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Um móbil

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Calor

Calor

Juliana Berlim

Juliana Nascimento Berlim Amorim é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II. Contos nas revistas Gueto, Germina e Ruído Manifesto, em antologias brasileiras como as da FLUP e um conto em alemão pela editora alemã Hueber. Coorganizadora de Transliteraturas (Oficina Editora, 2019).

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Certeza agora ela tinha uma: aproveitar a vida. Começou por dar-se mimos: um corte de cabelo ousado, uma camisola aconchegante, uma tatuagem no punho direito. Usava um dinheiro que não tinha porque ganhava pouco, mas em sua cabeça tempo de vida tinha menos ainda, e assim o cartão de crédito cortava como navalha. A tatuagem continuava recente quando o vizinho a abordou no hall de entrada do prédio. Ela saía do elevador e, ao se cruzarem, num rodopio de olhares, ela ouviu uma palavra ousada.

Insolente, pensou.

Todos os dias uma nova palavra do repertório daquele homem. Um tipo bonito de meia-idade, recém-divorciado, tremendamente bem vestido, rico. Sussurrou no ouvido dela, nos segundos que se cruzaram tão breves, uma promessa de satisfação sexual. Ela desviou dos ditos infames do bufão até então, mas a fada da satisfação instantânea soprou-lhe na mente uma intuição, que a fez dar meia -volta sobre os calcanhares e responder ao tal homem, antes que a porta do elevador se fechasse. Viu-o ficar vermelho feito tomate, enquanto lhe estendia rápido um pedaço de papel rasgado de improviso com o número de seu apartamento escrito à caneta.

Ela assistiu o impávido colosso da desistência do galanteador. O homem não tinha princípios, não tinha um móbil. Ela sim.

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