tornando-se sujeitos e cidadãos herdeiros das conquistas e lutas promovidas pelos seus antepassados para a constituição de um referencial social e cultural na sociedade. Contudo, resta uma indagação: o processo de formação e constituição histórica da sociedade brasileira, que alijou a cultura e a participação política do negro, criou os instrumentos para a manutenção de um sistema político que pode ser caracterizado como democrático no que tange às relações raciais? Eis que, em busca de compreender tal questão, este ensaio visa abordar alguns conceitos e promover um conciso debate acerca das noções de capital social, como também o processo de exclusão moral, social e cultural que a população de cor vem sofrendo historicamente na sociedade brasileira, apontando para o debate acerca das políticas públicas de redução das desigualdades, enquanto um contraponto de reconhecimento do racismo por parte do Estado e da manutenção de uma cultura da “democracia racial” por parte de uma socialmente apropriada elite dominante. Neste sentido, parte-se do pressuposto que a identidade racial está associada ao acúmulo sócio-cultural demandado por sujeitos de cor que, a partir de um engajamento político e cívico de enfrentamento da famigerada democracia racial, contribuíram para o surgimento de bandeiras e mecanismos de luta e enfrentamento dessa “cordialidade” que as elites alegam (sobre)viver as diferentes “igualdades” de etnias e cores da sociedade brasileira.

O que pensar sobre Capital Social? Dúvidas e caminhos... O conceito de capital social, mesmo enquanto um instrumento metodológico para a 68

interpretação das relações de confiança e cooperação entre os indivíduos ou grupos no exercício pleno da cidadania, fundamenta-se no cumprimento de ações individuais ou coletivas que implicam em relações de reciprocidade entre os indivíduos ou grupos, objetivando um bem comum. E se sustenta com maior ou menor vigor entre aquelas sociedades que herdaram, ou não, um conjunto de normas e valores que asseguram a existência de um sistema de participação cívica como orientador dos indivíduos no fazer cotidiano das relações sociais. Quanto mais democrática é a sociedade e quanto maior é a participação cívica de seus cidadãos no cumprimento dos seus deveres e na exigência dos seus direitos, maior é o quantum de capital social de que os indivíduos irão dispor. Neste sentido, a inserção e luta por maiores oportunidades para a comunidade afrodescendente gera uma quantidade de capital que proporciona aos militantes de hoje um acúmulo na luta, pois, desde os negros abolicionistas, passando pelas irmandades negras e pela manutenção do Candomblé como religião de origem eminentemente negra e ancestral, percebe-se uma aglutinação de forças para preservar na memória da população aquilo que a diáspora não conseguiu fazer esquecer. Contudo, para preservar é necessário fazer-se existir e ser reconhecido e, neste sentido, a população de cor vem enfrentando uma batalha invisível para muitos, mas bastante evidente para a maioria dos negros, na busca de se fazer negro detentor de capital cultural, social, político, artístico, esportivo e também o econômico. Digo também econômico, pois se percebe que as oportunidades de enfrentamento e sustentação de indivíduos de cor na sociedade brasileira se deram de forma desigual1.

(1) Cf. CUNHA, Silvio Humberto Passos Um retrato fiel da Bahia: Sociedade-Racismo-Economia na transição para o trabalho livre no Recôncavo Açucareiro Baiano, 1871-1902. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em História Econômica / UNICAMP, Campinas, 2004.

Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, p. 67-76, jan/jun 2005


Inquietudes: capital social, direitos humanos ...

A luta para construir uma realidade social pautada na igualdade entre os diferentes que compõem a sociedade evidencia os conflitos pela manutenção ou obtenção de poder; os sujeitos entram nas relações em busca de evidenciarem o seu ponto de vista e de resguardarem para si e para o seu grupo a posição que ocupam no espaço social. Nesta perspectiva, percebe-se que o modelo histórico de constituição da sociedade brasileira engloba uma cultura política que tem por base normas e valores que orientam as formas de reciprocidade, delimitando as trocas e as relações cotidianas entre os diferentes sujeitos e entre as instituições legitimadas pela sociedade com os sujeitos de cor. A reciprocidade, então, torna-se um elemento estruturante das relações sociais, mobilizando o sujeito para o uso de um tipo de capital que, reconhecido por si mesmo, recebe a legitimidade do outro, que o acolhe ou o estigmatiza. A forma de compreender o princípio da igualdade enquanto norteador para o desenvolvimento de uma democracia sólida com reais direitos e oportunidades para toda a população, principalmente para aquela de cor, pelas elites dominantes, implica na geração de formas de reciprocidade que garantiriam a propagação e manutenção da idéia de um tipo de capital cultural e social que garanta a eqüidade de direitos para todos os indivíduos independentes de classe ou cor. Contudo, essa idéia parece dissolver-se nas bandeiras e lutas encampadas por essas elites na preservação da sua posição de classe conforme argumenta Bourdieu (1987:): (...) falar de estratégias de reprodução não é atribuir ao cálculo racional, ou mesmo à intenção estratégica, as práticas através das quais se afirma a tendência dos dominantes, dentro de si mesmos, de perseverar. É lembrar somente que o número de práticas fenomenalmente muito diferentes organizam-se objetivamente, sem terem sido explicitamente concebidas e postas com relação a este fim, de tal modo que essas práticas contribuem para a reprodução do capital possuído.

Diante disso, pode-se verificar que grupos tendem a possuir disposições práticas, compartilhadas de forma individual ou coletiva, enquanto mecanismos sociais cujo propósito é assegurar a posição de classe e a reprodução de valores e normas enquanto um capital possuído. Tais disposições práticas garantem a manutenção de um status quo para estas elites que, asseguradas pela omissão do Estado, reproduziam ideologicamente os modelos segregacionistas e excludentes presentes na sociedade. Neste contexto, gera-se capital social, não para a população de cor, cuja igualdade de direitos e a cidadania não fora reconhecido, mas, sim, para aquela que sempre resguardou para si o domínio sobre o campo político e o econômico. As instituições brasileiras refletem aquilo que, de maneira submersa, vem alcançando grupos específicos da sociedade, correntemente identificados pelas suas características fenotípicas da cor, e que criam barreiras invisíveis, como também constroem obstáculos intransponíveis para a superação dessas. O negro nesta sociedade, digo desde o 14 de maio de 1888, já com status de “homem livre”, vem buscando a cada dia de cada ano dos últimos 117 anos, formas de desencadear políticas e ações de superação desses obstáculos empreendidos de maneira estruturante pela sociedade brasileira. Para melhor entendermos, tem-se que a reciprocidade, entre o indivíduo e/ou grupos e vice-e-versa é que tida como estruturante e se constitui na base legítima e simbólica das ações individuais, representa os elementos históricos condicionantes das normas socialmente aceitas, como também orienta na constituição dos valores legitimados pelos indivíduos na manutenção das relações no interior das múltiplas redes sociais em que cada sujeito se inscreve. Portanto, ela condiciona uma cultura política onde o senso de justiça é o parâmetro das relações de sociabilidade e cujo respaldo nas interações e a confiança mútua devem ser assegurados pela cadeia de relações sociais. E, neste sentido, as relações sociais e as relações de reciprocidade se dão de manei-

Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, p. 67-76, jan/jun 2005

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Entre a lei e a desordem: escravos e forros em Itaparica na segunda metade do século XIX Wellington Castellucci Junior*

RESUMO

Este artigo é baseado em fontes de natureza oficial, como processos crime, inventários, testamentos e documentos da Câmara Municipal, todos relativos à vila de Itaparica na segunda metade do século XIX. Seu objetivo é discutir as estratégias de luta dos escravos para alcançarem a liberdade e os dilemas enfrentados pelos forros após a conquista da alforria. Também é enfocada, nesse texto, a mudança de natureza econômica ocorrida na Ilha, bem como o impacto do fim do tráfico transatlântico de escravos de 1850.

PALAVRAS-CHAVE

Cultura, Trabalho, Resistência.

ABSTRACT

Between Law and Disorder: Slaves and freed slaves in Itaparica during the second half of the 19th century This article is based on official sources, such as criminal cases, inventories, wills, and documents from City Hall, all of which concern the village of Itaparica during the second half of the 19 th century. Its aim is to discuss the strategies used in the slaves’ fight for freedom and the dilemmas faced by those who were freed after liberation. The economic changes that took place on the island are also dealt with in this text, as well as the impact caused by the end of transatlantic slave trade in 1850.

KEY WORDS

Culture, Work, Resistance.

(*) Professor de História Moderna da Universidade Católica do Salvador. Doutorando em História do Brasil pela Universidade de São Paulo. wcastellucci@uol.com.br.

Textos e Contextos, Centro Universitário da Bahia - FIB, Salvador, ano 3, nº 3, p. 77-86, jan/jun 2005

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Wellington Castellucci Junior

Introdução Tornou-se um discurso quase comum entre alguns segmentos da historiografia brasileira dizer que, até a promulgação da lei de 1871 - que regulamentou, dentre outras coisas, a compra da liberdade pelo escravo mediante o pecúlio e a liberdade dos ingênuos (filhos de escravos nascidos a partir daquela data) -, os escravos jamais recorreram à justiça para requererem seus direitos1. Nessa perspectiva, as leis de 1871 e 1885 teriam sido divisores de água na história da escravidão brasileira, uma vez que demarcaram os momentos de intervenção direta do estado nas relações entre senhores e escravos, anteriormente baseadas nos princípios do direito costumeiro 2. Talvez, uma pesquisa que serviu de referência para essa visão tenha sido o valoroso estudo da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha 3. De lá para cá, muitos trabalhos importantes foram produzidos procurando se respaldar nesse tipo de análise e, sobretudo, buscando encontrar demarcações temporais que, supostamente, teriam representado momentos de tomada de consciência dos direitos jurídicos por parte dos escravos e/ou dos defensores da causa daqueles sujeitos. Porém, estudos mais recentes, partindo de outra perspectiva e explorando novas fontes, visualizaram diversas ações judiciais de escravos, em várias partes do Brasil, muito antes da promulgação da tão proclamada lei de 18714. Tais estudos abriram caminhos para outras pesquisas que mais recentemente vêm aparecendo nos Programas de Pós Graduação em História de muitas Universidades brasileiras 5. O propósito desse pequeno artigo certamente não é o de desconsiderar as importantes contribuições da reconhecida antropóloga da Universidade de São Paulo, nem muito menos desmerecer os desdobramentos da produção historiográfica que se baseiam nessa perspectiva. Apenas gostaria de adicionar um pouco de tempero empírico na culinária acadêmica, a fim de que possamos juntos amadurecermos algumas questões pertinentes a esse respeito. 78

A partir de algumas evidências, buscarei aqui estabelecer uma pequena discussão acerca dos comportamentos de escravos e forros na Ilha de Itaparica, nos anos que antecederam as duas leis antiescravistas e posteriores a elas. Ao mesmo tempo, buscarei enfatizar que, bem ao lado da “lei dos brancos”, existia um outro campo de luta a que escravos e forros, em alguns momentos, foram levados a recorrer para fazer valer os seus direitos de sujeitos de carne e osso: o da violência pura e simples.

A Economia dos Pobres: escravos e forros Na década de 1860, na Ilha de Itaparica, muitos dos escravos que ainda trabalhavam nas fazendas e nos espaços urbanos estavam alcançando a liberdade custeada pelos seus próprios esforços. Nessa época, Itaparica deveria contar com uma população que beirava nove mil habitantes, tendo um contingente escravista que variava entre dez a quinze por cento do total populacional 6.

(1) Sobre a Lei de 1871 e 1885, ver Legislação da Província da Bahia Sobre o Negro: 1835-1888. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1996. (2) Estou me referindo particularmente ao texto da antropóloga Cunha, Manoela Carneiro da. Sobre os Silêncios da Lei: Lei Costumeira e Positiva nas Alforrias de Escravos no Brasil do Século XIX. IN: Antropologia do Brasil. Mito, História, Etnicidade. 2 edição, São Paulo: Brasiliense, 1986. (3) Idem. (4) Sobre essa questão ver os seguintes autores: GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade. As ações de Liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no Século XIX. Rio de Janeiro: RelumDumará, 1994. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Uma História das Últimas Décadas da Escravidão na Corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990. LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista, Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. (5) Aqui na Bahia um dos mais recentes trabalhos que abordam essa questão é a Dissertação de Mestrado de SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. Os Escravos Vão à Justiça: a resistência escrava através das ações de liberdade. Bahia, século XIX. Dissertação de Mestrado, Salvador: Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2000. (6) Essas estimativas estão sendo feitas a partir de três fontes de períodos e natureza diferentes. A primeira delas são os quadros estatísticos da Província da Chefia de polícia. Segundo essa fonte, em 1848, o total de moradores livres de Itaparica era de 7382 almas

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Entre a lei e a desordem: escravos e forros ...

É provável que a maior parte dessa população escrava estivesse espalhada pelas fazendas de pequenas dimensões que predominavam quase absolutamente na segunda metade do século XIX 7. Ali, os escravos estavam ocupados em diferentes tarefas integrantes das principais atividades econômicas do território insular: carreiros, lambiqueiros, canoeiros, tanoeiros, vaqueiros, marinheiros de lancha, além de pescadores e arpoadores de baleia eram alguns dos principais ofícios e especializações dos cativos. Executando esses serviços, eles mobilizavam as indústrias de cal, do óleo da baleia, dos poucos alambiques, a produção do dendê, a coleta da piaçava, a tiragem do coco, a criação de alguns animais e a agricultura de subsistência. Pena que, em grande parte dos inventários, valiosas informações como a profissão, filiação, estado civil e outros dados sobre os escravos foram omitidos durante a escrita das autoridades, sobretudo até o final da década de sessenta. Nos espaços urbanos, os escravos, ao lado dos forros, estavam a trabalhar como aguadeiros, carregadores de cadeira de arruar, ganhadores, tiradores de pedra, desmanchadores de baleias e outras atividades desprezadas pelos brancos livres e disputadas intensamente pelos escravos e forros. Nos arredores dos dois portos de Mar Grande e Itaparica, de onde grande parte da produção da Ilha era despachada para Salvador e Recôncavo baiano, havia um reboliço de gente que procurava ganhar a vida de variadas formas. Diariamente, pescadores de baleia traziam os cetáceos abatidos nas águas da baía de Todos os Santos para o desmancho nas proximidades da vila. Após o desmancho daquele animal, o que ficava para trás era um monte de vértebras, ossadas e vísceras, que transformavam o ambiente num cemitério de baleias e numa atmosfera fétida horrorosa. Os viajantes Spix e Martius, quando estiveram na Ilha, por volta das primeiras décadas dos oitocentos, descreveram da seguinte maneira o que avistaram nas imediações portuárias: ...consideramo-nos felizes de poder chegar, depois do meio dia, ao ancoradouro da Ilha de Itaparica, junto ao Arraial do Santíssimo Sacramento, vulgarmente chamado Vila de Itapa-

rica. Esta Vila, pela construção de suas casas e ocupação de seus habitantes, dá ao viajante impressão parecida com a das pequenas aldeias das costas da Ilíria e da Itália. Não lhe faltam lojas e armazéns, nos quais encontramos, com prazer, cerveja inglesa “Porter”, queijo “chester” e as excelentes lingüiças e presuntos do Alentejo, que atualmente constituem artigo português de importação, de não pequena importância. No porto, existem diversas fábricas de óleo de baleia e grande número de crânios e costelas, que empestam o ar com insuportável fedor, provam que ainda hoje os esforços dos baleeiros brasileiros dão bons resultados nestas costas (SPIX; MARTIUS, 1981, p.139).

Havia, naquelas imediações, também um comércio inveterado de gente que transgredia posturas sistematicamente reeditadas pela Câmara Municipal 8. Atravessadores de pescado interceptavam os pescadores ainda em alto mar e passavam a vender peixes pelas ruas da vila e dos povoados a preços majorados. Homens com realejo procuravam adivinhar a sorte de quem passava 9. Outros tentavam vender pequenas quantidades de frutas e verduras extraídas das plantações nos quintais, e as ganhadei-

(entre brancos, pardos e pretos, assim classificados). Já o censo de 1872, apontou uma população de 10120 almas, sendo que apenas cerca de 12% dela era constituída de escravos. IN: CEBRAP-Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Ao fazer um levantamento dos acentos de óbitos da Freguesia do Santíssimo Sacramento, constatei que a proporção de homens de cor livres (pardos, crioulos e africanos) era francamente superior aos brancos que habitavam a Ilha de Itaparica já na década de 1860. Para se ter uma idéia dos percentuais relativos aos sujeitos classificados pela “cor”, de 483 sujeitos enterrados e registrados pelos párocos na Freguesia de Itaparica na década de sessenta, os brancos corresponderam a apenas 26,91% do total, enquanto os pardos foram o carro chefe com 34,36%, os crioulos com 5,32%, os africanos formaram 13,45% e 9,93% não foram identificados. Somando todos aqueles de ascendência escrava, eles representam um contingente de 63,13% do total dos enterrados. IN: Arquivo da cúria Metropolitana da Cidade do Salvador. (7) Além de mais de uma centena de inventários consultados, é importante destacar que o Livro de Registros de Terras, 1857-1863, da Freguesia de Itaparica, também confirmou o perfil das pequenas propriedades. IN: APEB - Sessão da Repartição Geral de Terras do Império. Nº 4718.

(8) Ver os massos da Câmara Municipal de Itaparica. IN: APEBSessão Colonial/Provincial. Massos: 1322, 1323, 1324, 2422,

(9) APEB-Inventário de Miguel Laverroni. Itaparica, 1871. Sessão Judiciária, 05/2071/2542/17.

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Viagens científicas no Brasil oitocentista: a diversidade racial na construção da identidade brasileira Olívia Biasin Dias*

RESUMO

O presente trabalho se propõe a analisar como a diversidade racial brasileira foi encarada como obstáculo para o desenvolvimento do país e para a criação da identidade nacional, merecendo a atenção de cientistas, intelectuais e políticos do século XIX. Além disso, pretende-se observar de que modo a imagem negativa de miscigenação racial foi transformada em uma imagem favorável, que passou a apresentar o povo brasileiro como exótico e tolerante com as questões raciais.

PALAVRAS-CHAVE

Ciência, Viagens, Diversidade racial, Representação e Identidade.

ABSTRACT

Scientific Journeys in 19th century Brazil: Racial diversity in the creation of Brazilian identity This project intends to analyze how Brazilian racial diversity was seen as an obstacle to the development of the country, as well as to the creation of a national identity, which earned the attention of scientists, intellectuals, and politicians in the 19th century. In addition to this, it intends to observe how the negative image of racial mix was transformed into a positive image, which began presenting Brazilians as an exotic people, tolerant of racial matters.

KEY WORDS

Science, Trips, Racial diversity, Representation, Identity.

(*) Bacharel em Turismo pelo Centro Universitário da Bahia (FIB). Especialista em Metodologia do Ensino Superior pelo Centro de Pósgraduação Olga Mettig. Mestranda em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). O presente trabalho foi realizado com o apoio do CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO – CNPq - Brasil. woli99@yahoo.com.br

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Olívia Biasin Dias

Introduçao A transferência da Corte portuguesa para o Brasil e a abertura dos portos às nações amigas, em 1808, resultaram em fatos que incentivaram a vinda de estrangeiros às terras brasílicas. Esses acontecimentos, além de marcos no processo de emancipação política, assinalaram o início de novas relações comerciais e culturais, influenciando decisivamente no desenvolvimento urbano das principais cidades brasileiras. No decorrer do século XIX, a ciência, a psicologia e a história natural estavam em voga na França (considerada o centro da civilidade). Nesse período, é natural que tenha surgido nesse e nos demais países europeus uma tendência às viagens, prática que inspira conhecimento, aventura, coragem, determinação e crescimento econômico e cultural. Ademais, esse século foi marcado pelos ideais românticos, os quais apontaram novas motivações para as viagens: a contemplação da natureza, a apreciação das paisagens naturais e a necessidade de descanso. Grande parte dos viajantes que vieram ao Brasil oitocentista estava participando de expedições científicas que envolviam diversos países a serem visitados. Nessa categoria de pesquisadores destacaram-se geólogos, botânicos, zoólogos, naturalistas, mineralogistas, etnólogos e etnógrafos. No entanto, apesar de os cientistas representarem a maioria, eles não foram os únicos estrangeiros a aportar em terras brasileiras. Muitos artistas, jornalistas, missionários religiosos, representantes diplomáticos, homens de negócios, comerciantes, técnicos, engenheiros, médicos, educadores, profissionais liberais, pessoas com a finalidade de visitar parentes e aventureiros estiveram no Brasil a trabalho e/ ou a passeio (PIRES, 2001). Outros indivíduos vieram ao Brasil com a intenção de escrever sobre a experiência da viagem para, ao voltar ao seu país de origem, publicá-la. Nesse período, o gênero de aventura estava em voga na Europa e os jornais e as editoras se interessavam pelos relatos de viagem, já que havia grande interesse por parte do público nesse tipo de literatura. Vale 88

ressaltar que a produção literária, muitas vezes, mesclava o interesse acadêmico-científico com a intenção de difundir e legitimar o expansionismo econômico e político-militar de países europeus, especialmente da Grã-Bretanha, ou eram produtos de encomenda do governo brasileiro, visando atrair a imigração européia (AUGEL, 1980). No decorrer do século XIX, muitos estrangeiros estiveram na Bahia, inclusive algumas personalidades ilustres, a maioria com interesses científicos ou comerciais. Em 1806, por exemplo, Jérôme Bonaparte, o irmão de Napoleão Bonaparte, passou uma curta temporada na Bahia. De 1815 a 1818, Maximiliano (Príncipe de Wied-Neuwied), Von Spix e Von Martius, respectivamente, vieram à Bahia pesquisar a fauna e a flora locais. Por volta de 1820, muitos naturalistas principescos e plebeus estiveram na Bahia em busca de plantas e animais, que se destinavam a aumentar as coleções dos museus e das universidades de seus países. Em 1818, foi a vez do comerciante francês Louis François de Tollenare. Maria Graham também passou por aqui em 1821; o Príncipe de Joinville, em 1840; o Conde Castelnau permaneceu na Bahia de 1848 a 1855; o Príncipe Duque de Wurtemberg veio à Bahia, em 1853; Louis Agassiz e sua esposa estiveram aqui em 1865; o espanhol Manuel de Almagro veio ao Brasil em uma expedição científica, passando pela Bahia em 1862 e o Arquiduque Maximiliano da Áustria conheceu a província da Bahia no ano de 1860. Esses viajantes usufruíram de serviços de hospedagem1, transportes, alimentos e bebidas, guias, intérpretes, além de terem tido contato com uma cultura diferente da sua, o que propiciou troca de experiências, conhecimentos e influências mútuas (VERGER, 1999). O fato de os viajantes que vieram à Bahia no oitocentos nem sempre pertencerem à mes-

(1) Vale ressaltar que a maioria das personalidades importantes que esteve na Bahia no período oitocentista se hospedou na residência de moradores pertencentes à elite local ou em edificações públicas.

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Viagens científicas no Brasil oitocentista ...

ma classe social e de não possuírem os mesmos objetivos resultou em uma heterogeneidade de interpretações e juízos de valores feitos por eles. Ademais, como os visitantes não faziam parte da sociedade local, já vinham ao país com uma idéia pré-concebida sobre o mesmo. Muitos também tinham dificuldade para entender o idioma local e tiveram um contato mais próximo apenas com estrangeiros ou indivíduos mais abastados, com costumes “europeizados”. Assim, diversos viajantes estrangeiros escreveram sobre os fatos observados (aqueles considerados mais relevantes) sem contextualizá-los, o que acarretava em generalizações e imagens distorcidas. Essa observação nos mostra o quão importante se faz uma abordagem crítica no que concerne à análise desse tipo de literatura, até mesmo porque, nesse período, o relato de viagem constituia-se em “(...) um exercício de observação que não inclui a discussão do lugar do olhar” (LEITE, 1996, p.98).

A raça sob o olhar dos homens da ciência Os viajantes do século XIX, cientistas ou não, escreviam seus relatos sempre em torno das mesmas temáticas. Além das condições de “progresso” e “atraso” das localidades visitadas e do cotidiano dos que aqui viviam, o que mais lhes chamava a atenção eram as diferenças geográficas e sócio-culturais, tanto que eles costumavam descrever tudo o que consideravam exótico e pitoresco, sendo a vida dos escravos e a maneira como eles eram tratados pelos senhores, alguns dos assuntos mais comentados (PIRES, 2001). Os negros eram considerados diferentes do restante da população devido à sua procedência, cor da pele e cultura. É recorrente a percepção de que eles eram inferiores, idéia dominante na época. Muitos visitantes se incomodavam com o fato de os negros participarem do cotidiano das cidades, ficando evidente a mescla de curiosidade e repulsa que permeava os sentimentos desses estrangeiros 2. Durante todo o século XIX, a interpretação pessimista, que via o Brasil como atrasado em função

da sua composição étnica e racial, era bastante difundida tanto internamente quanto no exterior, pois, nesse momento, as teorias científicas priorizavam o tema racial na análise dos problemas locais. O viajante naturalista Von Martius, que esteve no Brasil entre 1817 e 1820, chamou a atenção para a diversidade dos tipos humanos que foi observada em uma procissão religiosa na Bahia, na qual o viajante pôde analisar “as particularidades das diferenças, classes e raças” (SPIX; MARTIUS, 1981, p.81). Por sua vez, no ano de 1843, o Conde de Suzannet, durante sua estada na Bahia, chocou-se com a “imoralidade” de todas as classes sociais que, segundo ele, “(...) possibilitou o cruzamento das raças e destruiu todos os preconceitos de casta” (SUZANNET, 1957 apud AUGEL, 1980, p.180). Entretanto, apesar da visão negativa que a maioria dos visitantes possuía sobre o Brasil, principalmente quanto aos seus aspectos raciais e culturais, o país também era visto, por muitos que por aqui passavam, como um local de beleza singular e exuberante, devido às suas riquezas naturais. Após a independência do Brasil, ocorrida em 1822, as viagens de cunho científico que visavam (re)conhecer os meios natural e cultural do país foram muito valorizadas, pois, através das informações obtidas por meio delas, pretendia-se criar uma história oficial para o Brasil, que estivesse de acordo com os interesses das classes dominantes e que legitimasse o poder do Imperador. Um exemplo disso foi a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), inaugurado no Rio de Janeiro, em 1838, que, segundo Marilena Chauí (2000), tinha como objetivo a construção de uma história para o Brasil, solidificando mitos de fundação e criando um passado glorioso e um futuro promissor para o povo brasileiro. Responsável por construir a história do país, o Instituto promoveu um concurso no qual seria o ganhador quem melhor escrevesse

(2) Sobre a escravidão, ver Kátia M. Mattoso. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.

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15) Envie seu artigo para vicentini@fib.br - ao enviar o artigo eletronicamente fineza ligar para a instituição informando. Tel. (71) 21078313. REFERÊNCIAS No final do artigo deve aparecer a referência bibliográfica completa, em ordem alfabética, de acordo com as normas da NBR 6023 da ABNT. Livros:

CERQUEIRA, Nelson. A crítica marxista de Franz Kafka, Salvador, Editora Cara, 2005, 208 p.

Artigos:

GURGEL, C. Reforma do Estado e Segurança Pública. Política e Administração, Rio de Janeiro,v.3,n.2,p.15-21,set.1997.

Autor Entidade:

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, Catalogo de Teses, 1999, Salvador, 2000,467 p.

Artigo em meio eletrônico:

SAMPAIO, R. Câmara Setorial do Livro e da Leitura, Cadeia Produtiva do Livro, Londrina, n.3, 2001. Disponível em :<http://www.funpar.org.br/contexto. htm, Acesso em: 24 jun.2005.

Endereço para correspondência: Editora FIB Rua Xingu, 179 – Jardim Atalaia – Stiep 41770-130 – Salvador – Bahia – Brasil Telefone: (71) 2107 8313 Fax: (71) 2107 8322 E- mail: revistatextosecontextos@fib.br / vicentini@fib.br

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