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Mulheridades
Jacqueline Oliveira
Jacqueline O. da Conceição é mulher de Àse, professora, colunista da revista Publiquei, escritora, pesquisadora de Literaturas de Autoria Negra, graduada em Letras Clássicas/UFRJ e pós-graduanda em Produção de Textos e Escrita Criativa (Faveni).
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“É preciso uma vez, ao menos uma única vez, Afogar-se nos próprios poemas Para descobrir O peso que as palavras carregam”
Jacqueline Oliveira
Aquela mulher optou por afogar-se das próprias palavras. Procurou o velho diário no quartinho escuro, de sua vó Bita, lá na vila do Canhangá. Abriu o mais denso de seus livros de memórias e começou a lê-lo. Não respeitou as vírgulas e nem os amigos de pontuação. Queria beber de uma vez só aquelas estórias. Se pausasse, certamente engasgaria pelas letras, e o dia não pedia má digestão. Resolveu tomar um porre de culpas.
Abrir aquele diário não foi fácil. O virar de páginas doeu, mexendo em feridas recém cicatrizadas. Mas, era necessário. Não podia mais passar. Fingir que não precisava retornar ao passado e isentar-se das culpas. Na verdade, ela precisava sentir o peso das palavras para então subir à margem e, enfim respirar. Assim foi feito. Mergulhou o máximo que pôde explorando as profundezas de sua alma. Observou as espécies que habitavam as águas barrentas de seu interior. Diversas vezes esbarrou com mulheridades desconhecidas por ela. Pedaços de sua existência nunca vistas. Mulheres estranhas.
A sensação de não pertença era natural. Nunca imaginou um corpo de metades. Jamais poderia pensar que essas águas fossem um grande espelho redondo transmitindo a sua vida. Ali dentro, conheceu o Tempo. Cada imagem da sua vida. Cenários, episódios, enredos, narrador e principalmente seus personagens. Como poderia ser personagem coadjuvante da própria história? Como, ela poderia ocupar o papel de segundo plano dessa trama?
Deja vu – essa é a palavra e sensação que tomaram conta de Nyara. Um sentimento de liberdade, agora. Porém, com amarras no tempo, presas igual um pássaro na gaiola. A sua vida não poderia ser mais dúbia. Não poderia ser mais, apenas um roteiro, para apreciação do povo. A sua vida não era uma mercadoria. A sua vida não era uma peça de teatro em cartaz.
“É preciso morder os versos
E sentir a dor fluir Descer escorrendo até
Ponto do desague De sentimentos que precisam ser Expulsos de nossa alma”
A mulher, cujo nome revelava: “alguém em busca de grandes objetivos”. Qual seria o seu? Nyara havia apertado o acelerador. Resolvera andar. Ir em busca dos relatos de sua vida. Agora, precisava abrir a gaiola e deixar o pássaro voar. Uma espécie furta-cor, que com o passar do tempo, foi ganhando um intenso colorido. As cenas deixaram de ser pretas e brancas. No lugar, cores de todos os tipos foram ganhando o cenário. Subiu a margem levando consigo registros de barro. Eram relatos de enchente. Escritos de alguém que passara com o coração cheio de dor, angústia, perda e lágrimas. No diário, dizia:
– Você está curada Nyara!
– Não precisa mais violentar-se!
– Deixe que as mulheres que habitam dentro de você voem. Deixe que elas se apresentem. Aprenda a conhecer seus rostos, do que gostam, suas opiniões, seus desejos, devaneios, vontades, qualidades. Aprenda a virar-se do avesso e a levantar oferecendo a melhor face. Apresentando uma metade- -inteira. Um corpo autodefinido. Um corpo localizado, um corpo menos colonizado, um corpo moldado por si.
– Entenda que eu, seu diário, já tive meus dias de lamento.
– Lembra dos dias em que você não quis tocar-me e deixou-me sobre a mesa jogado? Eu fiquei lá. Triste, solitário e sem ter alguém para conversar. As minhas páginas encolhiam-se pelo frio da ausência de escritas. O vazio tomava conta de mim. Páginas em branco não sustentavam a vontade de falar, como as palavras faziam. E ainda assim, eu fui forte! Resiliente, seria a melhor forma, e aprendi a aprender que às vezes é preciso sair do próprio corpo para voltarmos ser sóbrios.
– Por que você não consegue?
– Agora, eu sei que vai doer. A ferida vai arder e quando você por pra fora, ela fechará. Você já está curada! Mas para que se torne inteira, é preciso fechar esse ciclo. Esse é o seu ritual de passagem!