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Senhora ruga

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A gente é macha

A gente é macha

Kíssila Muzy

Kíssila Muzy é bem jovem: nasceu em agosto de 2019 quando submeteu seu primeiro conto a um concurso literário. Na vida anterior foi advogada, mestre em Direito, licenciada em Letras, especialista em culturas na América Latina e professora universitária.

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Jô foi tomada de assalto pelo que viu no espelho. Ela, que até ontem se via como uma menina, deparou-se com a primeira ruga praticamente piscando na sua testa.

Era um risco fundo tipo o avesso de um vinco de calça; uma voçoroca que a maquiagem certamente não esconderia. A linha media quase dois centímetros e era reta que nem o registro de uma facada entre os olhos.

Facada mesmo foi na alma.

A ruga, percebendo o desconforto que causara na anfitriã, esforçou-se para ser simpática:

– Olá, muito prazer, meu nome é Dois Mil e Dezenove. Espero que sejamos muito amigas porque passaremos todo o tempo juntas e eu já gosto de você.

A dona da testa - e agora também da ruga - ficou perplexa com o que acabara de ouvir. Nunca havia sido vítima desse tipo de assédio, uma clara tentativa de manipulação emocional, pois a ruga estava falseando uma afetividade que não existia entre elas, provavelmente para conseguir um lugar para morar sem contradita.

– Eu não te conheço e não a quero como inquilina ou companheira de quarto. Não a convidei e não desejo sua companhia — Jô respondeu com firmeza.

– Amiga... – “Amiga” uma ova que eu não te dei essa confiança! — a essa altura, a mulher quase babava de raiva.

A ruga ficou atordoada. Caso tivesse que se mudar, o processo todo seria muito doloroso para ambas as envolvidas. Precisava rever a estratégia, já que um passo em falso colocaria tudo a perder. Decidiu, então, agir na humildade: lacrimosa, disse que não escolheu estar ali; que nascera há pouco tempo e sentia-se perdida e sem função, mas acreditava que poderia vir a ser uma espécie de ícone dos dias vividos, ainda que não fossem os melhores, mas também uma referência para as experiências futuras; se ela, a ruga, coube numa testa antes virgem, é porque uma nova e bela fase da vida seria inaugurada, sem desmerecer das memórias de tudo o que a Jô havia passado até aqui; por fim, sentia muito pela má impressão causada, mas não foi ensinada sobre como chegar à vida de alguém. Encerrou o discurso pedindo perdão à moça pelo transtorno e disse que compreenderia se ela a expulsasse, apesar de que seria um tanto quanto difícil uma separação de corpos naquela altura do campeonato quando ambas já faziam parte indelével uma da outra.

Não há quem resista a um pedido de desculpas aparentemente sincero, principalmente se vier acompanhado de uma razão indiscutível: o fato — sempre os fatos — de que uma declaração de guerra seria a ruína de ambas, já que o que se formara entre elas era um vínculo absoluto e vitalício e Jô não possuía recursos financeiros para investir numa medida cirúrgica.

A moça desculpou-se com a ruga reconhecendo ter sido rude, pois nem lhe oferecera uma água no primeiro contato. Explicou que a condômina repentina trouxe na bagagem muitas lembranças desconfortáveis com as quais teria que lidar para sempre e isso fora o mais assustador. Comprometeu-se a tentar aceitar a novidade com a mente aberta e o coração cheio de amor por sua própria história. Contente com a conquista de mais um território - o coração da Jô -, e à vontade para estabelecer-se em definitivo sem medo de ser feliz, a ruga respondeu:

– Que bom que você não vai mais me rejeitar. Assim poderemos caminhar juntas pelo resto da vida, uma apoiando a outra nos momentos difíceis e compartilhando as alegrias da maturidade. Prometo que estaremos cada dia mais fortes e unidas. Seremos um lindo exemplo de aceitação para dar para as minhas muitas irmãs que já estão a caminho. Seremos uma enorme família feliz.

Jô custou a compreender o que acabara de ouvir. Quando, enfim, realizou que aquela maldita intrusa era o arauto de uma invasão inexorável em sua vida e que de nada adiantaria negar a realidade iminente, percebeu um leve embaçamento nas vistas e até sentiu que lhe faltaria o ar. Encostou na parede e, enquanto deslizava até o chão, ouviu:

– Que tal fazermos uma selfie enquanto ainda somos só nós duas?

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