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Calor
Cláudia Rezende
Graduada em Jornalismo e História, pós-graduada em Revisão de Textos, cursa Letras. Atua como revisora de textos e editora de livros. Autora de Poli escolhe e Enquanto não cresço, faço o mundo que eu mereço. Participou das antologias Elas, a alma, a cura e Elas, as mãos, o infinito.
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Ainda estava com o café entre as mãos, tentando se aquecer naquele inverno gelado, quando ouviu gritos vindos da vizinhança. Apurou o ouvido: seria briga ou brincadeira? É um casal? Pai e filha? Mãe e filho? Não dava para saber, apenas que eram vozes de homem e de mulher. Decidiu chegar à janela. Deixou a xícara de café sobre a pia, não sem lamentar — estava agradável aquele exercício de esquentar, por fora e por dentro, o corpo —, mas sabia que alguém poderia estar precisando de ajuda.
Torcendo para que fosse uma brincadeira, esticou os pés, o tronco, o pescoço. Ficou em posição de bailarina, na pontinha dos dedos. Fez o que pôde para que as orelhas capturassem melhor as ondas sonoras que vinham de alguma das janelas do prédio (o dela ou o do lado?). Conseguiu constatar que não era uma brincadeira, e esse foi o segundo lamento dela. Era mesmo uma briga, com alguém precisando de ajuda.
“Ir lá? Chamar a polícia? Acionar o síndico?” As mãos, que haviam começado a se esquentar, esfriaram-se rapidamente, assim como o coração. “Será que dá tempo de socorrer essa pessoa?”. Depois de refletir uns poucos segundos, que pareciam eternos, acabou não tendo coragem para ir procurar o local dos gritos. “E se for um homem muito violento?”, previu. Então, ligou para a polícia e mandou uma mensagem pelo telefone, para chamar a síndica.
Agora tinha de aguardar. Alguém iria fazer alguma coisa. Só que ela não estava satisfeita. Muitos anos vão se passar depois daquele dia, e ela nunca vai conseguir explicar por que saiu do apartamento naquele momento. Ir aonde? Fazer o quê? O que tinha feito já não era suficiente? Não, não era. Para ela, não era possível ficar ali, protegida, resguardada, enquanto, tão perto, alguém precisava de socorro.
Com medo, as mãos e o coração ainda gelados, saiu e foi para a portaria do prédio, sem saber o que fazer ali. Talvez pudesse visualizar melhor a situação, entender de onde vinham os gritos. Nada estava claro. Dali também poderia verificar se a polícia veio, se chegou a tempo e quem era, afinal, o agressor, porque, ela sabia, havia uma agressão, física ou psicológica, de um homem contra uma mulher.
Nessa espera, o coração gelou mais uma vez. Foi um barulho, barulho de correria. Alguém vinha. Mal teve tempo de olhar para trás, enxergou uma mulher com aquela expressão desesperada que só quem já viu alguma vez na vida entende como é. Não teve dúvidas, era a pessoa que estava sofrendo a agressão. Nem pôde oferecer ajuda. Em segundos, um homem muito alto, porém magro, ágil, surgiu no encalço da fugitiva. Passou atropelando tudo, inclusive ela, que estava ali sem ainda ter encontrado nenhuma explicação lógica para estar.
A mulher tentou correr, mas não dava para fugir de um homem daquele tamanho, com pernas tão compridas que faziam um passo dele ser equivalente a três da vítima. E ela, a que assistia, tão pequena, tão frágil, o que poderia fazer? Apenas olhava, e cada segundo de cena que via a matava um pouco por dentro.
O homem sojigou, gritou, ameaçou e, por fim, jogou a mulher no chão, finalizando a agressão com um chute na boca do estômago daquela pessoa que nem se quisesse conseguiria reagir. Ela ficou ali, vendo tudo, sentindo o frio das mãos e do coração percorrer o corpo inteiro, como um fio de gelo invadindo cada canal por onde passa o sangue.
Como a mulher perseguida, ela também não conseguiu reagir. Era apenas uma pedra no meio daquela paisagem, tão insignificante que nem foi notada pelo homem. Ele saiu, dobrou a esquina e não foi mais visto. A polícia não chegou a tempo, a síndica não respondeu à mensagem, os vizinhos não saíram às ruas. Onde estavam os passantes? A mulher ao chão, sozinha, roupa rasgada, mãos no abdome, emitindo aquele choro triste, profundo, de quem se viu completamente vulnerável e só.
Ela foi até a mulher, levantou a cabeça dela e a pôs no colo. Pegou o telefone e chamou a emergência, que, assim como a polícia, a síndica, os vizinhos e os passantes, não apareceu. Foi aí que decidiu levar a mulher para o apartamento. Reuniu as forças que não sabia que tinha e a carregou. A solidão agora abraçava as duas, a dor, o abandono e a impotência expandiam-se e entranhavam pelos poros também dela, a testemunha, a que tentou ajudar.
Já no apartamento, deu banho na mulher, emprestou-lhe uma roupa e a colocou na cama. Fez compressa de gelo para os hematomas que davam um colorido triste à pele bronzeada da mulher. Foi até a cozinha, pegou a garrafa de café. Ainda estava quente. Serviu uma xícara para esquentar as mãos e o corpo machucado da inesperada visitante. Ela talvez não tenha percebido, mas o calor daquele cuidado era mais forte que a quentura que vinha da xícara de café. O coração da mulher também se sentia melhor, estranhamente aquecido.