Design de Livro | Nagô

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© 2005 by Vilson Caetano de Sousa Júnior. Todos os direitos reservados.

Coordenação Editorial: Maria Vicentini Foto da capa: Sarah Hallellujah (Irmandade da Boa Morte, Cachoeira-Bahia, 1998). Revisão: Shaúla Sampaio Projeto Gráfico, Capa, Digitalização das imagens e Editoração Eletrônica: AmaisD Flavia Gil e Francisco Sampaio - amaisd@gmail.com

Apoio: Fundação Palmares, Editora Fib, Fundação Juazeirense para o Desenvolvimento Cientifico e Tecnologico do São Francisco e Universidade do Estado da Bahia - Pró-Reitoria de Extensão.

FICHA CATALOGRÁFICA (Elaborada pela Bibliotecária Luciana Borges de Almeida – CRB-5 1399)

Sousa Júnior, Vilson Caetano de Nagô: a nação de ancestrais itinerantes / Vilson Caetano de Sousa Júnior. – Salvador: Editora FIB, 2005. 150 p.; il. ISBN 85-88858-16-9 1. Cultos afro-brasileiros - Brasil 2. Religiões afro-brasileiras 3. Negros – Bahia 4. Candomblé – Cachoeira (BA). I. Título. CDD: 299.67


VILSON CAETANO DE SOUSA JÚNIOR

A NAÇÃO DE ANCESTRAIS ITINERANTES

SALVADOR 2005



RESUMO

Os africanos, de forma especial, “os últimos”, influenciaram profundamente o processo de constituição daquilo que se entende hoje como cultura afro-baiana. Na cidade de Salvador, estudos mais sistematizados começaram a ser desenvolvidos no final do século XIX, a partir dos olhares etnocêntricos da “escola Nina Rodrigues”. Embora limitados pelo preconceito, algumas destas reflexões propiciaram aquilo que chamamos de estudos sobre o negro no Brasil, de forma especial na cidade de Salvador. Desde cedo, ora por razões históricas, ora por questões de interesse, os chamados nagôs, africanos entrados em maior proporção nos dois últimos ciclos do tráfico, de língua iorubá, chamaram a atenção dos estudiosos. O privilégio alcançado por estes africanos em detrimentos de outros, criou, entre os estudos, o que se chamou recentemente de “nagocracia”. Este projeto, embora tenha em vista esta questão, não pretende entrar neste debate. É inegável o papel, o significado e a relevância destes últimos grupos, embarcados no Golfo de Benin, e sua importância para a conservação de formas sociais, políticas, culturais e religiosas, sobretudo no que diz respeito à constituição de um modelo religioso chamado de candomblé, organizado através de “nações”. Na colônia brasileira, se é verdade que o Recôncavo Baiano não pode ser analisado a parte, também é digno de nota que as suas particularidades também não podem ser minimizadas. Desde cedo, africanos introduzidos nesta região foram capazes de desenvolver “formas de vida” muito próprias. É neste sentido que estamos entendendo a constituição do chamado candomblé nagô na cidade de Cachoeira. Longe de remeter somente às tradições iorubás vindas do antigo reino de ketu, a nação de candomblé nagô, na cidade de Cachoeira, possui outro significado ou passa por outras referências e construções, ligando-se profundamente a tradições vindas do antigo Daomé, ao lado de tantas outras.



SUMÁRIO

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PREFÁCIO

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APRESENTAÇÃO

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INTRODUÇÃO

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I CAPÍTULO Fazer e afazeres africanos na cidade de Cachoeira

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II CAPÍTULO Os filhos da estrela

73

III CAPÍTULO Akoladié, um pedacinho do Nagô

91

IV CAPÍTULO Os Nagôs e a reinvenção das teias familiares

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CONCLUSÃO

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REFERÊNCIAS



APRESENTAÇÃO

O Professor Vilson Caetano de Sousa Júnior, pesquisador e antropólogo formado pela PUC - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde defendeu tese de doutorado1 orientada pela Professora Dra. Josildeth Gomes Consorte, resolveu investigar o candomblé da cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Seu objetivo era principalmente pesquisar o sentido que o tão controvertido termo “nagô” havia adquirido por aquelas bandas. A Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto de Cachoeira, situada às margens do rio Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, conserva tesouros da arte e da arquitetura colonial, e guarda ainda muitos mistérios e muitos feitiços. Conheceu o apogeu do cultivo da cana-de-açúcar, nos séculos XVII e XVIII, produziu o fumo tão apreciado na África que serviu de moeda para o “resgate” de escravos nas costas da Mina, recebeu levas de africanos escravizados que vieram trabalhar nas fazendas e nos engenhos, trazendo seus costumes, suas línguas, suas religiões. Entrou em decadência no século XIX com a emergência econômica do sudeste. Ao contrário dos terreiros de candomblé da cidade de Salvador, objeto de estudo privilegiado desde os tempos de Nina Rodrigues, em Cachoeira, só a Irmandade da Boa Morte tem alcançado algum destaque entre os cientistas sociais e os meios de comunicação. Vilson Caetano de Sousa Júnior resolveu então enfrentar o desafio de desvendar alguns dos segredos escondidos em Cachoeira. A partir de um trabalho minucioso nos inventários do Arquivo Público da Cidade, o autor vai esmiuçando não somente temas relacionados à origem e procedência dos diferentes grupos que compuseram a população escrava do recôncavo, mas também seus serviços e ocupações, além das principais doenças que se abatiam sobre estes escravos. Isso permitiu, reconstituir, paralelamente, o cotidiano dessa população. Segundo o autor, diferentemente de alguns terreiros de candomblé da cidade de Salvador que 1

“Roda o balaio na porta da igreja minha filha, que o santo é de candomblé”, 2001.


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NAGÔ

A NAÇÃO DE ANCESTRAIS ITINERANTES

utilizava largamente a expressão nagô até inícios do século XX, hoje substituída pela palavra ketu, permanecendo somente em poucos momentos da vida de alguns terreiros e na memória de sacerdotes mais velhos, em Cachoeira, nagô é expressão frequentemente utilizada na vida cotidiana e pode equivaler a algo “africano”; contrapor-se ao “não-africano” e também ao modelo ritual denominado ketu de Salvador. Outra observação que traz este trabalho é o caráter itinerante dos terreiros do Recôncavo - tal característica pode ser explicada a partir da história dos próprios antepassados nagôs, grupos que vieram da África onde tinham uma história de longas migrações até a época em que se estabeleceram no sudoeste da Nigéria. Este livro nos leva a perceber como esta “estratégia da mudança”, conferiu-lhes a capacidade de se integrar sem perder a sua identidade. Antes de apresentar uma tipologia sobre a nação nagô da cidade de Cachoeira, o livro reúne uma série de depoimentos, resumidos na frase de uma ialorixá: “Tudo são nagô. Agora, tem o nagô ijexá ,nagô jeje, nagô ketu...”. Cada uma destas variantes distingue-se por algumas particularidades; particularidades estas construídas a partir da história concreta destas comunidades. Nesse sentido, é emblemática a descoberta de um terreiro, chamado Lobanekum Filho, descente de outro com o mesmo nome, situado fora do perímetro urbano da cidade de Cachoeira, fundado por Amazília Rocha, que não inclui a raspagem da cabeça na iniciação, fato que é mencionado por vários entrevistados como uma das características de alguns terreiros mais antigos da cidade. Ganha evidencia também, a presença de um candomblé mussurumi que segundo os informantes teria desaparecido com o seu último herdeiro. Neste candomblé, cultuava-se Xangô, orixá descrito como rei do nagô, as cerimônias eram desenroladas numa cada modesta sempre ao cair da tarde. A referência a estrela de Davi, ao lado de outros símbolos, ou mesmo referências como o termo malê, abre espaço para retomarmos os estudos sobre o diálogo entre alguns elementos islâmicos e outros símbolos negro-africanos. Outro aspecto que o livro traz é a maneira como em Cachoeira a família biológica se expande e prolonga na família-de-santo reconstituindo a extensa família africana. Nos terreiros nagôs, os laços biológicos se cruzam com os laços da iniciação e com relações de prestígio, estabelecendo uma vasta rede de relacionamentos que se estende inclusive fora da cidade. O trabalho de Vilson Caetano de Sousa Jr. ainda nos permite, pela comparação do candomblé de


APRESENTAÇÃO

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Cachoeira com o de Salvador, apreender as transformações por que passou as religiões africanas, pois várias práticas, vários usos vivos em Cachoeira já existiram em Salvador onde se perderam. Os relatos, as histórias de vida recolhidas pelo autor mostram como as matrizes culturais africanas não somente percorreram caminhos longos e diversos, por terra e mar, como produziram respostas imprevisíveis, como recriaram o passado e o mito com os ingredientes de cada momento vivido na itinerancia dos ancestrais. As páginas que se seguem representam uma contribuição singular para a reconstituição da nossa memória, do nosso patrimônio e da nossa identidade cultural. Claude Lépine.

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na cidade de Cachoeira

I CAPÍTULO

Fazer e afazeres africanos

I CAPÍTULO Fazer e afazeres africanos na cidade de Cachoeira



I CAPÍTULO

FAZER E AFAZERES AFRICANOS NA CIDADE DE CACHOEIRA

A maioria das casas residenciais tem problemas espirituais. De vez em quando, um orixá panha a pessoa, diz que não é da família. Às vezes, Exu panha a pessoa como eu já vi; diz que não foi mandado, que ele é da casa e que não é pra fazer tal construção em tal lugar... São africanos que se passaram, que morreram pelo passar dos tempos da sua idade ou se não; matado pela perseguição da época que matava muitos africanos. Aí foi passando... A ladeira Manoel Vitório, toda ela é compromissada. Tem pessoas com problemas dentro de casa porque foi terreno de africanos que alguém derrubou casa, o peji ficou enterrado... Se as casas de famílias daqui foram passadas por africanos, imagine os terreiros de candomblé.1

Os africanos marcaram sensivelmente a vida da vila, que, no final do século XVIII, tornou-se a mais rica do Recôncavo. Esta visibilidade da vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto de Cachoeira está relacionada ora ao comércio, ora à fertilidade de suas terras e ao clima saudável, conforme descreveu Vilhena (1922, p.506). Por outro lado, as oportunidades criadas pelo fumo e pelos tratados internacionais possibilitaram a entrada de africanos, das mais variadas partes do continente. Isso resultou, como sugere Schuwartz (1999, p.282), numa população escrava marcada pela mistura de povos. Essa noção de diversidade de grupos africanos, embora possa ter escapado em alguns trabalhos, é preservada de várias formas através da memória dos moradores de Cachoeira, não estando atrelada necessariamente aos candomblés. Não é muito difícil, em conversas do cotidiano, aparecerem expressões como: negra da costa, nagô, jeje, mussurumim ou, simplesmente, africano. A própria concepção desta cidade traz a idéia de que toda ela possui um passado africano muito presente. São estes homens e mulheres que irão fundamentar, não somente as religiões de matrizes africanas presentes na cidade, mas também seus costumes. A fim de dar visibilidade à vida destas pessoas ou, ainda, tentando responder quem são estes africanos tão mencionados no dia a dia da cidade e nos terreiros de candomblé, lançamos mão do estudo dos Inventários post-mortem no período de 1712 a 1866. Estes documentos, disponibilizados no Arquivo Público da cidade, entregues à sorte, sem nenhum cuidado com a sua preservação, lutam contra o tempo para não desaparecerem nas mãos do pesquisador, devido ao avançado estado de desgaste ocasionado pelo tempo. Ler o que foi possível destes Inventários nos permitiu visualizar, além do cotidiano, uma série de questões, dentre elas, o modo como as pessoas viviam e as ocupações da população escrava da qual os moradores da cidade dizem originar-se. 1

Entrevista com Sr. Luís Magno.

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NAGÔ

A NAÇÃO DE ANCESTRAIS ITINERANTES

Tabela 1 Identificação dos escravos Identificação Africanos Crioulos Mulatos, mestiços, cabras e pardos TOTAL

Total 261 228 79 568

Percentual 46% 40% 14% 100%

Há uma predominância dos africanos entre os 568 escravos declarados nos Inventários. Se somarmos o número destes com o de crioulos, teremos, assim, uma “população preta” de 86%. Embora se saiba que, no período, esta última palavra seja apenas reservada aos africanos não nascidos no Brasil. Os 261 africanos citados estão identificados da seguinte maneira: Tabela 2 Identificação dos africanos por “nação” nos Inventários Nação Nagou Gege Angola Sem identificação (Africano) Mina Ansá Congo Benin Tapa Benguela Cabinda Carabari, Codá, Mofiambagira, Bonan, Barbá, Santo Tomé, Cotocori, Medubem, D´Agomé, Moçambique, Calabá, D´Costa 17 Africanos

17

Todos com menos de 1% somados.

Total 63 45 36 30 20 21 10 5 5 5 3

Percentual 24% 17% 14% 11% 8% 8% 4% 2% 2% 2% 1%

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7%

261

100%


I CAPÍTULO

FAZER E AFAZERES AFRICANOS NA CIDADE DE CACHOEIRA

Como sugere o historiador João José Reis (2003, p.307), a redefinição constante do cenário étnico africano na Bahia, motivada por uma série de fatores, dentre eles o tráfico constante com diversas partes do continente africano, dificulta qualquer estudo sobre as procedências dos africanos entrados no país. É bem provável, como sugere Mara Inês Cortês de Oliveira (1997, p.67), que algumas expressões, como nagô, angola e jeje, sejam formas reconstruídas de identificação étnica, em torno das quais, diversos grupos africanos se organizaram para enfrentar, de um modo muito próprio, as novas condições de vida impostas pelo regime escravista. Nos inventários abertos da cidade de Cachoeira, os escravos identificados como nagôs estão em primeiro lugar, seguidos dos jejes, angolas, minas e hauçás. A palavra nagô, amplamente difundida no cenário do tráfico, sobretudo no período de 1770 a 1850, realizado principalmente no Golfo de Benin - embora não parassem de chegar africanos de outras partes do continente -, na Bahia, inicialmente foi empregada para designar os africanos de fala iorubá. Segundo João José Reis (2003, p.336), “os escravos de fala iorubá vieram a se reconhecer como nagôs na Bahia antes de se reconhecerem como iorubás na África”. Tal expressão, segundo o mesmo autor, “muitas vezes era um recurso identitário largo demais para conter o desejo ou a necessidade de uma referência mais precisa de origem” (REIS, 2003, p.338). Estes africanos chegavam, assim, de territórios iorubás marcados por conflitos inter-étnicos no Golfo de Benin, intensificados a partir de 1820, sobretudo na região de Lagos, Porto Novo, Ajuda e Badagri. O segundo grupo mais citado nos inventários são os jejes, escritos como gege. Tratam-se de povos da região da baía do Benin - atual Togo, República do Benin e sudoeste da Nigéria. Estes estão divididos em vários grupos lingüísticos, dentre os quais a língua ewe, fon e adja. Outra identificação que merece destaque é “angola”. Nos últimos anos, vários estudos vêm sendo desenvolvidos sobre as estreitas relações entre o Brasil e as regiões sub-equatoriais. A região de Angola, embora tenha passado por altos e baixos, nunca deixou de ser um manancial de escravos para a América portuguesa. Mesmo por volta de 1780 a 1820, quando jejes, nagôs (iorubás), tapas, (nupês), hauçás e outros povos sudaneses predominaram entre os cativos baianos, não paravam de chegar africanos de Luanda, Benguela, pequena cidade que ficava ao sul de Angola (MILLER, 1999, p.13) e Cabinda, região ao norte do Zaire ou costa de Loango. A ilegalidade do tráfico, a partir de 1831, não intimidou os traficantes de escravos no Atlântico Sul. “Só em

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NAGÔ

A NAÇÃO DE ANCESTRAIS ITINERANTES

1831 e 1855 entraram no Brasil cerca de 718.000 escravos” (AMARAL, 1999, p. 143). Faz parte, também, desta região, a ilha de São Tomé, situada abaixo do Golfo da Guiné, “na costa atlântica dos Camarões e Gabão” (CASTRO, 2001, p.34), de onde provêm os grupos denominados Moçambiques e Calabá. Com relação à expressão “mina”, é também difícil afirmar a quais grupos étnicos pertenciam os escravos assim nomeados. Faziam parte da Costa da Mina pequenos grupos litorâneos que iam desde estados, como o antigo reino de Benin, aos reinos de Ardra Oió, Achanti e Daomé (SOARES, 2000, p.72). Se levarmos em consideração que geralmente hauçás - grafados nos inventários como “ansá” e “tapas” - eram africanos islamizados, a presença destes nos Inventários de Cachoeira chega a 10%, uma quantidade nada desprezível. Estes grupos representam a comunidade mulçumana em Cachoeira. Esta referência vai aparecer através da citação de um candomblé mussurumi, “fundado por africanos que vieram da Costa para a cidade”. O candomblé mussurumi era mais fechado do que o jeje. Ficava abaixo da Lagoa Encantada. Era uma obrigação feita em família todos os anos. Um candomblé que começava no final da tarde e terminava antes da meia noite.18

Ainda é muito presente na cidade de Cachoeira a expressão “malê”. Esta, por sua vez, sempre que é lembrada, surge associada à morte, conseqüentemente à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, à Casa Estrela, que comentaremos no capítulo seguinte, ou ainda, em outras palavras, como sugeriu um dos entrevistados, ao “povo oriental.” Sobre os escravos identificados como d´agomé, não resta dúvida que façam parte do grupo lingüístico ewe- fon, nomeados de jejes, minas, mahi, savalus, mas também mudubis (CASTRO, 2001, p.39). Os calabaris, provenientes da Nigéria na última fase do tráfico, apresentavam um “falar regional da língua ijó, tendo como centro a cidade de Port-Harcourt, também no Sudeste (CASTRO, 2001, p.41), e junto Bariba, grafado como Barba, eram línguas faladas ao norte do Togo e da Nigéria (CASTRO, 2001, p.43). O valor do escravo variava conforme a sua idade, o estado de sua saúde e as suas ocupações. Isso 18

Entrevista com Luís Magno dos Santos.


I CAPÍTULO

FAZER E AFAZERES AFRICANOS NA CIDADE DE CACHOEIRA

valia, sobretudo, para os escravos da cidade. Dos 89 inventários abertos, Gracia Angola, escrava de Torquato Fernandes da Assunção19, foi avaliada com o menor valor: seis mil réis - a velha e doente que “não dá mais serviço.” Em contrapartida, Jorge Africano, “maior de quarenta anos, poucos mais ou menos”20, escravo de Joaquina Júlia Navarro Sampaio Melo, foi avaliado por novecentos mil reis. Havia, ainda, escravos sem valor, como: Igniz Angola, “muito velha que não dá mais para serviço”, escrava de Torquato Fernandes da Assunção 21; Anna Africana “bastante velha”, escrava de Joaquina Júlia Navarro Sampaio Melo 22; Theodozia Gege, “ idoza, cuberta de cancro nos peitos, e principiando alastrar pelas costas”, escrava de Manoel Moreira de Freitas Nogueira 23 e “Antônio nação gege”24, escravo de Maria Rosa de Santa Rita. Dos serviços e ocupações

Nos 89 inventários consultados, a descrição de 568 escravos aparece acompanhada de seus serviços. Como observamos anteriormente, não foram considerados, no estudo, os escravos que não trazem tal identificação, nem, tampouco, muitos de seus filhos, uma vez que o objetivo deste levantamento foi dar visibilidade aos afazeres africanos na cidade de Cachoeira, a fim de tornar presente quem eram estes homens e estas mulheres que nunca abandonaram suas casas, conforme o relato citado no início deste capítulo. Este foi um dos motivos pelo qual preservamos, ao máximo, os nomes das ocupações que aparecem nos Inventários. As ocupações dos escravos eram múltiplas: serviços de casa, serviços da enxada, sapateiro, ganho, cozinheiro(a), lavoura, barbeiro, carregador, enrolador de fumo/ fumeiro, feitor, alfaiate, lavadeira, serviço de pedreiro, pesar tabaco, canoeiro, marinheiro, engomadeira, carpinteiro/aprendiz de carpina, costureira, vaqueiro, carreiro, caldeireiro, tecedor de tecido, oleiro e rendeira. Desempenhar certas funções, na maioria das vezes, além de estar diretamente ligado ao tipo de trabalho servil deliberado pelo senhor, relacionava-se a um conjunto de manobras que o escravo tinha que realizar a fim de conquistar seu senhor e merecer dele confiança, desfrutada por ele 19

Cx 121 (1827-1845). Cx 133 (1864). 21 Cx 121 (1827-1845). 22 Cx 133 (1864). 23 Cx 1369 (1834-1843). 24 Cx 144 (1830-1834). 20

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NAGÔ

A NAÇÃO DE ANCESTRAIS ITINERANTES

Tabela 14 Doenças citadas nos inventários Enfermidade Adoentado Erizipela Aleijado Mal da gota Falta de 3 dedos Cego Chaga nas pernas Rendido da verilha Quebrado da espinha Sofre do peito Pés inchados/doente dos pés Calor do fígado Reumatismo Sirro no útero Coceira Barriga crescida Doente das cadeiras Corrimento Adoentado do estômago Madre de fora Cravos Debilidade Frouxidão nas pernas Estoporado Inflamação dos ossos

Africanos 11 06 08 03 04 04 10 01 02 02 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 -

Crioulos 08 01 15 06 01 06 03 08 04 02 01 01 01 01 01 01

Cabras e pardos 05 04 01 01 01 01 01 -

A palavra “adoentado” nada informa. Ela é um termo muito genérico que aparece nos Inventários, não indicando o tipo nem a gravidade da doença. A partir da tabela acima, podemos perceber que africanos e crioulos, ao menos os que foram inventariados no período estudado, eram, na sua maioria, aleijados e “rendidos da verilha”, situação explicada a partir dos serviços de enxada que a maioria desempenhava.


I CAPÍTULO

FAZER E AFAZERES AFRICANOS NA CIDADE DE CACHOEIRA

O mal da gota é a doença que mais apareceu entre os crioulos e pardos. Trata-se de um acúmulo de ácido úrico no sangue que provoca dores nas articulações. Em seguida vem a erizipela, doença que, ainda hoje, dentro do universo afro-brasileiro, é coberta de uma série de significados. Seu nome nem se pronuncia. Acredita-se que esta seja a melhor prevenção na casa de doente que tem qualquer ferimento. Também é chamada de mal da praia, zerpela, izipela, e consiste em uma infecção da pele provocada por uma bactéria. Geralmente, a inflamação inicia-se com um ferimento. Não é preciso ir muito longe para demonstrar porque essa doença, na população escrava, era muito freqüente. As longas horas de trabalhos, na maioria das vezes de pé, ora andando, ora parado numa mesma posição, como era o caso das lavadeiras, somadas a outros fatores, contribuíam para o desenvolvimento de tal doença. Além dos afazeres africanos, dos quais até agora nos ocupamos, é interessante observar que estes homens e mulheres, cada um à sua maneira e respeitando as especificidades de cada grupo diante de diferentes contextos e situações que foram desafiados, não foram apenas escravos de senhores. Não poucas foram as vezes que estes se tornaram senhores de si próprios. Este “fazer africano” pode ser entendido a partir das várias insurreições que a população escrava suscitou no Recôncavo e, de forma especial, na cidade de Cachoeira, como os levantes ocorridos em 1814, 1816, 1827 e 1828.37 Por todo o Recôncavo, confessou o escravo José, estão espalhados comissários a fim de fazer extensiva a mesma sociedade [male] [...] e ouviu de alguns outros pretos em diversas ocasiões disserem que quando for necessário o rompimento geral, os escravos do recôncavo viriam socorrer os dessa cidade (REIS, 2003, p. 251).

Além de ser ponto de partida de algumas insurreições, o Recôncavo era o destino da Revolta de 1835, que iria matar os brancos e estabelecer a liberdade aos africanos. As próprias medidas normativas elaboradas em Salvador - que incluíam a proibição de festas e reuniões africanas e a livre circulação de libertos à noite, os açoites públicos, a proibição de guardar, nas senzalas, armas de fogo, a marcação com ferro e o toque de recolher - estendiamse ao Recôncavo. Isso se torna outro aspecto ilustrativo da intervenção destes grupos, de forma incisiva, na vida da cidade, sem falar nos aspectos culturais. 37

Sobre estes levantes iniciados no Recôncavo, ver o que diz João José Reis, em “Rebelião escrava no Brasil: história do levante dos malês”.

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Os filhos da estrela

II CAPÍTULO

II CAPÍTULO Os filhos da estrela



II CAPÍTULO

OS FILHOS DA ESTRELA

Todos são nagô. Agora tem o nagô ijexá, nagô jeje, nagô ketu. É uma separação. Mas, na palavra mesmo original do candomblé do mundo, todos somos nagô. Só não o caboco, que é índio mesmo.Tudo que tem encima desse mundo é nagô, agora cada um tem a sua separação...

Nagô - anagou ou nagou, utilizando a forma de escrita como esta palavra aparece na maioria dos documentos - era, segundo Nina Rodrigues (1988, p.104), o grupo mais numeroso e significativo no tempo de suas pesquisas. Vindos de Oió, os mais numerosos se subdividiam em outras nações como Ijexá, Egbá, Abeokutá, Ijebu, Ifé, dentre outras. Após esta constatação, muitos estudos se seguiram e têm dado explicações bastante significativas sobre a presença dos chamados nagôs na Bahia a partir dos finais do século XVIII, período de bastante significado tanto para a Bahia, quanto para o comércio de escravos, sobretudo no Golfo de Benin. Como estamos demonstrando, neste período, o Recôncavo Baiano assistiu o crescimento de sua economia e, com ela, o surgimento de algumas vilas. Por outro lado, a utilização do tabaco baiano, desde o século XVII, na Região da Costa da Mina (VERGER, 1987, p.20), como moeda preferencial do tráfico “vai criar um movimento comercial importante que, desde o começo do século XVIII, escapava ao controle de Lisboa” (VERGER, 1987, p.21). No continente africano, além de conflitos nos reinos do Norte, o final do século XVIII vai assistir a desintegração do império de Oió (REIS, 2002, p.162). Com este reino fragilizado, uma série de conflitos vão estourar na região até então pertencente a seu império e vários prisioneiros de guerra serão vendidos e traficados para o Brasil. Esses conflitos fizeram-se refletir profundamente na população escrava da Bahia, que viu crescer significativamente o número de africanos embarcados em portos, como Onin, Badagri, Porto Novo e Uidá. Segundo o historiador João José Reis (2003, p. 336), estes africanos oriundos de Oió, maioria considerável entre os iorubás da Bahia, tiveram uma participação significativa no processo de elaboração da chamada identidade nagô. Verdade é que tal palavra, utilizada pelos traficantes para designar os africanos de fala iorubá entrados na Bahia a partir dos finais do século XVIII, aos poucos foi ganhando novos significados a partir de contextos diferenciados vividos pela população escrava da Bahia. Outra explicação etimológica da palavra nagô foi encontrada pelo professor Vivaldo da Costa Lima (1977, p.16), em suas pesquisas. Segundo um de seus informantes, nagô ou anagô poderia também significar “sujo” ou “piolhento”, em uma menção ao modo como alguns iorubás chegavam, fugindo das guerras. Não vamos, todavia, nos prolongar nesta discussão, mesmo porque

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NAGÔ

A NAÇÃO DE ANCESTRAIS ITINERANTES

Os motivos pelos quais alguns terreiros nagôs incluíram a raspagem na feitura de seus iniciados são os mais diversos. Eles variam desde situações particulares vividas pelos sacerdotes à presença de líderes religiosos vindos da cidade de Salvador, além da manifestação do próprio orixá, que pede para ser iniciado em um novo rito, como aconteceu no candomblé de Seu Justo, hoje liderado pela sua filha consangüínea, Dona Maria. É Luis Magno quem vai lembrar este fato: Houve uma neta da casa que o santo caiu e então foram recolher o santo e o santo não aceitou a nação dos avós e dos pais. O orixá não estava obedecendo a regra. Então, quando foram ver, o orixá era de uma família diferente. Teve que contratar uma pessoa do Axé Alaketu para cuidar das obrigações da iaô. Então nessa casa hoje se raspa. Isso aconteceu pela hierarquia de um orixá de uma pessoa da família. Não foi por teimosia ou por eles querer se aparecer. Mas se tiver de recolher um filho no nagô antigo, eles recolhem.

Sobre isso, Dona Maria, conhecida como Maria de Justo, vai observar: 8 Hoje a gente não faz o candomblé só no nagô. Devido, eu acho que como as pessoas mudam, os orixás também tão mudano. No candomblé não... Na minha obrigação eu não misturo nada. È no nagô é no nagô. Eu fui feita no ketu. Minha mãe chama-se Lourdes de Oxalá. Ela é filha de Sr. Nezinho. Meu pai não poderia fazer a minha obrigação. Minha casa é nagô, mas dentro desta casa eu fui feita no ketu... São coisas que eu não gosto nem de falar. Porque até hoje eu estudo, procuro saber o significado dessa mudança desses orixás e não tenho resposta. Meu pai já estava se sentindo fraco de saúde e não queria que a casa dele acabasse, então Xangô abriu para ele mandar fazer alguém para ficar na casa que é a minha dofona, minha sobrinha que já faleceu. Isso foi mais ou menos em 74. O barco foi de três: A dofona de Iansã, minha mãe era dofonitinha de Iemanjá e gamo de Nana era eu.

É imprescindível, ao falar do candomblé nagô na cidade de Cachoeira, mencionar nomes de tios e tias africanos/as e pessoas profundamente conhecedoras das “coisas da seita”, como diversas vezes ouvimos. Homens e mulheres que tinham o poder de adivinhar sem utilizar nenhum instrumento advinhatório, que se transportavam de um lugar para o outro na forma que queriam ou que tinham o poder de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Homens e mulheres, comerciantes, donas de casa, donos de roça, barranqueiras, ganhadeiras ou que simplesmente viviam da profissão de “curador” ou curandeira, que traziam a velha Cachoeira de seu tempo resolvida com seus bozós, como Porfíria de Ogum, sempre referida pelos entrevistados como Aleijadinha, 8

Entrevista realizada no dia 08/06/2004.


II CAPÍTULO

OS FILHOS DA ESTRELA

além dela são citados: Tia Águida de Iemanjá, Pai João, temido como grande feiticeiro 9, Judite de Aganju, a mulher que se transportava para a África na forma de um pássaro, ao lado de outros nomes como Maria Benedita, Juliana, Maria Democrata, Tio Anacleto, Zé do Vapor, ou mesmo um sacerdote chamado Da Lama. Pai João era um velho claro que andava muito dessarrumado. Metia medo às pessoas. Uma que o povo dizia que ele era muito feiticeiro e eu achava que era mesmo. Se ele chegasse aí na porta como agente está conversando agora e ele invocasse, ele tirava nós dois daqui sem nada. Eu já cansei de ter visto e ouvi. Ele estava aqui agora e daqui a pouco viam ele lá em baixo na rua. Saía que ninguém via. Eu não sei como ele fazia aquilo Só podia ser magia dele.10 Mãe Judite nasceu no Brasil. Eu não sei como ela ia para a África. Diz o povo que ela tinha o preceito dela que ninguém via como é que ela saía de casa, nem via como chegava. Ela se transformava num pássaro para viajar e tinha uma amiga que conhecia o pássaro. Quando passava ela dizia: já vai fulana ali. Muita gente não acredita, mas ela ainda reina dentro de casa. Quem manda e desmanda é ela até hoje. Não se faz nada sem o consentimento dela.11

Muitos desses terreiros desapareceram, ou com os seus donos, ou submersos pelas águas das enchentes que, antes da usina hidrelétrica de Pedra do Cavalo, construída em 1983, atingiram inúmeras vezes a cidade, ou mesmo por conta da perseguição policial no perímetro urbano, que, até a década de 70, ainda se fazia sentir profundamente, obrigando alguns a se deslocarem para sítios afastados da cidade. Alguns destes terreiros lutam, ainda, para sobreviver sob ruínas de casas de adobe que não podem ser modificadas ou mesmo em quartos das casas de famílias que, pelo menos uma vez por ano, transformam a sala em um barracão onde os orixás nagôs, voduns daomeanos e caboclos brasileiros vêm, cantam e dançam. A expressão nagô-vodunsi deixa transparecer as muitas relações estabelecidas entre as tradições iorubás e as da área gbe, chamadas genericamente de jeje. Vários estudos têm demonstrado que estes grupos tiveram uma participação expressiva da população escrava da cidade de Cachoeira. Desta maneira, na medida em que foram colocados em contato com outros cultos, processo já 9

No sentido de possuidor de grande conhecimento dentro da religião. Depoimento de Dona Maria de Justo ( 54 anos) sobre Pai João. 11 Entrevista com Antônio dos Santos Silva, Duda, 24 anos, atual herdeiro do terreiro fundado por Mãe Judite. 10

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Akoladié, um pedacinho do Nagô

III CAPÍTULO

III CAPÍTULO Akoladié, um pedacinho do Nagô



III CAPÍTULO

AKOLADIÉ, UM PEDACINHO DO NAGÔ

Sou feita no cabeludo. Nós não temos vergonha porque tudo é o mesmo vodun*.

Quem vai à cidade de Cachoeira e aproveita para fazer uma visita à Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Monte, construção do final do século XVIII (1795), não é capaz de imaginar que bem perto dali está uma das casas de candomblé mais antigas, situada dentro do perímetro urbano, resistindo à perseguição policial que, ainda na década de 70, era algo contundente nesta cidade. Diferentemente da organização dos terreiros que os estudiosos das religiões afro-brasileiras até então descreveram, a casa de Mãe Lira, como até hoje é conhecida, funciona como uma casa de residência (como de fato é), dentre outras existentes no Monte. A casa oito, onde esta iniciou o seu candomblé, está em ruínas à espera de que o poder público se manifeste e a reconheça como um patrimônio, material e imaterial, afro-brasileiro. Atualmente, a sua residência, geminada com esta casa, como todas as outras casas de sua rua, abre suas portas nos meses de junho e agosto para festejar os ancestrais da África ao lado dos santos de Roma e dos ancestrais brasileiros. Em trabalhos anteriores, já fizemos uma longa explanação do chamado sincretismo afro-católico, motivo pelo qual não nos deteremos nesta questão. Apenas gostaríamos de reafirmar que esta relação sincrética, que não pode ser pejorativamente entendida, não é sentida como uma mistura. Por outro lado, as relações entre as tradições de origens africanas e o catolicismo devem ser entendidas para além das velhas oposições santo católico versus orixá, e da idéia de que os primeiros nada mais seriam do que máscaras brancas no rosto de deuses negros. O sincretismo afro-católico foi elaborado a partir de matrizes profundamente criadoras, através das quais o universo católico foi entendido, relido e, em alguns momentos, recriado1. Não se trata, pois, de uma confusão, mas da capacidade de fazer uma experiência capaz de juntar elementos simbólicos num mesmo momento. Assim, temos a possibilidade do Orixá Ilú e do Orixá Igbó, ou seja, dos Santos africanos e dos Santos estrangeiros num mesmo momento. Durante todo o ano, a casa onde atualmente funciona o candomblé de mãe Lira, vizinha à casa 8, conforme veremos a seguir, fica com as janelas entreabertas para “tomar sol” e ventilar, servindo apenas de passagem para a casa dos fundos, onde mora sua sobrinha, Dona Bernaci, conhecida como equedi Cesi. * 1

Frase de Mãe Lira, relembrada por sua sobrinha. Sobre isso, ver livro “Orixás, Santos e Festas. Salvador”; Eduneb, 2003.

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NAGÔ

A NAÇÃO DE ANCESTRAIS ITINERANTES

Um dia de quarta-feira, ele veio de tarde, ficou na casa de uma filha de santo esperando a hora de ela dar a sessão. Quando disseram assim: seu pai de santo tá aí, veio pra ficar. Quando foi na hora da sessão, entra sai, entra sai gente... Porque era muita gente para Iemanjá fazer caridade, banho, trabalho e tudo. Ele aí veio e sentou. Ele era baixinho. Ele veio e sentou na sala e disse: koladié, porque minha tia Lira chamava koladiê, tô aqui, também vim para a sessão. Aí ficou. Aí ele prendeu Iemanjá, porque antigamente se prendia orixá. Iemanjá não veio e a casa cheia de gente. O povo todo esperando, Dindinha concentrava, reconcentrava, nada de Iemanjá. Iemanjá não veio que ele prendeu. Quem veio quem foi? Juremeira, porque ele era abusado; o caboclo que quando viu mesmo que o povo tava, todo mundo: Oxê, Lira mais de uma hora que entrou no quarto do santo... Porque eles viram ela vestir a roupa branca, entrar no quarto de santo para se concentrar e Iemanjá pegar. Aí, quando Juremera chegou, foi lá onde ele tava sentado e disse que ele prendia Iemanjá, mas ele, ele não prendeu, porque ele não tinha nem pai, nem mãe. Que ele, ele não prendia que ele veio pra poder dizer isso a ele. Ele prendeu Iemanjá porque ele tinha Iemanjá e tudo na mão dele, mas que ele ninguém segurava, que ele era um caboco; nele ninguém mandava, que ele não tinha nem pai nem mãe. Aí Juremeira disse, ele disse e aí pronto, ele foi embora. E Didinha continuou. Iemanjá não veio mais.Quem fez esse trabalho foi uma pessoa de uma outra casa. Fez trabalho para Iemanjá vim. Ele, então, cegou a minha tia Lira. Quem veio curar a minha tia Lira foi Aganju numa casa do nagô lá em tia Judite. Minha avó pegou minha tia Lira, botou um pano preto (porque antigamente quem era cega botava um pano preto) e levou ela de noite e lá o Aganju de tia Judite foi nesse lugar onde ele plantou uma galinha preta, quando ela tirou aquele trabalho todo, foi que minha tia Lira veio a enxergar.

Esta passagem da vida de Mãe Lira ainda hoje é lembrada na “casa que só pratica o bem”, ou Ici Mimó. Conta Duda: Mãe Lira foi uma vez, em festa, lá na roça. Ela não enxergava, era cega, cega. E aí, Xangô levou ela para o quarto do santo e disse que não queria que ninguém fosse atrás. Quando ela voltou do quarto do santo, ela já voltou com as vista toda molhada e enxergano.


Idenam (uma das primeiras filhas de santo de M達e Lira).


01

01. Festa do Mingau de Nanã no Lobanekum Filho (da esquerda para direita: Dalva de Nanã (Nã Gemi) e Mãe Lira). 02. Zuleide da Paixão Lima (Mãe Ledinha de Oiá, sucessora de Mãe Lira). 03. Amazila Rocha (Mãe Lira - década de 80). 02

03


04

04. da esquerda para direita: Tertuliana Santos (Bonilê) irmã de Mãe Lira e Maria do São Pedro (Koachi). 05. da esquerda para direita: Equedi Ceci, Mãe Lúcia e Mãe Filinha.

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Mãe Lira de Iemanjá (década de 30).


III CAPÍTULO

AKOLADIÉ, UM PEDACINHO DO NAGÔ

Amazilia da Rocha (Akoladié) nasceu em 1906. Na adolescência foi levada ao Rio de Janeiro para trabalhar como empregada doméstica, segundo depoimento de sua sobrinha. No Rio de Janeiro, as pessoas queriam lhe iniciar para Nanã. De volta à Cachoeira, Iemanjá começou a aparecer na vida de Mãe Lira e “ficou dela fazer no jeje”, como conta sua sobrinha: Quando foi um dia, ela foi no candomblé, lá no Lobanekum. Ela já tinha 17 anos, foi quando ela fez santo. Aí caiu. Quando caiu, minha vó, a mãe dela, minha vó Madalena disse: Mas, meu Deus do céu, Lira vai fazer no jeje!!! Porque a Iemanjá dela é jeje. Aí disse que ele disse, então levante. Como era que levantava? Quem ia levantar? Então Mãe Lira foi feita lá nesse nagô com caboco. Não que o pai de santo dela tinha caboco, era a mulher dele. Ele era nagô, mas era nagô-vodunsi.

A feitura de Iemanjá em uma nação que não era a sua, conforme explica sua sobrinha, trouxe uma série de problemas para Mãe Lira: “ela era muito endiabrada, fez santo com 17 anos, novinha. Se ela tivesse viva, ela teria 81 anos de santo 8 e ia fazer 100 anos de idade. Ela se bateu muito, lavou roupa de ganho, passou... Era pra raspar ela, mas ele fez cabeluda. Dindinha teve que dar uma obrigação no ketu com o Pai de Santo Nezinho do Portão”. A trajetória espiritual de Mãe Lira não é muito diferente da trajetória de outros líderes religiosos da cidade de Cachoeira. Com o passar do tempo, ela foi construindo uma série de laços com outros sacerdotes. Certamente, foram estes laços que garantiram a permanência de seu terreiro e a legitimidade da sua casa. Ao longo de sua vida, Mãe Lira teve que contar com uma rede de solidariedade, a começar pelos vizinhos, os quais, a partir da década de 30, assistiram a casa 8 ser transformada uma vez por ano em uma casa de candomblé. Inicialmente, Sr. Manuel Cerqueira Amorim, vulgo Nezinho do Portão, foi um dos seus primeiros aliados. Sobre a passagem de Mãe Lira no Portão, conta Mãe Baratinha, filha de santo do Portão: Eu tava garota. Lira procurou meu Pai Nezinho. Ela bebia muito. Meu pai bateu o búzio, olhou tudo direitinho e disse: tá bom, Lira, venha de hoje a oito que eu te dou uma resposta.

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No ano de 2004.

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IV CAPÍTULO

das teias familiares

Os Nagôs e a reinvenção

IV CAPÍTULO Os Nagôs e a reinvenção das teias familiares



IV CAPÍTULO

OS NAGÔS E A REINVENÇÃO DAS TEIAS FAMILIARES

Mais do que uma forma de organização, a noção de família é algo fundamental para entender a dinâmica dos terreiros de candomblé. Um estudo detalhado sobre esse tipo de organização mais ampla em que o candomblé se insere e, às vezes, se confunde, foi realizado pelo Prof. Vivaldo da Costa Lima ( 1977, p.19). Os terreiros que se autodenominam nagôs construíram, ao longo do tempo, uma série de relações expressadas através de um “sistema de parentesco,” o qual, embora possa ser reinventado o tempo todo, é rigorosamente vigiado pela tradição. Neste processo de construção da legitimidade, o tempo mítico se confunde com o histórico a todo momento. A cidade de Cachoeira preserva, ainda hoje, um sentimento bastante corporativo, mesmo para além dos espaços da religião. Lembro-me que, durante as duas primeiras semanas de minha presença nesta cidade, os jovens, quando nos encontrávamos em algum lugar público, não me cumprimentavam, olhavam de longe, comentavam e saíam. Foi preciso mais duas semanas para eu saber que o carro preto - que, na verdade, era azul - e os meus óculos escuros concorriam para eu ser tomado, por aqueles jovens, como um policial da civil, como se costuma chamar. E quem é baiano sabe muito bem o que representa esta figura. Até que, num certo dia, dois jovens se aproximaram de mim e, no meio de uma conversa sobre a pesquisa – eu estava interessado na pesquisa e eles, em descobrir quem eu era - eles me disseram: os caras pensam que você é polícia! Confesso que tomei até um susto, mas entendi. Depois de mais alguns minutos de conversa, o rapaz se apresentou, insistiu: mas você não é polícia mesmo não, não é? Respondi negativamente e, para a minha surpresa, ele disse: pois agora vou dizer aos cara tudo que você é polícia mesmo e que é meu primo. A partir dos dias seguintes passei a freqüentar as rodas de conversas na praça, ir aos passeios, participar das festas da cidade, ser convidado e assim por diante. Pena que foi como “polícia”, mas eu estava incorporado como um primo! Na cidade de Cachoeira, a expressão “primo” significa o parente mais próximo. Ser considerado primo é gozar de todas as prerrogativas dos outros membros que compõem a grande teia familiar. Esta teia é construída não somente a partir de laços biológicos, mas de outras relações como de poder e prestígio. No âmbito religioso, as relações acontecem de forma semelhante. Temos insistido, em outros trabalhos, na idéia de que, tendo destruída a sua família, o africano reconstruiu os vários laços que davam significado à sua identidade através de vários caminhos. Um destes caminhos são os chamados terreiros de candomblé. Não que laços biológicos tenham sido substituídos por rituais – ainda hoje podemos encontrar casas onde a família consangüínea

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NAGÔ

A NAÇÃO DE ANCESTRAIS ITINERANTES

Ele não gostava de caboco. Lá ninguém dava. Quem ia fazer o santo lá, ele não tirava o caboco, mas lá na roça não tinha, ninguém rodava. Agora que Rei das ervas colocou o pé em cima. Meu pai tinha caboco, mas ele tinha medo. Ele não tratava caboco de ninguém. Agora, sabia cantar. Quando foi um dia, ele sonhou com um índio, com uma perna toda arrodeada de cipó e dizia a ele: “eu sou seu caboco, eu sou Caipó, ou você vai me dar comida ou vai morrer de fome”. Meu pai levou seis meses que não batia um buzo. Quem sustentava ele era meu sogro, que tinha dois açougue e um filho de santo dele que tinha uma barraca lá em Água de Menino 30. Foi quem levou seis meses sustentano meu pai e a família. Quando ele viu que ele ia morrer ou viver a vida toda nas costa dos outro, ele se conformou e aceitou dar a comida dele. Mas ele fez escondido, que nenhum filho de santo ficou sabeno. Quando acabou o candomblé... Depois de Oxossi, quando estou puxano água na cisterna, eu disse: “venha cá, equedi, que Exu é aquele?” Um pano vermelho marrado num pé de jurema. “Não é Exu não, é Seu Caipó”. Eu chamei ele assim: “Meu pai, que Exu é aquele que o senhor assentou?” “Sua mãe”, ele me xingou toda, “tudo você quer saber.” Eu disse: “perdão, meu senhor.” (risos) Eu pensei que era um Exu. Quando foi no outro ano, Caipó disse: “quero comer cantado. Eu não quero comer calado. Porque o santo de vocês come falano e eu sou calado. Eu quero cantiga, eu quero fogos, eu quero gente.” Teve Iamin Xorongá, teve Iroco. Quando eu estava com o meu carrinho arrumado pra descer, ele: “você não vai descer não”. Eu disse: “Ave Maria, meu Pai! Mande o carro voltar quarta feira”. Foi terça feira, eu já ia descer. Aí, todo mundo que rodava de caboco, ele chamou: “Vocês que roda de santo, ninguém vai descer”. Aí, tinha Ana que disse: “Ele vai dá comida a Seu Caipó, ele vai tocar”. Eu disse: “ai, meu pai, eu não vou ficar aqui sem saber o que é, não!” Ele fez: “eu vou cortar pro índio.” Eu disse: vai cortar pro Seu Caipó. Ele disse: “Quem disse?” Eu falei: “Ah, meu pai, mato tem olho, parede tem ouvido, o senhor está pensano o que? Que eu estou aqui enganada, não tô, não. Não quero saber. De tarde, eu vou cortar pros índios, quando for quarta-feira, vocês vão embora.” Eu só to veno chegar gente. Quando ele disse que ia tocar pra caboco, o povo indoideceu. Aí cortou pra Caipó, Jupira, Rei do Sol. Foi os três primeiro caboco que ele assentou. 30

Em Salvador.


IV CAPÍTULO

OS NAGÔS E A REINVENÇÃO DAS TEIAS FAMILIARES

Quando foi um ano, ele inventou que ia dá bori a uma irmã de santo minha. Aí, ele ia cortar pra caboco, quando era oito hora da noite, acabava. Neste ano, quando foi seis horas ele fez: “Eu vou pedir aos senhores índios que é pra subir que eu vou dá bori a uma filha de santo.” Os caboco ia para mata, uns vinha vestido de cansanção, outros vinha com uma cobra enrolada no pescoço. Meu pai corria, meu pai dava vexame, meu pai sempre foi froxo. Aí, quando foi nesse ano, os caboco tudo tirano cantiga pra ir embora, aí, Seu Rei das Ervas 31 disse: “Quem não vai sou eu, eu não vou. Ele dá o bori, o dia que ele quiser, porque eu não vou.” Invadiu a casa toda arrumada com as esteiras do bori e disse: “Eu não vou não. E meu candomblé é de zuada. Quem dá seu bori, dê só”. Aí, meu pai disse: “Tá bom, meu véio.” E suspendeu a cama. Depois, deixou pro outro dia e os caboco lá sambano, choveno, os caboco dançano; ele com o guarda chuva aberto e a capa. Tomou um medo que nunca mais quis brincar com caboco. Quando ele morreu, já tinha caboco e os menino continuava. Dá comida ao caboco, fazer aquela reverência a ele, dá umas 6 horas da tarde, quando é umas sete ou oito horas da noite, encerra. Seu Rei das Ervas fez isso: “você não gosta de caboco, por que o senhor botou Oxossi na sua casa? Oxossi é o dono da gente.” Eu nasci no candomblé. Pobre estou, pobre eu vou morrer porque foi Deus quem marcou de eu não ser milionária. Eu tenho pra mim e pra dar a quem chegar. A riqueza que eu quero que estes Orixás me dê, é força pra trabalhar pela seita. É colocar a mão na cabeça dos outro e não deixar ninguém pior do que já é. Mas não peço força pra fazer feitiço pra matar ninguém, pra nada. Eu só quero força para trabalhar dentro do candomblé até o dia que Deus quiser. Eu estou aqui fazeno isso. Essa missão. Se eu nasci pra ter essa missão, eu vou cumpri ela até morrer. Sei cantar tudo: nagô, jeje, ketu. Ôguererê Ode mio Ôguererê Lokê ewa ê Ôguererê lawa oxê iô Ôguererê Lokê ewa ê Essa cantiga, o Ogum de meu pai dançava muito. Ele era muito bonito. Ah! Que amor, que saudade e que farta tem feito à gente! 31

Seu caboclo.

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NAGÔ

A NAÇÃO DE ANCESTRAIS ITINERANTES

Sobre as histórias de vida

As histórias de vida que transcrevemos acima falam por si sós. Elas trazem lembranças das mais diversas, desde fatos do cotidiano à intimidades das pessoas. Embora atravessadas por elementos míticos, são histórias de pessoas concretas, de homens e mulheres negras que, durante muito tempo, ficaram no anonimato, mas estas não se tratam, todavia, de histórias que estão esquecidas, prova disso é que estas estão aí, cheia de riquezas, detalhes, mas, também, de lapsos e não ditos. Além da filiação, a forma como os terreiros de candomblé se organizam, a própria dinâmica da cidade, interfere na sua manutenção, afinal, os ancestrais sempre acompanharam os homens nas suas mudanças. Aqui reside o motivo principal pelo qual a pesquisa de campo não se restringiu apenas à cidade de Cachoeira, conforme estava delineado pelo projeto inicialmente. Muitas foram as casas de candomblé que foram obrigadas a se deslocar pelos mais variados motivos: enchentes, perseguição policial, questões particulares etc. Esta necessidade de estar sempre preparadas para uma mudança repentina, de uma certa forma, foi dando características a estas casas. No caso específico da casa de Mãe Lira, é o caboclo quem vai garantir a sua estabilidade. Como dono da terra, Juremeira vai contrapor-se aos nagôs, agora compreendidos como aqueles retirantes, sempre fugitivos das guerras inter-grupais do seu país de origem. É bem provável que esta habilidade de se deslocar e de se incorporar a outros grupos tenha sido preservada nas casas de candomblé do Recôncavo, que continuam insistindo na autodenominação de nagôs. Tratamse, pois, de modelos bastante simples, o que não significa dizer que são menos complexos, onde os orixás e voduns, geralmente, dividem o espaço da casa com outras pessoas da família; o ciclo de festas é curto, as roupas modestas e não há ostentação de símbolos de origem africana. É um candomblé que se reúne em torno de devoções, como o mês de maio e o de Santo Antônio, mas também participa, produzindo festas cívicas, como as comemorações em homenagem à Independência da Bahia. E é, por fim, um candomblé ensinado nas ruas, no samba de roda, ao lado de outras manifestações culturais. É tudo isso que se denomina nagô ou, ainda, que é compreendido como a nação de ancestrais itinerantes.


01

02

03

04

01. Juliano de Sousa de Jesus. 02. Terreiro Ogod么 Dey. 03. M茫e Judite de Aganju. 04. Terreiro Ici Mim贸.


05

05. Sr. Agenor e seu neto. 06. Sr. Dezinho. 06

07

07. M達e Baratinha.


08

08. M達e Juju de Oxum e M達e Cacho de Omolu, filhas consanguineas de Sr. Nezinho de Port達o do Terreiro Ibece Alaketu. 09. Manuel Cerqueira Amorim (Nezinho do Port達o).

09





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