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A gente é macha
Ângela Coradini
Ângela Coradini é contadora de mentiras e editora na revista ruidomanifesto.org Tem doutorado em Cultura Contemporânea e é autora dos livros “Imagens-espectro de futuridades no Amplo Presente”, (EdUFMT), e “Já não podem ser amanhã...” (Carlini e Caniato).
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Era fim de tarde e, por além do muro, ouvi uma conversa ouriçada de crianças. Algumas vozes de meninos comemoravam grandiosamente alguns saltos por cima de uma comprida vala coberta por grama que se estendia por todo o terreno. Ao mesmo tempo, os aventureiros diziam às amigas:
– Vocês são meninas, não vão conseguir!
O sábado estava quase indo embora. Ao invés de olhar por cima do muro, deitei no quintal para imaginar, através daquelas vozes o desenrolar da brincadeira. Com o cheiro da grama imergi nas memórias dos meus joelhos esfolados pelo cascalho vermelho, das pernas cobertas por desenhos dos tais bichinhos geográficos, a trilhas de bicicleta e das vezes que tive que brigar para conseguir jogar futebol com os meninos…
“nada mal”, pensei.
Fui desperta da minha infância por um grito. Era uma das meninas além do muro que atreveu-se a encerrar a gozação dos amigos e anunciou a façanha a ser realizada:
– Eu vou pular! Eeeeeeeeeeeu vou pular!
O silêncio de todos foi completo. Mas o tempo de mudez foi muito curto comparado à longa comemoração que o substituiu. Com toda a garganta, por umas três vezes consecutivas, a saltadora aventureira gritou: Era um berro potente, sonoro, lindo! E muito enfático no primeiro pronome pessoal
Do lado de cá do muro, entrei num riso festivo e tive de sentar para conter minha vontade de espiar por cima do muro. A forma como ela prolongava aquele “eu-menina” era provocativamente doce e forte.
Ouvi outra voz infantil anunciar que também iria tentar o salto. Havia um timbre delicioso. E a primeira, vitoriosa, incentivava a segunda desafiante àquele salto não autorizado para meninas, segundo os meninos.
– Vem, balança o braço, assim oh (nesse momento imaginei o ritmo do balanço quando a gente movimenta o corpo como se fosse voar, vocês sabem, certo?). Balança bem forte, pra trás e pra frente. E é só pular!
Entre a hesitação da segunda e o otimismo da primeira, ouço a frase que diz tanto sobre um mundo que dita tantas regras e proibições para nós, meninas:
– Vem, você é macha!
Segundos depois, aquele coro de duas garotas com muita adrenalina no corpo tocou o meu rosto que se moveu num sorriso escancarado:
Eu gargalhava com elas mesmo sem que elas soubessem. Não dava para exigir de suas meninas que elas utilizassem outra expressão que não “macha”.
Nós éramos duas meninas e uma mulher comemorando a derrubada de um barreira que parecia tão simples, mas que naquele momento poderia desencadear tanta potência e segurança dentro delas.
Fiquei doida de vontade de pular o muro da minha casa e de ir até lá, olhar na cara daquelas duas e dizer que esse negócio de “macha” tem outros nomes. Que elas podiam responder “porque sim”, “porque não”, “porque eu quero”, ou “não sou obrigada a nada”! Lembrei de como foi desafiador crescer no meio de sete meninos, e que “menina, tenhas modos!” é a merda de mais um jargão opressor.
Mas, naquele fim de tarde, eram elas que tinham algo para me dizer.