Ministério da Cultura, Filmes de Quintal e UFMG
apresentam
16 0 festival do filme documentário e etnográfico - fórum de antropologia e cinema
˜ | 05 Apresentacao ´ ˜ de Abertura | 19 Sessao ˆ ˆ Mostra Canone e Contra-canone | 23 ˆ A Mulher e a Camera | 39 ´ | 69 Juri Competitiva Nacional | 71 Competitiva Internacional | 95 ˜ especial | 113 Sessao Lancamentos | 117 ´ ˜ de Encerramento | 129 Sessao ´ FOrum de debates | 133
´ sumario
Oficina/curso | 143 Ensaios | 157 Xapiri e a imagem-eco do xamanismo | 159 Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra As explosões necessárias | 166 Maurício Gomes Leite A$suntina Das Américas | 169 João Batista Lanari Lui cinema | 173 Silvio Back O Bandido da Luz Vermelha | 175 José Lino Grünewald Sina do Aventureiro | 177 Luís Alberto Rocha Melo Cassy Jones, Magnífico Sedutor | 179 Andrea Ormond Panca de valente: a crise que a rainha não viu | 181 Jairo Ferreira
Reichenbachianas brasileiras: A cinepoesia corsária de Carlos Reichenbach | 183 Jair Tadeu da Fonseca Boca do Lixo, Sociedade Anônima: notas sobre O Bandido da luz vermelha | 190 Mateus Araújo Diferente de você/Como você: mulheres pós-coloniais e as questões interligadas da identidade e da diferença | 199 Trinh T. Minh-ha O vermelho não se faz de sangue | 205 Aurore Délavy Jeanne Dielman e a travessia visual da espectadora | 207 Roberta Veiga Kashima Paradise por Chris Marker | 213 Kashima Paradise par Chris Marker
˜ apresentacao ´
˜ | 217 ProgramaCAO ´ ´IndIces | 225 ´ | 230 CREDITOS
forumdoc.bh.2012 Ruben Caixeta Belo Horizonte recebe a décima sexta edição do forumdoc em uma ocasião muito especial e, ao mesmo tempo, dolorosa: de um lado, comemoramos os 20 anos de demarcação da maior terra indígena do Brasil, a Terra Indígena Yanomami, de outro lado, constatamos a luta desesperada dos índios Guarani Kaiowá para a sobrevivência num pequeno pedaço de terra no Mato Grosso do Sul. Queremos fazer desta apresentação um manifesto tanto a favor da luta destes índios no Brasil hoje quanto a favor da necessidade urgente de alargar nossa escuta e nossa visão (aquelas do homem ocidental) em direção ao que nos mostram e dizem os índios nos seus filmes e fora deles: para o índio a humanidade, em sua origem, foi destinada a viver e a cuidar da terra; ao contrário, o pensamento dos brancos fixa-se sem descanso nas suas mercadorias, como se fossem suas namoradas; e “nossa civilização” cava o buraco de sua própria morte ao abrir crateras atrás de minérios, ao atear fogo na floresta e transformá-la em pasto, ao fazer secar as águas dos rios onde vivem os peixes, onde bebem água os animais e nós, humanos. Desde o seu início, em 1997, o forumdoc tem um lugar especial para a cine matografia indígena. Não só um lugar para apresentar os filmes sobre os índios ou “dos” índios, mas para promover um debate sobre sua própria concepção de cinema e documentário, suas estratégias de realização, seus princípios éticos, enfim, mas não menos importante, sobre todo o universo fora de campo que atravessa tais filmes. Se isto é válido para outras cinematografias, aqui, no contexto indígena, torna-se uma realidade insofismável: a estética e a ética não podem ou não devem andar separadas; a “imagem” dos índios ou sobre os índios é inseparável da sua dimensão política ou ontológica. Há muito o que se falar (e opiniões divergentes) sobre o que é cinema indígena, mas há algo para nós muito claro: não se faz cinema indígena apenas buscando as belas imagens ou movimentos de câmera ou montagem bem “aparada” (de acordo com nossas – ocidentais – preferências e gostos estéticos) ou, menos ainda, por meio da exploração dos clichês e exotização dos corpos e das falas dos índios. Na abertura do forumdoc.bh.2012 exibiremos um filme produzido coletivamente (por índios e brancos) na terra indígena Yanomami: trata-se de Xapiri. Segundo
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Bruce Albert,1 um dos realizadores, este filme foi concebido de forma totalmente experimental – construído como um tipo de simulador de voo xamânico, longe dos cânones do filme etnográfico, mas também dos filmes concebidos dentro da série “vídeo nas aldeias”. É provável que este filme – que dará muito o que pensar - não necessariamente será muito bem aceito seja por todos os Yanomami, seja pelo público ocidental. Seria possível a nós, ocidentais, experimentar através das imagens o mesmo tipo de sensação adquirida pelo xamã yanomami nas suas viagens cósmicas realizadas durante as sessões rituais? Provavelmente, não. Entretanto, tal como acontece com qualquer filme etnográfico, Xapiri nos abre a porta para melhor conhecer o xamanismo e a cosmologia yanomami, e, além disso, nos convida a participar de um tipo de conhecimento que é necessariamente sensorial, aquele que é adquirido e transmitido pelo xamã indígena. No seu texto “A Floresta de Cristal”, Eduardo Viveiros de Castro diz que a palavra xapiripë designa o utupë, imagem, princípio vital, interioridade verdadeira ou essência dos animais e outros seres da floresta, e ao mesmo tempo as imagens imortais de uma primeira humanidade arcaica, composta de Yanomami com nomes animais que se transformaram nos animais da atualidade. Mas o termo xapiripë se refere também aos xamãs humanos, e a expressão “tornar-se xamã” é sinônima de “tornar-se espírito”, xapiri-pru. Os xamãs se concebem como de mesma natureza que os espíritos auxiliares que eles trazem à terra em seu transe alucinógeno. O conceito de xapiripë assinala portanto uma interferência complexa, uma distribuição cruzada da identidade e da diferença entre as dimensões da “animalidade” (yaro pë) e da “humanidade” (yanomae thëpë). De um lado, os animais possuem uma essência invisível distinta de suas formas visíveis: os xapiripë são os “verdadeiros animais” — mas são humanóides. Isto é, os verdadeiros animais não se parecem demasiado com os animais que os xapiripë, literalmente, imaginam. De outro lado, os xamãs se distinguem dos demais humanos por serem “espíritos”, e mais, “pais” dos espíritos (que, por sua vez, são as imagens dos “pais dos animais”). O conceito de xapiripë, menos ou antes que designando uma classe de seres distintos, fala assim de uma região ou momento de indiscernibilidade entre o humano e o não-humano (principal mas não exclusivamente os “animais”): ele fala de uma humanidade molecular de fundo, oculta por formas molares não-humanas, e fala dos múltiplos afetos 1 Também, por sugestão de Bruce Albert, exibiremos na mesma sessão o filme Chasseurs et Chamans, realizado por R. Depardon junto aos Yanomami.
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não-humanos que devem ser captados pelos humanos por intermédio dos xamãs, pois é nisto que consiste o trabalho do sentido: literalmente, “são as palavras dos xapiripë que aumentam nossos pensamentos." [...] Luz, não imagens. Os xapiripë são de fato imagens (utupë), mas seus espelhos não os constituem como tal — estão do lado da pura luz. Cristais.
“Imagem” de acordo com o sentido que nós (ocidentais) lhe atribuímos, de fato, não tem nenhuma conexão com aquele sentido que os Yanomami lhe atribuem. Na verdade, a partir do momento em que, hoje, parte dos Yanomami está manuseando pequenas máquinas digitais para fotografar ou filmar, alguns deles experimentando o processo inteiro de realização fílmica, isto tudo promove um deslocamento de sentido da categoria “utupë” ou “imagem”. De fato, as imagens e os filmes são hoje vistos por boa parte dos Yanomami como objetos inquietantes que servem para multiplicar entre eles a troca de informações, que favorecem a comunicação e a troca entre distintos grupos yanomami, entre humanos e espíritos. Certamente, tal circulação de imagens (tais objetos inquietantes) fazem eco com a concepção de pessoa yanomami. De acordo com a esplêndida tese de Bruce Albert (Temps du Sangue, Temps des Cendres, p. 403), a fotografia tem entre os Yanomami uma ligação direta com o “nome e a alma de uma pessoa”. Na verdade, a fotografia representa um dos “traços” de uma pessoa, tal como também o é o nome. Por isso, ali você nunca deve pronunciar o nome de uma pessoa em referência a ela mesma, da mesma forma que não deve guardar uma fotografia de um parente. Quando uma pessoa Yanomami morre, toda uma máquina ritual é colocada em ação pelos seus parentes consanguíneos para apagar aqueles “traços” deixados por ela quando vivia aqui na terra: sons e palavras, rastros no chão, objetos de uso pessoal, plantas cultivadas. Bruce Albert diz que os Yanomami observam e comentam interminavelmente, com um certo prazer e humor, os detalhes mais ínfimos daquelas fotografias de gente estrangeira ou parentes classificatórios. Contudo, aquelas que os representam pessoalmente ou as pessoas muito próximas, provocam imediatamente uma atitude de constrangimento: então, eles tentam por todos os meios obtê-las para guardá-las ou subutilizá-las a fim de conservá-las ou destruí-las para que não subsistam longo tempo após a morte. Vejamos: Fixando a identidade de uma pessoa (a singularidade de seu aspecto) e circulando fora de sua presença entre os estrangeiros, a fotografia é aqui assimilada a um nome próprio; mas um nome tanto quanto mais perigoso pelo fato dele não ser uma simples sinédoque mas uma verdadeira réplica em miniatura do indivíduo
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(ou estar associado à sua imagem vital) e dele constituir um “traço” material e não simplesmente uma mnésica. É por isso que, apesar dela constituir o análogo do nome do indivíduo, a fotografia de uma pessoa é mais frequentemente já tomada como um nome da morte potencial, a qual teme-se, por antecipação, a permanência.
Nesta brevíssima discussão sobre qual é a noção de pessoa, morte, espírito e fotografia entre os Yanomami, podemos antever o quanto é complexo o uso e a interpretação que se pode fazer do filme (e da imagem) entre e sobre um povo indígena: a questão vai necessariamente muito além (e num certo sentido contrário) ao uso e ao sentido que nós (ocidentais) damos à fotografia, à memória (e, portanto à vocação da imagem fotográfica como suporte de um referente ou de um ente querido), enfim, à relação entre vivos-mortos e entre humanos-animais-espíritos. *** Nos últimos dois meses fomos sacudidos e chocados por imagens e palavras vindas do Mato Grosso do Sul: de um lado, a terra como um “ente vivo” e que merece respeito e cuidado pelos humanos; do outro, a terra como objeto a ser usado e transformado em mercadoria pelo homem. Sigamos, numa escrita paralela, os fragmentos da cronologia deste confronto de práticas e visões de mundo sobre a ocupação da terra – visões que não deixam de estar por trás, por um lado, do uso da violência pelos colonizadores para expropriar a terra indígena e, por outro, da resistência pacífica dos índios. • No seu blogue “Taqui pra ti”, publicado em 28 de outubro de 2012, José Ribamar Bessa Freire conta-nos que os Guarani, no primeiro século da era cristã, saíram da região amazônica, onde viviam, e caminharam em direção ao sul do continente. Dois mil anos depois, um italiano, nascido em 1948, em Toscana, atravessou o oceano Atlântico com sua família, veio para Porto Alegre, de lá para Curitiba, se naturalizou brasileiro e se instalou, finalmente, do Mato Grosso do Sul, onde encontrou os Guarani, que lá viviam há quase dois milênios: o italiano, André Puccinnelli, recém-chegado se tornou governador do Estado em 2007. • A partir do ano de 1915 os índios do Mato Grosso do Sul começaram a ser reduzidos em pequenas reservas pelo Estado brasileiro, através do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), com vistas a disponibilizar suas terras para o avanço das frentes de colonização pastoril e agrícola. Tal como o governador André Puccinnelli, os fazendeiros, pecuaristas e agronegociantes que chegaram no
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Mato Grosso do Sul e ocuparam as terras dos índios eram, na sua maioria, provenientes dos estados do sul (RS, SC e PR). O confinamento dos guarani em pequenas reservas se intensificou nos anos de 1970, alguns deles foram parar em acampamentos em beiras de estrada, outros se dispersaram no meio dos brancos ou em terras estrangeiras, enquanto aumentaram as fazendas de gado, plantações de cana, soja e outras lavouras de grande extensão. • Numa carta de 17 de março de 2007, os professores e líderes Kaiowá disseram: “O fogo da morte passou no corpo da terra, secando suas veias. O ardume do fogo torra sua pele. A mata chora e depois morre. O veneno intoxica. O lixo sufoca. A pisada do boi magoa o solo. O trator revira a terra. Fora de nossas terras, ouvimos seu choro e sua morte sem termos como socorrer a Vida.” E um aluno guarani de José Ribamar Bessa, ao entrevistar um velho guarani da aldeia de Cantagalo, ouviu o seguinte depoimento: “Esta terra que pisamos é um ser vivo, é gente, é nosso irmão. Tem corpo, tem veias, tem sangue. É por isso que o Guarani respeita a terra, que é também um Guarani. O Guarani não polui a água, pois o rio é o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, só que muita gente não percebe. É uma pessoa, tem alma. Quando um Guarani entra na mata e precisa cortar uma árvore, ele conversa com ela, pede licença, pois sabe que se trata de um ser vivo, de uma pessoa, que é nosso parente e está acima de nós”. • Os índios Guarani Kaiowá têm sofrido na pele a violência. Os números podem ser até relativizados pelos fazendeiros e pelo Estado, mas não podem deixar de nos indignar ou revoltar: segundo um relatório do Conselho Indígena Missionário (CIMI), entre 2003 e 2010 foram assassinados 452 indígenas no Brasil, destes, foram 250 somente no Mato Grosso do Sul. Segundo o Mapa da Violência, elaborado pelo Instituto Sangari e pelo Ministério da Justiça, com dados relativos à década de 1998-2008, a proporção de suicídios no país é de 4,9 para 100 mil pessoas; já para o população indígena do estado do Amazonas é de 32,2 para 100 mil pessoas (seis vezes maior que a média nacional), e para a população indígena do estado do Mato Grosso do Sul é de 166 para 100 mil pessoas (34 vezes a média nacional). Entre a população jovem indígena, a taxa de suicídio é ainda mais elevada: no estado do Amazonas há 101 casos para 100 mil pessoas; e no Mato Grosso do Sul, há 446 casos para 100 mil pessoas. Para se ter uma noção da gravidade desta situação, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a taxa de 12,5 para cada 100 mil pessoas é muito elevada. Por isso mesmo, o Mapa da Violência chegou à conclusão de que os índices de suicídios dos indígenas no Mato Grosso do Sul “não têm comparação nem no contexto internacional entre os países
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com taxas de suicídio consideradas trágicas; não resta dúvida de que, neste campo, deveríamos ter condições de formular, de forma rápida e emergencial, políticas e estratégias em condições de enfrentar esse flagelo”.
um ano, estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyelito kue-Mbarakay".
• Enquanto tais políticas não são formuladas e muito menos colocadas em prá tica pelo Estado, os índios Guarani Kaiowá, no desespero, enfrentam a bala e o poder político e econômico dos fazendeiros num movimento de reocupação de suas terras. A partir do século XXI, de forma mais intensa, os Guarani prepararam-se para voltar a habitar as margens de cinco rios no MS: Brilhantes, Dourados, Apa, Iguatemi e Hovy. Foi isso que aconteceu com um grupo de 170 índios Kaiowá, que ocuparam há um ano dois hectares de mata na beira do rio Hovy, perto da fazenda Cambará, município de Iguatemi de Mato Grosso do Sul, num lugar denominado por eles de Pyelito Kue-Mbarakay, que significa na língua guarani “terra dos ancestrais”. Como disse Tonico Benites, índio GuaraniKaiowá, mestre e doutorando em antropologia pela UFRJ, “O modo tradicional de ocupação do espaço pelas famílias extensas ou comunidades guarani e kaiowá é difuso no território, morando fundamentalmente na proximidade de fontes de água boa (minas d’água, córregos, rios etc.), que permitiam o assentamento destes indígenas. Além disso, estes lugares possibilitavam o desenvolvimento das atividades pesqueiras, de caças e coletas.”
2. "(...) ali estão o cemitérios de todos nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais".
• No mês de setembro de 2012, um Juiz Federal, Sergio Henrique Bonacheia, determinou a expulsão dos indígenas da terra reocupada, alegando que não importava"se as terras em litígio são ou foram tradicionalmente ocupadas pelos índios ou se o título dominial do autor é ou foi formado de maneira ilegítima". • Este foi o estopim para que os Guarani Kaiowá se mobilizassem e escrevessem uma carta, que teve ampla circulação nas redes sociais, na qual declaravam o desejo de resistência e, ao mesmo tempo, escancaravam quais eram as intenções da “nossa” justiça e do nosso tipo de sociedade hegemônica: se de fato era para expulsá-los de suas terras, marginalizá-los em alguma beira de estrada, considerá-los irrelevantes ou obstáculos ao “progresso e ao desenvolvimento”, então que os fazendeiros e a justiça assumissem sua real face, sua violência, seu desprezo para com os indígenas. Duas passagens desta carta: 1. “(...) avaliamos a nossa situação e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram quatro mortes, sendo que dois morreram por meio de suicídio e dois em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de
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• Depois desta mobilização, a ordem de despejo foi cancelada ou adiada. O governo corre de um lado para o outro tentando não deixar a violência “manchar” sua imagem. Claro, não se discute ou vislumbra tocar nos pontos essenciais que permite tal violência: que é o modelo de desenvolvimento em curso, a estratégia de exportação de bens primários (dentre outros, soja e minérios), e, nesta lógica do crescimento acelerado, para fazer dos país uma potencia mundial ou, melhor, para incluir o Brasil na órbita central do sistema capitalista e financeiro mundial, é preciso “desentravar” terras ocupadas pelos índios, quilombolas, ribeirinhos, ou por todos aqueles que não estão dispostos a se render a qualquer custo ao mercado ou a transformar suas terras, águas, rios e florestas em lagos para hidrelétricas, em plataformas de exploração de minério, em pastos para bois ou lavouras de cana de açúcar e soja, enfim, em tudo isso que os grandes grupos e oligopólios nacionais e internacionais estão obcecados em “explorar” – e para isso investem todo seu poder onde for necessário: desde o sistema político local até o sistema judiciário, os ministérios das Minas e Energia, do Transporte, da Agricultura. Enquanto isso, o governo pretende “apagar as marcas” da violência do sistema capitalistadesenvolvimentista ou acalmar os movimentos de base e minoritários ao conceder migalhas financeiras e de poder àqueles órgãos responsáveis por proteger e fazer respeitar os grupos minoritários e os direitos difusos: Funai, Fundação Cultural Palmares, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. • Enquanto isso, os ruralistas e mineradores apertam o cerco à terra dos índios e ameaçam seus direitos conquistados: dizem, “não precisamos consultar os índios para explorar suas terras”, “não podemos abrir mão das riquezas minerais depositadas no solo das terras indígenas”, “precisamos da terra deles
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para alargar nos lavoras de soja e pastos de soja”. Para isso, para defender o seus próprios interesses, os latifundiários e empresas mineradoras se aliam a uma certa esquerda caduca e erguem a bandeira da época da ditadura militar: acusam os índios e seus aliados dos movimentos sociais e ambientalistas de estarem a serviço de uma conspiração internacional contra a soberania da nação! Numa estratégia bem construída e cínica, calam-se em relação às grandes multinacionais das sementes e defensivos agrícolas, da exploração mineral. Dizem, as terras indígenas somam 12 ou 13% do território nacional. Omitem que a maior parte destas terras indígenas está localizada na Amazônia, em região de difícil acesso (e, por enquanto, inacessível à exploração mineral e agrícola), e que, para todo o resto do país, apenas 1,5% das terras foram demarcadas para os índios, sendo que, no Mato Grosso Sul, onde vive boa parte dos Guarani Kaiowá, por exemplo, o território demarcado para os indígenas representada apenas 0,4% da superfíe do Estado. • A fome dos ruralistas pela terra não tem limite – seu apetite é insaciável. Depois da tragédia anunciada pela carta dos índios Guarani de Pyelito Kue-Mbarakay, a representante maior dos ruralistas, Presidente da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), assim escreveu (Folha de S. Paulo, 03/11/2012):"É simplificação irreal e equivocada resumir o drama pelo qual passam os 170 índios da etnia guarani-kaiowá a uma simples demanda por terra. [...] Falar em terra é tirar o foco da realidade e justificar a inoperância do poder público. [...] Mais chão não dá a ele [ao índio] a dignidade que lhe é subtraída pela falta de estrutura sanitária, de capacitação técnica e até mesmo de investimentos para o cultivo." Como disse o nosso amigo Henyo Barreto, não deixa de ser impressionante como o argumento dos ruralistas é expropriatório: a terra é uma questão e necessidade para eles, não para os índios. Mais do que isso, a Senadora Abreu está convicta que os “empreendedores do setor agropecuário” são vítimas: “ocorre aí uma expropriação criminosa de terras produtivas, e o fazendeiro, desesperado, tem que abandonar a propriedade com uma mão na frente e outra atrás”. E faz uma ameaça: “Se for da vontade do governo e do povo brasileiro dar mais terra ao índio, que o façam. Mas não à custa dos que trabalham duro para produzir o alimento que chega à mesa de todos nós”. • Dito sem sofismar, o que a ruralista está querendo é que os seus pares sejam indenizados se porventura a terra que eles ocuparam dos índios for revertida para o uso dos índios. E, lógico, não pronunciam uma palavra sequer sobre a indenização aos índios pelas mortes, expropriação, migração forçada e tantas outras sequelas que lhes foram deixadas pelo “empreendedor” agrícola com a conivência do Estado.
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• Quando escreveu no seu blogue de 28 de outubro de 2012, aqui comentado, talvez Bessa Freire não imaginasse que estava indo além da metáfora quando disse que a relação que o índio tem com a terra é uma relação de “cuidado” como se cuida de uma flor, enquanto que a relação engendrada pelo colonizador ocidental com a terra é pensada numa analogia ao estupro: que deve ser “desbravada”, “desflorada”, “penetrada”. A reportagem do UOL, no dia 05 de novembro de 2012, ouviu de uma índia guarani de 23 anos, da aldeia Pyelito Kue-Mbarakay, que, no final de outubro de 2012, foi coagida por oito pistoleiros para que ela os levasse até os líderes indígenas, e, como se negou, foi vítima de um estupro coletivo. • Enquanto isso, no dia 02 de novembro de 2012, no Acre, a Polícia Civil prendia Assuero Doca Veronez, acusado de fazer parte de uma rede de prostituição infantil. Assuero é nada mais do que o presidente da Federação de Agricultura e Pecuária do Estado do Acre e atual vice-presidente da poderosa Confederação Nacional da Agricultura (CNA), liderada pela senadora Kátia Abreu. A polícia gravou, com autorização judicial, mais de 2,8 mil horas, as quais revelam uma rede intricada de exploração sexual de mulheres, dentre elas meninas entre 14 e 17 anos, sendo que alguns envolvidos chegavam a oferecer mais de R$ 2 mil para manter relação sexual com virgens. No dia 05 de novembro de 2012, por determinação do desembargador Francisco Djalma, oficiais de justiça cumpriram mandados de soltura em favor do pecuarista Assuero Doca Veronez. • Em julho de 2010, ao lado do ex-governador do Acre, Binho Marques (PT) e dos atuais senadores Jorge Viana (PT) e Kátia Abreu (PSD), Assuero Veronez teria dito na inauguração da sede da Federação da Agricultura do Acre: “Eu vejo as imagens da boiada do Acre correndo pelos pastos e eu sinto o meu coração estalar. Eu sinto o peito encher de orgulho e admiração pelo meu país, pelo que nós conseguimos com essa pecuária maravilhosa, construída pelo esforço único e exclusivamente dos pecuaristas do Brasil”. E, em seguida, ouviu as elogiosas palavras da amiga Kátia Abreu: “Pode existir alguém no país que conheça de meio ambiente igual ao Assuero. Nunca ninguém mais do que ele. Há 13 anos este homem luta incansavelmente para ver a legislação ambiental modificada. Quero declarar ao Acre a gratidão de 5 milhões de produtores rurais a um acreano de coração, que é o Assuero Doca Veronez”. A título de contraponto, e para concluir nossa já longa apresentação, retornemos às palavras dos índios Guarani e Yanomami, as quais justificam porque estão preocupados com o futuro da humanidade e porque querem guardar-cuidar bem da terra que lhes foi deixada pelos ancestrais.
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Tonico Benites: Os guarani e os kaiowá têm conexão direta com os territórios específicos, consideram-se uma família só, dado que o território é visto por estes indígenas como humano. Eles possuem um forte sentimento religioso de pertencimento ao território, fundamentado em termos cosmológicos, sob a compreensão religiosa de que foram destinados, em sua origem como humanidade, a viver, usufruir e cuidar deste lugar, de modo recíproco e mútuo. Portanto, eles podem até morrer para salvar a terra. Há um compromisso irrenunciável entre os guarani e kaiowá e o guardião/protetor da terra, há um pacto de diálogo e apoio recíproco e mútuo: os guarani e kaiowá protegem e gerenciam os recursos da terra e, por sua vez, o guardião da terra vigia e nutre os guarani e kaiowá.
David Kopenawa Yanomami: Se no centro desta cidade [em referência a Nova Iorque, quando por lá passava] as casas são altas e belas, nas suas bordas, elas estão em ruinas. As pessoas que vivem nestes lugares não têm comida e suas roupas são sujas e rasgadas. Quando andei no meio delas, me olharam com os olhos tristes. Isso me dá dó. Os brancos que criaram as mercadorias pensam que são gentes engenhosas e de valor. No entanto, eles são avaros e não têm nenhuma preocupação com aqueles que, dentre eles, são desprovidos de tudo. Como eles podem pensar ser grandes homens e se achar tão inteligentes? Eles não querem saber de nada destes miseráveis que, no entanto, fazem parte deles. Eles os jogam fora e os deixam sofrer sozinhos. Eles nem mesmo os olham, e se contentam, de longe, em lhes atribuir o nome de pobres. [Os brancos não pensam]: Se destruirmos a terra, será que seremos capazes de recriar uma outra?. Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas cidades são belas, mas seu barulho não para nunca. Eles correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O espírito se toma obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer:"Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami são mentirosos!”. O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os “brancos-espíritos-tatus-gigantes” [mineradoras] entram por toda
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parte sob a terra para retirar os minérios, eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais. Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapïripë, a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam, não queremos fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos. Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas.
Vários textos e artigos nos informaram e inspiraram nesta escrita, ver especialmente: • A floresta de cristais, de Eduardo Viveiros de Castro, disponível em: http://amazone.wikia.com/wiki/A_Floresta_de_Cristal • Antropólogo guarani-kaiowá analisa relação dos índios com sua terra, de Tonico Benites, disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/ posts/2012/10/27/antropologo-guarani-kaiowa-analisa-relacao-dos-indios-com-sua-terra-472239.asp Ver também: • http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1004 • http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/narrativas-indigenas/ narrativa-yanomami • http://genijogapedra.blogspot.com.br/2012/10/o-silencio-feminista-sobre-o-estupro-da.html • http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog • http://editora.expressaopopular.com.br/noticia/ batalha-das-ideias-ser-%C3%ADndio-em-tempos-de-mercadoria • http://www.bbc.co.uk/portuguese/ noticias/2012/10/121024_indigenas_carta_coletiva_jc.shtml • http://www.cimi.org.br/pub/CNBB/Relat.pdf • http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1179734-marcelo-leite-muita-terra-pouco-indio.shtml
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˜ de sessao abertura
Chasseurs et Chamans Caçadores e Xamãs França, 2003, cor, 32´ Direção director Raymond Depardon Fotografia photography Raymond Depardon Montagem editing Roger Ikhlef Som sound Raymond Depardon, Dominique Vieillard Produção production Claudine Nougaret, Palmeraie et désert Contato contact contact@palmeraieetdesert.fr
Raymond Depardon viaja ao Amazonas ao encontro dos índios Yanomami. Raymond Depardon travels to the state of Amazonas to meet Yanomami indians.
cine humberto mauro, 21 nov, 19h30 23
Xapiri Brasil, 2012, cor, 54’ Direção director Leandro Lima e Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra, Bruce Albert Fotografia photography Leandro Lima Montagem editing Leandro Lima, Gisela Motta Som sound Marcos Wesley de Oliveira, Leonardo Rosse Trilha sonora soundtrack Xamãs Yanomami, Comunidade de Watoriki Produção production Cinemateca Brasileira, Instituto Socioambiental Realização Laboratório de Cultura e Tecnologia em Rede/i21, Hutukara Associação Yanomami
Xapiri é um termo yanomami para designar tanto os xamãs, os homens espíritos (xapiri thëpë) quanto espíritos auxiliares (xapiri pë). Xapiri é um filme experimental sobre o xamanismo yanomami, realizado por ocasião de um encontro de 37 xamãs na aldeia de Watoriki, Roraima, em março de 2011. O filme foi concebido de modo a levar em conta duas noções diferentes de imagem: a dos yanomami e a nossa. Não se trata, pois, de explicar o xamanismo, seus métodos ou procedimentos, mas de tornar visível e sensível, para públicos de culturas diferentes, o modo segundo o qual os xamãs “incorporam” os espíritos, seus corpos e suas vozes. Xapiri is a Yanomami term that characterizes the shamans, male spirits (xapiri thëpë) and also auxiliary spirits (xapiri pë). Xapiri is an experimental film about Yanomami shamanism that was filmed during a meeting of 37 shamans at the Watoriki Village, Roraima, in March of 2011. The film was designed to take into account two different notions of image: those of the Yanomami and ours. Therefore, it does not set out to explain shamanism, its methods or procedures, but to allow different cultures to visualize and feel the way in which the shamans “embody” the spirits, their bodies and voices.
cine humberto mauro, 21 nov, 19h30 ´ auditorio 2/face-ufmg, 23 nov, 9h30 24
ˆ canone e ˆ contra-canone
Cânone e Contra-cânone: Para aquém da marginalidade e do compromisso Ewerton Belico Levantai as saias das pudicas, falai de seus joelhos e tornozelos. Mas sobretudo, ide às pessoas práticas – Dizei-lhes que não trabalhais e que viverei eternamente. Ezra Pound, Hugh Selwyn Maubely
A narrativa acerca do cinema brasileiro moderno é mais do que conhecida, como conhecidos são seus personagens, momentos cruciais e alinhamentos: o ocaso da tentativa de constituição de um cinema de moldes industriais nos anos cinquenta, com o fim dos grandes estúdios paulistas e cariocas, os primeiros empregos de atores naturais, o nascedouro de uma estética da câmera na mão, as reivindicações de autoria – também enquanto ruptura e retomada, em nova chave, da tradição – a perspectiva da transformação social por meio do engajamento político, a busca pela representação do popular em suas imagens; mas ainda a ruptura, na qual a alegoria revolucionária é substituída pela figuração da marginalidade urbana, pela exasperação de uma violência anárquica e individualizada, pelo hermetismo neovanguardista e contracultural; ou ainda, pela conciliação com o grande mercado exibidor, seja no pacto com a ditadura encarnado na Embrafilme, ou na pulverização de pequenos produtores votados a um cinema que encarna e reprocessa os clichês da comunicação de massa. Mas tanto as cisões internas entre aquelas que seriam as personificações do moderno no cinema brasileiro (cinema novo/cinema marginal) quanto a aparente oposição entre um cinema que agressivamente se oporia à massificação e aquele que se volta ao grande público vem se revelando – tanto em reavaliações históricas e críticas mais recentes1,
1 Ver XAVIER, Ismail. O Avesso dos anos 90. In: Caderno MAIS! – Folha de São Paulo, São Paulo, 10/07/2001, p. 4-7; BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Marginal?. In: Caderno MAIS! – Folha de São Paulo, São Paulo, 10/07/2001, p. 8-11; GAMO, Alessandro Constantino. Vozes da Boca. Campinas: Unicamp, 2006 e ROCHA MELO, Luís Alberto. A Boca e o Beco. In: GATTI, André Piero; FREIRE, Rafael de Luna. (Org.). Retomando a questão da indústria cinematográfica brasileira. v. 1. Rio de Janeiro: Associação Cultural Tela Brasilis, 2009. p. 58-75
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quanto na retomada mais abrangente da exibição desse conjunto de filmes2 – atravessada por um conjunto de personagens e bifurcações que a taxonomia mais habitual da modernidade cinematográfica brasileira não contemplava. O trânsito de personagens aparentemente secundários – produtores, como Galante e Palácios; montadores, como Reinoldi, Laurelli e Dadá; ou ainda fotógrafos, como Meliande e Oliveira3 – entre filmes com esquemas de produção e faturas estéticas marcadamente distintas, assim como a constituição de espaços de sociabilidade que tornaram possíveis tal circulação (como a Boca do Lixo, em São Paulo, ou ainda o Beco da Fome, no Rio de Janeiro); assim como o estabelecimento de clivagens espaciais e geracionais entre os dois grandes centros de produção brasileiros apontam para a necessidade de compreender mecanismos diversos de articulação tanto entre as formas de produção independentes e industriais (assim como suas relações com o Estado e com a censura) quanto entre as proposições estéticas cinemanovistas e “marginais”. Retomando a noção de “invenção”, tal como formulada por Jairo Ferreira4, e considerando a mesma uma espécie de paideuma crítico5, em especial o que poderíamos chamar da antecâmara de suas formulações mais pessoais, suas críticas do São Paulo Shimbun6 – que buscam fortemente possíveis viabilidades de mercado para um cinema de caráter independente a se produzir no Brasil – procuramos com a mostra “Cânone e Contra-cânone” apresentar uma breve amostra de filmes exemplares tanto da apropriação que poderíamos chamar “erudita”7 de alguns dos protocolos mais característicos do cinema popular de massas que se configura nos grandes centros urbanos brasileiros, entre os anos cinquenta e oitenta, quanto de autores com trajetórias invulgares, e por isso mesmo exemplares, que atravessam os circuitos estéticos e de sociabilidades para além de clivagens apenas superficialmente sólidas. 2 Em especial as Mostras “Cinema Marginal: a representação em seus limites”, realizada por HECO/CCBB, curada por Artur Autran, Eugênio Puppo e Jean-Claude Bernardet; “Marginália 70 - Experimentalismo no Super-8 Brasileiro”, realizada pelo Itaú Cultural, curada por Rubens Machado Jr; e “O cinema da Boca do Lixo”, realizada por HECO/CCBB, curada por Artur Autran, Eugênio Puppo e Jean-Claude Bernardet. 3 Sobre essas trajetórias, ver GAMO, Alessandro Constantino. Vozes da Boca. Campinas: Unicamp, 2006. 4 Ver FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. São Paulo: Max Limonad, 1986 e COELHO, Renato. Jairo Ferreira – Cinema de invenção. São Paulo: CCBB, 2012. 5 Ver FONSECA, Jair Tadeu. Jairo Ferreira: Poéticas, Películas, Políticas. In: Catálogo –forumdoc.bh 2011. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2011. 6 Ver FERREIRA, Jairo. Críticas de Invenção – os anos do São Paulo Shimbun. Org. de Alessandro Gamo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. 7 Dada a origem social de seu diretores, sua sanção pelo discurso crítico e a natureza paródica de sua releitura.
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Dividimos a mostra “Cânone e Contra-cânone” em quatro blocos que visam contemplar alguns dos fragmentos da bifurcação entre indústria e invenção que apontamos: Com O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, e Perdidos e Malditos, de Geraldo Veloso, filmes no qual Paulo Villaça encarna as personificações da ruptura e da marginalidade, buscamos figurar a retomada paródica da intriga policial que, trazida para nosso ambiente ditatorial, resultaria na representação do fascismo na instância mesma da lei. Por meio de Casssy Jones – magnífico sedutor, de Luís Sérgio Person, e Império do Desejo, de Carlos Oscar Reichenbach, expor o curto-circuito em torno daquela que é a metonímia do cinema de massas no Brasil dos anos setenta, a ficção erótica, parodiada na falência de um elenco de personas arquetípicas do macho galanteador – Vinícius de Morais, presente em retrado na parede do bar; Carlos Imperial, autor da trilha sonora; os filmes de ídolos juvenis, como os de Roberto Carlos ou dos Beatles, retomados insistentemente – figuradas no Don Juan caído e apaixonado, Cassy Jones; mas também retomada com dimensão trágica e politicamente anárquica em Império do Desejo, filme em que Reichenbach leva para um formato mais explicitamente erótico e convencionalmente narrativo suas protagonistas femininas independentes e amorais; e no qual o rigor de seu enquadramentos e movimentações de câmera assumem o papel de postergar a expectativa implícita pela explicitação das sequências eróticas, em negociação/ruptura com o horizonte de expectativas implicado no gênero. A$suntina das Amérikas, de Luís Rosemberg Filho; Lobisomem, o terror da meianoite, de Elyseu Visconti e Malandro, termo civilizado, de Sylvio Lanna, são exemplares de uma revisão crítica do cinema brasileiro extremamente pessoal, no qual se retoma a chanchada e a comédia musical. Rosemberg, Visconti e Lanna estão dentre os três mais ousados desenhistas de som do cinema brasileiro, responsáveis, respectivamente, pela retomada do(s) discurso(s) nacional-popular cinemanovista em chave polifônica; por uma característica montagem de som arqueológica de fragmentos de uma memória do Rio antigo e de um primeiro samba, presente tanto no filme que exibimos quanto em Barão Olavo, o horrível, de Júlio Bressane, com desenho de som feito por Visconti; ou ainda por um dos mais radicais experimentos de descontinuidade entre som e imagem da cinematografia brasileira, Sagrada Família, que Lanna realizou em 1970. Por fim, Panca de Valente, de Luís Sérgio Person retoma, em chave cômica, o filme de aventuras em espaço sertanejo que, trazendo para o mundo do
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western personagens como jagunços e cangaceiros, constituiu um dos mais populares gêneros de cinema no Brasil dos anos cinquenta e sessenta, vindo a se fundir, na década seguinte, com a então nascente produção erótica8. E, juntamente com Panca de Valente, apresentamos o filme, também sertanejo, que abre nossa mostra, mas que, contrariamente aos demais, não apresenta uma reapropriação da invenção do cinema popular, mas se constitui como espaço de invenção por ser uma espécie de síntese de uma cinefilia popular, materialização de um discurso crítico selvagem, que cintila solitário e ainda contra-canônico: Sina do Aventureiro, de José Mojica Marins. Ressalto ainda o apoio imprescindível do Instituto de Arte Contemporânea Inhotim, parceiro na telecinagem e exibição de duas das obras integrantes da mostra Perdidos e Malditos, de Geraldo Veloso, e Malandro, termo civilizado, de Sylvio Lanna, sem o qual sua projeção não seria possível, tendo em vista a impossibilidade de exibição das cópias em seus formatos originais. O que exige, aliás, propor ações contínuas de preservação e restauro que garantam a circulação destas e outras obras fundamentais para o cinema brasileiro.
Panca de Valente Brasil, 1968, p&b, 95’ Direção director Luís Sérgio Person Roteiro screenplay Luís Sérgio Person Fotografia photography Osvaldo de Oliveira Montagem editing Glauco Mirko Laurelli Contato contact lauperfilms@gmail.com
Um grupo de bandidos mata o delegado da cidade de Espalha Brasa. Apresentam-se ao prefeito da cidade como inocentes e exigem que Jerônimo, um atrapalhado e inofensivo habitante da cidade assuma o posto. Terezinha, a namorada de Jerônimo, queixa-se com seu pai, o coronel Euclides, sobre a nomeação de seu namorado. Jerônimo conta com a ajuda do garoto Pitu e de seu amigo Faz Tudo para aprender a montar a cavalo e atirar, mas enfrenta muita dificuldade para adaptar-se à nova função. A group of criminals kill the chief of police of Espalha Brasa. They present themselves to the mayor of the city as innocent and demand that Jerônimo, a clumsy and harmless inhabitant of the city, assumes the position. Terezinha, Jerônimo’s girlfriend, complains to her father, colonel Euclides, about the nomination of her boyfriend. Jerônimo counts on the help of a boy called Pitu and his friend Faz Tudo to learn how to ride a horse and shoot, but has great difficulty adapting to the new function.
8 Ver PEREIRA, Rodrigo da Silva. Western Feijoada – o Western no cinema brasileiro. Bauru: UNESP, 2002.
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cine humberto mauro, 22 nov, 17h 31
Sina do Aventureiro
Cassy Jones, Magnífico Sedutor
Brasil, 1958, p&b, 88’ Direção director José Mojica Marins Roteiro screenplay José Mojica Marins Fotografia photography Honório Marin Montagem editing Luiz Elias
Brasil, 1972, cor, 100’ Direção director Luís Sérgio Person Roteiro screenplay Luís Sérgio Person e Joaquim Assis Fotografia photography Renato Neumann e Osvaldo de Oliveira Montagem editing Glauco Mirko Laurelli e Maria Guadalupe Contato contact lauperfilms@gmail.com
Após ser baleado fugindo de um tiroteio, o bandido Jaime cai à margem de um rio, onde é socorrido por duas belas jovens. Ele envolve-se romanticamente com Dorinha, filha de um fazendeiro e, por amor a ela, entrega-se à polícia. Ao sair da prisão, Jaime tem que enfrentar Xavier, um bandido sanguinário que planeja vingar-se do pai de Dorinha.
Cassy Jones, um sedutor inveterado, amanhece no seu colchão de água ao lado da bela modelo Gigi, enquanto o seu amigo Bubu, igualmente paquerador mas não tão bonito, tenta uma aventura com a criada coroa da casa que, indignada, promete voltar com o filho para tirar satisfações. Daí se envolvem numa aventura que vai desde a cadeia até a conquista de uma garota, incorporando Don Juan e seus disfarces.
After being shot while escaping from a shootout, the outlaw Jaime falls on a riverbank where is rescued by two beautiful young girls. He became romantically involved with Dorinha, the daughter of a farmer, and as a result of his love for her, he gives himself up to the police. After getting out of prison, Jaime has to face Xavier, a bloodthirsty villain who plans revenge on Dorinha’s father.
cine humberto mauro, 22 nov, 15h 32
Cassy Jones, an inveterate seducer, awakes on his water mattress beside the beautiful model Gigi, while his friend Bubu, also a renowned seducer but not so handsome, attempts an adventure with the older maid of the house who, outraged, promises to return with her son to deal with him. Cassy gets involved with Ingrid, another emancipated beauty who is also desired by Bubu, who never has any luck with beautiful women. Following their release from a prison sentence, Cassy and Bubu watch a program on TV in which the delicate Clara Mondal and her grumpy tutor Frida participate. The spirit of Don Juan takes Power of Cassy, who becomes determined to conquer the girl and uses various disguises to approach her.
cine humberto mauro, 23 nov, 19h 33
Império do Desejo*
A$suntina das Amérikas
Brasil, 1980, cor, 95’ Direção director Carlos Reichenbach Roteiro screenplay Carlos Reichenbach Fotografia photography Carlos Reichenbach Montagem editing Gilberto Wagner Contato contact heco@heco.com.br *Sessão dedicada a Carlos Reichenbach, morto este ano
Brasil, 1976, cor, 90’ Direção director Luiz Rosemberg Filho Roteiro screenplay Luiz Rosemberg Filho Fotografia photography Renaud Leenhardt Montagem editing Severino Dadá, Luiz Rosemberg Filho
Viúva descobre que o marido mantinha uma casa na praia para encontros amorosos; decidida a reaver a propriedade e com a ajuda de um advogado, embarca para Ilhabela e durante a viagem dá carona a um casal de hippies. Desocupada por mandato judicial, deixa os jovens tomando conta da casa e volta para São Paulo. Porém, coisas estranhas passam a acontecer na casa: duas estudantes desaparecem; um milionário louco e poeta ronda a vizinhança assustando a todos; uma jornalista chinesa é morta e devorada pelo poeta...
A$suntina das Amérikas é uma comédia musical sobre uma prostituta, que no período de 24 horas, acorda, briga com a mãe, anarquisa o filho, namora Papai Noel, um Urso Azul e duas amiguinhas e por fim se encontra com o velho amante milionário. Então, os dois sozinhos dentro de uma enorme sala conversam sobre o cotidiano, amam-se, dançam e por fim, matam-se. Baseado em Dependência e Desenvolvimento na América Latina de Fernando Henrique Cardoso, e Psicologia de Massas e o Fascismo, de Wilhelm Reich.
A widow discovers that her husband has a house on the beach for romantic encounters; having decided to repossess the property and with the help of a lawyer, she sets off for Ilhabela and during the trip they give a ride to a couple of hippies. As the house is unoccupied resulting from a court order, she leaves the couple in charge of the house and returns to São Paulo. However, strange things start to happen in the house: two students disappear; a crazy millionaire and poet go around the neighborhood scaring everyone; a Chinese journalist is killed and devoured by the poet...
cine humberto mauro, 23 nov, 21h 34
A$suntina das Amérikas is a musical comedy about a prostitute who, within a period of 24 hours, wakes up, fights with her mother, torments her son, has romantic encounters with Santa, a Blue Bear and two female friends and finally meets her old millionaire lover. Then the two of them talk about everyday things in an enormous room alone together, make love, dance and finally, kill each other. Based on Dependência e Desenvolvimento na América Latina (Dependancy and Development in Latin America) by Fernando Henrique Cardoso, and Psicologia de Massas e o fascismo (Physcology for the Masses and Fascism) by Wilhelm Reich.
cine humberto mauro, 25 nov, 17h instituto inhotim, 24 fev, 2013, 15h 35
Lobisomem: o terror da meia-noite
Malandro, Termo Civilizado
Brasil, 1968, p&b, 95’ Direção director Elyseu Visconti Roteiro screenplay Elyseu Visconti Fotografia photography Elyseu Visconti, Rogério Sganzerla Montagem editing Mair Tavares, Manoel Oliveira
Brasil, 1986, p&b, 25’ Direção director Sylvio Lanna
O filme trata dos fatos que envolvem um lobisomem da floresta tropical, que tem o seu covil entre palmeiras, jaqueiras frondosas e orquídeas. De lá comanda sua gangue e procura se sobrepor aos espíritos das matas, entre os quais destaca-se Satanás, que se revela no interior de grutas pré-históricas, como um homem das cavernas. Entre orgias com mulheres lindíssimas, gritos de pássaros exóticos, sambas carnavalescos e chorinhos de Pinxinguinha, compõem-se o som tropical que, ecoando entre as árvores úmidas, jorra com o sangue das vítimas.
Filme musical com a Moreira da Silva e Luiz Melodia. Musical with Moreira da Silva and Luiz Melodia.
The film deals with the facts that involve a werewolf in the tropical forest who has its lair between palm trees, lush jack fruit trees and orchids. From there he commands his gang and seeks to overcome the spirits of the forest, among which the devil is the most powerful and reveals himself inside prehistoric caverns, as a caveman. Between orgies with beautiful women, the screams of exotic birds, carnival sambas and Pinxinguinha chorinhos, they compose the tropical sounds that, echoing through the humid trees, gush with the blood of the victims.
cine humberto mauro, 25 nov, 19h 36
cine humberto mauro, 25 nov, 19h instituto inhotim, 23 fev, 2013, 15h 37
Bandido da Luz Vermelha
Perdidos e Malditos
Brasil, 1968, p&b, 92’ Direção director Rogério Sganzerla Roteiro screenplay Rogério Sganzerla Fotografia photography Peter Overbeck Montagem editing Sylvio Renoldi
Brasil, 1970, p&b, 75’ Direção director Geraldo Veloso Roteiro screenplay Geraldo Veloso Fotografia photography João Carlos Horta, Antônio Penido Montagem editing Geraldo Veloso
“O terceiro mundo vai explodir!”
Almeida atravessa crise de definição existencial: casado com Gisela, intelectual, filha do dono do jornal que ele dirige, entra em choque com seu amigo Tavares, policial que investiga assassinato provocado por uma série de reportagens do seu jornal sobre o submundo do crime. Almeida obedece a ordens superiores e não pode atender ao pedido de Tavares para que suspenda as reportagens, causando assim graves problemas para ambos. Decidido a abandonar o jogo sujo de interesses ocultos, resolve então reformular sua vida.
“The third world is going to explode!”
Almeida goes through an existential definition crisis: married with Gisela, an intellectual and daughter of the owner of the newspaper that he directs, he has a conflict with his friend Tavares, a Police officer who is investigating a murder provoked by a series of reports in his newspaper on the underworld of crime. Almeida obeys orders from his superiors and cannot fulfill the request of Tavares to suspend the reports, therefore causing serious problems for them both. Having decided to abandon the dirty game of hidden interests, his solution is to reformulate his life.
cine humberto mauro, 26 nov, 19h 38
cine humberto mauro, 26 nov, 17h instituto inhotim, 23 fev, 2013, 15h 39
a mulher ˆ e a camera
A mulher e a câmera Carla Maia e Cláudia Mesquita Um fato curioso: nas filas para cirurgias de transplantes do coração, há pacientes do sexo masculino que preferem continuar a esperar a ter de receber o órgão de uma mulher. Ao que parece, na opinião desses pacientes, receber um coração feminino pode ser algo muito grave. Podemos dizer que é em torno desse “centro de gravidade” que orbitam os filmes que compõem a mostra/seminário “A mulher e a câmera”, dedicada a exibir e discutir obras de assinatura feminina, nacionais e internacionais. Mais de quatro décadas após o surgimento do movimento feminista, é preciso reconhecer que não estão ultrapassadas as discussões relativas à mulher. Também é forçoso reconhecer a dificuldade de definição dessa diferença que isola os corações – biológica, sexual, cultural, social, ou seriam todas as alternativas? – e adiantamos que não é um ímpeto de definição que nos move. Antes, focamos a diferença como potência. A pequena, porém expressiva seleção de filmes que compõe a mostra “A mulher e a câmera” – são dezessete obras, sendo onze longas e seis curtas e médias metragens – atesta a diversidade formal e temática que impede que cunhemos, para nomear a mostra, uma noção definidora tanto da mulher como do cinema realizado por elas. Não por acaso, o título faz clara alusão à mostra/seminário “O animal e a câmera”, apresentada no forumdoc.bh.2011. Sempre com renovado interesse, o forumdoc segue empenhado em pensar um mundo com alteridade: a mulher, o animal, vêm assim ocupar o lugar de um Outro que desestabiliza os padrões de um certo pensamento ocidental formulado e orientado por uma maioria de homens, adultos, brancos, cidadãos, como escrevem Deleuze e Guattari. No entendimento dos autores, as mulheres, independente de seu número, são uma minoria, existem como devir-minoritário e, como todo devir, desafiam os modos de compreensão do nosso tempo ao propor movimentos de desestabilização dos padrões majoritários. Se, como nota Paulo Maia na apresentação da mostra “O animal e a câmera”, as relações entre o homem e o animal permitem problematizar as complexas relações entre natureza e sociedade, sobretudo por desafiar a “máquina antropológica da filosofia ocidental” denunciada por Giorgio Agamben como aquela “que impõe a cesura (no interior do homem) entre o humano e o animal”, trata-se agora de voltar a atenção para outra cesura – interior ou exterior? – que separa os seres em dois gêneros.
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Frente a tudo que já se disse e ainda há por ser dito sobre as mulheres, o que poderia o cinema? É evidente que trata-se, sim, de pensar sobre poderes. Sabemos bem que um filme nunca é apenas um filme: é um agente cognitivo e sensível, que pode trabalhar no sentido de reforçar os sistemas de significação vigentes ou, contrariamente, inventar outros sentidos, outros mundos – entre um pólo e outro, todas as nuances são possíveis. Sim, “o cinema não apenas apresenta imagens, ele as cerca com um mundo” (DELEUZE, 2005, p. 87). O mundo que buscamos dar a ver com a presente mostra é um em que as mulheres têm vez e voz, digamos, um mundo com as mulheres, aberto às suas mais diversas participações, aberto inclusive às suas instabilidades e contradições: dito de outro modo, seguimos em defesa de um mundo com alteridade, onde ainda é possível atar laços e propor outras partilhas. Entretanto, trata-se, sobretudo, de atentar para o que não se pode. Não nos caberá tecer generalizações, mas apontar configurações provisórias, coerentes em si mesmas – talvez no espaço e tempo de um filme, apenas – porém não aplicáveis a todo e qualquer contexto. Os filmes que nos interessam dificultam muito, quando não impossibilitam, qualquer abordagem universalista ou essencialista do problema. Ainda assim, não ocultamos nosso interesse em fazer desse pequeno conjunto de filmes a serem exibidos pontos de irradiação para a discussão de questões amplas e complexas sobre as mulheres e seu “separatismo minoritário paradoxalmente doloroso e desejado” (DURAS, 1988, p. 169). Ao pensar tal separação entre os seres, o filósofo Emmanuel Levinas escreve que “o feminino é outro para um ser masculino, não só porque é de natureza diferente, mas também enquanto a alteridade é, de alguma maneira, a sua natureza” (LEVINAS, 1982: 58). A afirmação, certamente, pode e deve ser problematizada e matizada de diversas maneiras. É o mesmo Levinas quem, de saída, oferece algumas nuances ao seu próprio pensamento: Todas estas alusões às diferenças ontológicas entre o masculino e o feminino parecerão talvez menos arcaicas se, em vez de dividir a humanidade em duas espécies (ou em dois gêneros), elas quisessem significar que "a participação no masculino e no feminino é própria de todo o ser humano. Será este o sentido do enigmático versículo do Gênesis 1:27: homem e mulher os criou?" (LEVINAS, 1982, p. 58, grifamos)
Deixemos a pergunta aberta: é preciso, antes de tentar solucionar o problema, vê-lo. Escutemos a voz da Esfinge: “não a voz da verdade, não uma voz que responde, mas seu oposto: uma voz que questiona, uma voz que propõe um
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enigma”, como sugere Laura Mulvey em Riddles of the Sphinx (1977). O filme, que abre a mostra, é uma forte referência para estudos de cinema vinculados ao feminismo, ou vice-versa. O trabalho realizado por Mulvey ao lado de Peter Wollen investe num experimentalismo formal que problematiza a questão da representação, fazendo implodir as convenções narrativas do cinema clássico: lentas panorâminas em 360 graus, longas falas da própria Mulvey em planos fixos lendo um texto tão denso quanto instigante – para citar apenas algumas das estratégias do filme – quebram com o esquema “mulher como imagem/ homem como dono do olhar” que, de acordo com a autora, orienta a tradição narrativa do cinema. Em “Prazer visual e cinema narrativo”, texto seminal para os estudos da área, Mulvey busca evidenciar como o contexto audiovisual é dominado por uma lógica masculina do olhar, que sensualiza o corpo feminino para satisfazer ao desejo escópico. O problema maior, para a autora, reside na maneira como “num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino” (MULVEY, 1983, p. 444). Frente a esse cenário, Mulvey sugere que, uma vez esmiuçados, por meio da psicanálise, os mecanismos do olhar escopofílico-voyeurista, restaria a tarefa de destruir tais mecanismos, através de estratégias formais que pudessem libertar o olhar da câmera “em direção à sua materialidade no tempo e no espaço”, e o olhar da platéia “em direção à dialética” (MULVEY, 1983, p. 453). Ou seja, seria preciso ir contra o “princípio do prazer”, convocando o espectador a um trabalho ativo diante do filme. Mulvey defende assim que o cinema feito por mulheres seja algo como um contracinema, enfrentando o fetichismo e o voyeurismo próprios das estruturas inconscientes, por sua vez, calcadas num sistema patriarcal. Através de formas distintas de mise-en-scène, esse contracinema deveria exigir do espectador um outro tipo de engajamento, dificultando a satisfação imediata derivada da escopofilia. É principalmente durante a década de 1970 que filmes orientados por semelhante perspectiva passam a ser produzidos, sobretudo na França e nos EUA. Não por acaso, sete dos filmes que compõem a mostra foram realizados na década de 1970. A começar pelo média-metragem Women’s film (1971), trabalho coletivo realizado pelo grupo Newsreel de São Francisco, no calor do debate feminista emergente nos EUA. Apesar de não ousar muito em termos formais, o filme adquire estatuto de documento histórico ao se aproximar da vida de mulheres comuns, trabalhadoras de diversas cores, idades, classes
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e nacionalidades, convocadas a refletir sobre sua condição feminina. Com discursos ora hesitantes, ora inflamados, mulheres com aparentemente pouco em comum e que não se identificavam propriamente com a militância das intelectuais e artistas da época (entre estas, as próprias proponentes do projeto, Louise Alaimo, Judith Smith e Ellen Sorrin), ganhavam visibilidade e espaço para elaborar e apresentar suas visões de mundo.
em Jeanne é como se realmente a víssemos pela primeira vez. Ao espectador, é demandada uma postura paciente e atenta ao menor detalhe: reparem como uma mecha do cabelo sai do lugar, como um botão falta na roupa... O filme nos propõe, menos que uma narrativa, uma experiência temporal que nos lembra, a todo tempo, de nossa condição de espectadores – e se já não podemos, dela, retirar prazer, podemos apenas suportá-la.
Enquanto isso, na França, Marguerite Duras realizava Nathalie Granger (1972), filme marcado pelo uso inventivo não apenas das imagens, centradas no espaço da casa, mas sobretudo do som, criando uma “política do silêncio” (KAPLAN, 1995, p. 138). As protagonistas – interpretadas por Jeanne Moureau e Lucia Bose – passam a maior parte do filme sem emitir qualquer som. Se raras vezes escutamos suas vozes, tampouco escutamos o ruído de seus passos ao caminhar pela casa ou os sons característicos das atividades que desempenham, como lavar a louça. O contraste sonoro se dá quando Gerard Depardieu entra em cena, no papel de um vendedor a domicílio: tudo que entre elas era silêncio, com ele se torna ruidoso e audível. Essa estratégia formal, com toda sutileza, torna explícita a preocupação de Duras com “essa linha reta da vida de todas as mulheres, esse silêncio da história das mulheres. Esse fracasso que levaria a pensar no sucesso, esse sucesso que não existe, que é um deserto” (1988, p. 171). Gritar na direção dos desertos é o que a autora sugere como forma de resistir e existir – grito inaudito, entretanto, grito quase mudo, diminuto, que nada pode e – no entanto – sugere um outro possível.
Ainda na França, no mesmo ano, Agnés Varda lança seu curta-metragem Réponse de femmes (1975), filme-manifesto que, ainda que de um modo um tanto didático, apresenta um grupo de mulheres frente às questões que, de um jeito ou de outro, rondam sua existência. Assim, gravidez, maternidade, casamento, padrões de beleza e “feminilidade” são colocados sob suspeita, justamente através das diferentes posições de cada mulher em frente à câmera. Para fechar esse curto circuito de cineastas importantes para um pensamento acerca da mulher no cinema – Duras, Akerman, Varda – apresentamos mais um filme de Varda, Documenteur (1981). Dessa vez, a mulher já não surge como tema central, ao menos não de modo evidente. A personagem principal é uma mulher, é verdade, envolvida com o fim de seu casamento e a necessidade de reinventar uma vida, em um país estrangeiro, ao lado do filho pequeno. O filme, entretanto, não pode ser resumido ao redor das desventuras e aventuras de sua personagem, que aliás, não são muitas – procurar uma casa, trabalhar, convencer o filho a dormir na própria cama. Trata-se de um filme que, na esteira do que sugere Mulvey, busca implodir a própria noção de representação ao ressaltar a ficção (ou a mentira, expressa no termo “menteur”) que existe no coração de todo documentário, e vice-versa. Ainda assim, com traços autobiográficos (a própria Varda morava nos Estados Unidos e estava separada do marido quando fez o filme, além da personagem ser vivida por uma trabalhadora do cinema), Documenteur é afetado por uma sensibilidade ímpar, dotada de alto grau de introspecção e em parte devedora de uma instabilidade ou vulnerabilidade que – pode-se argumentar – relaciona-se ao feminino.
É também em silêncio que conhecemos Jeanne, uma disciplinada viúva de classe média – vivida por Delphine Seyrig – que complementa o orçamento do mês prostituindo-se em domicílio. Em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), a diretora Chantal Akerman realiza uma verdadeira etnografia dos gestos cotidianos de uma mulher, sempre em planos fixos, frontais, rigidamente compostos. Na vida de Jeanne, receber os clientes torna-se uma tarefa entre tantas, como cozinhar, limpar, organizar, engraxar sapatos. O tempo distende-se (e muito: o longa-metragem tem 200 minutos) para apreender a duração de cada gesto, numa descrição minuciosa, quase obsessiva, que explora a repetição enquanto marcação do ritmo cotidiano. O filme é um evidente manifesto contra as atrações do mainstream: “acho mais fascinante ver uma mulher – que pode ser todas as mulheres – arrumando uma cama durante três minutos do que uma corrida de carros que dura vinte minutos”, afirma a diretora. O filme opera, ao sublinhar cada gesto, mesmo o mais banal, uma certa crise na representação: somos levados ao limite do que vemos. É certo que todos nós já vimos uma mulher cozinhar antes, mas
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Fugindo do eixo França-EUA que concentra boa parte da reflexão feminista desde a década de 1970, buscamos apresentar trabalhos de cineastas ainda pouco conhecidas no circuito cinematográfico brasileiro, dada sua posição periférica. A começar por um filme que, de tão pouco exibido, foi escolhido praticamente às cegas: La nouba des femmes du Mont-Chenoua, da cineasta e escritora argelina Assia Djebar. O filme compartilha com Documenteur o hibridismo entre documentário e ficção, embora de modo oblíquo e através de recursos e estilísticas bem distintos. Novamente, temos uma personagem, a arquiteta Lila, que passeia por entre lugares e pessoas marcados pela guerra
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da Argélia. Ao ouvir as avós passarem suas tradições aos mais jovens, ao reinscrever a história de um país na voz das mulheres que nele vivem, o filme investe num registro da memória de um povo e de um lugar, sem contudo totalizar tal memória, deixando que nela resida ou resista algum silêncio, femininamente (pensemos, novamente, em Duras). Ainda no continente africano, no Senegal, uma vietnamita afirmaria: “Não quero falar sobre, quero apenas falar ao lado de...” Em Reassemblage (1982), a diretora Trinh Min-ha compõe sua etnografia em luz, gestos, movimentos, colocando explicações e interpretações sob suspeita. Em lugar de falar “sobre”, falar “ao lado”: na mudança da preposição, repousa uma mudança de proposição, que evita a determinação em favor da relação. Mesmo ao voltar para casa para realizar seu segundo longa-metragem, Surname Viet Given Name Nam (1989) – o primeiro foi Naked Spaces (1985), também filmado na África – Trinh Min-ha investe na alteridade (das pessoas que filma) em detrimento da autoridade (do lugar da direção). Ao realizar as entrevistas com mulheres vietnamitas, a diretora deixa que o ritmo de suas falas contamine musicalmente o filme, de modo a enfatizar o que há de singular na voz e no acento de cada uma das mulheres. O tema das conversas reverbera preocupações afinadas com o pensamento feminista, posto que, no Vietnã, ao menos no momento em que é feito o filme, vigora um modo de vida extremamente desigual para mulheres e homens. A resistência feminina a uma situação política opressiva aparece também de maneira contundente em La Flaca Alejandra (1994), filme da diretora chilena Carmen Castillo. A partir do doloroso e franco encontro com Maria Alejandra Merino, ex-companheira de resistência, tornada colaboradora do regime militar chileno sob tortura, Carmen recupera, com a participação corajosa de sua retratada, as violências particulares sofridas pelas mulheres no regime desumanizador de Pinochet. Não poderíamos deixar de incluir, entre os países que expandem nosso recorte, o Brasil. Diante do limite de sessões, na impossibilidade de tudo contemplar, optamos por focalizar a obra de uma das cineastas brasileiras mais engajadas com a questão da mulher, Helena Solberg, diretora de Carmen Miranda: Bananas is my business (1995) e Vida de menina (2004). Na mostra, exibiremos seu primeiro filme, o curta A entrevista (1966), que traz à tona questões relacionadas ao sexo, ao casamento e à política, através de depoimentos de jovens de classe média alta do Rio de Janeiro. Na década de 1970, vivendo nos Estados Unidos, Helena continua a explorar uma abordagem política ao tratar do universo feminino, através de filmes como Simplesmente Jenny (1975), The double day (1975) e The emerging woman (1976),
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que realiza pesquisa e compilação de materiais diversificados, com o propósito de revelar uma história negligenciada da mulher americana. Este último também será exibido na mostra. Além de Solberg, outra Helena compõe a programação: Helena Ignez, uma das grandes atrizes do cinema nacional, e também diretora, apresenta em sessão comentada seu longa-metragem (com Ícaro Martins) Luz nas trevas (2011), continuação do clássico O Bandido da Luz Vermelha (1968), realizado a partir de roteiro deixado por Rogério Sganzerla, com quem Helena foi casada durante muitos anos. Completa a lista de filmes brasileiros o documentário A falta que me faz, de Marília Rocha, um delicado relato do cotidiano de um grupo de meninas em Curralinho, na região da Serra do Espinhaço, Minas Gerais. Marília Rocha e Helena Solberg estarão juntas numa mesa redonda dedicada a pensar a ação e presença da mulher no cinema brasileiro, ao lado de Paula Alves, diretora do Femina – Festival Internacional de Cinema Feminino e pesquisadora com dissertação acerca da participação feminina no mercado de trabalho cinematográfico. A mostra é composta ainda por dois trabalhos de Claire Angelini, artista e cineasta francesa que estará presente no forumdoc para conduzir uma oficina de documentário a partir de seu método de trabalho. Interessada em indagar “como a história retorna ao sensível” e em que medida “a memória do tempo passado” pode se exprimir no presente, Claire Angelini se volta uma vez mais, em La guerre est proche e Et tu es dehors, para a história sob a forma de rastro, de ruína, de reminiscência e de sobrevivência das imagens. As veredas do ensaio, muitas vezes trilhadas pela reflexão sobre o feminino no cinema, são aqui reinventadas para indagar, sob diferentes formas e temáticas, a relação entre arte e história. O curta Tarachime, da diretora japonesa Naomi Kawase, fecha a lista de filmes. No documentário, a diretora filma o filho recém-nascido e a avó, que a criou. Gravidez, parto e maternidade, experiências eminentemente femininas, são trazidas à cena, num filme que investe no auto-biográfico para, enfim, ensaiar sobre o ciclo comum a todas as vidas: nascer, envelhecer, morrer. A diretora afirma que, se a princípio quis fazer um filme sobre a gravidez e o nascimento do filho, ao fim acabou por perceber que não fazia um filme sobre “uma vida”, mas, antes, sobre o laço que liga uma vida a outra. O nascimento pode ser visto, portanto, como metáfora para algo que diz respeito a uma política: política como promessa, como quis Hannah Arendt (2010), anúncio e emergência do novo, renovação do mundo pela espontaneidade e pelo exercício da liberdade. De fato, embora bem distintos em forma e conteúdo, é em sua dimensão política que os filmes se aproximam. Entendemos a política, na esteira do que escreve Rancière, como relações de mundo, algo que está sempre por ser inventado,
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jogo que busca libertar os corpos de seus lugares pré-definidos. Para avançar na reflexão de tais questões, teremos uma mesa para discutir a relação entre mulheres e política, com a participação da pesquisadora Roberta Veiga e da professora da Faculdade de Educação da UFMG, Inês de Castro. Além disso, teremos uma mesa dedicada a pensar os deslocamentos do feminino à luz dos estudos antropológicos em curso, com a presença das professoras e pesquisadoras Lia Zanotta, Erica Sousa e mediação de Débora Breder. A discussão antropológica também abre o seminário, com a conferência de Luisa Elvira Belaunde, que pretende discutir as imagens das mulheres indígenas nos documentários amazônicos. Passando para trás da câmera, convidamos Sueli Maxakali e Patrícia Ferreira para estarem presentes numa mesa acerca da participação feminina no cinema indígena, com mediação de Renata Otto. A curadoria agradece a todos as convidadas e cineastas que gentilmente possibilitaram a realização da mostra/seminário, seja por aceitarem os convites para o seminário, seja por cederem seus filmes. Também agradecemos à Capes pelo financiamento do projeto “A mulher e a câmera”, atividade do programa de extensão forumdoc.bh UFMG em 2012, e a toda equipe de bolsistas do projeto pela dedicação e empenho; ao Consulado Geral da França no Rio de Janeiro, pelo apoio no transporte dos filmes franceses exibidos em película e à valiosa parceria e apoio do Itamaraty/Ministério das Relações Exteriores na realização da Oficina de Documentário com Claire Angelini.
The woman’s film EUA, 1971, p&b, 40’ Direção director Louise Alaimo, Judy Smith, Ellen Sorren Contato contact www.newsreel.us
Referências ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2005. DURAS, Marguerite. Os olhos verdes. Crônicas publicadas em Cahiers du cinéma. Rio de Janeiro: Globo, 1988. KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema – os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. LEVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1982. MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER (org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
O filme foi realizado por mulheres do Newsreel em São Francisco. Foi um esforço coletivo entre as mulheres atrás e em frente à câmera. O próprio roteiro foi escrito a partir de entrevistas prévias com as mulheres que estão no filme. Suas participações, críticas e aprovações foram solicitadas em várias fases da produção. Filme gentilmente cedido por Roz Payne, Newsreel Films. The film was made entirely by women in Sao Francisco Newsreel. It was a collective effort between the women behind and in front of the camera. The script itself was written from preliminay interviews with the film’s participants. Their participation, their criticism and approval were sought at various stages of production. Film courtesy by Roz Payne, Newsreel Films.
´ auditorio 2/face-ufmg, 28 nov, 11h30 50
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Nathalie Granger
Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles
França , 1972, p&b, 83’ Direção director Marguerite Duras Roteiro screenplay Marguerite Duras Fotografia photography Ghislain Cloquet Montagem editing Nicole Lubtchansky Som sound Paul Lainé Contato contact Janine.deunf@diplomatie.gouv.fr
Bélgica/França, 1975, cor, 200’ Direção director Chantal Akerman Fotografia photography Babette Mangolte Montagem editing Patricia Canino, Alain Marchal Som sound Bénie Deswarte, Françoise Van Thienen Contato contact loregablier@gmail.com
O filme mostra uma tarde na vida de duas mulheres fechadas em casa e em silêncio. Isabelle Granger está preocupada com o comportamento violento da filha Nathalie. Do mundo exterior surgem ecos via rádio, e mais tarde, um vendedor de máquinas de lavar. Na singularidade narrativa de Duras, destaca-se uma poderosa impressão de tempo suspenso e angústia contida.
Sobre Jeanne Dielman, diz a diretora: “é um filme hiperrealista sobre a ocupação do tempo na vida de uma mulher limitada a seu lar, sujeita ao conformismo imposto dos gestos cotidianos. Mas revalorizei todos esses gestos restituindo-lhes sua duração real, filmando, em planos sequências, em planos fixos, com a câmera sempre voltada para a personagem, seja qual fosse sua posição. O que eu quis mostrar foi o justo valor do cotidiano feminino”.
The film shows one afternoon in the life of two women closed in her house, in silence. Isabelle Granger is concerned with the violent behavior of her daughter Nathalie. Echoes arise from the outside world via radio, and later, a seller of washing machines. In the narrative uniqueness of Duras, there is a powerful impression of suspended time and contained anguish.
cine humberto mauro, 24 nov, 17h 52
About Jeanne Dielman, says the director, “it is an hyperrealistic film about the use of time in the life of a woman confined to her home, subjected to the conformity of everyday gestures. But I revaluated all these gestures by restoring their actual length, filming in sequence-shots in fixed plans, with the camera always focused on character, whatever her position was. What I wanted to show was the fair value of the feminine everyday”.
´ auditorio 2/face-ufmg, 30 nov, 9h 53
Riddles of the Sphinx
La nouba des femmes du Mont-Chenoua
Reino Unido, 1977, cor, 92’ Direção director Laura Mulvey e Peter Wollen Roteiro screenplay Laura Mulvey, Peter Wollen Fotografia photography Diane Tammes Montagem editing Carola Klein, Larry Sider Som sound Peter Maxwell, Larry Sider Contato contact Andrew.Youdell@bfi.org.uk
Argélia, 1979, cor, 115’ Direção director Assia Djebar Roteiro screenplay Assia Djebbar Montagem editing Nicole Schlemmer Contato contact www.wmm.com
Riddles Of The Sphinx (Enigmas da Esfinge) é um marco da fusão entre feminismo e experimentação formal, em busca de uma linguagem fílmica não-sexista. A figura do título, a lendária criatura da antiguidade, aterroriza Thebes e se auto-destrói somente após Édipo responder corretamente seu enigma. Evocando e desafiando interpretações tradicionais da história de Édipo enquanto um movimento da cultura matriarcal para a ordem patriarcal, o filme desafia também a representação cinematográfica em si mesma.
O filme mescla aspectos ficcionais e documentais ao narrar o retorno da arquiteta argelina Lila à sua região natal, 15 anos após o fim da guerra da Argélia. Lila é obcecada pelas lembranças da guerra de independência que definiu sua infância. Em diálogo com outras mulheres argelinas, ela reflete sobre as diferenças entre a sua vida e a delas.
Riddles Of The Sphinx is a landmark fusion of feminism and formal experimentation that seeks to create a non-sexist film language. Its title figure, the legendary creature of antiquity, terrorized Thebes and self-destructed only after Oedipus correctly answered her riddle. Invoking and challenging traditional interpretations of the Oedipus story as a movement from matriarchal culture to patriarchal order, the film also probes representation in film itself.
´ auditorio 2/face-ufmg, 22 nov, 10h 54
The film mingles narrative and documentary styles to document the return of the Argelian architect Lila to her native region 15 years after the end of the Algerian war. Lila is obsessed by memories of the war for independence that defined her childhood. In dialogue with other Algerian women, she reflects on the differences between her life and theirs.
cine humberto mauro, 27 nov, 17h 55
Reassemblage
Surname Viet Given Name Nam
EUA, 1982, cor, 40’ Direção director Trinh T. Minh-ha Montagem editing Trinh T. Minh-ha Produção production Jean-Paul Bourdier Contato contact www.wmm.com
EUA, 1989, p&b e cor, 108’ Direção director Trinh T. Minh-ha Fotografia photography Kathleen Beeler Montagem editing Linda Peckham, Trinh T. Minh-ha Contato contact www.wmm.com
As mulheres são o foco - mas não o objeto - do primeiro filme de Trinh T. Minh-ha, um complexo estudo visual da região rural do Senegal. Através da cumplicidade da interação entre filme e espectador, Reassemblage reflete sobre o cinema documental e a representação etnográfica das culturas.
O documentário explora o papel social das mulheres vietnamitas historicamente e na sociedade contemporânea. Usando dança, textos impressos, poesia popular e as palavras e experiências de mulheres no Vietnã e nos Estados Unidos, o filme desafia a cultura oficial ao fazer ouvir as vozes dessas mulheres. Uma obra teórica e formalmente complexa, Surname Viet Given Name Nam explora as dificuldades de tradução e os temas de deslocamento e exílio, criticando tanto a sociedade tradicional quanto a vida depois da guerra.
Women are the focus but not the object of Trinh T. Minh-ha’s influential first film, a complex visual study of the women of rural Senegal. Through a complicity of interaction between film and spectator, Reassemblage reflects on documentary filmmaking and the ethnographic representation of cultures.
cine humberto mauro, 02 dez, 17h 56
The documentary explores the role of Vietnamese women historically and in contemporary society. Using dance, printed texts, folk poetry and the words and experiences of Vietnamese women in Vietnam—from both North and South—and the United States, Trinh’s film challenges official culture with the voices of women. A theoretically and formally complex work, Surname Viet Given Name Nam explores the difficulty of translation, and themes of dislocation and exile, critiquing both traditional society and life since the war.
cine humberto mauro, 01 dez, 21h 57
Réponse de femmes: Notre corps, notre sexe
Documenteur
França, 1975, cor, 8’ Direção director Agnès Varda Fotografia photography Jacques Reiss, Michel Thiriet Montagem editing Marie Castro, Andrée Choty, Hélène Wolf Som sound Bernard Bleicher Contato contact cine-tamaris@wanadoo.fr
França, 1981, cor, 63’ Direção director Agnès Varda Fotografia photography Nurit Aviv, Affonso Beato, Bob Carr Montagem editing Bob Gould, Sabine Mamou Som sound Jonathan Liebling Contato contact cine-tamaris@wanadoo.fr
O que significa ser uma mulher realmente? Como as mulheres vivem sob o status social reservado a elas? Um grupo de mulheres, bonitas ou não, jovens ou não, dotadas de instinto maternal ou não, responde diante da câmera de Agnès Varda.
Realizado durante a breve estadia de Varda em Los Angeles no início de 1980, o filme tem no título um trocadilho com as palavras documentaire (documentário) e menteur (mentiroso), uma justaposição que tem guiado o cinema de Varda desde o início de sua carreira. No filme, uma jovem francesa divorciada tenta encontrar uma moradia para ela e seu filho em Los Angeles.
What to be a woman really means? How do women live under the social status reserved for them? A group of women, beautiful or not, young or not, endowed with maternal instinct or not, responds before the camera of Agnès Varda.
cine humberto mauro, 27 nov, 19h 58
Shot during the brief stay of Varda in Los Angeles in early 1980, the film has a title with a pun on the words documentaire (documentary) and menteur (liar), a crucial juxtaposition that has guided Varda’s cinema since the beginning of her career. In the film, a young French divorcee tries to find a home for her and her son in Los Angeles.
cine humberto mauro, 27 nov, 19h 59
La guerre est proche
Et tu es dehors
França, 2011, cor, 80’ Direção director Claire Angelini Contato contact clairangelini@hotmail.com
França, 2012, cor e p&b, 85’ Direção director Claire Angelini Fotografia photography Stéphane Degnieau Montagem editing Claire Angelini Som sound Claire Angelini Contato contact clairangelini@hotmail.com
Documentário sobre o campo de concentração de Rivesaltes, na França, construído em 1936, por onde passaram milhares de judeus rumo a Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial. Considerado hoje um acampamento militar abandonado, o local e suas memórias são evocados a partir de seus edifícios e ruínas.
Documentário experimental sobre um homem que retorna à sua cidade natal e, num quarto de hotel, tenta reunir os fragmentos de seu passado. Experimental documentary about a man who returns to his hometown and, in a hotel room, tries to gather the fragments of his past.
Documentary about the Rivesaltes concentration camp, in France, built in 1936, where thousands of Jews have passed towards Auschwitz during World War II. Considered today an abandoned military camp, the place and its memories are evoked from their buildings and ruins.
cine humberto mauro, 29 nov, 17h 60
cine humberto mauro, 30 nov, 19h 61
A Entrevista
The Emerging Woman A Nova Mulher
Brasil, 1966, p&b, 19’9’’ Direção director Helena Solberg Contato contact radiantefilmes@terra.com.br
EUA, 1975, p&b, 48’ Direção director Helena Solberg Roteiro screenplay Roberta Haber, Melania Maholick Montagem editing Jane Stubbs Contato contact radiantefilmes@terra.com.br
Helena Solberg entrevista moças de formação burguesa sobre casamento, sexo e política, enquanto a imagem de uma noiva se preparando para a cerimônia vai sendo desmistificada pelo áudio dessas entrevistas.
O documentário oferece um panorama histórico da luta das mulheres por igualdade, desde o começo do século 19. Antigas gravuras, fotografias, notícias e material de arquivo ilustram as várias experiências sociais, econômicas e culturais das mulheres através da história.
Helena Solberg interview bourgeois girls about marriage, sex and politics, while the image of a bride getting ready for the ceremony is being demystified by the audio of the interviews.
cine humberto mauro, 28 nov, 19h 62
This documentary provides an historical overview of woman's struggle for equality since the early 1800's. Old engravings, photographs, newsreels and archival footage further illustrate the varied social, economic and cultural experiences of women through history.
´ auditorio 2/face-ufmg, 28 nov, 11h30 63
La Flaca Alejandra
Tarachime Nascimento / Maternidade
Chile/França, 1994, cor e p&b, 60’ Direção director Carmen Castillo, Guy Girard Fotografia photography Maurice Perrimond Montagem editing Annick Breuil Som sound Cormine Gigor Contato contact carmen.castillo@yahoo.fr
Japão/França, 2006, cor, 43 Direção director Naomi Kawase Fotografia photography Naomi Kawase Montagem editing Naomi Kawase, Takefuji Kayo Som sound Naomi Kawase Produção production Sent Inc., Kumie e Arte France
Documentário sobre Maria Alejandra Merino, ex-chefe do MIR (Movimento da Esquerda Revolucionária) que, sob tortura, converteu-se em colaboradora da DINA (Diretoria de Inteligência Nacional) no governo de Pinochet. A cineasta Carmen Castillo esteve entre os militantes do MIR delatados por Maria Alejandra Merino.
Tarachime começa em 24 de Abril de 2004, quando Naomi Kawase teve o filho, Mitsuki. Assim que o cordão umbilical foi cortado, a cineasta pegou a câmara para filmar a sua criança e a sua avó de noventa e dois anos. "Tarachime" significa mãe no japonês arcaico.
Documentary about Maria Alejandra Merino, ex-chief of MIR (Revolutionary Left Movement) who, under torture, became an informant of DINA (National Inteligence Directory) during Pinochet’s government. The filmmaker Carmen Castillo was one of the MIR members betrayed by Maria Alejandra Merino.
´ auditorio 2/face-ufmg, 27 nov, 11h30 64
Tarachime begins in April 24th, when Naomi Kawase gave birth to her first child, Mitsuki. Once the umbilical cord was cut, the filmmaker took the camera and start filming her baby and her grandmother aged 92 years old. “Tarachime” means “mother” in arcaic japanese.
´ auditorio 2/face-UFMG, 27 nov, 11h30 65
Luz nas Trevas – A volta do Bandido da Luz Vermelha
A falta que me faz Like water through stone
Brasil, 2011, cor, 83’ Direção director Ícaro C. Martins, Helena Ignez Roreito screenplay Rogério Sinai Sganzerla, Helena Ignez Fotografia photography José Roberto Eliezer Montagem editing Rodrigo Lima Produção production Sinai Sganzerla Contato contact smercurioproducoes@gmail.com
Brasil, 2009, cor, 85’ Direção director Marília Rocha Fotografia photography Alexandre Baxter, Ivo Lopes Araújo Montagem editing Francisco Moreira, Marília Rocha Som sound O Grivo Produção production Luana Melgaço Contato contact teia.distribuicao@gmail.com
Luz nas Trevas, continuação do filme O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, traz Ney Matogrosso como protagonista. Seu filho Tudo-ou-Nada é o fio condutor que atravessa essa história. Adorado pelas mulheres, Tudo-ou-Nada segue a “carreira” de seu pai a fim de desfrutar de uma ampla variedade de prazeres mundanos.
Durante um inverno, um grupo de meninas vive o fim da juventude. Um romantismo impossível deixa marcas em seus corpos e na paisagem a seu redor. During winter, a group of girls live the end of youth. An impossible romanticism leaves marks in their bodies and in the scenery around them.
Luz nas Trevas (Light in the Darkness), sequence of Rogerio Sganzerla’s O Bandido da Luz Vermelha (The Red Light Bandit), brings Ney Matogrosso as the protagonist. His son Tudo-ou-nada (All-or-Nothing) is the thread that guides this story. Loved by women, Tudo-ou-Nada follows the “career” of his father to enjoy a wide variety of worldly pleasures.
cine humberto mauro, 26 nov, 21h 66
cine humberto mauro, 28 nov, 19h 67
competitivas
Júri Mostra Competitiva Nacional Debora Breder Formada em cinema pela EICTV de San Antonio de Los Baños (Cuba) e doutora em Antropologia pela UFF. Atualmente realiza pós-doutorado em Antropologia na UFMG. Luís Alberto Rocha Melo Professor-adjunto do curso de Cinema e Audiovisual no Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Escreveu textos para diversos catálogos de mostras e retrospectivas de cinema. É redator das revistas Contracampo e Filme Cultura. Nísio Teixeira Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG. É redator da revista digital de cinema Filmes Polvo.
Mostra Competitiva Internacional Alexandre Veras Realizador e formador cultural é coordenador do Alpendre-Casa de Arte, Pesquisa e Produção, em Fortaleza, onde desenvolve atividades de curadoria, seminários, exposições. Ansgar Vogt Graduado em Performance Studies na New York University´s Tisch School of the Arts, trabalhou como jornalista, autor e desenvolvedor de roteiros. Desde 2004 ele é membro do comitê de seleção da seção Forum do Festival de Berlim. María Campaña Ramia Naceu em Quito. Programadora de cinema, jornalista e blogueira. Mestre em produção e realização de cinema documental pela Universidad Marc Bloch de Estrasburgo. Integrante da equipe do Festival Internacional de Cinema Documental Encuentros del Otro Cine que se realiza no Equador desde 2001.
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mostra competitiva nacional
Sob o risco do cinema Carolina Canguçu e Victor Guimarães Sabemos bem da impossibilidade de considerar o documentário contemporâneo como uma categoria definível, que possuiria uma identidade e características previamente reconhecíveis. A riqueza desse cinema surge justamente dos acontecimentos que se atualizam no e pelo filme, de sua imprevisibilidade e de sua capacidade de envolver inúmeras e diferentes subjetividades. No entanto, é preciso que se diga: a safra de filmes enviados a uma mostra como esta competitiva nacional não é feita apenas de uma pluralidade inventiva, composta de diversas abordagens, olhares, experiências cinematográficas. Em nosso percurso de alguns meses em companhia dos 260 filmes inscritos, muitos foram os momentos em que o que estava em jogo não era a multiplicidade, mas a repetição incessante; em que o imperativo parecia ser não o de encontrar – ou de inventar – algo no (ou com o) mundo, mas o de forjar, a qualquer custo, uma estrutura onde coubessem todos os mundos. Durante a seleção, nos deparamos com inúmeras reportagens, em que o único interesse repousava sobre alguns fragmentos de falas que pudessem aumentar quantitativamente nosso estoque de conhecimentos sobre determinado assunto; outros tantos filmes institucionais, que buscavam, a partir de uma tese preconcebida, legitimar certo grupo social, agremiação artística ou estabelecimento comercial existente, adornando seus contornos com as glórias da imagem; inúmeros filmes cuja única tarefa era a exaltação de um personagem extraordinário, a partir de uma mesma receita baseada na articulação entre depoimentos e imagens de arquivo (fosse um líder revolucionário do passado ou um músico esquecido pela crítica musical, a fórmula parecia servir igualmente). Em todos esses casos, a montagem parece não se interessar por quase nada que possa vir da cena, além das melhores palavras de seus personagens ou das imagens mais bem acabadas. Tudo se passa como se o cinema fosse um conjunto de formas a serem preenchidas, de protocolos a serem seguidos. E é importante ressaltar: esses filmes não são exceções em meio a um vasto conjunto de experiências diversas, mas constituem um manancial hegemônico, caudaloso o suficiente para atingir a parte mais numerosa dos documentários inscritos.
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Diante desse grande amontoado de filmes previsíveis, controlados e controladores, sem arestas ou sobras, nosso mundo – o dos espectadores – permanece igualmente inalterado: as fronteiras continuam estabelecidas, os sujeitos em suas devidas posições. A esse mundo, acrescenta-se alguma informação relevante, alguma bela imagem, mas não se ousa incidir sobre os nossos jeitos de ver e de ouvir, de pensar o mundo ou de filmá-lo. De informações relevantes e imagens bem acabadas, a televisão está cheia. Mas eis que, em algum momento, diante de nossas retinas e ouvidos já tão fatigados, começam a surgir os filmes que se atrevem a nos retirar de um lugar estabilizado e confortável: problematizam nosso olhar e nossa escuta diante de um mundo tomado pela repetição, enveredam por uma trilha inesperada, convidam o documentário para dançar. Marcados por um duplo engajamento, esses filmes embrenham-se no mundo e mergulham – verdadeiramente – no cinema, ao fazer desse encontro o lugar de uma produção recíproca: o filme como espaço de exposição às impurezas do mundo, mas também de invenção de um cinema impuro, problemático, instável. À certa altura, um desses filmes resolve fazer da sala de cinema o lugar da abertura de uma ferida de dimensões históricas, ao mesmo tempo em que inventa um dispositivo formal dos mais arriscados de que se tem notícia no cinema recente (Doméstica). Em outro momento, há quem decida transformar um espaço dos mais concretos – um prédio, com suas tubulações e suas rachaduras – em uma metáfora crítica das contradições do país, sem medo do artifício e nem da grandiloquência (HU). De repente, um mito indígena invade a tela sob vestes cinematográficas nada convencionais: a história ganha a forma de uma ficção composta por uma dramaturgia precisa, que não hesita em visitar o cinema de gênero (Porcos raivosos). De repente, um ensaio fílmico sem palavras se torna uma investigação cinematográfica altamente reveladora – e transformadora – de todo um regime de profusão das imagens (Pele de Branco). Profusão que se torna o disparador para um filme terrorista, que, a partir de um método planejado de entrega de câmeras em casas de classe alta, apropriase das reações que o real lhe oferece, aceita e transforma as consequências inesperadas de seu roteiro (Câmara escura). É também o que acontece em Tava – a casa de Pedra: ao contrário de tentar controlar e negar a cena como lugar da negociação, o filme assume o inesperado dos encontros previamente planejados como parte de sua materialidade. Entre a história do contato com
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os brancos e a investigação da cosmologia Guarani, a instabilidade torna-se não um obstáculo, mas o ponto chave de uma maturidade cinematográfica. Há filmes que se fazem inteiramente na tensão com aquilo que os circunda, mas que também os atravessa e passa a compor sua materialidade: aqui, a pressão real do fora-de-campo é, a um só tempo, condição de existência e escolha cinematográfica (Margens dos Marques). E há aqueles que ousam fazer da performance a matéria-prima do documentário, seja para melhor investigar seus efeitos no mundo e no filme (A anti-performance), seja para embarcar, por um breve instante, de olhos e ouvidos abertos na beleza física de sua indefinição (Lullaby). Em Mr. Sganzerla – Os signos da luz, uma pretensa biografia de um cineasta extraordinário torna-se o lugar de um pensamento que parte exclusivamente das imagens e a elas retorna, mas sob a forma de uma montagem que traça novas relações, estabelece comparações, desestabiliza sentidos. E assim como uma biografia pode se enveredar por um ensaio sobre o próprio cinema, o documentário pode ser inventivo o suficiente para se transformar em carta de amor (Otto): torna-se possível imaginar que uma experiência profundamente subjetiva – conhecer uma nova mulher, ter um filho –constitua um acontecimento cinematográfico admirável, que não conhece fronteiras entre o privado e público, entre o íntimo e o universal. De forma totalmente inesperada, surge um filme que se apoia nas vicissitudes de um presidente de clube para narrar as angústias de um mundo do futebol (muito) longe dos holofotes dos salários astronômicos (Espírito Santo Futebol Clube): o que era um projeto aparentemente institucional ganha a potência dos momentos em que se precipita na cena uma complexidade de sentimentos, apostas existenciais, clichês ideológicos. É também dos clichês – e de sua desconstrução – que se trata Em busca de um lugar comum: provocativo e instigante, o filme acompanha a exploração turística das favelas do Rio de Janeiro, a partir de um ponto de vista simultaneamente interior e distanciado, cúmplice e profundamente crítico de um modelo de cidade e de vida social. Em A cidade é uma só?, é outra cidade – Brasília – que é colocada em questão e se atualiza, por meio do filme, no mesmo processo de exclusão que a originou. Em um filme profundamente heterogêneo e singular, passado e presente se misturam e se contaminam, assim como ficção e documentário, verdade e mentira, sonho e realidade, drama e comédia são categorias indefiníveis e coexistentes.
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Aos poucos, sempre como um parêntese benfazejo e desafiador, foram se destacando esses filmes que não se deixavam apanhar por certa lógica tácita do “bom documentário”, baseada em um roteiro muito bem construído e em soluções já amplamente testadas. Filmes que não eram isentos de problemas e inconsistências, mas que não se davam por satisfeitos em compor uma mise-en-scène adequada para acolher os assuntos ou os sujeitos filmados. Filmes que, por vezes, aceitavam de bom grado o perigo de colocar-se também sob o risco do artifício, do excesso, da ficção, da mistura improvável. A seleção que apresentamos a seguir é feita desses parênteses: dos que insistiram em inventar, apesar de tudo; dos que não se furtaram à tarefa de incidir – com as forças do cinema – sobre as imagens e os sons que compõem nossa existência comum; dos que se atreveram a rearranjar, uma e outra vez, as coordenadas do mundo.
At the risk of cinema Carolina Canguçu e Victor Guimarães It is not possible to consider contemporary documentaries as a definite category, which would have an identity and features previously recognizable. This cinema is so rich because it emerges from happenings that are updated in and through the film, its unpredictability and its capacity to involve numerous and different subjectivities. However, it is to be said: the film lot subscribed in this national competitive showcase does not represent an inventive plurality, made of different approaches, views and cinematographic experiences. During these past months watching the 260 registered films, there were many moments that we couldn’t see a multiplicity but a constant repetition; it seemed that the films didn’t seek to meet – or invent – something in (or with) the world, still they intended, at any cost, to create a structure that would fit all worlds. During the selection of the films we came across many reports, which had the only interest in cutting people’s speeches so we could increase the number of our knowledge stocks about a certain subject; many other institutional films that through a preconceived thesis sought to legitimate a certain social group, art association or a business establishment, beautifying its outlines with the glories of image; various films that only intended to praise an extraordinary character, all made out of the same procedure based on the articulation of interviews and archive images (if it was a past revolutionary leader or an old musician ignored by the media, the same formula seemed to fit always). In all these cases, it seems that the editing doesn’t care about anything that may come from the scene besides the best words from its characters or the most beautiful images. The story goes as if cinema was a set of molds that you could fulfill, protocols to be followed. It is important to be said: these films aren’t exceptions among numerous different experiences, but they are a hegemonic source and represent the majority of the documentaries registered. In the presence of this mass of predictable films, controlled and controlling, with no edges or residues, our spectator world also remains unchanged: the boundaries are still the same, each person fits its place. We can add relevant information to this world, or even beautiful images, but one is never incisive about our ways to see, think and listen to the world, not even the ways to film it. TV is full of relevant information and perfect images.
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But then, somehow, in front of our tired eyes and ears, films that dare to take us from our comfortable and stabilized place emerge; they problematize the way we look and listen to our repetitive world, they choose an unpredictable path and invite documentary to dance. They are twice engaged; they get involved with the world and truly dive into cinema in making the film encounter as a place for a reciprocal production: the film to be exposed to the world dirtiness, but also as a place to invent an unclean cinema, problematic, unstable. At a certain point, one of these films decides to open through cinema a historical wound at the same time it is inventing a risky formal dispositive not often seen in recent documentaries (Housemaids). At another moment, one decides to make concrete spots – a building with its pipes and cracks – into a critical metaphor of the country contradictions, without fear of artifice or bombast (HU Enigma). Suddenly, an indigenous myth enters into the screen wearing unconventional film garments: the story takes the form of a fiction composed of a precise dramaturgy that doesn’t hesitate to visit genre cinema (Enraged Pigs). All of a sudden, an essay film without words becomes a highly revealing cinematographic investigation - and also transforming – a whole system of profusion of images (White Man Skin). A profusion that becomes the trigger for a terrorist film, which starts from a planned method of delivering cameras at upper-class homes and appropriates the reactions that reality offers to it; it accepts and transforms the unexpected consequences of the script (Dark Chamber). It’s also what happens in Tava- the stone house: instead of trying to control and deny the scene as the negotiation place, the film assumes the unexpected of the encounters previously planned as part of its materiality. Instability is not an obstacle but the key of cinema maturity as it is part of the history of contact with the Whites and the investigation of Guarani’s cosmology. There are films that are entirely made in tension with the surrounding, but it also passes through and becomes part of its materiality: here the pressure of the off-field is, at once, a condition of existence and a film choice (Marques Margins). There are also those that dare to make films out of performances, is to better investigate its effects in the world and in the film (Anti-performance), is to better engage in, eyes and ears open upon the physical beauty of its vagueness (Lullaby).
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In Mr. Sganzerla – The signs of light, an intender biography of an extraordinary filmmaker becomes a place of a thinking that emerges from images and returns to them, in which the editing draws new relationships, settles comparisons and destabilizes senses. And as a biography can be an essay about cinema itself, documentary can be inventive enough to turn into love letter (Otto): it becomes possible to imagine that a deeply individual experience – meeting a woman, having a child – can constitute a wonderful cinematographic happening, without boundaries between private and public, intimate and universal. In an unexpected way we see a film that relies on the vicissitudes of a team president to tell the anguish of a soccer world (very) far from the spotlight of the astronomical salaries. (Espírito Santo Football Club): what seemed to be an institutional project gains the power of the moments that make emerge in the scene a complexity of feelings, existential bets and ideological clichés. It is also about clichés – and its destruction – that Em busca de um lugar comum talks about: provocative and compelling, the film follows the tourist exploitation of the favelas of Rio de Janeiro from a point of view both inside and distant, complicit and deeply critical of a model of city and social life. In Is the city one only? it is another city – Brasilia – that is put into question and it’s updated through the film by the same exclusion process that originated it. In a singular and heterogeneous film, past and present mingle and contaminate each other, therefore fiction and documentary, truth and lies, dream and reality, drama and comedy are indefinite and coexisting categories. Gradually, always as a beneficent and challenging parenthesis, some films were being distinguished because they didn’t follow certain logic implied by the “good documentary” based on a well-done script or solutions widely tested. Films that weren’t exempt from problems and inconsistencies, but they did not get satisfied by composing an adequate mise-en-scène that would fit people and subjects. Films that sometimes willingly accepted the risk of putting itself in artificial situations, excessive, fictional, or with unlikely mixtures. The film selection we present is made out of these parenthesis: those that insisted to invent besides all; those that didn’t shy away from the task of incurring – with cinema strengths – the images and sounds made in our common existences; those that dared to rearrange, once and again, the world coordinates.
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A Anti performance
A cidade é uma só? Is the city one only?
Brasil, 2012, cor, 10’ Direção director Daniel Lisboa Fotografia photography Daniel Lisboa Montagem editing Daniel Lisboa Som sound Daniel Lisboa Produção production Daniel Lisboa Contato contact dlisboa@hotmail.com
Brasil, 2012, cor, 80’ Direção director Adirley Queirós Roteiro screenplay Adirley Queirós, Thiago Mendonça Fotografia photography Leonardo Feliciano Montagem editing Marcius Barbieri Som sound Francisco Craesmeyer Produção production Adirley Queirós, André Carvalheira
A cidade amanheceu cinza. A orla soprava o salitre violentamente. Coqueiros se envergavam para dar passagem aos ventos. O clima mudou, algo se movia. A cidade sentiu o deslocamento. O Exu assentado em corpo humano recebeu o chamado. Das mais profundas entranhas do centro antigo, a ponta da lança foi percebida, as farpas reluziram, e a cidade viu sua querida e odiosa entidade voar para a anti-performance. Um fly movie, a TAMJETÓRIA.
Daí eu pensei em como fazer um filme bem legal, agradável e gângster: Brasília, I Love You. And then I was thinking about how to make a really cool, pleasant and gangster movie: Brasília, I Love you.
Dawn broke, the city was gray. The saltpeter was violently blown by the waterfront. The coconut palms bent, yielding to the wind. The weather had changed, something was in motion. The city felt the gust. The Eshu incarnated in a human body received the calling. From the deepest entrails of former downtown, the tip of the spear was seen, the splinters glistened, and the city saw its cherished and loathsome entity fly to the anti-performance. A fly movie, the TAMJETÓRIA.
cine humberto mauro, 25 nov, 15h 82
cine humberto mauro, 24 nov, 19h 83
Câmara Escura Dark Chamber
Doméstica Housemaids
Brasil, 2012, cor, 24’ Direção director Marcelo Pedroso Fotografia photography Luiz Pretti, Marcelo Pedroso, Ricardo Pretti Montagem editing Marcelo Pedroso Som sound Rafael Travassos, Phelippe Cabeça, Guma Farias Produção production Símio Filmes Contato contact marcelo.pedroso@gmail.com
Brasil, 2012, cor, 75’ Direção director Gabriel Mascaro Montagem editing Eduardo Serrano Produtor production Rachel Ellis Contato contact gabrielmascaro@gmail.com
“Quando as imagens dos objetos iluminados penetram num compartimento escuro através de um pequeno orifício e se recebem sobre um papel branco situado a uma certa distância desse orifício, veem-se no papel os objetos invertidos com as suas formas e cores próprias”. (Leonardo da Vinci, Codex Atlanticus, sec. XVII)
Sete adolescentes assumem a missão de registrar por uma semana a sua empregada doméstica e entregar o material bruto para o diretor realizar um filme com essas imagens. Entre o choque da intimidade, as relações de poder e a performance do cotidiano, o filme lança um olhar contemporâneo sobre o trabalho doméstico no ambiente familiar e se transforma num potente ensaio sobre afeto e trabalho.
“When images of illuminated objects... penetrate through a small hole into a very dark room... you will see [on the opposite wall] these objects in their proper form and color”. (Leonardo da Vinci, Codex Atlanticus, 17th century)
cine humberto mauro, 24 nov, 21h 84
Seven teenagers take over the task of filming their housemaids during a week , after what they will deliver the footage to the director; the raw material will be edited and made into a movie. Amid the impact caused by the exposure of privacy, the power relations and the everyday performance, the film casts a modern glance on domestic service within the family household, becoming a potent essay on affection and work.
cine humberto mauro, 24 nov, 21h 85
Em busca de um lugar comum In search of a common place
Espírito Santo Futebol Clube Espírito Santo Football Club
Brasil, 2012, cor, 80’ Direção director Felippe Schults Mussel Fotografia photography André Lavaquial, Pedro Urano, Rodrigo Graciosa, Thiago Lima Silva Montagem editing Felippe Schultz Mussel Som sound Felippe Schultz Mussel Produção production Angelo Defanti Contato contact angelo@sobretudo.art.br
Brasil, 2012, cor, 29’ Direção director André Ehrlich Lucas, Lucas Vetekesky Fotografia photography André Ehrlich Lucas, Lucas Vetekesky Montagem editing Tina Saphira, André Ehrlich Lucas Produção production André Ehrlich Lucas, Lucas Vetekesky Contato contact andre@filmeslimitada.com
Rio de Janeiro, 2011. Anunciadas mundo afora como principal palco das mazelas sociais brasileiras, as favelas cariocas figuram, paradoxalmente, entre os mais sedutores cartões postais do Rio de Janeiro. Imerso nos tours pela Favela da Rocinha, o documentário investiga os desejos e as imagens envolvidas na construção deste disputado destino turístico. Um mercado que, atento às demandas, não cessa em projetar seus novos atrativos.
Um retrato afetivo de um clube chamado Espírito Santo e sua luta para permanecer na primeira divisão do futebol capixaba. An affective portrait of a soccer team called Espírito Santo, and its struggle to remain in the first division of the state championship.
Rio de Janeiro, 2011. Presented to the world as the main stage for Brazilian social ailments, the slums of Rio de Janeiro are, nonetheless, depicted in some of the city´s most alluring postcards. Plunged into the tours inside the Favela da Rocinha, the documentary examines the wishes and the images involved in the construction of this famed tourist destination. A market that, aware of the demands, does not cease to plan its new attractions.
cine humberto mauro, 25 nov, 15h 86
cine humberto mauro, 23 nov, 15h 87
HU HU Enigma
Lullaby Lullaby
Brasil, 2011, cor, 78’ Direção director Pedro Urano, Joana Traub Csekö Fotografia photography Pedro Urano Montagem editing Marina Fraga Som sound Edson Secco Produção production Samantha Capideville Contato contact pedro@pedrourano.com
Brasil, 2011, cor, 11’ Direção director André Lage Fotografia photography André Lage Montagem editing Rita Pestana, André Lage Som sound André Lage Produção production André Lage Contato contact andrelage71@gmail.com
Um edifício partido ao meio: de um lado, o hospital; do outro, a ruína. E no horizonte, a Baía de Guanabara, o Rio de Janeiro, a saúde e educação públicas. Inteiramente filmado no monumental e apenas parcialmente ocupado prédio modernista do Hospital Universitário da UFRJ. Uma metáfora em concreto armado da esfera pública brasileira.
Filha propõe ao velho pai português um desafio: cantar em inglês uma canção de Tom Waits. A daughter offers her father, an old Portuguese man, a challenge: to sing, in English, a song by tom Waits.
A building cut in half: on one side of it, the hospital; on the other, the wreckage. Standing in the horizon, the Guanabara bay, the city of Rio de Janeiro, the state education and the public health systems. Shot entirely at the monumental and only partially occupied modernist building of the University Hospital of UFRJ (Federal University of Rio de Janeiro). A metaphor in reinforced concrete for the public sphere in Brazil.
cine humberto mauro, 23 nov, 15h 88
cine humberto mauro, 22 nov, 21h 89
Margens dos Marques Marques Margins
Mr. Sganzerla, Os signos da luz Mr. Sganzerla, The Signs of Light
Brasil, 2012, cor, 55’ Direção director Mariana Andrade Fotografia photography Leonardo Alvim Montagem editing Pedro Hilário Som sound Lucas Campolina Produção production Carlos Eduardo Marques Contato contact plot.mari@gmail.com
Brasil, 2011, cor, 90’ Direção director Joel Pizzini Fotografia photography Luis Abramo Montagem editing Felipe Rodrigues, Cláudio Tammela Som sound Alexandre Contador Produção production Sara Rocha Contato contact j.pizzini@uol.com.br
A comunidade Quilombo de Marques habita as margens do vale do rio Mucuri, em Minas Gerais, no Brasil. A construção de uma Pequena Central Hidrelétrica irá fazer com que os descendentes de escravos sejam obrigados a abandonar suas casas e a repensar a identidade que possuem.
Mr. Sganzerla é um filmensaio que recria o ideário do cineasta Rogério Sganzerla, através dos signos recorrentes em sua filmografia: Orson Welles, Noel Rosa, Jimi Hendrix e Oswald de Andrade. O método de criação, a musicalidade do olhar, o estilo inovador na montagem, o duo com Helena Ignez que revolucionou a mise-en-scène no cinema, a parceria com Júlio Bressane na produtora Belair e a atitude iconoclasta do diretor atravessam o filme numa linguagem que se contamina com a dicção vertiginosa do artista.
The community of Quilombo de Marques dwells in the margins of the valley of Mucuri River, in Minas Gerais, Brazil. The construction of a small hydroelectric power plant will force the descendants of slaves to leave their homes and to rethink their identities.
cine humberto mauro, 23 nov, 17h 90
Mr. Sganzerla is a movie-essay that re-creates the ideas and images of the filmmaker Rogério Sganzerla through those symbols that are recurrent in his filmography: Orson Welles, Noel Rosa, Jimi Hendrix e Oswald de Andrade. His creative method, his melodic glance, his innovative montage style, the duo with Helena Ignez which revolutionized the mise-en-scène in the cinema, the partnership with Júlio Bressane in the film production company Belair and Sganzerla´s iconoclast disposition pervade the movie, in a language that is imprinted by the the whirling diction of the artist.
cine humberto mauro, 24 nov, 15h 91
Otto Otto
Porcos Raivosos Enraged Pigs
Brasil, 2012, cor, 71’ Direção director Cao Guimarães Fotografia photography Cao Guimarães, Florencia Martínez Montagem editing Cao Guimarães, Florencia Martínez Som sound O Grivo Produção production Cao Guimarães Contato contact studio@caoguimaraes.com
Brasil, 2012, cor, 10’ Direção director Isabel Penoni, Leonardo Sette Fotografia photography Leonardo Sette Montagem editing Leonardo Sette Som sound Leonardo Sette Produção production Aikax, Lucinda Filmes, Museu Nacional - DKK Contato contact porcosraivosos@gmail.com
Otto é um filme que acompanha o processo de gravidez de minha mulher e nascimento de meu filho. Instintivo e visceral como um gesto. Intimista e confidente como um diário filmado. Uma celebração à vida, um filme de amor.
Um grupo de mulheres decide fugir ao descobrir que seus maridos se transformaram misteriosamente em porcos furiosos.
Otto follows the course of my wife’s pregnancy with our first child and the birth of my son. Instinctive and visceral as a gesture. Intimist and confessional as a diary on film. A celebration of life, a movie of love.
cine humberto mauro, 22 nov, 21h 92
A group of women decides to flee when discovering that their husbands have been misteriously turned into rabid pigs.
cine humberto mauro, 23 nov, 17h 93
Pele de Branco White Man Skin
Tava, a casa de pedra Tava, the stone house
Brasil, 2012, cor, 25’ Direção director Takumã Kuikuro, Marrayury Kuikuro Fotografia photography Takumã Kuikuro Montagem editing Takumã Kuikuro Som sound Takumã Kuikuro Produção production Aikax, Vídeo nas Aldeias Contato contact takucineasta@gmail.com
Brasil, 2012, cor, 78’ Direção director Ariel Ortega, Ernesto de Carvalho, Patrícia Ferreira, Vincent Carelli Fotografia photography Ariel Ortega, Ernesto de Carvalho, Patrícia Ferreira, Vincent Carelli Montagem editing Tatiana Almeida, Vincent Carelli Som sound Ariel Ortega, Ernesto de Carvalho, Patrícia Ferreira, Vincent Carelli Produção production Vídeo nas Aldeias Contato contact olinda@videonasaldeias.org.br
No mundo contemporâneo a tecnologia ocupa um espaço cada vez maior na vida íntima e social das pessoas. “Kagaiha Atipügü (Pele de Branco) é um filme produzido por Takumã Kuikuro, do Coletivo Kuikuro de Cinema, que aborda a visão indígena sobre este universo tecnológico revelando como os índios do Alto Xingu (Mato Grosso, Brasil) relacionamse com os instrumentos criados pelos ‘brancos’”. O filme traz a voz indígena sobre esse processo e discute em que medida as novas tecnologias da memória e da comunicação, ao mesmo tempo que ameaçam, também servem à preservação de culturas tradicionais.
Interpretação mítico-religiosa dos Mbya-Guarani sobre as reduções jesuíticas do século XVII no Brasil, Paraguai e Argentina. A religious-mythic interpretation of the 17th-century Jesuit Reductions in Brazil, Paraguay and Argentina, by the Mbya-Guarani people.
In the contemporary world, technology plays an increasingly important role in our daily lives – both private and social. “Kagaiha Atipügü” (White Man Skin), produced by Takumã Kuikuro, member of the artist collective group Coletivo Kuikuro de Cinema, deals with the way in which the technological universe is perceived by the indigenous people from Alto Xingu (Mato Grosso, Brazil), and how they relate to the devices created by the “white men”. The movie brings the indigenous voice on this process, and puts into question to what extent these new technologies of memory and communication, often regarded as a threat to traditional cultures, can also work as a means to preserve them.
cine humberto mauro, 23 nov, 17h 94
cine humberto mauro, 22 nov, 19h 95
mostra competitiva internacional
Como não vivemos sob ditadura Bráulio Brito Neves, Carla Italiano e Milene Migliano Tarefa árdua encontrar critérios de seleção dentre os mais de 170 filmes inscritos para a Mostra competitiva internacional do forumdoc.bh.2012. Cumpre-nos, por isso, expor nossos partidos, já que são sempre situados, parciais e arbitrários. Em defesa dos critérios que empregamos, devemos relatar que vários dos filmes que se destacaram em meio à totalidade dos inscritos indicavam eixos éticos e estilísticos recorrentes que, de certa maneira, se tornaram critérios de pertinência à mostra. O documentarismo contemporâneo busca atravessar épocas e terras para oferecer uma perspectiva transcultural de justiça e liberdade à incipiente sociedade civil global, público sem pátria que o documentarismo transnacional instaura no próprio ato de a ele se endereçar. Diante destas circunstâncias, assumimos como critérios de nossas escolhas: a estelarização dramática1, na abundância das situações encenadas dos filmes, na sintetização de universos discursivos histórico-culturais; a consistência ético-estilística da realização, na coerência rigorosa entre as propostas retóricas e os dilemas éticos; e a pertinência política dos filmes na perspicácia como os documentários expõem as graves condições políticas deste mundo multipolar, cujos expoentes pouco esforço fazem para encobrir em suas tendências autoritárias. Nosso recorte investiu em temáticas e procedimentos, nos quais pudemos identificar a presença de expedientes variados de resistência e invenção. A presente curadoria tenta respeitar as singularidades e a potência das propostas de realizar um cinema dos/sobre os deslocamentos através da história e entre as nacionalidades, da Bélgica ao Congo e ao Japão, de um Portugal atual à 1975, de Burkina Faso à Costa do Marfim, por dramas pessoais saturados das experiências de povos inteiros. Em Chambres avec vue, vemos um procedimento sugerido pelo próprio filme ser apropriado por seus personagens, imigrantes africanos, que ao olharem pela janela de quartos em Paris constroem narrativas que fabulam suas memórias 1 Segundo Souriau (1950, p. 29-34), "trata-se do esforço de elaboração dramatúrgica neces sário para a instauração de um 'dispositivo estelar' no argumento narrativo, ou seja, um conjunto de expedientes capazes de estabelecer e sustentar uma conexão fundamental entre um macrocosmo - no caso dos documentários, alguma perspectiva do mundo socio-historico - e aquele 'pequeno núcleo estelar de personagens' do filme." Souriau, E. Les deux cent mille situations dramatiques. Paris: Ed. Flammarion, 1950.
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à medida que tecem críticas sobre a dura realidade em que vivem. Em um quarto de uma ilha no Japão, o olhar se dirige para a intimidade familiar no gesto de uma diretora que interpela o irmão em reclusão, no filme Eau douce, eau salée. Seu cotidiano revela solidão, alcoolismo e dependência química que refletem a opressão simbólica, própria de grandes centros urbanos, a que está condicionado. Joana, personagem central de Cama de gato, resiste à violência constante da vida na periferia de Setúbal nos percursos que faz com sua filha. A mãe adolescente que encena desejos de consumo agenciados pela produção de sua própria imagem desvela os enfrentamentos ao preconceito e à frustração de não alcançar os ideais de beleza e amor. Uma espécie de luta velada perpassa outras histórias pessoais que refletem um movimento migratório transnacional. A ruptura com a história do empreendimento colonial marca Bons Baisers de la colonie ao apresentar a trajetória de Suzanne. A força e resistência ao processo do filme que visibiliza a sua própria história emergem ao longo dos encontros com a diretora, sua sobrinha, que investiga os mecanismos de recusa de um passado que une o íntimo ao social. Em Espoir Voyage acompanhamos o irmão mais novo refazendo a trajetória do mais velho que partiu de Burkina Faso para Costa do Marfim. A busca de pistas acerca desse movimento migratório retrata a determinação, e refaz a saída dos jovens do território comunitário original. Ao encontrar outros jovens no caminho percorrido pelo irmão anos atrás, o diretor encontra narrativas que passam a compor o imaginário afetivo que transborda para a experiência filmica. É possível identificar também certa ideia de dominação do capitalismo especulativo, em sua esfera neoliberal, em filmes como Habiter/Construire, Narmada, La Friche. A intervenção pervasiva dos interesses de empresas globais à revelia das particularidades locais é verbalizada em Narmada, a partir da organização comunitária que apresenta a cena de dissenso. Em Habiter/ Construire, o dano hierárquico ao qual estão submetidos aqueles habitantes do deserto do Chade é apresentado por meio da expressão corporal e gestualidade produzidas, em grande medida, para a câmera. A estrada que cinde os modos de sociabilidade estabelecidos no local designa reconfigurações dos espaços compartilhados pelos grupos originários, impostas pela empresa, que em última instância representa diretrizes impostas pelo capital. La Friche apresenta, a partir do retrato da desindustrialização, da emigração e do planejamento governamental o sentido proteiforme do espaço urbano contemporâneo.
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Linha Vermelha investiga o poder da imagem documentária, que transporta para o presente um momento épico da queda da ditadura de Salazar e da tomada de poder pelo povo em Portugal. O filme inquire o cinema como registro, acerca da sua potência de interferir no curso da história. Em Zavtra, o documentário transfronteiriço pacientemente acompanha o cotidiano cinicamente desesperado de protagonistas que exploram o limite entre a representação e o caos, difundindo um ativismo artísitico extremista que escarnece os padrões hierárquicos da sociedade pós(?)-soviética. Ao convocar os cidadãos russos à guerra (como se evidencia no próprio nome do coletivo de que trata o filme, Война: guerra) contra um regime de autoritarismo malcamuflado, o grupo de artistas desbarata as pretensões biopolíticas do Estado, produzem suas próprias imagens de confronto e com elas desenham uma futura – impossível? - vida sem medo. Ao nos deslocarmos por esses caminhos estreitos, entre narrativas de lutas menores (ou, mais exatamente, de “não não-lutas”) reencontramos a tradição do documentário como criador de espaço político e de repertórios de expedientes para a resistência e para a inovação políticas, capaz de dirigir a atenção para a dimensão crítica da prática criativa cotidiana. As situações estão atreladas ao contraste à opressão, por vezes velado, por vezes diretamente manifesto, que acabam por remeter às imposições do capital especulativo financeiro, frequentemente amparado por governos autoritários à direita e à esquerda. Esta crítica se faz na prática dos deslocamentos espaço-temporais que articulam e conectam vivências que, sem deixar de serem únicas, particulares, díspares, tornam-se estelares de macrocosmos históricos e culturais amplos, imagens que apontam a insuficiência de sentido de sua localidade e momento. À parte as novidades da comunicação telemática – que nos dispensam de pacotes apenas para nos soterrar com protocolos técnicos e jurídicos –, a maior originalidade do documentário internacional contemporâneo provém do caráter cada vez mais não-nacional da sua avidez por perspectivas transculturais de justiça, que apenas uma sociedade civil transnacional poderia redimir.
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How we do not live under a dictatorship Bráulio Brito Neves, Carla Italiano e Milene Migliano Difficult task to find selection criteria among the more than 170 films submitted to forumdoc’s International Competitive Showcase of 2012. We must, therefore, expose our parties, since they are always situated, partial and arbitrary. In defense of our selection, we should indicate that several of the films that stood out amidst the totality pointed towards recurrent ethical and stylistic axes, that in a certain way became pertinent selection criteria to this showcase. The contemporary documentary filmmaking aims to cross times and lands in order to offer a transcultural perspective of justice and freedom to the incipient global civil society, this stateless public which the transnational documentary establishes in the very act of addressing it. Given these circumstances, we have taken as criteria for our choices: the dramatic stellarization1, in the abundance of dramatic situations in which historical and cultural discursive universes are summarized; ethical and stylistic filmmaking consistency; the political relevance within certain documentaries expose the severe political conditions of this multipolar world, whose exponents make little effort to conceal their authoritarian tendencies. Our selection invested in themes and procedures, in which we could identify the presence of various resistance and creation expedients. This curatorship attempts to respect the singularities and potency of these filmmaking propositions made on/about displacements through history and between nationalities, from Belgium to Congo and Japan, from a contemporary Portugal to 1975, from Burkina Faso do the Ivory Coast, from personal dramas saturated by the experience of entire peoples. In Rooms with a view, we see how a procedure suggested by the film is appropriated by its characters, African immigrants, as in the act of looking through windows of Parisian rooms, they create narratives around their memories at the same time as they weave criticisms about the harsh reality in which they live. Inside a room in a Japanese island, our gaze is directed to According to Souriau (1950, p. 29 - 34) it is the dramaturgic development’s necessary effort in order to install a “stellar device” in the narrative plot, that is, a set of expedients capable of establishing and mantaining a fundamental conection between a macrocosm - on the matter of documentary films, a perspective of our social-historical world - and that “small stellar group of characters” in the film. Souriau, E. Les deux cent mille situations dramatiques, Paris: Ed. Flammarion, 1950. 1
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the family intimacy in a filmmaker’s gesture of challenge towards her reclusive brother, in the film Eau douce, eau salée. His everyday life reveals solitude, alcoholism and chemical dependency reflecting the symbolic oppression, characteristic of large urban centers, to which he is conditioned. Joana, main character of Cat’s cradle, resists the constant day to day violence in the periphery of Setúbal, Portugal, throughout the paths she crosses with her daughter. This teenage mother stages consumer desires related to her own image, revealing the confrontation against prejudicial acts and a frustration of not achieving the ideals of beauty and love. A form of concealed struggle crosses many personal stories which reflect transnational migratory movements. A rupture with the colonial enterprise’s history is presented by Greetings from the colony, as it exposes Suzannes’s life trajectory. Her strength and resistance against the film’s process, which makes her own story visible, emerge during the meetings with the director, her niece, who attempts to investigate the denial mechanisms from a past that binds the intimate to the social. In Espoir Voyage we follow a younger brother retracing the path of the departed older brother from Burkina Faso to the Ivory Coast. The investigation for clues of this migratory movement reveals the determination, and retakes the course, of young men driven from their original community territory. As the director encounters other young people in the same journey made by his brother years ago, he finds narratives that become part of an affective imagination which slips into the filmic experience. It is also possible to identify a certain idea of domination by the speculative capital in its neoliberal sphere in films such as Living/Building, Narmada, Wasteland. The pervasive intervention made by global companies at the expense of local particularities is verbalized in Narmada, specially in the community organization that presents a scene of dissensus. In Living/Building, the damage imposed by the hierarchy to which inhabitants of the Chadian desert are subjected is displayed through body and gesture expressions, largely produced because of the camera. The road that splits sociability modes previously established in that area reconfigurates the land shared by originary groups, imposed by a company that ultimately represents capital imposed policies. Wasteland uses as a starting point the portray of deindustrialization, immigration and government planning to present the proteiform sense of space in the contemporary world. Red Line investigates the power of documentary images, transporting to the present the epic moment of the fall of Salazar’sdictatorship and the
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people’s seizure of power in Portugal. The film inquires the Cinema as a form of record and its potency to interfere in the course of history. In Tomorrow, the transnational documentary patiently follows the cynically desperate everyday lives of characters who exploit the limits between representation and chaos, preaching an extreme artistic activism that mocks the hierarchical standards of a post(?)-Soviet society. By calling the Russian citizens for war (as evidenced by the group’s name, Война: war) against a poorly camouflaged authoritarian regime, this group of artists disarranges the state’s biopolitic ambitions, producing their own images of confrontation and designing an impossible? - life without fear. As we move through these narrow paths, between narratives of minor struggles (or, more precisely, of “non non-fights”) we find the documentary tradition as a creator of political spheres, of approach repertoires towards ideas of resistance and political innovation, able to draw attention to the critical dimension of creative everyday practices. The situations are intertwined to an oppression, sometimes covert, sometimes directly manifested, which ultimately refers to the impositions of speculative financial capital, often supported by authoritarian governments. This criticism is made along spatiotemporal shifts that connect and articulate experiences that remain unique, individual, but become stellar of bigger historical and cultural macrocosms, images that address their failure of meaning within their space and time. Aside from novelties in telematic communication– exempting us from packages just to bury us in legal and technical protocols –, the biggest originality in the contemporary international documentary stems from the non-national features of its eagerness for transcultural perspectives of justice, which only a civil transnational society could redeem.
Bons Baisers de La Colonie Lembranças da Colônia | Greetings from The Colony Bélgica, 2011, Cor, p&b, 74’ Direção director Nathalie Borges Fotografia photography Nicolas Rincon Gilles Montagem editing Catherine Gouze Som sound Maxime Coton Produção production Cyril Bibas, Centre Vidéo de Bruxelles Contato contact Philippe.Cotte@Cvb-Videp.Be
Filha de um oficial belga e de uma ruandesa, Suzanne nasceu em 1926. Naquela época, relações inter-raciais recebiam sanções. Suzanne deixa a África aos 4 anos de idade, levada pelo pai para ser educada na Europa. Ela é o que chamavam, na época colonial, de “uma criança mulata salva de um destino negro”. Suzanne é minha tia. Seu pai é meu avô. No entanto, até os meus 27 anos eu desconhecia sua existência. Neste filme, histórias de família e a história do colonialismo se entrecruzam, e o silêncio que encobria as origens de Suzanne é quebrado. The daughter of a Belgian territorial agent and a Rwandan woman, Suzanne was born in 1926. In those times, mixed relationships lead to sanctions. At the age of 4, her father takes Suzanne away from Africa to give her a European education. She is what people in the colonial era call “a mulatto child saved from a negro destiny”. Suzanne is my aunt. Her father is my grandfather. However, I was not aware of her existence until I was 27. This film breaks the silence that has shrouded Suzanne’s origins, crossing family history and the history of colonialism.
cine humberto mauro, 01 dez, 17h 104
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Cama de Gato Cat’s Cradle
Chambres avec vue Quartos com vista | Rooms with a view
Portugal, 2012, Color, 58’ Direção director Filipa Reis e João Miller Guerra Fotografia photography Vasco Viana Montagem editing Filipa Reis, João Miller Guerra Som sound Rúben Costa Produção production Filipa Reis, Vende-se Filmes Contato contact producao@vende-sefilmes.com
França, 2012, Cor, 16’ Direção director Léo Zarka-Lepage Fotografia photography Aurélien Marra Montagem editing Léo Zarka-Lepage Som sound Daniel Capeille Produção production Joséphine Mourlaque, Wawaïm M. Contato contact leo.zarka.lepage@gmail.com
Conhecemos a Joana em Setúbal, no Bairro da Bela Vista. Ela apareceu como uma boneca de louça, frágil, branca, com um laçarote na cabeça. Aos poucos foi-se partindo ganhando uma complexidade encantadora. A dualidade entre a força e a fragilidade, a liberdade e a prisão, a alegria e a tristeza conquistou-nos. A intimidade e cumplicidade com ela criadas permitiram fazer este filme. Em Cama de Gato partilhamo-la com os outros.
De frente para a janela. A paisagem de sempre, imutável. É quase difícil descrevê-la. Da casa dos vizinhos, trabalhadores imigrantes, a vista é bastante diferente. Facing the Window. As ever the same landscape. Almost hard to depict. When visiting the neighbours, a migrant workers household, the view seems quite other.
We met Joana in Setúbal, in the Bela Vista neighborhood. She resembled a porcelain doll, fragile, white, with a ribbon in her hair. Little by little she disclosed herself, revealing a charming complexity. We were won over by the duality between strength and fragility, freedom and imprisonment, joy and sorrow. The intimacy and complicity we shared with her enabled this movie to be made. In Cat´s Cradle, we share her with others.
cine humberto mauro, 01 dez, 15h 106
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Eau Douce, Eau Salée Água Doce, Água Salgada | Fresh Water, Salt Water
Espoir Voyage
Bélgica/Japão, 2012, Cor, 50’ Direção director Aya Tanaka Fotografia photography Aya Tanaka Montagem editing Aya Tanaka, Azilys Romane, Nathalie Chaveau Som sound Aya Tanaka Produção production Atelier jeunes cinéastes Contato contact distribution@ajcnet.be
França/Burkina Faso, 2011, Cor, 82’ Direção director Michel K. Zongo Fotografia photography Michel K. Zongo Montagem editing François Sculier Som sound Moumouni Jupiter Sodré Produção production Christian Lelong
No verão de 2010, como em vários anos anteriores, fui passar férias na casa dos meus pais em Tsukishima, às margens do rio que deságua na Baía de Tóquio. Seria só mais uma dessas visitas rotineiras, não fosse o fato de eu ter decidido me encontrar com meu irmão, pela primeira vez desde que ele se encerrou na penumbra de seu quarto minúsculo, e realmente ouvir o que ele tem a dizer. Mas quem eu vou encontrar? Será ele ainda o bêbado patético que tenho na memória, grunhindo palavras ininteligíveis?
Em Burkina Faso, a emigração dos jovens para a Costa do Marfim é como um rito de passagem para a idade adulta. Geralmente, a regra é partir para voltar. Joanny, meu irmão mais velho, partiu em uma manhã de 1978. Depois de 18 anos de ausência, soubemos, por um de nossos primos, que Joanny estava morto. Para tentar entender o que levou meu irmão a deixar sua família aos 14 anos de idade, fiz a mesma viagem de Koudougou (Burkina Faso) até a Costa do Marfim, procurando por traços deixados por ele e por sua história.
In the summer of 2010 as in many previous years I stay at my parents’ place in Tsukishima at the bank of the river that joins the Tokyo Bay. It is just one of those customary visits apart from the fact that I have decided to see my brother and to really listen to him the first time since he practically locked himself up in the twilight of his narrow room. Who am I to meet? Will he be the hopeless boozer I pictured for a long time, belling incomprehensible words at his sister?
cine humberto mauro, 01 dez, 15h 108
In Burkina Faso, the young people emigration towards Ivory Coast is like a ritual, a passage to the state of adulthood. But usually, the rule is to leave to come back. Joanny, my older brother, left our family one morning of 1978. After 18 years of absence, one of our cousins told us Joanny died. To try to understand what drives my Brother to leave at 14, I make the same travel from Koudougou (Burkina Faso) to Ivory Coast, looking for his traces and his history.
cine humberto mauro, 27 nov, 21h 109
Habiter/Construire Habitar/Construir | Living/Building
La Friche Terreno Baldio | Wasteland
França, 2011| Cor, 117’ Direção director Clémence Ancelin Fotografia photography Clémence Ancelin Montagem editing Laureline Delom Som sound Malah Méllé Boukar Produção production Emmanuel Deswarte, Fin Avril Contato contact contact@finavril.com
França, 2012, Cor, 45’ Direção director Magali Roucaut Fotografia photography Magali Roucaut Montagem editing Victoria Follonier Som sound Sébastien Noiré Produção production Magali Roucaut Contato contact mroucaut@hotmail.com
No meio do deserto de Chadian, uma empresa francesa constrói uma estrada de asfalto. Durante o período das obras, executivos estrangeiros, mestres de obra e trabalhadores africanos ficam alojados em trailers, em três acampamentos adjacentes, em contato com os habitantes das vilas ao redor, que vão ao local das obras em busca de trabalho ou para montar um comércio. O sonho de uma vida melhor e o processo de aculturação de muitos dos moradores se misturam, enquanto a estrada avança, implacável, em direção à cidade, nesta região selvagem por onde nômades ainda vagueiam, conduzindo seus rebanhos.
Um terreno abandonado em Paris, isolado da cidade por tapumes altos. Dentro dele, ervas daninhas e vestígios de atividades que parecem pertencer a outro tempo. Em breve um espaço público, o descanso, a tranqüilidade. Através das memórias daqueles que ali vivem e trabalham, tentei decifrar esses vestígios e reconstruir o lugar e seu passado.
In the middle of the Chadian desert, a French construction company is building an asphalt road. Expat executives, African site managers and workers, live in three adjacent trailer camps during the construction period, in contact with villagers from the area who come to the worksite to seek jobs or set up shops. The hope for a better life meets with acculturation among the various inhabitants, as the road relentlessly progresses towards the city in this wilderness where nomads still wander with their herds.
cine humberto mauro, 29 nov, 21h 110
A wasteland in Paris, isolated from the city by high poles. Inside, wild plants and traces of past activity that seems to belong to another time. And soon a public garden, leisure time, tranquility. From recollections of those who had been living and working there, I tried to decode these traces and reconstruct the place and its past.
cine humberto mauro, 28 nov, 17h 111
Linha Vermelha Red Line
Narmada
Portugal, 2011, Cor, 80’ Direção director José Filipe Costa Fotografia photography Paulo Menezes, Pedro Pinho, João Ribeiro Montagem editing João Braz Som sound Olivier Blanc, Ricardo Leal, Miguel Cabral Produção production João Matos, Terratreme Filmes Contato contact jfilipecosta@iol.pt
França/Índia, 2012, Cor, p&b, 45’ Direção director Manon Ott, Grégory Cohen Fotografia photography Manon Ott, Grégory Cohen Montagem editing Mathias Bouffier Som sound Jocelyn Robert Produção production Céline Loiseau, TS PRODUCTIONS Contato contact manon@lesyeuxdanslemonde.org/ greg@lesyeuxdanslemonde.org
Linha Vermelha recua a 1975, quando o alemão Thomas Harlan realiza o documentário Torre Bela, sobre a ocupação de uma grande fazenda no Ribatejo, propriedade dos duques de Lafões. Esse filme transformou-se em ícone do período revolucionário português: a discussão acalorada sobre a quem pertence uma enxada da cooperativa, a ocupação do palácio, o encontro dos ocupantes com os militares em Lisboa e o processo de formação de uma nova comunidade. 37 anos depois, revisitamos esse filme emblemático, reencontrando os seus protagonistas e a sua equipe.
“As barragens serão os templos da Índia moderna”, disse Nehru quando o país proclamou sua independência. Em breve será concluída a construção de um enorme complexo de barragens no rio Narmada, na Índia. Grupos de protesto se mobilizam. Na travessia do vale do Narmada, nos deparamos com seus habitantes, com as crenças e as convicções que entram em conflito à medida que o rio sofre essa imensa transformação. Entre mitos do Progresso e os mitos do Narmada.
Red Line goes back to the year of 1975, when the German filmmaker Thomas Harlan shoots the documentary film Torre Bela, about the occupation of a large estate in the Ribatejo region, owned by the Dukes of Lafões. The movie became an icon of the Portuguese revolutionary period: a heated argument about to whom a cooperative´s hoe belongs, the occupation of the palace, the meeting between the occupiers and men of the military, in Lisbon, and the process of building a new community. Thirtyseven years later, we revisit this emblematic movie, re-encountering its protagonists and its crew.
cine humberto mauro, 30 nov, 17h 112
“Dams will be the temples of modern India”, declared Nehru as the country proclaimed its independence. Construction on a vast complex of dams is soon to be completed on the Narmada river in India. A social struggle is organized. As we cross the Narmada River valley, we encounter the inhabitants, beliefs and convictions brought into conflict as this river undergoes great transformation. Between myths of Progress and myths of the Narmada.
cine humberto mauro, 28 nov, 17h 113
Zavtra Amanhã | Tomorrow Rússia, 2012, Cor, 90’ Direção director Andrey Gryazev Fotografia photography Andrey Gryazev Montagem editing Andrey Gryazev Som sound A.Dudarev Produção production Andrey Gryazev Contato contact cinemacraft@gmail.com
O filme trata do mais notável acontecimento na arte contemporânea russa: o coletivo artístico Voina (Guerra). Vor (Ladrão) e Koza (Cabra), criadores do grupo, vivem na clandestinidade com seu filho Kasper, de um ano, e suas intervenções ficam no limite tênue que separa o artístico do criminoso. Ousadas, suas declarações políticas não deixam ninguém indiferente (e causam um incômodo geral). Vivendo o momento presente, esperam conseguir transformar o amanhã. This film is about the most striking occurence in contemporary art in Russia, the artgroup Voina (War). Their founders — Vor (Thief) and Koza (Goat) live underground, raise their one-year old son Kasper and carry out art actions on the fine edge between art and criminal code. Their cou-rageous political statements leave nobody indif-ferent (and disturb absolutely everybody). They live in the present, hoping that tomorrow they can change everything.
cine humberto mauro, 30 nov, 21h 114
˜ sessao especial
Homenagem a Yann Le Masson e Chris Marker
Kashima Paradise França, 1973, p&b, 107’ Direção director Yann Le Masson, Bénie Deswarte Fotografia photography Yann Le Masson Som sound Bénie Deswarte Montagem editing Isabelle Rathery, Sarah Matton Narração narration Chris Marker Produção production Les Films Grain de Sable Contato contact conservation@lacinemathequedetoulouse.com
Kashima Paradise revela até que ponto o Japão contemporâneo se encontra preso entre tradições diversas e as conquistas dos tempos modernos. Para permanecer como uma das principais nações industriais, parques petroquímicos e de aço foram construídos em antigas áreas rurais. Os fazendeiros quase não foram recompensados por entregarem suas terras e, devido às circunstâncias, se viram obrigados a construir lotes para as novas indústrias. Apesar de protestos contra a inauguração de mais aeroportos ou parques industriais, nada pode parar o “progresso”. Kashima Paradise shows to what extent contemporary Japan is caught between its many traditions and the achievements of modern times. In order to remain one of the leading industrial countries, massive petrochemical or steel plants have to be built on former farmland. The farmers receive hardly any compensation for giving up their land and due to the circumstances they are forced to work on building lots for new plants. Despite protest against the opening of yet another airport or industrial estate, nothing can stop “progress”.
cine humberto mauro, 02 dez, 19h 117
´
lancamentos
Shuku Shukuwe - a vida é para sempre Shuku Shukuwe - life is everlasting Brasil, 2012, cor, 43’ Direção director Agostinho Manduca Mateus Ika Muru Huni Kuin Fotografia photography Adelson Paulino Siã Huni Kuin, Ana Carvalho, Carolina Canguçu, Nivaldo Tene Huni Kuin, Ayani Huni Kuin, Isaka Huni Kuin, Tadeu Siã Huni Kuin Montagem editing Agostinho Manduca Mateus Ika Muru, Ana Carvalho, Carolina Canguçu, Tadeu Mateus Siã Huni Kuin Som sound Adelson Paulino Siã Huni Kuin, Ana Carvalho, Carolina Canguçu, Nivaldo Tene Huni Kuin, Ayani Huni Kuin, Isaka Huni Kuin, Tadeu Siã Huni Kuin Produção production Aldeia São Joaquim Centro de Memória, Associação Filmes de Quintal, Literaterras/UFMG Contato contact filmes@filmesdequintal.org.br
por três vezes, yuxibu cantou shuku shukuwe, a vida é para sempre. ouviram as árvores, as cobras, os caranguejos. ouviram todos os seres que trocam suas peles e cascas. por três vezes, yuxibu cantou shuku shukuwe. mas a inocente não soube ouvi-lo em silêncio. e a vida se tornou breve. for three times yuxibu sang shuku shukuwe, life is everlasting. it was heard by the trees, the snakes, the crabs. it was heard by all the beings that shed their skins and shells. for three times, yuxibu sang shuku shukuwe. but the inocent was unable to hear him in silence. and life became brief.
cine humberto mauro, 01 dez, 19h 121
O Livro Vivo traz as pesquisas dos pajés sobre a medicina tradicional Huni Kuin. Essas pesquisas relatam o surgimento das doenças, suas categorizações e tratamentos. Para os Huni Kuin, cada grupo de doença está relacionado a um grupo de animais e seu tratamento é realizado a partir da combinação de ervas específicas. As “ervas medicina”, como são denominadas pelos pajés, surgiram da transformação dos primeiros Huni Kuin em famílias de plantas, cujo uso foi transmitido de geração em geração desde os tempos antigos até os dias de hoje. As ervas estão divididas em quatro grupos, que representam as quatro famílias originais Huni Kuin: Inu, Inani, Dua e Banu. O projeto teve como objetivo principal a documentação, ampliação e difusão do conhecimento Huni Kuin dentro da própria comunidade. Como resultados, foi publicado Una Hiwea, o Livro Vivo, e realizado o vídeo Shuku Shukuwe, a vida é para sempre. As duas obras mostram essa experiência, realizada com a participação de 36 pesquisadores de ervas medicinais, ilustradores e cineastas, vindos de diferentes aldeias do alto e baixo rio Jordão. A publicação e o vídeo se dirigem, principalmente, a estudantes e agentes de saúde, futuros pajés, jovens e crianças das aldeias Huni Kuin. O livro conta a história de Huã Karu, o dono do Livro Vivo, e os jardins [do conhecimento] de cada um dos pajés e pesquisadores do projeto. O filme narra a origem das doenças, das ervas medicinais e o canto da vida eterna que os homens uma vez não souberam ouvir. Una Hiwea/Livro Vivo: Medicina Tradicional Huni Kuin é uma realização das comunidades Huni Kuin do Rio Jordão em parceria com a Associação Filmes de Quintal e o Grupo de Estudos Trandisciplinares Literaterras (UFMG), com o apoio do IPHAN, Ministério da Cultura e Ministério da Educação.
Una Hiwea Livro Vivo Pajé Agostinho Manduca Mateus Ika Muru (Org.) Brasil, 2012, Literaterras/Faculdade de Letras – UFMG, 284 pp.
“Ter o livro, nosso Livro Vivo, porque os antigos, quando surgiu doença, se preocuparam em se transformar em ervas para socorrer o seu povo. Como o primeiro pajé, que descobriu como se transformar em ervas dos grupos Dua, Banu, Inani e Inu, para socorrer os Huni Kuin, assim eu também me preocupei em deixar essa mensagem de conhecimento para o meu povo, meus filhos e netos; para toda a comunidade e para os que vão ver esse documento da identidade e do conhecimento do nosso povo antepassado” (Pajé Agostinho Ika Muru) O projeto Livro Vivo foi idealizado por Agostinho Ika Muru, pajé da aldeia São Joaquim ˜ pajé e pesquisador da aldeia Coração da Floresta, Rio Centro de Memória, e Dua Buse, Jordão, Acre.
cine humberto mauro, 01 dez, 19h 122
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foto: Ana Carvalho
Paralelo 10 (DVD)
Paz no mundo camará: a capoeira angola e a volta que o mundo dá – Brasil (Associação Cultural "Eu sou Angoleiro" apresenta)
Direção director Silvio Da-Rin Fotografia photography Dante Belluti Montagem editing Joana Collier Som sound Altyr Pereira Edição de som e música sound editing and music Edson Secco Produção production Beth Formaggini, Marcos Guttmann
Brasil, 2012, cor, 54' Direção director Carem Abreu Fotografia photography Jorge Moreno, Claudio Rabelo e Lucas Moreira (Tião) Montagem editing Tiago Espindola Som sound Alexandre Jardim (CTAv) Produção production Mary Rodrigues Contato contact falecom@atosimagens.com.br, http://paznomundocamara.blogspot.com.br/
Mais de um ano e meio afastado do Acre, o sertanista José Carlos Meirelles retorna, em companhia do antropólogo Terri de Aquino, à região do Paralelo 10 Sul, linha de fronteira com o Peru. A equipe de filmagem viaja com eles durante três semanas, subindo o Rio Envira, enfrentando vários tipos de obstáculo e se aproximando cada vez mais das malocas de índios isolados. Nessa jornada, Meirelles rememora experiências, expõe contradições de seu ofício e discute com índios Madijá e Ashaninka a melhor forma de se relacionar com os índios “brabos”, sem tentar contatá-los, permitindo que continuem a viver livres na floresta, protegendo o meio ambiente.
Capoeira angola é uma das mais tradicionais culturas de raiz afro-brasileiras. Hoje é praticada em todo mundo como instrumento de paz e integração social. Mas há menos de 100 anos era discriminada e percebida socialmente como uma prática da malandragem. Quais teriam sido os movimentos realizados pela capoeira para mudar completamente a sua percepção social? Nesse dvd mais de 40 mestres capoeiristas e das culturas populares da BA, RJ, PE, AL e MG ajudam a desvendar esse mistério.
The Brazilian Amazon is home to the largest number of isolated indigenous peoples in the world. Close to the 10th Parallel South, the frontiersman José Carlos Meirelles founded the Ethno-environmental Protection Front of the Envira River. Without making any contact, his team set up land limits so that the Indians could live in freedom in the rainforest. We went up the Envira River, and recorded meetings among Meirelles, Txai Terri de Aquino and the riverside populations. These meetings discussed possible solutions for a peaceful coexistence, after a number of conflicts and thefts involving the “wild” Indians, with some casualties, brought instability to the region.
cine humberto mauro, 29 nov, 19h 126
Capoeira angola is one of the most ancient african-brazilian cultural traditions.Today it is practiced all around the world as an instrument of peace and social integration. But at least 100 years ago it was discriminated and taken as an act of trickery by the society. What were the movements made by Capoeira to completely change its social status? In this DVD over 40 masters from capoeira and other popular cultures from the states of BA, RJ, PE, AL and MG help solve this mystery.
cine humberto mauro, 02 dez, 15h 127
Ao lugar de Herbais To Herbais hamlet
O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens (LIVRO)
Portugal, 2012, cor, 31' Direção director Daniel Ribeiro Duarte Montagem editing Daniel Ribeiro Duarte Narração narration Maria Poppe Contato contact danielribao@yahoo.com
Renato Sztutman Brasil, 2012, Edusp, 576 pp.
Tendo como ponto de partida a casa de Sintra, onde está o espólio da escritora Maria Gabriela Llansol, procura-se criar um trajeto por entre fotos, textos e objetos relacionados a Herbais, na Bélgica. Esta pequena vila de agricultores foi o lugar para o qual Llansol mudou-se, em 1980, com o objetivo de dedicar-se inteiramente à escrita. No isolamento, escreveu como nunca antes e presenciou uma expansão desmedida do seu mundo figural. Viveu ali até 1985, ano em que voltou a Portugal. Starting from the house in Sintra, where the assets of writer Maria Gabriela Llansol lay, we search for a path through the photographs, texts and objects related to Herbais, Belgium. This small farmer’s village was the place Llansol settled, in 1980, aiming to dedicate herself entirely to her writing. Isolated, she wrote in a way she had never done before and witnessed an enormous expansion of her symbolic world. There she lived until 1985, the year she returned to Portugal.
cine humberto mauro, 02 dez, 18h
Caraíbas e morubixabas. Assim os antigos Tupi da costa brasílica chamavam seus grandes pajés e chefes de guerra. Nas fontes dos séculos XVI e XVII estes eram muitas vezes reconhecidos como profetas e principais. Como um problema relacionado a povos do passado – a imbricação entre o que convencionamos chamar de “religioso” e “político” – pode ser repensado agora, em vista das etnografias sobre povos atuais, com suas novas interrogações? Eis uma das questões lançadas por este livro, que toma como ponto de partida as ideias de Pierre e Hélène Clastres sobre os mecanismos indígenas de recusa e conjuração do poder coercitivo e de toda unificação ontológica. Caraíbas and morubixabas. These were how ancient Tupi people from the Brazilian coast named their pajés and war chiefs. On XVI and XVII centuries sources, these were acknowledged as prophets and principals. How can a problem related to ancient peoples – the connection between what we conventionally call “religious” and “political” – can be now rethought, given the existence of ethnographies on contemporary peoples, with a new set of questions? This is one of the questions posed by this book, which takes as a starting point the ideas of Pierre and Hélène Clastres on the indigenous mechanisms of refusal and conjuration of coercive powers and ontological unification.
´ auditorio baesse/fafich-ufmg 4 o andar, 22 nov, 11h30 seguido de lancamento na livraria quixote-ufmg ´
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Revista Devires - Cinema e Humanidades, v. 7, n. 1 A revista Devires – Cinema e Humanidades, no ensejo da mostra A Mulher e a Câmera, lança novamente o v.7 n.1, dedicado à cineasta belga Chantal Akerman cuja obra se destaca não apenas pelo rigor formal de sua escritura, mas também pelo gesto autobiográfico e a constante presença feminina. Desde seu primeiro curta Saute ma ville (1968), passando pelos pertubadores Je tu il elle e Jeanne Dielman...(1975), até o filme diário Là-Bas (2006), Akerman apresenta o processo intermitente de re-construção do corpo feminino através de pequenas ações habituais e gestos repetitivos, num jogo entre ordem e caos. The magazine Devires – Cinema e Humanidades, in occasion of the program The woman and the camera, releases again the v.7 n.1, dedicated to Belgian filmmaker Chantal Akerman whose work stands out not only by the formal rigor but also for the autobiographical gesture and the constant presence of women. Since her first short film Saute ma ville (1968), through disturbing Je tu il elle and Jeanne Dielman ... (1975), until the movie diary Là-Bas (2006), Akerman presents the process of reconstructing the female body through small habitual actions and repetitive gestures, playing among order and chaos.
cine humberto mauro, 28 nov, 21h 130
˜ de sessao encerramento
Lacrimosa Brazil, 1970, p&b, 12’ Direção director Aloysio Raulino, Luna Alkalay Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Aloysio Raulino Produção production Aloysio Raulino, Luna Alkalay Contato contact contato@cinemateca.org.br
O retrato da cidade de São Paulo a partir de alguns itinerários. Pela Marginal Tietê e outras vias da metrópole, terrenos baldios, construções de edifícios, fachadas de fábricas e favelas compõem um triste cenário. E nesta lacrimosa paisagem urbana, crianças em completa miséria. A portrait of the city of São Paulo depicted through a number of itineraries. A composition along the margins of the Tietê River and other streets and roads of the metropolis, wastelands, building sites, factory facades and slums show a sad scenario. It is in this tearful urban landscape we see children in complete misery.
cine humberto mauro, 02 dez, 21h 133
´ forum de debates
˜ DE ABERTURA SESSaO Chasseurs et Chamans (Raymond Depardon, 2003, 30’) Xapiri (Leandro Lima e Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra, Bruce Albert, 2012, 54’) Sessão comentada por Renato Sztutman e Ruben Caixeta de Queiroz 21 nov | QUARTA-FEIRA | 19h30 | CINE HUMBERTO MAURO
˜ ESPECIAL SESSaO Xapiri (Leandro Lima e Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra, Bruce Albert, 2012, 54’) Sessão comentada por Carlos Fausto 23 nov | SEXTA-FEIRA | 9h30 | ´ ˆ ˆ AUDIToRIO 2 | FACE - FACULDADE DE CIeNCIAS ECONoMICAS - UFMG
´ ˆ MOSTRA / SEMINaRIO A MULHER E A CaMERA ˆ ´ CONFEReNCIA DE ABERTURA DO SEMINaRIO Com Luiza Elvira Belaunde Apresentação: Paulo Maia 26 nov | SEGUNDA-FEIRA | 10h ´ AUDIToRIO LUIZ POMPEU | FACULDADE DE EDUCAcaO - UFMG
Mesas de debates Mulheres e Política Com Roberta Veiga, Carla Maia. Mediação: Inês Teixeira 27 nov | TERcA-FEIRA | 9h ´ ´ ˆ ˆ AUDIToRIO 2 | FACE - FACULDADE DE CIeNCIAS ECONoMICAS - UFMG Cineastas indígenas com Suely Maxakali, Patrícia Ferreira. Mediação: Renata Otto 28 nov | QUARTA-FEIRA | 9h ´ ˆ ˆ AUDIToRIO 2 - FACE / FACULDADE DE CIeNCIAS ECONoMICAS - UFMG Mulheres no cinema brasileiro com Helena Solberg, Marília Rocha, Paula Alves. Mediação: Cláudia Mesquita Lançamento da Revista Devires Cinema e Humanidades v.7 n.1, dedicado à Chantal Akerman 28 nov | QUARTA-FEIRA | 21h | CINE HUMBERTO MAURO
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Deslocamentos do feminino com Lia Zanotta, Érica Souza. Mediação: Débora Breder ´ 29 nov | QUINTA-FEIRA | 10h | AUDIToRIO BAESSE | FAFICH - FACULDADE DE FILOSOFIA E CIeNCIAS HUMANAS /UFMG ˆ
Sessoes ˜ Comentadas Luz nas Trevas – A volta do Bandido da Luz Vermelha (Ícaro C. Martins, Helena Ignez, 2011, 83’) Sessão comentada pela diretora 26 nov | SEGUNDA-FEIRA | 21h | CINE HUMBERTO MAURO Réponse de femmes (Agnés Varda, 1975, 8’) Documenteur (Agnés Varda, 1981, 63’) Sessão comentada por Ilana Feldman 27 nov | TERcA-FEIRA | 19h | CINE HUMBERTO MAURO ´
La guerre est proche (Claire Angelini, 2011, 80’) Sessão comentada pela diretora 29 nov | QUINTA-FEIRA | 17h | CINE HUMBERTO MAURO Et tu es dehors (Claire Angelini, 2012, 85’) Sessão comentada pela diretora 30 nov | SEXTA-FEIRA 19h | CINE HUMBERTO MAURO
ˆ ˆ MOSTRA CaNONE E CONTRA-CaNONE Mesa de Debates Cânones e contra-cânones no cinema moderno brasileiro com Hernani Heffner, Luís Alberto Rocha Melo. Mediação: Ewerton Belico 25 nov | DOMINGO | 21h | CINE HUMBERTO MAURO
˜ Comentadas Sessoes Malandro, termo Civilizado (Sylvio Lanna, 1986, 26’) Lobisomem, o terror da meia-noite (Elyseu Visconti, 1974, 75’) Sessão comentada pelos diretores 25 nov | DOMINGO | 19h | CINE HUMBERTO MAURO Perdidos e Malditos (Geraldo Veloso, 1970, 70’) Sessão comentada pelo diretor 26 nov | SEGUNDA-FEIRA | 17h | CINE HUMBERTO MAURO
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LANcAMENTOS
Aloysio Raulino
O Profeta e o Principal: A Ação Política Ameríndia e seus Personagens, de Renato Sztutman (Edusp, 2012, 576pp) Conversa com o autor seguida de lançamento do livro na Livraria Quixote UFMG ´ 22 nov | QUINTA-FEIRA | 11h30 | AUDIToRIO BAESSE - FAFICH / ˆ FACULDADE DE FILOSOFIA E CIeNCIAS HUMANAS - UFMG
Cineasta e diretor de fotografia. Realizou e fotografou, entre outros, Teremos Infância, O Porto de Santos e Noites Paraguayas. É diretor de fotografia de mais de uma centena de títulos.
DVD Paralelo 10 (Silvio Da-Rin, 2011, 87’) Sessão comentada pelo diretor 29 nov | QUINTA-FEIRA | 19h | CINE HUMBERTO MAURO Shuku Shukuwe – a vida é para sempre (Direção coletiva, 2012, 37’) Sessão comentada por Tadeu Huni Kuin ´ 01 DEZ | SABADO | 19h | CINE HUMBERTO MAURO Lançamento Una Hiwea – O Livro Vivo (Centro de Memória Aldeia São Joaquim, Associação Filmes de Quintal, Literaterras/UFMG) com a presença de Dani Huni Kuin ´ 01 DEZ | SABADO | 19h | CINE HUMBERTO MAURO Ao lugar de Herbais (Daniel Ribeiro Duarte, 2012, 31’) Sessão comentada pelo diretor 02 DEZ | DOMINGO 18h | CINE HUMBERTO MAURO
˜ ESPECIAL DE ENCERRAMENTO SESSAO Lacrimosa (Aloysio Raulino, 1970, 12’) Cópia restaurada Sessão comentada pelo diretor 02 DEZ | DOMINGO | 21h | CINE HUMBERTO MAURO
Carla Maia Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da UFMG. Ensaísta e pesquisadora de cinema, atua também como curadora, professora e produtora. É diretora do documentário Roda, co-dirigido por Raquel Junqueira. Integra o coletivo Filmes de Quintal. Cláudia Mesquita Professora do Curso de Comunicação Social da UFMG, onde participa do grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Pesquisadora de cinema, fez mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo. De 2007 a 2010, foi professora do Curso de Cinema da UFSC. Carlos Fausto Professor do Museu Nacional/UFRJ, realiza pesquisas na Amazônia desde 1988 e coordena projetos de video-realização com o Vídeo nas Aldeias e a Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu. Débora Breder Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, com estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Estudou Cinema na Escuela Internacional de Cine, Televisión y Vídeo (EICTV/Cuba). Atualmente realiza Pós-Doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais. Elyzeu Visconti Produtor, roteirista e diretor, tendo realizado, dentre outros, Os monstros de Babaloo, Lobisomem, o terror da meia-noite; e os documentários Ticumbi, Folia do Divino, Bom Jesus da Lapa - Salvador dos Humildes, Festa de São Gonçalo. Produziu Quadrinhos, de Rogério Sganzerla, e fez a direção de arte de Barão Olavo - O horrível, de Júlio Bressane. Érika Souza Doutora em Ciências Sociais na área de Família e Relações de Gênero (IFCH/ UNICAMP) e Mestre em Antropologia Social (IFCH/UNICAMP). Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG e integrante do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH) da UFMG.
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Geraldo Veloso
Lia Zanotta
Diretor, crítico, curador e montador. Dirigiu o Centro de Estudos Cinema tográficos (CEC) e editou Revista de Cinema, do mesmo Centro. Coordenou várias das edições do Festival de Curtas de Belo Horizonte. Geraldo Veloso montou Anjo Nasceu, Matou a família e foi a cinema e Lágrima pantera, de Júlio Bressane; BláBláBlá, de Andrea Tonacci, dentre outros; e dirigiu Perdidos e Malditos, Homo Sapiens e O Circo das Qualidades Humanas.
Professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Doutora em Ciências Humanas/Sociologia e Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo, fez pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Atua em áreas como gênero, família, violência, práticas judiciais, estudos feministas e antropologia das políticas públicas de gênero, saúde e segurança.
Helena Ignez
Luisa Elvira Belaunde
Atriz e diretora de cinema. Estreou no cinema sob direção de Glauber Rocha, no curta-metragem O pátio. Em 1968 participa do filme O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla. Com a morte do diretor, assumiu a produção do roteiro de Rogério Sganzerla, Luz nas Trevas – a Volta do Bandido da Luz Vermelha (2011) com suas filhas Djin e Sinai Sganzerla, dividindo a direção com Ícaro C. Martins. Helena Solberg Cineasta. Seus filmes mais recentes são Carmen Miranda: Bananas is my business (1995), Vida de Menina (2004) e Palavra (En)Cantada (2009). Dirigiu ainda os documentários The Emerging Woman (1975), The Double Day (1975), Das Cinzas, Nicaragua Hoje (1980) e Chile -Por la Razon o la Fuerza (1983), entre outros.
Luís Alberto Rocha Melo Professor-adjunto do curso de Cinema e Audiovisual no Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Escreveu textos para diversos catálogos de mostras e retrospectivas de cinema. É redator das revistas Contracampo e Filme Cultura. Marília Rocha
Crítico de cinema e conservador-chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, MAM-RJ. É professor de cinema na PUC-RJ e da FGV-RJ. Curou as mostras “Raízes do Século XXI” e “Miragens do Sertão”.
Mestre em Comunicação Social pelo PPGCOM/UFMG e uma das integrantes da Teia, centro de produção audiovisual. Diretora dos longas Aboio (2005), Acácio (2008) e A Falta que me faz (2009). Em 2011, teve uma retrospectiva no festival Dockanema, em Moçambique e foi homenageada no festival Visions du Réel, na Suíça.
Ilana Feldman
Paula Alves
Pesquisadora, crítica e realizadora. É doutora em Ciências da Comunicação (Cinema) pela ECA/USP, onde desenvolveu a tese Jogos de cena: ensaios sobre o documentário brasileiro contemporâneo, e mestre em Comunicação e Imagem pela UFF. Curadora da retrospectiva “David Perlov: epifanias do cotidiano”, realizada na Cinemateca Brasileira/SP e no Instituto Moreira Salles/RJ.
Bacharel em Cinema pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas. Diretora e produtora executiva do Femina – Festival Internacional de Cinema Feminino.
Inês Assunção de Castro Teixeira
Nascida na aldeia guarani Tamanduá em Missiones, na Argentina, vive na aldeia Koenju, em São Miguel das Missões/ RS, onde é professora. Hoje é a cineasta mulher mais atuante nos quadros do Vídeo nas Aldeias.
Hernani Heffner
Professora Associada da Faculdade de Educação da UFMG. Atua na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Educação. Membro da KINO - Rede Latinoamericana de Educação, Cinema e Audiovisual.
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Antropóloga, doutora em antropologia pela London School of Economics - University of London, é professora da Pontificia Universidad Católica del Perú e colaboradora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolve pesquisas com ênfase em etnologia indigena e de gênero.
Patrícia Ferreira (Keretxu)
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Renata Otto
Tadeu Huni Kuin
Doutoranda em Antropologia pela UnB, mestre em Antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ. Trabalha como antropóloga na Coordenação de Indios Isolados e Recém Contatados da Funai.
Morador da aldeia São Joaquim do rio Jordão, no Acre. Professor formado pela Comissão Pró Índio do Acre, pratica o ensino diferenciado nas aldeias. Co-dirigiu o filme Shuku Shukuwe - a vida é para sempre (2012).
Renato Sztutman Professor do Departamento de Antropologia da USP e autor de O Profeta e o Principal: a ação política ameríndia e seus personagens (Edusp, 2012). Roberta Veiga Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Foi professora visitante na University of Texas at Austin, com a disciplina Brazilian Cinema and Marginality. Integra a equipe de editores da Revista Devires. Pós-doutoranda junto ao grupo de pesquisa “Cinema, Estética e Política”, UFMG.
Paulo Maia Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Antropologia Social pelo PPGAS / Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com ênfase em Etnologia Sul Americana, Educação Indígena e Antropologia e Cinema. É também, um dos idealizadores do forumdoc.bh.
Ruben Caixeta de Queiroz Professor de Antropologia na UFMG. Coordena o Laboratório de Etnologia e do Filme Etnográfico (LEFE) e é co-fundador do forumdoc.bh. Membro do corpo editorial da revista Devires - Cinema e Humanidades. Silvio Da-Rin Cineasta, dirigiu cerca de 15 documentários, entre eles Paralelo 10, Hércules 56 e Igreja da Libertação. É mestre em Comunicação e Teoria da Cultura pela UFRJ. Foi Secretário do Audiovisual do MinC entre outubro de 2007 e maio de 2010. Sylvio Lanna Cineasta e realizou, dentre outros, Roteiro do Gravador, Sagrada Família, Forofina, ou a África e Malandro, termo civilizado. Suely Maxakali Fotógrafa e cineasta da etnia Tikmu’un, vive em Aldeia Verde, na porção nordeste do estado de Minas Gerais. Co-dirigiu o filme Quando os yãmiy vêm dançar conosco (2011) e colaborou com o catálogo de fotografias Koxuk Xop / Imagem (Azougue, 2009). Professora formada pelo Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas (FIEI) UFMG.
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oficina/curso
Filme documentário: entre memória, fala e território, um procedimento político Oficina com Claire Angelini Realizada em parceria com o Ministério das Relações Exteriores / Governo Federal Belo Horizonte 26-30 novembro 2012
Apresentação A ideia de que a linguagem cinematográfica possui uma gramática a respeitar vai ao encontro da manutenção das supostas leis do cinema. Essas leis definem o que se pode fazer e o que não se pode fazer, mas sobretudo o que não se pode fazer. Elas são aplicadas por uma parte da crítica, dos especialistas e semi-especialistas de maneira inalteravelmente repressiva (é proibido...). As noções de linguagem e de leis do cinema servem de critério, a muitos deles, para considerar bons os filmes ruins e ruins os bons filmes. Felizmente não existe linguagem nem leis do cinema: tudo é permitido. (Johan Van der Keuken, 1963) Filmar é perceber lugares, paisagens, territórios através da espessura de sua história: diante das camadas de tempo e dos estratos geológicos, trata-se de se perguntar se o mundo no qual estamos é ainda imaginariamente habitável mas, também, como a história retorna ao sensível e em que medida a linguagem do cinema - imagem e som - permite interpretar o mundo e fornecer a essa memória do tempo passado, que nos habita e nos opera, a possibilidade de se exprimir no presente.
cine humberto mauro, 26-30 nov, 14h
Ao cruzar o trabalho de historiadores com certos aspectos, em primeiro lugar uma atenção de ordem arqueológica ao rastro, e a busca de uma “escritura” do tempo - de acordo, entretanto, com uma modalidade particular, atenta à espessura plástica do real, a sua própria resistência, assim como às singularidades dos lugares, eventos e sujeitos -, meus filmes se empenham em produzir dispositivos fílmicos capazes de capturar, com determinação, essas expressões tangíveis da história.
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Dessa forma, é em torno das noções de território – compreendido tanto no sentido geográfico quanto histórico – de fala – ouvida, suscitada por testemunhas, ou carregada por “personagens” – de memória – enterrada, ou sobrevivente – e, finalmente, de história – abordada como uma narrativa política que se abre sobre o presente – que será construída a oficina: para, ao fio de exemplos tomados dos meus filmes, mostrar como um procedimento se constrói, buscando menos trazer respostas do que propor, através do cinema, uma forma que permita ao espectador ativo questionar, por sua vez, o mundo que o circunda.
Preâmbulo
As narrativas nos concernem. Elas fabricam imagens e, ao fazê-lo, exigem imperiosamente a presença do território. Nessa conjunção inédita entre uma subjetividade e o lugar, surge uma nova relação com a geografia. Uma fala sobre os lugares Por que, nesse caso, o roteiro é necessário e como ele se escreve? 3. Os pontos de vista: enquadrar o território a. O trabalho do quadro como escritura do espaço Como se produz a decisão de um enquadramento, de um local, de um movimento de câmera? (Apresentação de desenhos)
Conduzindo um processo de tipo “arqueológico”, para operar essa desconstrução que visa colocar em evidência o processo de fabricação do meu cinema, eu explicitarei aqui cada escolha que pautou a elaboração, realização e produção de filmes, sem deixar de lado as etapas práticas e as condições econômicas que estão na origem de sua existência e, portanto, no fim das contas, de sua própria forma.
4. Escutar e restituir o lugar a. A atenção ao território: a parte sonora do lugar Como, e por quê, produzir blocos de imagens-sons?
Os elementos iconográficos que irão completar minhas proposições serão tanto fragmentos de filmes quanto imagens fotográficas, croquis, textos e até mesmo desenhos.
II. Fala
Sinopse do seminário
Partimos aqui do seguinte princípio de escritura: dois materiais de importância idêntica, imagem e som, são destinados a fazer juntos o caminho do filme. Qual será esse caminho? Oposições ou concordâncias, acompanhamento ilustrativo da imagem pelo som ou tensão com ela?
I. Território Os territórios que habitamos não são, eles primeiramente, lugar de uma expressão concreta da história? O território carrega, de fato, os rastros do que foi, rastros enterrados, encobertos, escondidos, silenciados. Ora, se os lugares nos falam, como fazê-los falar? 1. A topografia como escrita da história: a. Um território como “personagem” Como e por que um dado território torna-se “personagem” principal do filme? b. O levantamento topográfico como origem do filme A recusa do roteiro em favor do terreno ou como uma filmagem pode se construir de outra maneira.
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2. Um território que “fala” ou “a invenção de uma geografia através da narrativa”
b. O fora do campo sonoro Por que e como?
A concordância ou não concordância entre o visível e o audível não é minimamente obrigatória, tanto para os documentários quanto para as ficções. Tanto as imagens sonoras quanto as mudas são montadas segundo princípios idênticos; a montagem pode fazê-las concordar ou não concordar ou, ainda, misturá-las em diversas associações necessárias. (Dziga Vertov)
A fala é o primeiro material sonoro. Mas como ouvi-la, restituí-la, deslocá-la? a. O “discurso livre reencontrado” b. A fala é um material indivisível c. Tempo e silêncios na fala d. A fala reelaborada e. Questões “éticas” da mise-en-scène: fala e testemunho. Qual a diferença entre a fala sobre e a fala de?
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III. Memória Enzo Traverso, em O passado, modo de usar: Raras são a palavras tão maltratadas quanto “memória”. (...) (...) A memória é frequentemente utilizada como sinônimo de história e possui uma tendência singular a absorvê-la tornando-se uma espécie de categoria meta-histórica. Assim, a memória apreende o passado em uma rede com malhas mais largas do que as da disciplina tradicionalmente denominada história, depositando nela uma dose muito maior de subjetividade, de “vivido”. Em suma, a memória aparece como uma história menos árida e mais “humana”. Ela invade atualmente o espaço público das sociedades ocidentais: o passado acompanha o presente e se instala em seu imaginário coletivo como uma memória amplificada pela mídia de forma potente, frequentemente dirigida pelos poderes públicos. Ela se transforma em “obsessão comemorativa”, e a valorização, ou até mesmo a sacralização dos “lugares de memória”, engendram uma verdadeira “topolatria”. Essa memória superabundante e saturada, baliza o espaço. (...) Extraída da experiência vivida , a memória é eminentemente subjetiva. Ela permanece ancorada em fatos a que assistimos, de que fomos testemunhas, ou até mesmo atores, e em impressões que eles gravaram em nossa mente. Ela é qualitativa, singular, pouco preocupada com comparações, contextualizações, generalizações. (...) Por seu caráter subjetivo, a memória nunca é imóvel; ela se assemelha antes a um canteiro aberto, em transformação permanente.
Sabemos que, por trás da opaca nuvem de nossa ignorância e da incerteza de resultados detalhados, as forças históricas que moldaram o século continuam a operar.
Citarei também aqui algumas frases escritas por Niklas Meierberg, em 1976, em prefácio a Die Erschießung des Landesverräters Ernst S. (conferir filme homônimo de Richard Dindo): A história considerada como um amontoado de fatos, um museu de curiosidades, uma exposição de datas, uma acumulação de reis, uma coleção de batalhas e um cemitério - não queríamos nada disso, que apenas nos desviava da vida concreta. Tampouco queríamos a história como texto acabado, e sim ver como o texto se elabora, determinar a história a partir de suas próprias fontes reconstituídas, queríamos cozinhar e não apenas comer (...) A história - é assim que a definimos em comum - é nosso ambiente político: como ele nasce e desaparece, como podemos mudá-lo, pois que ele é modificável. Tivemos que partir assim de coisas que podíamos cercar no plano concreto e pessoal, tivemos que reexaminar os eventos, descobrir seu motor e proceder verdadeiras microanálises sobre um terreno circunscrito.
Escrever a história a. O deslocamento como escritura e a história como solo b. Escrever a história: uma questão de montagem, colagem, sobreimpressão c. Escrever a história : buracos e negros significativos
Traverso sublinha a subjetividade da memória. Em nosso caso, trata-se de nos interrogar sobre aquela das testemunhas de nossos filmes. Como abordar um testemunho que é saturado precisamente dessa subjetividade?
Conclusão
1. Fala e memória O que testemunha a testemunha? 2. A memória do invisível 3. O cinema como inscrição de uma memória
R. Bresson, Notas sobre o cinematógrafo: “Evite os objetos excessivamente vastos ou distantes sobre os quais ninguém te adverte quando você se perde. Ou então tome apenas o que poderia se confundir com sua vida e que pertença a sua experiência.”
Um ponto de vista de autor.
Claire Angelini IV. História Eric J. Hobsbawn nos evoca, no final de seu livro A era dos extremos, o breve século XX:
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Depoimento de Benoît Turquety
Almost all our language has been taxed by war. Allen Ginsberg, 1966
O trabalho de Claire Angelini não cessa de suscitar problemas. O que está em jogo é precisamente isso: fundar uma forma não sobre postulados, princípios ou regras, mas sobre um série precisa de problemas. Um deles se formula, por exemplo, assim: o que é isso aqui onde caminhamos? Um outro: de que é feita a língua que falamos? Um outro: como o movimento da história nos atravessa? O erro seria, é claro, abordar esses problemas separadamente. Poderíamos dizer que o cinema é, dentre todas as artes, a mais inepta à análise, à distinção franca e nítida - o que não significa que ele seja impreciso. As obras de Claire Angelini abordam o mundo - "o conjunto daquilo que ocorre", dizia Wittgenstein - através de blocos, e os problemas são aí formulados de maneira exata, à medida que elas mantêm unido o que não é separável. Não apenas interrogar o lugar, a fala e a história, mas suas articulações, agenciamentos e, também, a falta e a perda desses elos, o desmoronamento dessas arquiteturas. Não são questões abstratas, e sim problemas simples, concretos, problemas que frequentemente dizem respeito ao cinema. Por exemplo: uma fronteira possui uma existência na fala? Caminhamos da mesma maneira quando o fazemos nos lugares de infância? E se esses lugares tiverem sido desfeitos pela história? Qual é a diferença entre ruínas e escombros? E um monumento? Ou um canteiro de obras? E o que é um campo? E arames farpados, estão ali para impedir a saída ou a entrada? E podemos ver e ouvir ao mesmo tempo? Senão, qual é o tempo necessário entre os dois: um tempo na medida de nossos corpos ou da história? Ou do cinema (se o há)?
tudo o que nos foi tomado pela guerra, passada ou porvir: quase tudo de nossa língua, quase tudo daquilo que habitamos, quase tudo de nossas infâncias. É por isso que falar várias línguas ao mesmo tempo, caminhar em um país que é hoje um outro país em relação ao de antigamente, articular um discurso, ouvir os dois lados de uma paisagem que acabou portando uma fronteira, ver o muro de cimento e a seteira ainda no coração da floresta, explorar pacientemente os cantos de muros fissurados, é simplesmente apresentar uma série de problemas que se retornam inevitavelmente contra o espectador. Pois que é a nós, em última análise, que as obras de Claire Angelini suscitam problemas. Não porque elas seriam “difíceis”: esses filmes, livros, fotografias não poderiam ser mais simples - uma voz diante de um lugar, um corpo em uma paisagem, uma fala diante de um quadro, um percurso com uma duração. Não, elas suscitam problemas por outras razões. Primeiramente, porque sua própria evidência nos leva a suspeitas: e se tudo isso que foi mostrado tivesse sempre estado aqui? E se dependesse apenas de nós - nós histórico e político, nós singular e íntimo - vê-lo e ouvi-lo? Em seguida porque é sem dúvida difícil não se ressentir com relação a uma arte que não propõe soluções, que não parece sequer buscá-las, mas se dedica, antes (ao contrário?), à complexidade, à espessura, à fertilidade dos próprios problemas. Tradução: Ana Siqueira
Em outros tempos, Peter Nestler atribuiu a um de seus filmes o título Warum ist Kreig?; Por que há guerra? É uma questão simples. Claire Angelini atribuiu a um dos seus La guerre est proche (A guerra está próxima). Não é mais uma questão, mas é ainda um problema. Essa frase, que é no entanto simples, também enuncia e constitui um problema histórico: o dia em que ela se torna possível, o momento em que é necessário dizê-la. Mas La guerre est proche não é um filme de época, como Le retour au pays de l›enfance não é um western (se bem que): eles são, ao contrário, exatamente contemporâneos, ao constatarem
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Et tu es dehors/ Und raus bist du / And out you go, 2012 E você está de fora Claire Angelini Et tu es dehors resulta de um encontro violento com M, primeiro filme sonoro de Fritz Lang, no qual ele “inventa” uma maneira de articular som e imagem. A crítica costuma fazer desse filme uma denúncia prematura do advento de Hitler e do regime de terror que ele instalou na Alemanha; ora, a escuta do filme (entonações, vocabulário) e também seu foco em um caso - real - de “assassino de crianças”, que concentra em si todas as pulsões de purificação pela eliminação física da sociedade, seja a dita legítima (a população, a polícia), ou a ilegítima (a máfia), deixa aflorar outras intenções. Minha percepção dessas intenções foi renovada ao cruzá-las com a reflexão de Michel Foucault sobre a questão do biopoder. Foucault teoriza acerca da forma com que, desde o fim do século XVIII, a emergência de um corpo coletivo (o da população), que deve ser protegido a partir de então contra a doença, a velhice e a degenerescência, é acompanhada por técnicas disciplinares cada vez mais complexas: uma evolução histórica de nosso sistema social que contribui para a biologização da política, da qual uma das maiores preocupações torna-se a distinção crescente entre o normal e o anormal, o superior e o inferior, o são e o desviante etc. Ora, acontece que essa “segregação”, consubstancial ao “biopoder”, nítida em M, encontra, a meu ver, um eco surpreendente em nossa sociedade. Quem é M? Apesar de sua doença e seus atos criminosos, Hans Beckert, vulgo M, nos é apresentado como um homem ordinário. Ele é ainda mais inquietante por não ser notado. O primeiro momento de seu isolamento social diz respeito a um processo de identificação: um sinal distintivo é nele afixado. Trata-se de um “M” escrito em giz, mas que não é diferente, em sua natureza discriminatória, daquilo que tantos homens e mulheres foram obrigados a usar, durante a guerra, nas ruas de Paris e de tantas outras cidades da Europa ocupada. Compreendemos sobretudo que M é um doente mental. Théa von Harbou, roteirista do filme, interessava-se vivamente pela psiquiatria e o filme se inscreve no conjunto de debates que agitam a República de Weimar, então perto de seu fim, quanto ao status dos doentes mentais e a questão da pena de morte. Pois que no Instituto Kaiser Wilhelm “de antropologia, genética
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humana e eugenia” de Berlim, já estão sendo elaborados os primeiros projetos de esterilização de doentes metais, criminosos e indivíduos moralmente retardados. As declarações sobre as vidas que não merecem ser vividas são lugares comuns nessa época. Schranker, o chefe da máfia no filme de Lang encarna de certa forma o eco da voz do povo: "Você deve desaparecer", ele diz a M, "você deve ser apagado como um fogo prejudicial". Os criminalistas da época oferecem um respaldo teórico ao pensamento comumente admitido - e cuja genealogia foi feita por Foucault - segundo o qual o louco é uma pessoa perigosa que precisa ser enclausurada ou mesmo suprimida. Na Alemanha, dez anos depois do lançamento do filme de Lang, o programa T4 coloca em prática o assassinato de doentes físicos e mentais. Hoje em dia, em um contexto que criminaliza de bom grado os "indesejáveis" de nosso tempo (pobres, estrangeiros migrantes e pessoas fisicamente frágeis, desviantes), um contexto de dificuldades econômicas e políticas, as questões colocadas por Lang são ainda atuais. Na França, foi instaurada uma grande reforma das estruturas psiquiátricas no meio hospitalar. Tal como ontem, é colocada a questão da reclusão perpétua dos doentes mentais criminosos. Na Europa, as pessoas indesejáveis e estigmatizadas são sobretudo os migrantes estrangeiros a quem recusamos o direito de abrigo. No filme-ensaio Et tu es dehors, uma narração se constrói lá onde esses questionamentos buscam se encarnar, em uma história que reúna documentos e ficção. Conjugação de reminiscências e coincidências, exame das sedimentações da memória, estilhaços de tempo e espaço, tudo contribui para o trabalho dessa memória. O filme se abre sobre o porto de Dunkerque, onde a fumaça das fábricas petroquímicas assinala um mundo industrial desumanizador e remete às duas guerras, das quais o porto foi teatro. De volta à sua cidade natal, Helmut, cuja vida atravessou o “breve século XX”, procura reunir, em um quarto de hotel, fragmentos de seu passado. Um caleidoscópio de imagens serve-lhe de memória; aquém das narrações em farrapos e de personagens anônimos, ele encontra nas sombras e rasgos desbotados dos fotogramas de filmes que o atravessam, os ecos ensurdecidos, deformados de sua vida: em primeiro lugar, sua diminuta infância, com a ocupação alemã do norte da França em 1917, depois Berlim, entre a República de Weimar e o início dos anos 30.
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Mas o fio da memória de Helmut é frágil e o espaço-tempo se rasga, deixando aflorar violentamente o presente. Confrontado com aqueles que habitam as margens econômicas, políticas e sociais do mundo de hoje, ele encontra seus duplos. Ele, que foi sucessivamente o Outro, o Desviante, o Louco, o Estrangeiro, o Migrante, compreende pouco a pouco que os crimes do século a que ele escapou se enraízam em um discurso normativo de eliminação. Outras reminiscências o invadem, colisão de imagens passadas ou atuais: Hartheim, castelo barroco da Alta Áustria, onde o discurso dos médicos acerca das “vidas indignas de serem vividas” tomaram corpo no extermínio de fato dos anormais do Terceiro Reich, a Berlim em ruínas do pós-guerra e a de hoje. Em seguida, as visões de Helmut nos levam novamente ao norte da França onde são convocados outros momentos de sua vida: no labirinto de um grande estabelecimento psiquiátrico, a equipe que ele havia conhecido surge então do tempo para contar, no mesmo momento, o que já foi e o que doravante é: uma enfermeira que outrora cuidou dele e, depois, um psiquiatra. Helmut, ao longo dessa viagem no espaço e no tempo, descobre, ao final, na periferia de Dunkerque, a presença de requerentes de asilo, esses invisíveis de nossa época. Entre corredores barulhentos, portas fechadas e muros tristes, a responsável pelo lugar o introduz no cotidiano dos migrantes, sua sobrevivência, as batidas para deportação, os processos.
Claire Angelini, artista e cineasta (estudou na Ensba, Escola Nacional de Belas Artes de Paris, e na HFF, Universidade de Televisão e Cinema, em Munique), interroga, através de instalação, filme, vídeo, fotografia, som e desenho, a relação entre arte e história sob a forma do rastro, da ruína, da reminiscência e da sobrevivência das imagens. Em 2001, ela fundou o Laboratorium Geschichte, onde produziu, em colaboração, projetos de instalações em espaços públicos e livros de artista. Suas obras foram apresentadas nos Etats Généraux du Film Documentaire de Lussas, no Cinéma du Réel, em Paris, no Instituto FrancoJaponês de Tóquio, na Viennale, em Viena, na Maison des Arts d’Amiens, na Kunsthalle de Viena, na Architekturkammer de Munique, no Festival Internacional de videoarte de Gijon, na Nuit Blanche de Paris, no Festival Underdox de Munique, no l’Institut Jean Vigo de Perpignan, na galeria Martine et Thibault de la Châtre, em Paris, no Filmmuseum de Munique, no Goethe-Institut de Roma, na Biennale de l’Image Contemporaine de Genebra e, como participante dos Rencontres Internationales Paris-Berlim-Madrid, no Centre Georges Pompidou e no Musée du Jeu de Paume, em Paris, na Haus der Kulturen der Welt de Berlim, assim como no Museu Reina Sofia de Madrid e, recentemente, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Claire Angelini, ligada ao coletivo pointligneplan, vive e trabalha em Munique e Paris.
Na cidade industrial de respiração pesada que cadencia as horas, Helmut, cuja memória trabalha uma história que é, ainda e sempre, a nossa, quase terminou sua busca e, ao fazê-lo, colocou em perspectiva o devir história do cinema e o devir ficção do documentário. Tradução: Ana Siqueira
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ensaios
Xapiri e a imagem-eco do xamanismo Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra Xapiri é um termo yanomami para designar tanto os xamãs, os homens espí ritos (xapiri thëpë), quanto os espíritos auxiliares (xapiri pë). Xapiri é um filme experimental sobre o xamanismo yanomami, que nasceu em resposta a um desejo do líder e xamã Davi Kopenawa: realizar um encontro de xamãs de todo o território yanomami localizado no Brasil, com vistas ao fortalecimento da preservação e da continuidade da cultura tradicional desse povo indígena. Em dezembro de 2010, Laymert Garcia dos Santos encontrou uma oportunidade de fazer tal encontro acontecer, desde que fosse incluída, num dos cinco projetos do Laboratório de Cultura e Tecnologia em Rede, do Instituto Século 21, por ele coordenado, a realização de um filme sobre o xamanismo yanomami. Conseguiu-se, assim, fundos da Cinemateca Brasileira para a realização do encontro e de sua filmagem, com o objetivo posterior da transformação desta em filme. Uma parceria selada entre essas instituições e a Associação Hutukara Yanomami e o Instituto Sociambiental tornou o projeto do filme factível. O encontro de xamãs se deu em março de 2011, na aldeia de Watoriki Amazonas. Em abril de 2012, a mesma equipe voltou para a aldeia, para mostrar aos xamãs e à comunidade um primeiro corte, dentro da perspectiva de fazer um filme com os índios, e não sobre eles. Davi Kopenawa vira esse retorno como uma oportunidade para organizar um segundo encontro de xamãs, e assim foi feito. O resultado foi um estoque de cerca de trinta horas de gravação de imagens do xamanismo. Xapiri se inscreve, portanto, numa estratégia de luta yanomami em defesa de seu território e de sua cultura. Tal estratégia tem uma face interna, voltada para a consolidação das conquistas dentro do território, desde a demarcação, há vinte anos, e uma face externa, voltada para a divulgação, no mundo branco, do alto valor da cultura yanomami e da necessidade de alianças com parcelas da opinião pública ocidental para que estas apóiem sua preservação. Nesse sentido, Xapiri é uma obra que se inscreve numa série de criações e expressões artísticas que apostam no valor estético-político da cultura yanomami como forma de luta. Tal série começou com as fotografias de Claudia Andujar, continuou com exposições na Fondation Cartier pour l’art contemporain, em Paris, que abordavam ou incluíam obras com, dos ou sobre os yanomami (em 2003, L’esprit de la forêt,
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em 2008, Ailleurs commence ici, em 2011, Mathématiques - Un dépaysement soudain, em 2012, Histoires de voir), estendeu-se à forte participação dos xamãs e da comunidade de Watoriki na ópera multimídia Amazônia (direção artística de Peter Ruzicka, Peter Weibel e Laymert Garcia dos Santos), apresentada na Bienal de Teatro-Música de Munique, em maio de 2010 e no Sesc-Pompéia, em São Paulo, em julho do mesmo ano.
as dos ancestrais “humanimais” que viviam nos tempos das origens (...). De tais imagens, diz-se que têm “valor de espectro” (...) dos seres primordiais, dotados de uma “pele” (corpo) humana e de um nome (identidade) animal. Elas são percebidas pelos xamãs sob a forma de uma infinita multiplicidade de humanoides minúsculos, enfeitados com pinturas corporais e ornamentos de luminosidade ofuscante.
Vários dos integrantes da equipe de Xapiri estiveram envolvidos nesses outros projetos. De modo que o contato, o conhecimento, a convivência e, arriscaríamos, uma certa familiaridade com a aldeia, com os xamãs e com o xamanismo nos levaram a fazer determinadas opções e a estabelecer certos critérios que nortearam a realização do filme.
Tais seres-imagens corpusculares, espécie de quanta mitológicos, povoam o mundo em estado livre, envolvidos numa incessante atividade de jogos, trocas e guerras que sustenta a dinâmica dos fenômenos visíveis. Uma vez instalados, durante a iniciação, numa morada celeste associada ao jovem xamã, eles se tornam seus “filhos”, uma forma “aparentada” das imagens humanimais do “primeiro tempo”. Segundo o jargão etnográfico, eles são então “espíritos auxiliares” (xapiri pë). Assim domesticados, os xapiri pë são selecionados e combinados em cada sessão xamânica, segundo seus atributos e suas competências. Em função das necessidades do momento, eles servem como referentes interpretativos e vetores de intervenção para os xamãs que com eles se identificam no transe (...).”1
Com efeito, desde o início, Xapiri foi concebido de modo a levar em conta duas noções diferentes de imagem: a dos yanomami e a nossa. Para nós, não se tratava, pois, de explicar o xamanismo, seus métodos ou procedimentos, não queríamos fazer um trabalho acadêmico ou de vulgarização. Sabíamos ser impossível ver e mostrar o que os xamãs vêem; tais imagens permanecerão, para sempre, inacessíveis aos não-yanomami. Sabíamos, também, que seria inócuo e contraproducente filmar os rituais de modo realista ou naturalista, porque a “realização” do xamanismo, o seu modo de se tornar real, escapa inteiramente dos padrões e critérios do documentário. Assim, nosso intuito era tornar visível e sensível, para públicos de culturas diferentes, o modo segundo o qual os xamãs “incorporam” os espíritos, como seus corpos e suas vozes se transformam tanto no contato com os espíritos quanto na “passagem” destes, e de um espírito a outro. Portanto, nosso filme tinha de ser experimental, no sentido forte do termo. De início, o experimento consistiu no esforço para entender a complexa noção de imagem yanomami, muito diversa da que conhecemos; em seguida tratou-se de gerar imagens e sons das performances xamânicas com o intuito de criar “simulações” dessas “passagens de imagens” por meio de nossas tecnologias digitais. A imagem desempenha no xamanismo yanomami um papel central e espe cialíssimo. O antropólogo Bruce Albert, que trabalha com essa etnia há mais de trinta anos e que participou de nosso experimento a definiu com grande precisão da seguinte maneira:
Bruce Albert alerta para os malentendidos que o emprego da própria noção de “imagem” provoca nesse contexto, pois os Yanomami também utilizam o termo utupë para designar todas as nossas manifestações iconográficas (imagens no papel ou digitais, animadas ou não), bem como as representações plásticas (desenhos, gravuras, pinturas, estátuas) ou modelos reduzidos (jogos e miniaturas). Além disso, o termo também designa o reflexo de uma pessoa na água ou num espelho, a sombra ou o eco (a “imagem do som”) e as gravações sonoras - “imagem de falas”. Por fim - escreve o antropólogo - “além de sua acepção relativa ao “valor de espectro” dos ancestrais humanimais, utupë também designa um componente ontológico fundamental de todo existente” - a imagem do corpo e a essência vital associada ao sangue e à energia corporal.”2 Por tudo isso, utupë é um tipo de imagem que não pode ser confundido com nossas noções de representação. Segundo Bruce Albert, “esse modo fundamental de ser-imagem (...) ao qual o “ver” xamânico do sonho e do transe dá acesso, constitui o centro de gravidade do pensamento ontológico e cosmológico yanomami.”3 Mas, adverte o antropólogo, mesmo procedendo Albert, Bruce, “Images, traces et 'hyper images': impromptu d´ethnographie noctambule” in imagine ambulat homo Augustin, La Trinité, livre XIV, 4, 6, p.1 e ss. 2 Idem 3 Ibidem
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“As imagens (utupë) que os xamãs yanomami “invocam”, “fazem descer” e “fazem dançar” - no sonho ou no transe - são (essencialmente, mas não só)
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de sonhos ou induzida por alucinógenos, essa imagem também não deve ser compreendida como nossas usuais imagens mentais ou “visões interiores”. Com efeito, escreve Bruce Albert, as imagens dos seres primordiais descritas pelos xamãs com grande profusão de detalhes estéticos, o são antes de tudo a título de percepções diretas de uma realidade externa absolutamente tangível (o “ver” é aqui autenticamente “conhecer”). Além disso, elas também são tornadas visíveis para o público das “pessoas comuns” que assistem às sessões dos xamãs quando estes se assimilam, durante o transe, aos seres-imagens mitológicos que “fazem dançar” . Através dos cantos e da coreografia associados a cada um de seus xapiri pë eles próprios se tornam verdadeiros “corpos condutores” dos ancestrais humanimais.”4 Bruce Albert distingue, então, dois modos principais de identificação com os seres-imagens primordiais durante as sessões xamânicas. Em nosso grupo de trabalho definimos a articulação desses dois modos como a “passagem da imagem” pelo corpo do xamã. Com a palavra, o antropólogo: “Tais modos constituem na verdade graus de “devir-imagem” imbricados um no outro, numa espécie de vai-e-vem ontológico. No primeiro modo os xamãs efetuam a dança de apresentação genérica dos ancestrais humanimais convocados como auxiliares e seus cantos descrevem a aparência e as ativi dades desses seres-imagens bem como as paisagens cosmológicas nas quais evoluem (momento narrativo, interioridade/exterioridade das imagens). No segundo modo, frequentemente mais curto e esporádico, seu corpo é de repente totalmente transformado por uma assimilação mais íntima com os seres-imagens mitológicos: a gestualidade e os cantos - tornados sucessões de onomatopéias - remetem então diretamente aos daqueles seres humanimais específicos que são a cada vez invocados (momento intensivo, plenitude do ser-imagem). Pode-se então considerar que durante esse processo os xamãs são tomados a título de suportes (meios) vivos pela linha de fuga dos seresimagens que vão vendo e presentificando em suas sessões. Eles constituem assim espécies de “corpos-telas” atravessados pela fita das formas ontológicas (re)tornadas dos tempos míticos.”5 Fica evidenciado, então, que o xamã opera, por assim dizer, em dois canais, ou melhor, passando de um ao outro, vale dizer modulando a passagem da imagem e sendo modulado por ela. Ora, para compreender o que está acontecendo, nada melhor do que a reflexão formulada pelo filósofo Gilbert Simondon sobre os Ibid. 5 Ibid.
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conceitos de informação, transdução, resolução, realidade pré-individual e individuação. Em síntese: sobre a lógica operatória atuando no processo de concretização, de passagem do virtual para o atual. Em seu livro Du mode d’existence des objets techniques, o filósofo Gilbert Simondon afirma que o primeiro técnico é o xamã, o medicine man que surge na mais originária fase da relação entre o homem e o mundo. Como escreve Simondon: “Podemos denominar essa primeira fase fase mágica, tomando a palavra no sentido mais geral, e considerando o modo de existência mágico como aquele que é pré-técnico e pré-religioso, imediatamente acima de uma relação que seria simplesmente aquela do ser vivo com o seu meio.”6 O que faz então o primeiro técnico? O filósofo aponta que ele traz para sua comunidade um elemento novo e insubstituível produzido num diálogo direto com o mundo, um elemento escondido ou inacessível para a comunidade até então.7 No caso dos xamãs yanomami que estamos abordando aqui, é interessantíssimo perceber que o processo técnico de produção de seres-imagens é extremamente complexo e preciso. Com efeito, tudo se passa como se, alterando a sua per cepção através da inalação da yãkohana, ampliando seu estado de consciência, os xamãs tivessem acesso ao que Simondon chama de realidade pré-individual, àquilo que o filósofo considera como sendo “o centro consistente do ser”, plano das intensidades, das potências e das virtualidades, plano a partir do qual se dá a tomada de forma, a concretização e a invenção. Tudo se passa como se os xamãs modulassem a recepção dos seres-imagens e fossem modulados pela manifestação destes, revelando, em pleno estado alucinatório, uma maestria impensável para o mais versado dos ocidentais nos estados alterados de consciência. Para ilustrarmos o que se está dizendo, vale narrar um episódio que aconteceu em agosto de 2009, durante um workshop organizado com um grupo de xamãs, em Watoriki, no âmbito da ópera Amazônia. Como de hábito, os xamãs faziam seu ritual, inalando yãkohana, cantando, dançando, falando... Subitamente, Levi Hewakalaxima dirigiu-se a Bruce Albert, apontou para nós, pôs a mão no próprio peito e disse, em yanomami:“Diga a eles que estou baixando em meu peito a imagem do canto-palavras do
6 Simondon, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier/Montaigne, 1969, p. 156. 7 Simondon, Gilbert. L’individuation psychique et collective. Paris: Aubier, 1989, pp. 261-262.
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pássaro oropendola.” E de imediato “sintonizou” novamente o ritual, voltando a cantar e a dançar. Como entender esse episódio? Tudo se passa como se, durante essa espécie de download de um arquivo audiovisual, o corpo de Levi funcionasse ao mesmo tempo como hardware e como software, processando um programa que estava sendo rodado pela mente do xamã como som-canto do xapiripë tornando-se uma imagem que será “lida” como uma partitura pelo intérprete. De acordo com as palavras de Bruce Albert,“os sons-cantos do xapiripë vêm primeiro: as imagens mentais induzidas pela yãkohana tomam forma a partir de alucinações sonoroas; o que significa um devir imagem do som.” Esse ponto apareceu-nos (a Bruce e Laymert) como uma verdadeira possibilidade de uma ligação entre o universo mágico yanomami e as experiências estéticas mais avançadas no campo das tecnologias digitais de produção de imagem. Trata-se do seguinte: com suas técnicas apuradíssimas, os xamãs vêem o que não podemos ver. Mas podemos ver como seus corpos, ao incorporarem os seres-imagens, expressam a passagem destes, ou seja, a metamorfose. Graças a um acoplamento homem-máquina que atualize o máximo das potências do humano e dos aparelhos podemos transformar a passagem das imagens em imagens de passagem, modulando o processo de concretização de tal modo que o visível apareça como uma espécie de configuração-desfiguraçãoreconfiguração capaz de nos permitir, pelo menos, contaminar a geração de nossas imagens com alguns princípios operatórios análogos aos praticados por eles. É claro que tal procedimento não torna visível o invisível; mas abre o visível para um movimento de ampliação da percepção e da mente que nos permite esboçar uma impressão estética da riqueza, da complexidade, da beleza, e até mesmo da vertigem, dos riscos inerentes à viagem xamânica. Assim, Xapiri foi estruturado de tal modo que o espectador possa adentrar pouco a pouco no ritual xamânico: primeiro, chegando em Watoriki, e encontrando esse povo que habita a terra-floresta e que é habitado por ela, povo de um mundo outro, cuja cor predominante é o vermelho; em seguida, vendo os xamãs se prepararem, executando a sua pintura corporal, inalando a yãkohana e começando a dançar e a chamar os xapiripë; segue-se uma série de “retratos”, que buscam incorporar os traços visíveis e invisíveis que caracterizam os xapiri thëpë: a beleza dos ornamentos, a variedade e a força da expressão, mas também a fulguração dos pontos de luz, dos espíritos auxiliares que irrompem da floresta, e sua inscrição dançante a povoar o peito de cada um. Na trilha sonora, o tempo todo são entoados os cantos, às vezes correspondendo, às
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vezes não, ao que se passa na imagem. O ritual vai se adensando, o clima vai se transformando, uma nova rodada de alucinógeno indica que o processo se intensifica, se estende no tempo e tem lugar no cotidiano da aldeia, até que os cantos e as danças anunciam e executam a passagem dos xapiripë nos xapiri thëpë, abrindo caminho para as curas de doentes, a sustentação do céu, a cura da terra... Uma longa sequência de Levi Hewakalaxima permite ver o xapiri thëpë despojando-se de seus adornos e entregando-os aos outros xamãs, antes de acompanhar o xapiri pë que vai partir. Na sequência final, voltamos à terra-floresta, a seu povo, e à sua continuidade no futuro, através da figura dos meninos. O dispositivo xamânico yanomami de produção de imagens e sons, dispositivo audiovisual, se arma com a aspiração da yãkohana, portanto, numa alteração intensa dos estados de consciência, que se abrem para a recepção dos xapiri pë. Por isso, a partir do momento em que os xamãs aspiram o alucinógeno, a visão do espectador também começa a se alterar. Para dar conta disto, recorremos, no dispositivo digital de Xapiri, não a efeitos especiais, mas a um procedimento utilizado sistematicamente, que é a imagem-eco. Esta se justifica por diversas razões: primeiro, porque desnaturaliza as figuras e a imagem como um todo, desconfigurando e reconfigurando incessantemente os seus contornos; em segundo lugar, porque a imagem-eco se expressa como um eco das imagens xamânicas que não podemos ver, mas cuja passagem se torna perceptível na alteração dos corpos; em terceiro lugar, porque a imagem-eco, ao desrealizar a imagem, transforma-a em pura vibração, o que estabelece ressonâncias com o próprio dispositivo audiovisual xamânico, no qual as imagens se dão como potências do virtual que se atualizam, passam e arrefecem; finalmente, porque a operação técnica implicada na produção da imagem-eco, que consiste na fusão de dois planos ou duas sequências, uma no sentido temporal linear, e a outra no sentido inverso, resulta numa imagem que contém, ao mesmo tempo, seu passado, seu presente e seu futuro, isto é, um movimento que se dá, que já se deu e que vai se dar. Assim, a imagem-eco de Xapiri permitiria que o espectador se deixe envolver por um outro espaço-tempo, ecoando o mundo mágico do xamanismo.
Agradecimentos especiais Aos Xamãs Yanomami, à Comunidade de Watoriki, a Carlo Zacquini, a Morzaniel Yanomami e Claudia Andujar.
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As explosões necessárias Maurício Gomes Leite Brasil, primeira metade de 1968. Um rebelde de 22 anos lança um manifesto cinematográfico. Gustavo Dahl conclui O Bravo Guerreiro, a guerrilha aparece em Os Exilados, uma alusão clara a Régis Debray é feita em Jardim de Guerra, Nélson vira a mesa com Fome de Amor, Glauber Rocha filma em 16mm e cinco dias O Câncer. Há filmes de todos os lados, idéias em carrinho, heróis e nãoheróis, câmera na mão e uma notável coincidência: todos os filmes citados são políticos, mesmo os que trazem a marca da história policial ou das aventuras de sexo. Alguma coisa explode, no outono. A imagem clara de um ângulo do Terceiro Mundo parece ser a grande preocupação dos jovens armados de luz e sombra que tentam um novo diálogo com o público – e isso é bom. Há muita incerteza, pois o filme brasileiro novo não se define pela exatidão da mensagem ou bom comportamento dos personagens – tradições arquivadas por todos os que preferem retirar da dúvida um começo de luta. Dúvida sobre as instituições, sobre o discurso moral da classe dominante, sobre os ideais forjados por uma minoria que diz falar em nome da maioria, dúvida social – e estética – refletindo a necessidade de abrir novas frentes no cinema e na vida. Tome-se um filme padrão qualquer, entre os lançamentos da última semana – Subindo por Onde se Desce, por exemplo – e veja-se até onde um tema aparentemente social é freado, amenizado, simplificado e entregue pronto para o consumo sem que nada seja pedido ao espectador, nenhum acréscimo, nenhum debate, nenhum raciocínio. A heroína da fita de Robert Mulligan, simpática em todas as horas, é vítima de um arranhão social, nunca de um câncer. Dedicada professora de visão suave e sensibilidade aguda envolve-se com os problemas de uma escola perigosa, tenta enfrentar a luta, quase desanima, mas, no último momento, tocada pelo ar de esperança que sempre marcou boa parte dos filmes (e dos heróis) norte-americanos, levanta o nariz, abre um sorriso e segue em frente, mesmo que durante o filme nada tenha enfrentado além de pequenas malcriações e um quase estupro. Para o espectador médio a quem se entregou a história média, o desgosto social foi salvo pela mestra média, sua coragem de boneca e sua total incapacidade de enxergar a verdadeira raiz dos males da escola, no final atribuídos à burocracia e ao eterno ardor da juventude. Dessa calma-padrão, felizmente, não sofrem os novos filmes brasileiros. Nos termos do que se pode fazer num país como os Estados Unidos, o filme de
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Mulligan até que passa como – pelo menos – intenção simpática, embora completamente frustrada. Mas os jovens cineastas do Terceiro Mundo são inquietos, instáveis como sua economia, desesperados como seus personagens, incertos como sua política. Ao nível da procura, e do fazer tudo, é que devem ser recebidos e compreendidos – nunca como simples aventureiros, pois logicamente sua grande dúvida nasce de uma reflexão profunda, somada a um entusiasmo jovem que não é ardor nem malcriação. Entusiasmo que leva Neville d’Almeida a fazer, quase sem dinheiro e sem película, Jardim de Guerra, um estudo sobre as conseqüências do tráfico revolucionário na América Latina, e que será certamente uma das grandes surpresas deste ano. Ou que joga Sérgio Bernardes Filho além de uma fácil existência mundana à qual parecia destinado, pois SBF preferiu sofrer os dramas de um longa-metragem provocador (Os Exilados) a padecer no paraíso. Entusiasmo novo marcado pela reflexão: Nélson Pereira dos Santos se transforma, e Fome de Amor é um dos mais bonitos jogos de luz que se poderia fazer com dois temas chamados fortes: a política nasce do sexo. O Bravo Guerreiro e Câncer fecharão o ciclo, e entre eles passa, sem nome, O Bandido da Luz Vermelha, motivo final – e inicial – dessas previsões que tirei de várias frentes de trabalho, indo de roteiros a filmagens de copiões a filmes prontos. O autor do Bandido, Rogério Sganzerla, tem a palavra (ou o último tiro), através do manifesto que lançou em São Paulo, maio de 1968, sob o título de Cinema Fora da Lei. Sei que os demais autores citados, no todo ou em parte, também encampariam o anticódigo de Rogério: “1 – Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann). 2 – O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia enquanto os tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha. 3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime. 4 – Jean-Luc Godadrd me ensinou a filmar tudo pela metade do preço. 5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais. 6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem. 7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico. 8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de todos os travellings. 9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de
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Luís poeta e agitador Buñuel, anjo exterminador. 10 – Nunca se esquecendo de Histchcock, Eisenstein e Nicholas Ray. 11 – Porque o que eu queira mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendi que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem de Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento. 12 – Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo. 13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.” Jornal do Brasil, 1 de junho de 1968
A$suntina das Américas João Batista Lanari Uma ópera, um músical, uma comédia, um gesto colorido O cinema reflexão, o cinema antiespetáculo, um instrumento de conscienti zação; o cinema como ato político, ato político no sentido de participação, de criação; consequentemente, não é cinema, ou será que fazer cinema é somente agradar aos menos exigentes? Luiz Rosemberg Fliho, autor já no quinto filme A$suntina das Amerikas só teve apenas um até agora (Jardim de Espumas) em exibição comercial no Brasil. E é nesse contexto que surge "A$suntina", uma ópera, um gesto colorido de liberdade criativa. Como vai "A$suntina", ou o mundo animado do cinema? “Tudo vai bem, quando todos pensavam que eu ja não faria mais um filme. E como instrumento de reflexão. E tudo vai bem num trabalho que e um pouco uma feroz crítica ao lado mitológico do cinema como espetáculo de padrão internacional. Hollywood, na mitologia ocidental do passado sempre presente. O cinema tupiniquim, na fantasia das massas domadas pela ideologia do consumo a la americana. Assunta. A$suntina das Amerikas uma ópera, um musical, uma comédia, um gesto colorido de liberdade criativa.” "A$suntina", antes que um assunto, uma personagem, uma política, ou um símbolo de mulher? "A$suntina" (Analu Prestes) é procurada pela câmara não como uma Mulherhistória (Glauce Rocha em Terra em Transe), portadora de determinadas idéias políticas (Grécia Vanicori no Jardim das espumas). Inclusive, inexiste a fidelidade a uma só imagem determinada da mulher. E em Iugar da verdadeira MULHER, temos um objeto (Vera Fischer, Kate Lira ou "A$suntina") amargo, fechado na procura de sua identidade. E por que a necessidade de uma política de mentiras para suportar a vida? O que vem a ser hoje a honestidade existencial? Razão ou anti-razão? Sigo perguntando como um aluno rebelde. Os meus fantasmas se desdobram num tempo sofrido de procuras. A$suntina das Amerikas é a história de uma procura externa, com pequenos dados ilustrativos do mundo interior. "A$suntina" é o meu novo caminho, não sendo o único caminho existente.
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Uma bandeira rota A volta à realidade, ou a procura de uma realidade, personagem a procura de uma justificação da existência? Um novo caminho, uma nova linguagem, um líder? “Não quero ser um líder, um mestre, um mestre escola. Mas um homem que põe em questão a minha própria atividade. Ainda (que com todas as dificuldades de mercado), quero refletir sobre o cinema ou sobre a minha posição no ci nema. Isso porque escolhi uma política de fazer filmes políticos. Embora pareça um jogo real de palavras, eu optei pela real contestação dentro da pseudocontestação que sobrevive no cinema. Explicando melhor: “fazer cinema, assim como comprar um livro, é um ato politico, ou seja, fazer da política de fazer filmes um programa de ação. Isto é fazer cinema não se diferencia de chegar numa praça pública, representar Brecht e evitar uma manifestação elitista gangrenada. Eu não sou um cine asta e sim faço cinema. Amanhã em lugar de fazer cinema, eu poderei estar representando os poemas de Mayakovski, no sacrosanto audtório de qualquer universidade. Um verdadeiro cineasta é tão solitário quanto um dedo solitário que se arrepende no meio de um gesto de rebeldia.” Uma posição de participação, isto é, o cinema como fazendo parte de um todo. O todo em relação direta com público, ou seja, o filme politizado, vivido, existido. Como situar essa penetração em nosso meio? “Que fazer, se o filme é o supositório cultural do mundo moderno? O cinema é uma bandeira rota, que continuara sempre rota, mas que e preciso empunhar, mesmo a custa do sacrifício de não fazê-lo. Não dá pra transformar os tempos, mas dá pra despertar as consciências até ontem domadas por Hollywood. Já é alguma coisa, neste azul lago da tranquilidade latina. Isso é o meu cinema. Isso é A$suntina das Amerikas. Um filme Político na política do existir e resistir.”
O antiformalismo, o abandono de uma lógica formal, politiza ou despolitiza um filme? Até que ponto o espectador é atingido por uma orientação desse tipo? “Em A$suntina das Amerikas, o formalismo não é possível, isto é, não sigo uma lógica formal, mas uma política, isto é, uma lógica política. Não me importa o resultado imediato, mas a reunião em torno de um objetivo a alcançar. É indispensável localizar nessa nossa disposição uma tentativa de lograr uma nova maneira de agir diante do cinema, uma maneira que obrigue o espectador a modificar sua maneira de apreender os filmes. Uma maneira que obrigue o espectador a diferenciar o que é um filme sobre política (uma A confissão qualquer) e um filme político (O Rei da Vela do Zé Celso). A política de fazer filmes políticos é, evidentemente, diferente da política de fazer filmes sobre política. Um filme sobre a política segue a regra de não quebrar a regra do formalismo, enquanto um filme político repensa e recria a política de fotograma a fotograma, um fotograma que é produto de uma teoria grupal que, a cada filme, a cada fotograma, é modificada, repensada, atualizada.” Até onde essa política atua em nossos cineastas, em termos de análise do nosso processo histórico? “É nesse sentido que Uirá, São Bernardo, O Rei da Vela e A$suntina das Amérikas são filmes políticos, filmes históricos, onde a história se dessacraliza, sai do gabinete boroIento das revistas de atualidade e dos livros de recherche para sua própria formulação. Isto é: A$suntina filme político é um dado histórico, e a história em ação, em movimento, em contínuo movimento dialético, num fluir sempre ou seja: a história sendo vivida à medida que é feita. E isso é A$suntina, um filme que foi feito e vivido intensamente a cada novo momento. É um grito de vida contra morte. Um filme sofrido analíticamente a 24 quadros por segundo. Este filme se chama A$suntina das Amerikas, mas poderia também se chamar: Uirá, O Rei da Vela, Guerra Conjugal, O Passe Livre ou O Casamento. São filmes novos no meio deste universo envelhecido, empobrecido, falido. A falência transatlântica da cultura ocidental.”
Brecht foi citado, em uma praça pública. A expressão brechtiana, a estrutura de situações, caminha junto com o seu cinema? Em que medida? “Sinto a presença de Brecht na formulação e na prática do meu cinema. No Jardim das Espumas, já salientava que mais e mais Brecht estava ao meu lado. Não o Brecht autor, mas o Brecht teórico, o Brecht da conceituação do V-Effekt. A conceituação do anti- formalismo”.
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Lui cinema Silvio Back Um filme corsário De repente, desfraldadas e coruscantes imagens de um filme paleolitico, remanescente de um tempo que parecia soterrado pela excitação do tilintar da caixa registradora e pelo alegre concubinato cultura e consumo. Nesse horizonte, a indagação lapidar: hoje e possível dar a volta por cima? Quem grudar o olho num binóculo, pode até se assustar: mais um filme Super 8, com todo seu pacote de retórica e falácias? Analu Prestes saracoteia a exuberância do corpo antes de abrir uma garrafa que bóia na praia. Dentro, uma verdadeira aquarela do Brasil. Tudo premeditado e a reversão das expectativas: A$suntina das Amérikas, terceiro longa-metragem de Luis Rosemberg (ainda inédito, aliás, como os demais, O Jardim das Espumas e Imagens), remontanos, isto sim, aos melhores exemplares rebeldes da produção superoitista de urn par de anos atrás. A$suntina das Amérikas, a reflexão grudenta em meio a uma certa poluição sonora mas concernente de como um cineasta solitário se digere enquanto luta contra a deserção, o adesismo e a descapitalização de propostas. Ou, o retrato falado, a careta nacional, uma espécie de flagrante tomado de um útero cósmico, captando o país das lantejoulas ao intestino grosso. “O cinema é uma invenção sem futuro” (Lumière). “Todo mundo faz cinema mas poucos fazem filme.” Rosemberg. À medida que esta insólita nau cinematográfica se aproxima da costa, algumas impressões iniciais se confirmam, e se erigem outras, inescrutáveis, como a pedir escafandro para decifrá-las. Surpreendente, A$suntina das Amérikas traz à tela brasileira um erotismo enclausurado por um discurso politicoideológico dela ausente antes por outras razões, do que enjôos inquisitoriais. São três, quatro ou cinco sequências absolutamente contagiosas, discutíveis, mas as mais contagiosas e libertárias destes anos em que temos colocado dezenas de simulacros de homens e mulheres nas camas e palanques dos nossos filmes. Recorrer a Pasolini não será extemporâneo quando entendermos em A$suntina das Amérikas que se navega nas mesmas águas de Eros, Tanatos e política, tão caudalosas nos filmes do mestre assassinado. Wilhelm Reich, à moda cabocla, inoculado da febril energia dos trópicos. História, contracultura, lendas, sagas, cordel e gozações, álibi para desencaminhar aquele espectador
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perfeitamente acomodado à sociabilidade do cinema. Cinema sinônimo de “chá das cinco”. Cinema nota dez em comportamento e asseio. Ancorado diante de nós, A$suntina das Amérikas é um filme insolente, com uma atriz debochada, com um ator irritante, com anjos, mães, dançarinas, esqueletos, malfeitores e fantasmas atrevidos, com um diretor cínico (travest ido, em ocasiões as mais sórdidas). Nada é sério no fllme de Luis Rosemberg: quem pode tolerar uma frequente subversão entre os códigos da superfície (imagisson) e os abissais (a cabeça do espectador)? Uma coisa e inquestionável: Rosemberg e seu cometimentoestão a desafiar a mansidão dos mares cinematográficos deste país. Marolas, não, entendeu, Rosemberg? Citação do filme: “Pra vocês, o cinema é apenas um espetáculo, pra mim é uma concepção do mundo” (Maiakovski).
O Bandido da Luz Vermelha José Lino Grünewald (Correio da Manhã, 13 de maio de 1969) Radiotelecinejornal, O Bandido da Luz Vermelha, Godard e Oswald de Andrade, cultura e mass media, Chacrinha e Marshall McLuhan, invenção e antropofagia. A tribo em transe. O próprio cineasta, Rogério Sganzerla, informa que misturou tudo inten cionalmente: o western, a chanchada, o policial, o mau-gosto, o bolero, o expressionismo, o deboche, o strip-tease. Acima de tudo, e intensamente, cinema. O Bandido da Luz Vermelha projeta-se como um dos filmes de estrutura mais original entre os que apareceram ultimamente. E, isto, não apenas com relação ao modestíssimo cinema brasileiro (onde, amiúde, a “genialidade” amadorística ou mimética pulula no vazio da eficácia), mas tomando-se em conta o cinema em geral, ao nível internacional. Por isso mesmo, como obra de invenção, de surpresas (e que seria do cinema sem a surpresa?), provoca também a incompreensão, até o despeito. O novo é quase sempre e fatalmente polêmico em essência: basta lembrar as barbaridades que, aqui e no exterior, foram ditas, há pouco, sobre 2001: Uma odisséia no espaço, de Kubrick. Rogério Sganzerla não só absorveu inúmeros contrários ou heterogêneos de fatores culturais ou extra ou anticulturais, como, ao mesmo tempo, procurou inserir alguns elementos ou influências desfechadas pelas criações de vanguar da em outras áreas: da poesia, do teatro, do próprio cinema. E, aí, então, cria um cinema rítmico, de montagem, cuja estrutura exatamente refere-se àquela da comunicação de massas: rádio, jornal, cinejornal, televisão, anúncios luminosos, publicidade, tudo calcado pela tônica do sensacionalismo, utilizada como um recurso objetivo de enfoque das camadas da realidade política e cultural. O filme funciona como se fosse um painel móvel do comportamento genérico do bas-fond, do crime, da política, variando a ótica, da classe média, para a popular. Dentro disso, o leit-motiv se constitui nas façanhas do bandido famoso, que sacudiu São Paulo, cuja mentalidade esquizofrênica era extrato de uma formação fatalmente deturpada: “Já que não podemos fazer nada, vamos avacalhar.” Ou seja, “bagunçar o coreto” até as últimas consequências. Flashes, fatias de uma ação, quase nunca apresentada de modo completo. A não-linearidade, porém sem qualquer emprego ou concepção de flash-back,
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pois, este, por mais complexo e engenhoso que seja, reporta-se sempre, em última instância, à anedota, à lógica formal de uma manifestação conceitual. Em O Bandido da Luz Vermelha encontramos aquele distanciamento objetivo do autor, proporcionado pela técnica do documentário, e onde inexiste qualquer orientação subjetiva do cineasta, a fim de dar um sentido ético à conjunção das sequências, em suma, a formulação discursiva dentro da manga ou da cartola. Existe apenas a opção inicial pela seleção dos elementos. E, aí mesmo, foi que se revelou a personalidade do autor, a sensibilidade em inovar, em usar o mau-gosto com bom-gosto. A começar pelos intérpretes: Paulo Villaça compõe, para o bandido, um tipo notável; Helena Ignez, como Janete Jane, impecável em todos os momentos; Luiz Linhares dá ao delegado um comportamento inesquecível; Pagano Sobrinho, como o político, leva às últimas consequências o aspecto primitivo e carnavalesco da conduta de muitos líderes populares; e, fabulosa, a caracterização de Roberto Luna, como Lucho Gatica. Em ambientes do gênero, só mesmo o cinema americano consegue gerar uma fauna idêntica. Restaria dizer que, apesar de tudo, o filme não deixa de ser uma hommage às aberturas que o Godard, de À Bout de Souffle ou Pierrot le Fou, deu ao cinema, sendo que, através da última fita, foi deveras citado no final por Sganzerla, quando troca o enroscar-se nas bananas de dinamite de Belmondo pelos fios elétricos de Villaça.
Sina do Aventureiro Luís Alberto Rocha Melo Neste filme, Jaime é um jovem e solitário bandoleiro que vaga pelos povoados do interior praticando assaltos. Em uma fuga, leva um tiro e é acolhido pela família da ingênua Dorinha, por quem se apaixona. Mas o destino reserva surpresas amargas para o aventureiro. Por amor a Dorinha, Jaime se entrega à polícia. Ao sair da prisão, contudo, tem de enfrentar o sanguinário Xavier. O primeiro longa-metragem escrito e dirigido por José Mojica Marins não pertence ao gênero que o consagrou, o filme de terror. A sina do aventureiro é um faroeste caboclo (ou “western feijoada”, na definição do pesquisador Rodrigo Pereira), vertente prolífica, mas desprezada pela historiografia clássica do cinema brasileiro. Insere-se, portanto, na tradição mais ampla dos filmes rurais de aventura, território que compreende nomes tão heterogêneos quanto significativos como E. C. Kerrigan, Amilar Alves, Luiz de Barros, Humberto Mauro, Eurides Ramos, Antoninho Hossri, Victor Lima Barreto, Carlos Coimbra, Wilson Silva, Osvaldo de Oliveira, Reynaldo Paes de Barros, Edward Freund, Ozualdo Candeias, Tony Vieira e Rubens Prado. O intuito de dialogar com um dos gêneros mais populares do cinema aponta o que a direção de cinema significa para Mojica: comunicação direta com o público. Daí ser o próprio cinema o seu principal universo de referências. Se em 1958 – ano em que o filme foi lançado – isso ia de encontro ao ideário nacionalpopular defendido pelos realizadores independentes ligados à esquerda, por outro lado, antecipava em pelo menos dez anos a corrente contracultural dos cineastas ditos marginais, marcada pelo culto ao filme de cinema: “O natural é tão falso como o falso. Somente o arquifalso é realmente real”, diria Rogério Sganzerla, com admiração, sobre o criador de Zé do Caixão. O “arquifalso” faroeste A sina do aventureiro compreende em sua estrutura melodramática uma série de clichês facilmente assimiláveis por amplas ca madas do público espectador de filmes, leitor de folhetins e de histórias em quadrinhos ou fiel seguidor de rádio/telenovelas. Embora esse compromisso com o gênero pudesse ser relacionado a uma “camisa-de-força”, é justamente o oposto que se dá com Mojica: é o clichê que o redime, é a “prisão” do gênero que o liberta.
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Tal relação visceral com o cinema certamente contribuiu para conferir ao filme uma aparência, algo inusitada, de antologia. Enquadramentos e cenários, diálogos e músicas e determinadas soluções de montagem são colhidos de um vasto repertório comum. Reorganizados por Mojica, às vezes dão a impressão de unidade desamparada: Jaime, o aventureiro do título, nos é apresentado em uma espécie de trailer dentro do filme; grandes elipses modificam a carac terização de alguns personagens, mas mantêm intocados tantos outros; as canções (cujas letras foram escritas pelo próprio Mojica) condizem com o estilo épico, mas não são dóceis a ponto de se submeter à narrativa. O que dá organicidade a esse conjunto desigual de atrações é que tudo parece estar submetido a um paradoxo fundamental: A sina do aventureiro é decupado como um filme mudo e dialogado como um programa radiofônico. Entre o primado da imagem e o reinado da palavra, afirma-se um estilo. Em A sina do aventureiro não há meios-tons, sutilezas ou perfumaria. Tudo se passa como se o cinema fosse um território a ser constantemente violado. Mojica assina não só a direção, o argumento e o roteiro como também a decu pagem. Esse destaque soa estranho, mas faz sentido: corresponde à ambição de Mojica Marins em apossar-se da linguagem, abrindo veredas e clarões com a violência convicta que é própria apenas daqueles espíritos originais, para quem a criação não é circunstância, mas caminho sem volta.
Cassy Jones, Magnífico Sedutor Andrea Ormond “Este filme é dedicado a pessoas que souberam rir e viver: Izaura Miranda Person, Jorge Affonso Bouquet, Sergio Porto, Glauce Rocha, in memoriam”. A inscrição, vista na tela, representa uma elegia ao que iremos ver. A ambienta ção, Rio de Janeiro, 1972. Imagina-se a Banda de Ipanema e a turba dos corsos que passassem fora de época e viessem saudar o lendário Luiz Sérgio Person, diretor deste e de São Paulo S/A, um dos maiores filmes da cinematografia brasileira. Nos concentremos em Cassy Jones e, ao fundo, desenhem o fim da tarde no Arpoador, as mocinhas de biquíni e um nonsense genial, que mataria John Cleese e Eric Idle de inveja. Produção da “Lauper Films”, os créditos, ironicamente, são escritos em inglês. Person também assina o roteiro, com Joaquim Assis; a música é de Carlos Imperial – o adorável e nojento canalha que faz ponta como o próprio e é citado várias vezes pelos atores. A “Eastmancolor” presta o auxílio luxuoso e – repetindo os anúncios da época – presenciamos “uma explosão de cores” e uma decoração chiquérrima – com direito a cama d’água com peixinhos dentro – que remetem ao que de mais fervilhante havia naquele alvorecer da década de 70. Close no quadro de Tom e Vinícius pendurado num bar, são os pais espirituais do que havia de belo num mundo perdido. Cassy Jones (Paulo José) é o garotão boa vida, o sedutor magnífico, tremendo cara “bacanérrimo”, diz a canção hipnotizante de Imperial. Rouboult – pronuncia-se “Rubú” – é interpretado por outro ícone ipanemense, Hugo Bidet. O homem que, em 1977, dispararia um tiro contra o céu da boca, sobreviveria, avisaria o crítico Alex Vianny – seu vizinho – e iriam juntos ao hospital, para morrer nove dias depois. Mas em Cassy Jones ele é o impagável Oliver Hardy de Paulo José, o amigo taradão, que aparece vestido de rajá indiano, pianista com peruca marrom, motorista de caminhão e, inexplicavelmente, torna-se de um dia para outro o produtor musical do show de Clara (Sandra Bréa, em sua estreia no cinema). Percebam então que esse clima de caos é contagiante e vertiginoso. Uma mistura de deboches e referências – uma delas às comédias da Mutual, com direito a bigodão slapstick de Mack Sennett. Outra, ao teatro de revista, ence
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nado por Clara, dando a deixa para a entrada de Grande Otelo, em rápida aparição como bilheteiro. Depois de um momento delusional em que pretende largar as mulheres e dar um tempo, Cassy assiste à Clara na tv, em um quiz show à moda de O Céu é o limite, apaixona-se e persegue-a até seu palacete em Santa Tereza. No programa ficamos sabendo que a menina é orfã, mora com Dona Frida (Glauce Rocha) e é muito cortês. Glauce praticamente não fala – este é justamente o gancho de sua personagem, assassinada numa confusa troca de tiros. O tom não é de tristeza, Frida era megera, cai ao chão com uma fisionomia e linguagem corporal hilariantes. Este seria seu último trabalho no cinema. Faleceu em 1971, aos 41 anos de idade. Contraditório falar de uma comédia e enxergar nela um obituário acoplado. Mas o filme guarda em si estas lembranças, além de ser fruto do trabalho, sempre primoroso, de Person, falecido tragicamente. Herdeiro de uma fábrica criada pelo avô, dedicou-se ao emprego por um tempo, abandonou tudo e foi estudar na Itália. Deu aulas na célebre Escola Superior de Cinema São Luiz, frequentada por jovens como Carlos Reichenbach – de quem produziu o primeiro curta, Esta rua tão Augusta” (1966), um exercício para sala de aula. Dirigiu, dentre outros filmes, São Paulo S/A (1964) – obra-prima, conjugando a crítica à industrialização, antevista seminalmente por René Clair em A Nós A Liberdade, ao existen cialismo sartriano –, e O Caso dos Irmãos Naves (1967), cujo roteiro lembra os piores delírios trash, mas baseia-se em eventos reais, ocorridos durante o fascismo psicopático do Estado Novo. Não vejo em Cassy Jones o que parte da crítica acostumou-se a denominar “pornô-chique”. Novamente encontro dubiedade nestas classificações. Cassy Jones é, sim, um happening, calcado no melhor do bom humor e no porto seguro que representava a batuta de L. S. Person por detrás das câmeras. Instados pela pergunta, assim responderiam os gaiatos, amigos de Bidet, do canto qualquer de um bar hoje fechado e esquecido no tempo: “Cassy Jones? Cassy Jones é um desbunde, puro desbunde”.
Panca de valente: a crise que a rainha não viu Jairo Ferreira 15 de novembro de 1968 O cinema brasileiro precisa de metalinguagem, isto é, filmes salutares que consigam criticar a própria situação crítica, a total redundância, o caos desin formativo criado pelo cinema estrangeiro no País. Como se já não bastasse o western ianque a fundir a cuca das massas, tinha que vir o bangue-bangue al sugo made in Italy, bom como a vulgar espionagem nascida do esvaziamento do thriller. Facílimo ver a razão do êxito de tais besteiras; o público sempre se babou com a irrelevante taxa de informação (dez por cento) dos filmes hollywoodianos. Caminha-se agora para a total entropia: o público já se con tenta com cinco por cento de informação. Quando chegarmos ao zero por cento a coisa explode. Panca de Valente, bangue-bangue nacional, 100% chacriniano, cartaz do Cine Olido, direção de Luiz Sérgio Person! Estamos na pista de Django, Gringo, Cjamango, et cetera, todos esses invasores de papelão que “apenas” sufocam nosso mercado cinematográfico, para-não-dizer-que-não-falei-das-minhocas (não das flores “conteudistas” de Vandré) que fazem nascer na mentalidade das massas. A vaca fria: LSP dispensa apresentação, responsável que foi por duas fitas excepcionais – São Paulo S/A e O Caso dos Irmãos Naves, mas seu Panca é 59 produto de circunstância (atenção: o país está em crise econômica, querem expulsar os marcianos, isto é, os partidários de Márcio Alves...), coisa que Person deixou claro numa entrevista recente. Só que é perigoso endossar uma frase ambígua como essa de que “o cinema morreu; viva o cinema”. Que é isso?! Gênios como Dali têm o direito de ser palhaços, Welles pode aparecer em fitas de Maciste, Buñuel pode ser gagá, Godard pode destruir o cinema. Pombas, Person também pode abraçar o diretor de Coração de Luto: há dúvidas se ele precisava se meter nessa de Jerônimo, anti-herói míope, feio, burro, etc. A fita é uma contrafação, mas podia ser boa, como interessante foi a esculhambação de Candeias em O Acordo. Houve descambada. Pode-se descer ao nível de “Tereziiiiiiiinha”, mas como etapa comunicatória, para daí elevar o repertório popular. Há o perigo de se afundar nessa descida. Já se viu o que aconteceu com Panca, que teve que ser muito valente para
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enfrentar certa platéia já escaldada de certo tipo de chanchada. No interior talvez vá bem. Depositamos em Person um voto de confiança, que ele volte logo a fim de superar tal fase cafônica, coisas de engrenagem, não é Person? Por isso é preciso ver Panca de Valente, que é a nossa (do povo) miopia e fraqueza para enfrentar os cowboys que bebem vinho ao invés de uísque. E não será comendo bolo e bebendo gasolina Esso que expulsaremos o tigre de papel, quá-quá-quá... A classe-média, os bancários, os funcionários públicos, balconistas, funileiros, sapateiros, todos esses e outros milhões de assalariados sabem que não é moleza trabalhar, quando se detesta o tipo de trabalho e quando é preciso continuar para não morrer de fome. E é por isso que todos eles podem compreender a situação de Person, cineasta, mas também um assalariado, que tem a nossa sociedade semi-industrial consumista agrícola como patrão e que não nos permite fazer o que gostamos, como Person confessa ter entrado na Panca por não poder realizar as fitas que gostaria. Welles em Depois que Tudo Terminou: “Não há emprego honesto”. A engrenagem nos condiciona. O trabalho, ainda desapaixonado, é nosso: joguemos a empáfia no lixo para reconhecer que Panca de Valente merece ser prestigiado, por ser brasileiro, por ser honesto, que Jerônimo de índio de guerra é sinônimo, não é mestre Dupret? E abaixo a ditadura do faroeste italiano! Jairo Ferreira e convidados especiais : críticas de invenção: os anos do São Paulo Shimbun / organização Alessandro Gamo. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2006.
Reichenbachianas brasileiras: A cinepoesia corsária de Carlos Reichenbach Jair Tadeu da Fonseca porque estou arrependido vomitarei nas portas das igrejas nos umbrais dos cemitérios defecarei que tudo é pó diz o Testamento e se quiserem saber por que estou arrependido não me perguntem. Orlando Parolini
Ao singrar os mares cinematográficos, Carlos Reichenbach pirateia, de modo muito próprio, tudo o que interessa à realização de seus filmes e diz respeito ao cinema: os gêneros populares e ainda o que escapa à categorização, desafiando os estilemas do que se agruparia sob uma rubrica genérica. Só Carlão foi capaz de realizar o cruzamento de Godard com a pornochanchada. Antropofagica mente, o próprio é o apropriado, o que é cinepoeticamente assimilado de modo a se transformar em outra coisa. No seu caso, a memória do cinéfilo e crítico é também a do leitor de poesia e ficção literária, a transfigurar elementos de sua vivência pessoal e geracional em termos das pulsões eróticas, por exemplo, que dão a ver as relações sociais de outros modos, possibilitando reconsiderar o estético em termos de sua acepção mais básica, ampla e interessante: a relativa aos sentidos físicos, em seu papel fundamental na produção de sentidos, significados. Nesse sentido (que significa também direção), o percurso do corsário Reichenbach passa pelos Cahiers du Cinéma e pela Boca do Lixo, levando em conta tanto o valor da experimentação estética e da formulação intelectual refinadas quanto a transvaloração do que seria desprezível, por sua grosseria e eficácia formulaica. Carlão mostra que a produção da Boca não é só de lixo, e que mesmo este pode e deve ser reciclado. Essa boca é capaz de mastigar antropofagicamente partes importantes do corpo do Brasil, mas serve também ao gozo erótico. A iniciação cinematográfica (e erótica) de grande parte do público brasileiro, do final da década de 1960 aos anos 80, se deu através de um gênero popular, que pode ter comido um pouco a comédia erótica italiana, mas transou mesmo foi a sacanagem popular brasileira, seja por sua brejeirice, seja por sua hipocrisia, em torno principalmente dos mitos da malandragem e da sensualidade do patropi,
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que já caracterizavam a chanchada, gênero popular ao qual se acrescentou o pornô. Sendo que este último termo vem do grego, significando prostituta, o cinema no Brasil assume com a pornochanchada a precariedade e venalidade com que se estabelece o gênero, marcado pela prostituição, tanto no sentido literal quanto metafórico do termo – o que vem a dar na mesma –, a qual só pode ser superada pelo amor. Não por acaso, Reichenbach, formado em parte na Boca do Lixo, como tantos cineastas brasileiros, chamou um de seus filmes de Amor, palavra prostituta. A partir daí, podemos falar de “cinema, palavra prostituta”, pensando tanto na necessidade de que haja dinheiro para sua realização, e em sua vendagem, em geral, quanto no fato de significativamente a Boca do Lixo ter sido também zona de prostituição, além de polo importante de realização cinematográfica. De todo modo, é importante para Reichenbach a ideia de que a prostituta é digna de amor, seja ela personificação alegórica do cinema, uma pessoa, ou personagem de cinema. Em Godard, referência importante para nosso cineasta, essa equação entre cinema, amor e prostituição é também das mais importantes. Quanto ao tipo de filme que caracterizou a Boca, escreve Jairo Ferreira em “Carlos Reichenbach – sinergia da cineutopia”: “O filme de sexo é uma questão de abertura de diafragma”.1 Com isso o parceiro de Carlão, na crítica e na realização cinematográficas, ao brincar eroticamente com as palavras, chama a atenção para o fato de a linguagem do cinema de seu colega se voltar para si mesma, e se autoquestionar, para questionar algo a que ela também se refere, para fora de si mesma. Sendo o cinema moderno algo que se produz principalmente por cineastas cinéfilos, é compreensível que se dobre ainda mais sobre si mesmo, ao consi derar o arquivo que se forma com a(s) história(s) do cinema, e lide com seus códigos e materiais expressivos, para alcançar o extracinematográfico, de outro modo e outra forma, sem a falsa ingenuidade calcada no ilusionismo naturalista da referencialidade fácil. Isso é bastante evidente em grande parte da obra de Reichenbach. Como escreve Zulmira Ribeiro Tavares, Lilian M: Relatório Confidencial (1975) é (...) em sentido amplo, uma paródia ou utilização crítica e burlesca de várias modalidades formativas: a do filme de aventuras, da reportagem policial, do comercial de publicidade para tevê. O filme absorve essa variedade na utilização do espaço visual contemporâneo dentro da ficção cinematográfica.2
José Mário Ortiz observa a respeito de Lilian M, que a protagonista 1 2
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FERREIRA. Cinema de invenção, p. 65. TAVARES. Apud MIRANDA. Dicionário de cineastas brasileiros, p. 273.
(...) transita do campo para a cidade e muda constantemente de parceiros e ambientes. O filme a acompanha, dando oportunidade para Reichenbach exercitar todo o seu vasto conhecimento cinematográfico, pois muda de gênero, e influência de cineastas, conforme a ambientação em que a personagem central encontra-se. Viajamos assim pela ambientação do cinema japonês, pelo cinema policial e pelas influências decisivas de Samuel Fuller e Jean-Luc Godard. O filme, inclusive, é atravessado por uma certa ironia, na forma como o cinema brasileiro tratou, exaustivamente, o meio rural. 3
Já no seu primeiro filme, o documentário de curta-metragem Esta rua tão Augusta (1966-69), Reichenbach ataca corsariamente o filme institucional, através da paródia, ao relacionar imagens da rua famosa a uma voz locutora que à primeira audição soa como tradicional, mas se revela também literalmente como “canto paralelo” ao das imagens e outros sons desse curta, de apenas sete minutos. O qual já apresenta, assim, algumas das características da cinematografia que Carlão iria constituir, entre elas a ironia (a começar pela ambiguidade do título do filme), o erotismo (“cuidado com as curvas”, “esta rua tão mulher”), a presença de personagens fora dos padrões (o pobre pintor de minissaia – Waldomiro de Deus – que expõe seus quadros pop-primitivos na rua), elementos da cultura pop (os ritmos musicais, o comportamento juvenil, as danças da moda) e o papel importante da poesia, embora num cenário adverso (“a revolta do poeta”, encarnado por Lindolf Bell em sua “catequese poética”). Difícil não relacionar o papel do poeta ao do cineasta, em seu percurso corsário na cidade grande, retomado em outro curta excelente, Sangue Corsário, de 1979, em que Orlando Parolini fala seus poemas videntes pelas ruas de São Paulo, em contraponto aos comentários do personagem ficcional de um bancário. Parolini (1936-1991) foi um importante poeta do que seria a contracultura de São Paulo, em seus primórdios, junto com Jorge Mautner, Roberto Piva e Cláudio Willer, e atuou em diversos filmes importantes de Reichenbach, como Amor, palavra prostituta (1980), O império do desejo (1981), Filme demência (1985) e Alma corsária (1993). Admirado pelo cineasta, Parolini, que nunca publicou seus ótimos poemas em livro, também foi cinéfilo e crítico de cinema. Por outro lado, Reichenbach sempre admitiu a importância da poesia em seus filmes, seja através das muitas citações feitas neles, seja por tematizar o poético, através de muitos personagens de poetas, e mesmo através do lançamento ficcional de um livro de poemas, que é o mote de Alma corsária 3
ORTIZ. In: RAMOS, MIRANDA. Enciclopédia do Cinema Brasileiro, p. 451.
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(1994), com sua glosa de Augusto dos Anjos e Cesário Verde, reencarnados espiritualmente por dois amigos poetas, os quais lançam Sentimento Ocidental na Pastelaria Espiritual, que ficaria na Boca do Lixo. Entretanto, o mais im portante nisso tudo é o tipo de cinepoesia propriamente audiovisual que temos, por exemplo, na extraordinária sequência dos “dedos de Deus”, na qual se traduz essa expressão apenas com imagens e sons, nesse belo filme sobre a memória pessoal, geracional e histórica, a fantasia e a reminiscência poética. Segundo Reichenbach, a poética de Pratolini remete “à idéia de evangelização”,4 mesmo quando ela soa como blasfêmia, ou exatamente por isso. Para a com preensão dessa estranha mística poética em jovens artistas irreverentes, como Reichenbach, marcados pela contracultura, nos anos 60 e 70, chamo a atenção para a importância do poeta modernista Jorge de Lima (1893-1953) em suas obras. Católico e surrealista, neobarroco e classicista, poeta do tumulto lírico, Jorge de Lima é a eminência parda dessa geração de artistas, em que é muito evidente a influência de Oswald de Andrade e sua antropofagia poética. No entanto, a crítica não soube reconhecer o papel fundamental de Jorge de Lima na prosa poética caudalosa e escandalosa do pioneiro Jorge Mautner, bem como nas obras de poetas tão diferentes como Pratolini e Torquato Neto, e de cineastas tão diversos como Glauber Rocha, Paulo César Saraceni, Fernando Coni Campos e Carlos Reichenbach. No caso deste último, em O Império do desejo, Pratolini encarna Di Branco, um poeta exibicionista de palavras, objetos e de seu sexo, que numa praia disputada pela especulação imobiliária prega um evangelho antropofágico. Ao comer – literalmente – uma bela jovem maoista, que antes também havia oralizado seu evangelho vermelho, o poeta-profeta tem como legenda um verso de Jorge de Lima, que vemos inscrito na parede de seu barraco a ser incendiado: “Vim e irei como uma profecia”. 5 Em O desafio, filme de 1965, dirigido por Saraceni, versos de um livro queimado de Jorge de Lima também estão no cenário de uma casa incendiada, e é encontrado por uma intelectual em crise, após o golpe de 1964 – o que nos permite considerar, em filmes diferentes, essas alusões ao apocalipse, no qual se projetam os pequenos desastres singulares e as grandes catástrofes da história. “Aqui é o fim do mundo” constitui o refrão de “Marginália II” (um dos hinos da Tropicália, parceria de Torquato Neto e Gilberto Gil) – citação 4 REICHENBACH apud CALIXTO. Orlando Parolini: o evangelho segundo o inconformismo e o desespero. In: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2010/10/serie-sonda-nas-jazidas-orlando.html 5 O verso correto do "Poema do cristão", de Jorge de Lima, é "venho e irei como uma profecia". LIMA. A túnica inconsútil. In: LIMA. Poesias completas – Volume II, p. 51.
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apocalíptica do “Canto da desaparição”, presente em Invenção de Orfeu, obra extraordinária de Jorge de Lima. Do mesmo livro é a epígrafe de Viagem ao fim do mundo (1967), de Coni Campos (“Pra unidade deste poema,/ele vai durante a febre”), nesse primeiro filme tropicalista que evidencia a formação religiosa do cineasta. Campos também cita Jorge de Lima, em sua fase dos poemas negros, no filme Um homem e sua jaula (1969), com “Essa Negra Fulô”, ao lidar com a relação erótica entre um artista branco, em crise, e sua empregada negra. Por sua vez, Glauber inspira-se na “Fundação da Ilha”, de Invenção de Orfeu, ao se referir à Terra Prometida pelo profeta messiânico de Deus e o Diabo na Terra do Sol (“a Ilha”), e cita Mário Faustino, o grande discípulo de Jorge de Lima, em Terra em transe (1967), sendo alguns de seus versos a legenda alegórica do filme e o epitáfio do poeta, que é o protagonista, em seu transe e canto de morte, ou transe de desencanto místico, o qual coincide com o transe de sua terra, após o golpe sofrido por ela. “Amo Jorge de Lima, Murilo Mendes e Mário Faustino”, disse Reichenbach em entrevista, cujo trecho reproduzo abaixo: Mas não acredito nesse negócio de angústia da influência. O prazer é tratar de todas as delícias da influência. Viram parte integrante da obra, disparam o gatilho do processo criativo. Uma coisa fascinante no ato de escrever, e isso eu posso falar porque escrevo meus roteiros, é você deixar se influenciar pelo que está ao seu redor. O que torna fascinante você pensar em um novo filme é deixar ser tomado pelo que você está lendo e ouvindo. Ser comido pelo que está consumindo, culturalmente falando, a delícia de reaver os seus gostos. Amo Jorge de Lima, Murilo Mendes e Mário Faustino, que dizia “quando baixa o branco absoluto, abra o livro de seu poeta preferido”. Não como cópia, mas como gatilho, apenas para disparar o imaginário. 6
É muito significativo que para esse disparo do imaginário fílmico seja impor tante a poesia, sendo alguns poemas do grande parceiro modernista de Jorge de Lima, Murilo Mendes – outro católico do caos –, tema de Murilolendo, ví deo de pouco mais de três minutos feito por Carlão para a TV Cultura, em 1997. Também necessário a esse disparo do imaginário, o acesso ao arquivo cinematográfico, sempre atualizado por Reichenbach, vem junto à ativação da memória e da reminiscência, sendo a imaginação e a fantasia algo que resulta dessa mistura de vivências. Em relação às muitas citações fílmicas na obra reichenbachiana, além das referidas, todas de caráter (auto)reflexivo e
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http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevistacarlos-reichenbach/
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crítico-amoroso, que servem sempre à constituição de outra coisa, chama a atenção as de Rogério Sganzerla. Por exemplo, A ilha dos prazeres proibidos, já pelo título, dialoga com A mulher de todos (1969), que também é referência para O império do desejo, o qual cita por sua vez Bang bang (1971), de Andrea Tonacci, com um dos bandidos apresentando a voz da dublagem de Fred Flintstone – o que acentua o farsesco anti-ilusionismo de ambos os filmes, pelo pastiche do desenho animado e da comédia maluca. Sem falar nos estilemas de Godard, Samuel Fuller e Orson Welles, nos clichês da ficção policial barata, no pop-rock da trilha sonora, além de clássicos da música americana em discos antigos. Trechos do Relatório Hite na boca de uma atriz de pornochanchada, que encara a câmera e esculhamba o contrafeito garanhão de O império do desejo, devem ter surpreendido o espectador aficcionado do gênero, ao receber outro tipo de lição sexual, de um ponto de vista feminino. Aliás, os filmes de Carlão, sempre foram de grande consideração pelo gênero feminino, mesmo quando lidaram com um gênero cinematográfico marcado pelo machismo, e que se lembre sempre desse grande cineasta, por seu empenho em construir uma extraordinária cinedramaturgia sobre a vida e o imaginário das mulheres trabalhadoras do Brasil, principalmente com Anjos do arrabalde: As professoras (1986), Garotas do ABC (2004) e Falsa loura (2007). A relação desses filmes já não se dá evidentemente com a pornochanchada – os gêneros artísticos também morrem –, mas com o melodrama, de uma maneira ainda muito original, e ainda amorosa em relação ao gênero feminino.
Referências bibliográficas CALIXTO, Fabiano. “Orlando Parolini: o evangelho segundo o inconformismo e o desespero”. In: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2010/10/seriesonda-nas-jazidas-orlando.html FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000. LIMA, Jorge de. A túnica inconsútil. In: LIMA, Jorge de. Poesias completas – Volume II. Rio de Janeiro: Aguilar/INL-MEC, 1974. MIRANDA, Luiz Felipe. Dicionário de cineastas brasileiros. São Paulo: Art, 1990. MIRANDA, Luiz Felipe, RAMOS, Fernão. Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Senac, 2004. REICHENBACH, Carlos. Entrevista à Revista Cult. “Carlos Reichenbach – Lição das coisas”. In: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevistacarlos-reichenbach/
Para concluir, as referências ao Sganzerla cineasta, nos filmes de Carlão, também nos levam a considerar as três seguintes categorias, criadas pelo jovem crítico Sganzerla, já em 1965: “cineastas da alma”, “cineastas do corpo”, e – para desconstruir a dicotomia que ele mesmo propôs – “corpo mais alma”.7 Esses conceitos influenciaram bastante os jovens cinéfilos Reichenbach e Jairo Ferreira, sendo que este empregou tais categorias na classificação dos filmes do amigo.8 As categorias classificatórias propostas por Sganzerla ajudam a entender os inclassificáveis filmes de nosso cineasta, seu lugar especial na cinematografia brasileira e mundial, não por eles se encaixarem nelas, mas pelo tipo de instabilidade que eles provocam, por serem cinema de corpo mais alma corsários. A alma é corsária do corpo; o sangue, corsário da alma. O mais é cinema.
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SGANZERLA. Textos críticos 1, p. 73-88. FERREIRA. Cinema de invenção, p. 73.
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Boca do Lixo, Sociedade Anônima: notas sobre O Bandido da luz vermelha
novo mas re-embaralhava seus termos e alargava seus horizontes numa di reção insuspeitada.
Mateus Araújo1
Nas suas declarações da época sobre o filme, o próprio Sganzerla salientou a mistura deliberada de gêneros, o empréstimo a muitas fontes, o diálogo com um leque amplo de manifestações culturais, de Oswald de Andrade à chanchada, das peças de José Celso às canções de Caetano Veloso, de Primo Carbonari ao rádio, de Mack Sennett a Orson Welles. Ele reconheceu de ante mão o diálogo com Glauber, Saraceni e Mojica. As primeiras críticas entusiastas ao filme em 1968, do já maduro José Lino Grunewald e dos então jovens Carlos Reichenbach, Jairo Ferreira e Ismail Xavier2, entre outros, também insistiram nestes diálogos. Estudos posteriores mais detalhados, do próprio Ismail Xavier (o melhor dentre eles), de Jean-Claude Bernardet e de outros3, também os incluíram em seu exame, que se concentrou mais especificamente na relação do Bandido com Terra em transe num capítulo de uma proveitosa dissertação de mestrado de Alexandre Agabiti Fernandez4.
Lançado em 1968, O Bandido da luz vermelha foi muito bem recebido pelo público, e saudado com entusiasmo por boa parte da melhor crítica brasileira. Embora não tenha deslanchado à época uma carreira internacional digna do seu alto valor estético, o filme atravessou as décadas gozando de merecido prestígio junto à crítica brasileira, que ainda o considera como uma das obrasprimas do nosso cinema moderno. Revisto hoje, quase trinta e cinco anos depois do seu lançamento, O Bandido conserva toda a sua audácia, e continua a nos impressionar. Sem estatísticas de bilheteria à mão, e salvo algum lapso, eu me arriscaria a ver nele o momento mais feliz do diálogo travado pelo cinema de invenção brasileiro com a sensibilidade popular, objeto da mostra “Cânone e contracânone” do forumdoc.bh 2012 curada por Ewerton Belico. Outros filmes terão alcançado públicos maiores, outros talvez tenham se aproximado mais do gosto popular, mas nenhum outro filme brasileiro com o seu nível de exigência estética me parece ter chegado a uma transfiguração tão exuberante da sensibilidade popular quanto aquela operada pelo Bandido. Ao invés de tolher suas possibilidades expressivas e seu vigor político, o mergulho em tal universo franqueou a Rogério Sganzerla, sua equipe e seus atores, a liberação de uma esfuziante energia criativa, fundada num uso muito arguto do estereótipo, do clichê e da caricatura. Tão precoce quanto o Glauber Rocha de Barravento, Sganzerla tinha 22 anos incompletos ao estrear em longa metragem com o Bandido, um filme tão ambi cioso em 1968 quanto Deus e o Diabo na terra do céu em 1963-4. Assim como Deus e o Diabo e Terra em Transe, O Bandido agenciava com mão de mestre elementos muito heterogêneos, para produzir uma síntese poderosa de toda uma vertente da melhor arte brasileira de então - misturada a manifestações culturais abastardadas, como a imprensa sensacionalista, as emissões radio fônicas popularescas etc. O resultado sui generis foi uma espécie de chanchada política, de caráter pop e tropicalista, que dialogava com o legado do cinema
1 Doutor em filosofia pela Université de Paris I (Sorbonne-Panthéon) e pela UFMG, bolsista da FAPESP de pós-doutorado na USP.
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Olhando retrospectivamente para os filmes que o cinema brasileiro produziu naquela década, Terra em Transe também me parece, dentre todos, o que mais antecipa a exuberância e o tumulto criativos do primeiro longa de Sganzerla, além de ser nele objeto de um diálogo constante. Sem repetir, porém, as análises e as comparações de Ismail, Jean-Claude e Alexandre, assinalo aqui, ao modo de um adendo, um outro diálogo igualmente forte do Bandido, não mencionado nas declarações de Sganzerla e não explorado, que eu saiba, por ninguém: o diálogo com São Paulo Sociedade Anônima (Luís Sérgio Person, 1965), que ele admirava e chegou a elogiar enfaticamente em dois artigos de 1965 aos quais voltarei. * Esquematizando um pouco, podemos dizer que o Bandido conjuga uma narrati va grotesca da carreira de um criminoso desglamurizado com uma exploração 2 As de Grunewald (Correio da Manhã, 13/5/1968) e Reichenbach (não publicada na época) são transcritas por Jairo Ferreira em seu capítulo “Rogério Sganzerla, ponto de partida avançado” (em Cinema de Invenção, São Paulo: Max Limonad, 1986, p.59-78). A do próprio Jairo, também transcrita ali, saiu sob o título “Rogério, O bandido” no São Paulo Shimbun de 12/12/1968, e foi recolhida no seu volume póstumo Crítica de Invenção (São Paulo, Imprensa Oficial, 2006), p.64-66. A de Ismail, “Lixo sem limites”, saiu no Diário de São Paulo de 10/12/1968. 3 Ver sobretudo os capítulos de Ismail, “O Bandido da luz vermelha: alegoria e ironia” (em Alegorias do subdesenvolvimento, São Paulo: Brasiliense, 1993, p.71-108; reedição CosacNaify, 2012), e de Jean-Claude, “O mundo sem limite” (em O Vôo dos anjos, São Paulo: Brasiliense, 1992, p.155-218). 4 Os delírios do obscurantismo: Diálogos com Terra em Transe. São Paulo: ECA-USP, 1991, cap. 2, “Quando tudo está a um passo do Mandrake”, p.56-110.
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audaz do espaço urbano de São Paulo. Neste, ganha destaque a região da Boca do Lixo (com sua galeria de personagens, seus padrões de sociabilidade e sua iconografia típicos), embora as cenas rodadas ali se alternem bastante, no fluxo da narrativa, com cenas filmadas noutros pontos da cidade, e mesmo fora dela, para que se componha a aventura do bandido em ação. A conjugação destas duas séries, cerzidas pela montagem virtuosística de Sylvio Renoldi e cimentadas por uma mixagem sonora muito rica, produz uma vigorosa alegoria do subdesenvolvimento. No fluxo, vamos detectando in nuce uma série de obsessões que o cinema de Sganzerla não cessaria de reelaborar: as referências a Orson Welles, Glauber Rocha, Jimi Hendrix e Noel Rosa, o diálogo com Godard e o cinema de gênero, a predileção por personagens caricatos (a bicha desvairada, as dançarinas de strip-tease, os políticos demagógicos, os delegados boçais etc). Pensando em voz alta, em crise de identidade e sentindo-se fracassado, o bandido de Sganzerla parece ecoar, em chave derrisória, os intelectuais de esquerda Marcelo e Paulo Martins, que protagonizavam, respectivamente, O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965) e Terra em Transe, em plena crise de identidade provocada pela ressaca pós-golpe mostrada nos filmes. Mas ecoa também o engenheiro Carlos de São Paulo Sociedade Anônima, que também era mostrado numa crise de frustração existencial. Se Carlos, porém, se movia no horizonte do decoro pequeno-burguês, tentando acertar no amor e na profissão em meio ao ambiente desfavorável da metrópole alienante, o bandido emerge do coração da pobreza e aposta no crime, “deixando o vagão correr solto”, como dizia Paulo Martins num outro contexto. Ao invés de se debater com o subdesenvolvimento, o bandido o encarna. A radicalização pelo Bandido dos resultados de São Paulo S.A. fica ainda mais nítida no que concerne ao tratamento do espaço urbano da capital paulista. Crítico atuante desde 1964, quando estreou aos 17 anos sua colaboração no Suplemento Literário do Estado de São Paulo, Sganzerla estava muito atento ao modo como a metrópole vinha sendo filmada pelos cineastas paulistas, que ele critica duramente nos artigos “Filmar São Paulo” I e II (SL do ESP, 16 e 23/10/1965)5. No entanto, ao desancar os cineastas paulistas, Sganzerla saúda com entusiasmo São Paulo S. A., um “filme-exceção” que, “além de reunir a cosmologia local, vem redimir esta capital e sua cinematografia” (TC 1, p.101). Segundo Sganzerla, o filme de Person estaria rompendo com o provincianismo Reunidos agora em Rogério Sganzerla, Textos Críticos, Vol. 1 [doravante TC 1], Florianópolis, Ed. da UFSC, 2010, p.101-5 e 106-111. 5
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e a mediocridade disfarçados pelo complexo de seriedade e honestidade que marcavam o cinema paulista. Seus elogios ao filme de Person (em meio à crítica aos paulistas) soam hoje como um anúncio em filigrana do programa estético do Bandido, que ele finalizaria dois anos e meio mais tarde6. No primeiro artigo, depois de salientar “o ritmo trepidante dos rolos iniciais, o verismo de muitas situações, a desenvoltura da montagem”, Sganzerla se concentra na cenografia urbana do filme: “Décor escolhido: o maior possível – uma cidade de cinco milhões de habitantes. Personagem: um integrante da sociedade anônima, um homem medíocre. [...] O diretor preferiu – isto é, filmou – a multiplicidade do décor, decompondo a cidade em bares, escritórios, ruas, apartamentos reais, confiando o resto à montagem. [...] sua estrutura baseia-se nas rupturas de tempo, nos cortes elípticos, que acumulam um grande número de personagens, locais, ações. Glauko Mirko Laurelli realizou uma das mais brilhantes montagens do nosso cinema. [...] O que mais interessa formalmente nesta obra é o seu tom documental – absolutamente estranho nos filmes realizados em São Paulo. O documentário-ficção, solução para o cinema paulista?” (TC 1, p.104-5). No segundo artigo, Sganzerla retoma o elogio, notando que Person “filmou S. Paulo como nunca até então – e como não será tão brevemente repetido – filmando tudo. Conduziu a equipe por mais de 88 ambientes diversos, empregou os mais ousados e modernos recursos, teve que recorrer a estilos diferentes. [...] Hoje, vinte anos depois do neorrealismo e cinco depois da Nouvelle Vague, o cinema nas ruas, câmera na mão, ainda constitui novidade – pelo menos para a cinematografia local. Nossa maior fotogenia sempre esteve aí, diante de todos: no ritmo diário das avenidas, no tráfego congestionado, nas galerias e bares. Quando iniciou sua película, Person percebeu a situação. Por isto insistiu nas filmagens diretas, em exteriores reais. Soube levar a câmera às ruas, fazê-la andar com estilo” (TC I, p.106-7). Insatisfeito com sua vida, o protagonista de São Paulo S.A. pertenceria a uma imensa sociedade anônima, uma “pátria de frustrados inconscientes”, marcados por um desespero nascido da engrenagem social. Person o trataria à européia: “assim, a estrutura da fita corresponde aos conflitos da consciência hesitante do personagem, com seus avanços e rupturas resnaisianos, suas obsessões fellinianas, com seu cansaço antoniônico e, finalmente, com sua inquietação personiana” (p.108).
6 Exatamente como ocorrera nas críticas de Glauber de 1963 aos filmes de cangaço, que traziam em filigrana o programa de Deus e Diabo que ele rodaria naquele mesmo ano. Cf. Revisão crítica do cinema brasileiro (São Paulo, Reed. Cosac & Naify, 2003, p.91-96).
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Com este tratamento, Person teria desmistificado a cinematografia paulista, enfrentando seus cacoetes, cuja velha tradição porém não morreria da noite para o dia. “Por outro lado, mais cedo ou mais tarde a coisa explode (refirome ao ‘algo’ que há alguns meses começa a pairar na atmosfera paulistana, algo impreciso, ameaçador e, ao mesmo tempo, animador) e, com ela, talvez o inevitável: gente nova por aí, nas ruas, apartamentos e automóveis – exatamente como Person, com câmera na mão, a registrar o homem e a paisagem, a filmar São Paulo” (Ibid.). Ora, esta explosão anunciada ali veio exatamente com o Bandido, que radicaliza o aporte de Person no tratamento do personagem medíocre em crise e do espaço urbano de São Paulo, numa empostação menos europeizante e mais sensacionalista, mais ligada à energia da cultura de massas, do filme noir, do Godard de Acossado, de Mojica, das emissões radiofônicas etc. Em todo caso, na cadeia de transformações que leva do velho cinema paulista criticado por Sganzerla à novidade do seu Bandido, São Paulo S.A. nos aparece como um elo decisivo, que Sganzerla não chegou a mencionar em 1968, mas cuja presença em seu filme salta aos olhos. Como São Paulo S.A., o Bandido estabelece uma ampla exploração do espaço paulistano, alçando a metrópole à condição de co-protagonista do seu relato ao lado do protagonista masculino (secundado pelas mulheres com as quais ele se envolve). Otimizando as qualidades que elogiara em 1965 no filme de Person (ritmo trepidante, verismo das situações, excelência da montagem, tom documental, multiplicação dos décors reais), Sganzerla trata a cidade de modo bem próximo ao adotado pelo filme do colega: depois de um breve prólogo, O Bandido mostra São Paulo de cima, com sua silhueta de prédios altos desenhando uma selva de pedra, exatamente como em São Paulo S.A. [figuras 1 e 2].
Depois de ver a metrópole do alto, o filme de Sganzerla mergulha em seus bairros, esquinas, ruas, avenidas, casas, bares, calçadas, etc, multiplicando as locações de modo a explorar horizontalmente sua geografia urbana e retomando assim o gesto de Person que o jovem crítico elogiara no artigo de 1965. Entre muitos outros exemplos possíveis, lembremos os planos de prédios do centro vistos ao fundo de viadutos [figuras 3 e 4].
3. (São Paulo S.A.) Carlos anda num viaduto.
O motivo visual inicial do formigueiro de prédios parece ecoar em planos bem posteriores de um formigueiro de carros estacionados, nova versão de uma figuração da metrópole como acumulação e gigantismo. Em plongée acentuada, o plano de Sganzerla nesse caso parece retomar ainda mais diretamente, como uma homenagem consciente ou uma reminiscência, um plano de Person, não por acaso situado na única sequência de São Paulo S.A. em que Carlos resvala no crime, ao roubar um carro depois de abandonar mulher e filho num rompante de fuga da vida familiar e profissional que o sufocava [figuras 5 e 6]
5. (São Paulo SA) Estacionamento no qual Carlos acaba roubando um carro...
1. (São Paulo SA). Vista aérea inicial da Selva de pedra.
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2. (O Bandido). Vista aérea análoga de São Paulo.
4. (O Bandido) Um outro é enquadrado de viés.
6. (O Bandido) ... e seu eco n’O Bandido .
Como se não bastassem todas estas convergências na construção de uma iconografia da metrópole, o Bandido recorre ainda ao contraponto fornecido pelas sequências do protagonista com uma namorada nas praias do litoral paulista, as mesmas em que víamos Carlos escapar também com namoradas
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em São Paulo S.A. Novamente, a própria composição da paisagem parece a de uma cena de Person, como se o bandido e sua namorada viessem invadir, de carro, a mesma paisagem litorânea escolhida por Carlos e as suas, com a ilha no centro do quadro e os prédios da orla no horizonte, ao fundo à esquerda. [figuras 7 e 8].
7. (São Paulo SA)
8. (O Bandido)
Se estes exemplos, entre outros possíveis, nos bastam para evidenciar a clara retomada pelo Bandido de uma iconografia que já aparecia em São Paulo S.A., resta notar que o exame das convergências buscadas por Sganzerla permite perceber também, a contrario, a novidade do seu aporte. Na verdade, Sganzerla vai mais fundo ao mergulhar numa cidade que parecia escapar ao olhar e ao perímetro do protagonista do filme de Person. A São Paulo do Bandido é um pouco a que o filme de Person entrevia de relance mas não chegava a apreender. As cenas mais emblemáticas deste deslocamento são talvez as que mostram pobres em lixões de beira de estrada. Enquanto Carlos os via de fora e de relance ao passear de moto por uma periferia com Ana na garupa [figura 9], a câmera do Bandido mostra várias cenas de meninos num lixão, agora visto de dentro, e deixando entrever de relance os carros que passam ao fundo [figura 10].
Inversão simétrica do olhar, espécie de contracampo do olhar de Carlos para o lixo, de onde surge o bandido (resumindo sua vida em over, ele diz ter saído jovem da favela do Tatuapé, pouco depois das primeiras cenas com crianças num lixão) e de onde olha abmundo paulistano ao longo de todo o filme. Personagens e cenas mostrados por Person em ambientes decorosos de classe média ganham uma versão socialmente degradada no filme de Sganzerla, cujo pólo maior de atenção é a região da Boca do Lixo: ao delegado discreto que vem apurar o suicídio de uma ex-namorada de Carlos em São Paulo S.A., o Bandido responde com a figura de Cabeção, um delegado desonesto e truculento envolvido com criminosos; à cena de Carlos e Ana num salão dançante de caráter familiar, o Bandido responde com outras em boates de strip-tease mal frequentadas na Boca; se São Paulo S.A. traz cenas particulares com transmissão radiofônica da corrida de São Silvestre ou com trecho de faroeste visto na tv dos pais da noiva de Carlos, O Bandido inteiro se organiza como uma emissão radiofônica sensacionalista, e chega a se definir como “um faroeste do terceiro mundo”... Este submundo privilegiado por Sganzerla parece mais capaz ao mesmo tempo de lhe franquear uma alegoria do subdesenvolvimento. Deste, o filme de Person exprimia uma consciência amena, enquanto o de Sganzerla revela uma consciência catastrófica, para lembrarmos uma distinção formulada por Antonio Candido noutro contexto7. A rigor, a questão do subdesenvolvimento não chega a aparecer como tal no filme de Person (cuja história recua aos anos 1957-1961, em plena esperança desenvolvimentista), e os problemas da metrópole paulista pareciam nele mais ou menos os mesmos das metrópoles de países desenvolvidos: alienação, angústia, solidão etc. É no filme de Sganzerla que o subdesenvolvimento vem mais claramente à tona, chegando a ser mencionado na banda sonora (como tal ou intercambiada com a noção de terceiro mundo) e ganhando uma figuração visual e sonora bem carregada. Assim, do heroísmo impotente dos intelectuais de esquerda que protagonizam O Desafio (Marcelo, caracterizado por Sganzerla como “um bandido em potencial que não chega a se manifestar inteiramente”8) e Terra em Transe (Paulo Martins) à vilania vulgar do bandido boçal do filme de Sganzerla, a transição passa também pelo engenheiro medíocre que tenta ser feliz na metrópole
9.(São Paulo SA). Os pobres no lixão vistos por Carlos 10. (O Bandido). Agora, num perfeito os pobres do e sua namorada, que passavam de moto pela estrada. lixão é que observam os carros passando na estrada de onde Carlos outrora os observara.
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7 Cf. Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”, em A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p.140-162. 8 R. Sganzerla, “O marginal Paulo César”, em TC 1, p.114 (publicado originalmente no Suplemento Literário do Estado de São Paulo, 21/05/1966.
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pré-golpe de São Paulo S.A. Invertendo a aspiração heroicizante dos que se opunham ao golpe nos filmes de Saraceni e Glauber, o bandido de Sganzerla parece contrariar também a segunda parte da divisa de Hélio Oiticica “Seja marginal, seja herói” (1968), ficando apenas com a primeira. Respondendo a uma frase de Marcelo que dizia ter “a certeza de não poder fazer nada” para modificar a realidade, o bandido de Sganzerla proclama que “quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha, avacalha e se esculhamba”. Seu filme avacalha também o registro sério-dramático que vigorava nos de Saraceni e Person, para mergulhar fundo na dimensão do grotesco que aflorava no de Glauber. Ele reagia assim de modo original às três fontes cinematográficas brasileiras mais imediatas de sua aventura criativa. Nesta reação, se afirma ainda uma outra inversão que o cinema de Sganzerla não cessaria de desenvolver ao longo dos anos: a atribuição da potência do pensamento a personagens anti-intelectuais. Se o Marcelo do Desafio e o Paulo Martins de Terra em Transe eram escritores, trabalhavam na redação de jornais ou revistas, preparavam livros e recitavam literatura, o bandido de Sganzerla revela um repertório mais precário, maltrata ostensivamente ortografia e gramática, mistura gibis, volumes da Enciclopédia britânica e O Pequeno príncipe na matula roubada (quando não joga livros pela janela) e enuncia ao longo do filme um festival de disparates. Mas, apesar de tudo, é ele quem exprime com mais vigor a experiência do subdesenvolvimento, à qual o filme alude várias vezes. Nenhum traço de intelectualismo em seu comportamento, assim como nenhum no dos outros protagonistas dos filmes posteriores de Sganzerla (A mulher de todos, Copacabana mon amour, Sem essa Aranha, Abismu.) – até o ciclo wellesiano, em todo caso. Nestes filmes, são os personagens de extração popular, ou vindos do cinema popular (Jorge Loredo, Wilson Grey, Mojica), no mais das vezes caricatos e extravagantes em seu carisma, que pensam em voz alta sobre o Brasil e o mundo. São eles, e não os intelectuais imediatamente reconhecíveis, que recebem a incumbência de enunciar um pensamento sobre o Brasil, com resultados frequentemente extravagantes. Deste ponto de vista, além de inaugurar a série, O Bandido é talvez o filme mais feliz de Sganzerla no recurso a este gesto anti-intelectualista, pois as fórmulas e aforismos dos seus personagens (do protagonista, mas não só) são também um emblema do subdesenvolvimento, e não apenas uma tentativa de pensá-lo de dentro.
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Diferente de você/Como você: mulheres pós-coloniais e as questões interligadas da identidade e da diferença. Trinh T. Minh-ha Levantar a questão da identidade é reabrir a discussão da relação sobre o ser, o outro e suas representações das relações de poder. Identidade é entendida no contexto de uma certa ideologia de dominação e por muito tempo tem sido uma noção que se baseia no conceito de um núcleo autêntico essencial que permanece escondido para a consciência do ser e que requer a eliminação daquilo o que é considerado estranho ou não verdadeiro, quer dizer, o nãoEu, o outro. Para um tal conceito, o outro é quase inevitavelmente oposto ao “eu” ou submetido à sua dominação. Está sempre condenado a permanecer como sombra, enquanto intenta tornar-se seu equivalente. Identidade, assim compreendida, pressupõe que uma clara linha divisória pode se interpor entre o “Eu” e o “não-Eu”, ele e ela; entre profundidade e superfície ou identidade vertical e horizontal; entre nós aqui e os outros, lá. Quanto mais distante desta essência, menos a mulher tende a ser encarada como capaz de preencher seu papel como “Eu” verdadeiro, a real Negra, Indiana ou Asiática, a real mulher. A busca por uma identidade é, portanto, geralmente uma busca pelo ser perdido, puro, autêntico, verdadeiro, real, genuíno, original, por vezes situada num processo de eliminação de tudo o que é considerado outro, supérfluo, falso, corrompido ou ocidentalizado. Se identidade refere-se ao conceito de igualdade total do ser, o estilo de um “Eu” contínuo que permeia todas as mudanças a que se submete, então a diferença se mantém na fronteira que distingue uma identidade da outra. Isto quer dizer que, por essência, X deve ser X, Y deve ser Y, e X não pode ser Y. Aqueles que saem por aí gritando que X não são X e que X podem ser Y geralmente terminam em um hospital, num centro de reabilitação, num campo de concentração ou numa reserva. Todos os desvios do pensamento dominante - isto é, da crença em uma essência permanente da mulher e em sua identidade invariável, embora frágil, cuja perda é considerada um perigo especificamente humano - pode facilmente encaixar-se em categorias de insanidade mental ou subdesenvolvimento mental. Provavelmente é difícil para uma mente normal e investigadora reconhecer que buscar é perder, pois buscar pressupõe uma separação entre quem busca e o que é buscado, o “Eu” contínuo e as mudanças que vivencia. Poderia a identidade,
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de fato, ser vista de outra maneira que não como um subproduto do manuseio da vida pelos homens, mas um subproduto que, de fato, se refira não mais a um padrão consistente de igualdade e sim a um inconsequente processo de alteridade? Como se deve perder, manter ou ganhar uma identidade feminina quando é impossível para mim assumir uma posição fora desta identidade que eu presumidamente alcancei ou sinto? Diferença em tal contexto é o que enfraquece a ideia mesmo de identidade, distinguindo infinitamente as camadas da totalidade que formam o “Eu”. A hegemonia trabalha nivelando diferenças, padronizando contextos e expec tativas nos mínimos detalhes de nossas vidas cotidianas. Desmascarar este nivelamento de diferenças é, portanto, resistir àquela noção de diferença que, definida nos termos do Mestre, frequentemente recorre à simplicidade das essências. Divisão e conquista têm sido seu credo por séculos, sua fórmula de sucesso. Mas um terreno diferente da consciência tem sido explorado já há algum tempo, um terreno em que divisões claras e oposições dualísticas tais como ciência versus subjetividade, masculino versus feminino podem servir como pontos de partida para uma proposta analítica, mas não são mais satisfatórias, senão totalmente impalpáveis, para uma reflexão crítica. Frequentemente me perguntam sobre aquilo o que alguns espectadores iden tificam como falta de conflitos em meus filmes. Conflitos psicológicos são geralmente equacionados com substância e profundidade. Conflitos no con texto ocidental geralmente servem para definir identidades. Minha sugestão para esta “falta” é: deixe a diferença substituir o conflito. A diferença como é entendida em muitos contextos feministas e não-ocidentais, e a diferença como uma base para meu trabalho fílmico, não é oposta à igualdade, não é sinônima de separação. Diferença, em outras palavras, não incita necessariamente o separatismo. Existem diferenças assim como similaridades no próprio conceito de diferença. Alguém poderia ir além e dizer que diferença não é o que produz conflitos. É o que está além e lado-a-lado ao conflito. Isto é, onde a confusão frequentemente emerge e onde o desafio pode ser lançado. Muitos de nós ainda nos apegamos à diferença não como uma ferramenta da criatividade para questionar as múltiplas formas de repressão e dominação, mas como uma ferramenta de segregação, de exercício de poder à base de essências raciais e sexuais. A diferença do tipo apartheid.
ramente, gostaria de dar o exemplo do véu como realidade e metáfora. Se o ato de revelar possui um potencial libertador, assim também o possui o ato de encobrir. Tudo depende do contexto em que tal ato é conduzido, ou mais precisamente, em como e onde as mulheres veem a dominação. A diferença não deve ser definida nem pelo sexo dominante nem pela cultura dominante. De modo que, quando as mulheres decidem erguer o véu, pode-se afirmar que elas o fazem desafiando o direito opressivo dos homens sobre seus corpos. Mas quando decidem manter ou colocar o véu antes retirado, elas podem fazê-lo de modo a reapropriarem seu espaço e a reivindicarem uma nova diferença, desafiando uma padronização centralizada, hegemônica e sem gênero. Em segundo lugar, o uso do silêncio. Dentro do contexto da fala das mulheres, o silêncio tem muitas faces. Assim como o véu das mulheres acima mencionado, o silêncio somente pode ser subversivo quando se liberta do contexto mas culinamente definindo de ausência, escassez e medo enquanto territórios femininos. Por um lado, corremos o perigo de inscrevermos a feminilidade como ausência, falta e vazio ao rejeitar a importância do ato de enunciação. Por outro lado, reconhecemos a necessidade de colocarmos as mulheres ao lado da negatividade e de trabalharmos em tom suave, por exemplo, em nossas tentativas de enfraquecer os sistemas de valores patriarcais. O silêncio é tão comumente colocado em oposição ao discurso. O silêncio como uma vontade de não dizer ou uma vontade de desdizer, como uma linguagem própria, tem sido parcamente explorado. Em terceiro lugar, a questão da subjetividade. O domínio da subjetividade entendido como horizonte sentimental, pessoal e individual oposto a um horizonte ilimitado, societário, universal e objetivo é por vezes atribuído a ambos as mulheres, o outro dos homens, e aos nativos, o Outro do Ocidente. Às vezes parte-se do pressuposto, por exemplo, que o inimigo das mulheres é o intelecto, que suas apreensões da vida podem apenas girar em torno de uma panela, de uma fralda de bebê ou das questões do coração. De modo similar, por séculos e séculos fomos ensinados que a mentalidade primitiva pertence à ordem emocional e afetiva, e que é incapaz de elaborar conceitos. O homem primitivo sente e participa. Ele não pensa realmente, ou raciocina. Não possui conhecimento, “nenhuma ideia clara ou mesmo qualquer ideia sobre a matéria e a alma”, como Levi-Bruhl afirmou. Hoje, esta racionalidade persistente assumiu múltiplas faces, e seus resíduos ainda permanecem facilmente reconhecíveis a despeito da refinada retórica daqueles que a perpetuam.
Deixem-me pontuar alguns exemplos de práticas de tal noção de diferença. Existem várias, mas selecionarei três e talvez possamos discutí-las. Primei
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Vale mais uma vez mencionar aqui a questão entre estrangeiro e nativo nas práticas etnográficas. A visão do nativo. O mundo mágico que suporta dentro de si mesmo um selo de aprovação. O que pode ser mais autenticamente outro do que uma alteridade pelo outro, ela mesma? Ainda assim, toda fatia do bolo doada pelo Mestre vem acompanhada por uma lâmina de dois gumes. Os africanistas dizem prontamente “você pode tirar um negro de um arbusto, mas não pode tirar o arbusto do negro”. O lugar do nativo é sempre bem delimitado. A realização fílmica “correta”, por exemplo, implica geralmente que africanos mostrem a África, os asiáticos a Ásia, e os euro americanos, o mundo. Alteridade tem suas leis e interdições. Uma vez que você não pode tirar o arbusto do negro, é o arbusto que lhe é de fato devolvido, e como as coisas geralmente caminham, é também deste mesmo arbusto que o negro deve fazer seu território exclusivo. E ele deve fazê-lo com a total consciência de que uma terra infértil dificilmente é um presente. Pois, no tocante às desigualdades de poder, mudanças geralmente requerem que as regras sejam reapropriadas de modo que o Mestre seja derrotado em seu próprio jogo. O doador vaidoso gosta de doar quando há o entendimento de que ele está em posição de retomar quando bem quiser e quando quer que o presenteado ouse trespassar os limites por ele estabelecidos. Este último, no entanto, não vê nisso nenhum presente. Vocês imaginam algo como um presente que é tomado? Então este último somente vê débitos, que uma vez devolvidos, devem permanecer como propriedade sua - embora a propriedade da terra seja um conceito estranho a ele, o qual se recusa a assimilar. Através da resposta do público e expectativas sobre seus trabalhos, cineastas não-brancos são por vezes informados e relembrados em quais fronteiras territoriais devem permanecer. Uma nativa pode falar com autoridade so bre sua própria cultura, e é referida como a fonte da autoridade naquele assunto – não necessariamente como uma cineasta, mas como uma nativa, meramente. Este endosso automático e arbitrário de uma nativa como fonte de conhecimento legitimado sobre suas heranças culturais e seu meio-ambiente somente exerce seu poder quando se trata de uma questão de validação de poder. É um malabarismo paradoxal da mentalidade colonial. O que um estran geiro espera de um nativo é de fato a projeção de um sujeito onisciente que este habitualmente reputa ser ele mesmo e os seus pares. Nesta relação eu/ outro não reconhecida, contudo, o “outro” tende sempre a permanecer como a sombra do “eu”. Porquanto, não realmente, nem exatamente onisciente. Que um branco faça um filme sobre os Goba de Zambezi, por exemplo, ou sobre os Tasaday das florestas tropicais das Filipinas, dificilmente parece surpreender a qualquer um, mas que um membro do terceiro mundo filme
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outros povos do terceiro mundo, nunca deixa de parecer questionável para muitos. A questão relativa à escolha da temática se levanta imediatamente, às vezes por curiosidade, e outras, por hostilidade. O casamento não é mais possível para o par exterior/interior, ou seja, objetivo versus subjetivo, e sim algo entre o interior/interior – objetivo no que já se presume enquanto objetivo. Portanto, sem conflito real. A interdependência não pode ser reduzida a uma mera questão de escravização mútua. Ela também consiste em se criar um terreno que não pertence a ninguém, nem mesmo ao criador. A alteridade se transforma em empoderamento, diferença crítica, quando não se é dada, mas recriada. Além disso, onde deveria cessar a linha divisória entre estrangeiro e nativo? Como deveria ser definida? Pela cor da pele, pela língua, pela geografia, pela nação ou pelas afinidades políticas? E aqueles com identidades hifenizadas e realidades híbridas? É pertinente notar, por exemplo, uma matéria jornalística publicada na revista Time intitulada “O Jogo Louco das Cadeiras Musicais”. Neste curto relato a atenção é voltada para o fato de que na África do Sul as pessoas são classificadas por raça e lugar dentro de nove categorias raciais que determinam onde elas podem viver e trabalhar, embora possam ter sua classificação alterada se provarem que foram colocadas no grupo errado. Logo, em um anúncio de reclassificação racial pelos Ministros de Assuntos Internos, sabe-se que nove brancos tornaram-se mestiços, 506 mestiços tornaram-se brancos, dois brancos tornaram-se Malaios, 14 Malaios tornaram-se brancos, 40 mestiços tornaram-se negros, 666 Negros tornaram-se mestiços, e a lista continua. Contudo, diz o ministro, nenhum negro se inscreveu para tornar-se branco. E nenhum branco tornou-se negro. No momento em que a nativa dá um passo além do “interior”, ela não é mais uma mera nativa. Ela necessariamente olha para dentro, a partir de fora. Nem exatamente a mesma, nem precisamente outra, ela se mantém no patamar indeterminado no qual constantemente se move, para dentro e para fora. Subvertendo a oposição interior/exterior, sua intervenção é necessariamente aquela de ambas quase-nativa e quase-estrangeira. Ela é, em outras palavras, esta “outra” ou “mesma” inapropriadas que se move sempre entre dois gestos, ao menos: o da afirmação “Eu sou como você” enquanto persiste na diferença dela mesma e na lembrança de que “Eu sou diferente” enquanto desconstrói todas as definições de alteridade alcançadas. Isto não quer dizer que o histórico “Eu” possa ser obscurecido e ignorado e que a diferenciação não possa ser produzida, mas que este “Eu” não é unitário, que
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a cultura nunca foi monolítica e está sempre mais ou menos relacionada ao julgamento do sujeito. Diferenças não somente existem entre uma estrangeira e uma nativa – duas entidades. Elas também operam no interior da própria estrangeira ou da nativa ela mesma - uma entidade singular. Ela sabe que não pode falar delas sem falar de si mesma, da História sem falar de sua história, também sabe que não pode fazer um gesto sem ativar o movimento incessante da vida A subjetividade no trabalho neste contexto de um outro inapropriado difi cilmente pode ser submetida ao velho paradigma subjetividade/objetividade. Uma acurada consciência do sujeito político não pode ser reduzida a uma questão de autocrítica em direção ao autodesenvolvimento, nem de autocomplacência em direção à autoconfiança. Tais diferenciações são úteis para uma compreensão da subjetividade enquanto, digamos, ciência do sujeito ou meramente relacionada ao sujeito, que tornam o medo da auto-assimilação parecer absurdo. A consciência dos limites nos quais se trabalha não precisa apontar para nenhuma forma de indulgência quanto à parcialidade pessoal, nem para a conclusão estreita de que é impossível entender qualquer coisa sobre outros povos, uma vez que a diferença é de essência. Ao recusar a naturalização do “Eu”, a subjetividade desvela o mito do núcleo essencial, da espontaneidade e da profundidade da visão interna. Subjetividade, portanto, não consiste em meramente falar sobre si mesmo, seja esta fala indulgente ou crítica. Em suma, o que está em questão é a pratica de uma subjetividade ainda não ciente de sua natureza constituinte, donde a sua dificuldade em exceder o par simplista entre subjetividade e objetividade; uma prática de subjetividade que não está consciente de seu contínuo papel na produção de significado, como se as coisas fizessem sentido em si mesmas, de modo que a função do intérprete consistiria somente em escolher dentre as diversas leituras existentes; que ignora a representação como representação, isto é, a inter-realidade política, sexual e cultural do realizador de cinema como sujeito, a realidade do filme e a realidade do aparato cinemátográfico. E que ignora, por fim, a presença deste inapropriado “outro” no interior de todo “Eu”.
O vermelho não se faz de sangue Aurore Délavy Então, da ausência regular, um silencioso apelo. Febre ou fruto? Ainda não, talvez. Seria antes preciso repetir os mesmos gestos diariamente ao afiar o alimento como se um samurai no ar sua espada. Até um esquecimento. Tudo existe e está sobre a mesa, mas quem? Trabalhar cansa e a louça e amassa. Depois, nada mais foi. Destruir? Não aqui, aqui não há ódio nem vingança. – Embora tampouco haja relógio, sinto muito: tempo. Há, pelo menos. É quando você chega. Senão, com os cacos deste copo que sem querer caiu, o que acontece em mim toda vez que há lua. De qualquer jeito, você não verá, não vê, você. Pra quê, se já sabe, se crê que? – Corta apenas. Ali, a lembrança do fogo. Água, placenta, mosto. O sangue que não escorreu, que tampouco coagulou, que sequer. – Deita, lembra? Sangue não. Vermelho: vivo. Mas quem, quem se eu gritasse? Com os cacos deste copo que fiz cair. Em minha ausência, não mais a lua.
Texto originalmente publicado por Center for Cultural Studies – UCSC. Em: http://culturalstudies.ucsc.edu/PUBS/Inscriptions/vol_3-4/minh-ha.html Tradução: Augusto de Castro Revisão: Helga Prado e Roberto Romero
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– Vem, agora come sangrentamente essa carne; bebe de ternuras e sem mistérios meus amar’gozos lábios.
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Depois, nada sempre existiu de instantâneo clique-claque
(Nem um grito)
sem querer Um sonho uma folha seca entre as páginas de um livro uma palavra fora de lugar a precipitação de um acontecimento Não a raridade de um corpo;pau-brasil Coisas em que o vermelho só aparece no corte O que não chegou a ser sagrado (tampouco se fez de) .........flui imperceptível ; sua imagem usada mais tarde para vendar o vencido – Depois, nada mais foi
Jeanne Dielman e a travessia visual da espectadora Roberta Veiga É difícil falar de um filme cuja perplexidade da primeira assistência provocou um debate fecundo na época, principalmente entre as feministas, e a complexidade ensejou uma gama de análises rigorosas durante muito tempo. Jeanne Dielman 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, é um filme seco, que não se deixa habitar inteiramente. A estrutura parece simples, graças ao minimalismo da composição e a serialidade das sequências, no entanto, sua relação com a narrativa, e a maneira como separa e ao mesmo tempo amalgama cineasta, personagem e espectador, instiga o olhar analítico a descamá-la. Dentre as várias camadas de possibilidades de exploração da obra, a que compartilho aqui é aquela que não cessa de me inquietar: a da espectatorialidade. Lanço, então, ao mesmo tempo um convite e um desafio, especialmente, às espectadoras, de quebrar a aridez que Jeanne Dielman, em seu regime de visibilidade, oferece e persistir no olhar. De sofrer a impossibilidade de ser levada pelo filme, e não sucumbir à fadiga da atenção focada, mas realizar esse exercício do ver tão preciso e controlado quanto as ações da diretora e da personagem. A ideia é se deixar aprisionar para se apaixonar pelo ato de ver. Ao lançar esse desfio, o meu é o de tentar explicar que contrato de visibilidade é esse no qual a espectatorialidade exigiria ressalvas e regras? Três dias da rotina de uma viúva transcorridos em grande parte no apartamento onde mora com seu filho adolescente são acompanhados por uma câmera que mantém quase sempre a mesma distância (a de um plano médio) e que oferece os mesmos, pouquíssimos, pontos de vista. Trata-se de um enquadramento primordial, como diria Ishagpour, aquelas grades rigorosas que emolduram um modo de ver, muito geométrico e perspectivista, que contamina não só as cenas, mas todo o filme, gerando uma ambiência que poderia ser resumida por um fotograma a se reproduzir em abismo. Típico gesto de Chantal Akerman, expressão de um cinema estrutural e corpóreo, profundamente contaminado pelo serialismo de Robert Bresson, o minimalismo de Michael Snow, o hiperrealismo de Andy Wharol, e o anti-ilusionismo de Godard, no qual o plano formal é instituinte do sentido do qual depende toda a narrativa. Durante três horas as muitas e mesmas tarefas, e ações domésticas, que Jeanne executa são escrutinadas por uma câmera sem piedade, que fixa a cena na moldura retangular da tela, e concede tempo mais que necessário
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para que cada uma delas se desenvolva por inteiro, para que cada gesto seja minuciosamente executado. Arrumar a cama, lavar os pratos, preparar a comida, escovar os cabelos, dobrar as roupas, guardar as vasilhas, tomar banho, colocar a mesa, limpar a banheira, engraxar os sapatos do filho... cenas corriqueiras, repetidas, e orquestradas de tal maneira que em sua semelhança definem o primo enquadramento, ditam o ritmo do filme, bem como uma duração comum. Jeanne executa essas tarefas meticulosa e sistematicamente, de forma que padrões recorrentes são percebidos – a força, o tempo e a precisão empregada, por exemplo, no modo de enfileirar os talheres, dispor os guardanapos, enxugar os pratos, abotoar a camisa, esfregar o corpo no banho. Revelados juntos pelo olhar direto, frontal e imóvel da câmera que esquadrinha atos e espaços, esses padrões definem um impressionante controle sobre o corpo, de forma a aproximar a personagem estética e fisicamente de um autômato. As cenas corriqueiras são intercaladas por duas outras atividades que diferem e ao mesmo tempo contribuem para a textura homogênea do filme: uma que parece infinita, de natureza ainda mais automática – a de ascender e apagar as luzes –; e outra mais esparsa, também automatizada por sua inserção nessa orquestração – a de se prostituir a tarde e guardar o dinheiro na sopeira da sala. No primeiro caso, a frequência do ascender e apagar de luzes institui um micro mecanismo que reproduz, em um ritmo mais veloz, a redundância e a meticulosidade das tarefas ordinárias, que por sua vez reproduzem a própria serialidade do modo de filmar de Akerman. Essa estratégia bressoniana de fazer com que o filme ele mesmo expresse o mecanismo de corte, enquadramento e reprodução mecânica do cinema, em Jeanne Dielman faz coincidir artifício e mise-en-scène, esqueleto e carne, estrutura e narrativa. É exatamente um aparato artificial de reprodução mecânica que, como queria Benjamin, se revela ao deflagrar um outro tipo de reprodução, a que se dá na vida cotidiana: a do trabalho doméstico. E é nessa composição maquínica, da qual obviamente fazemos parte, que a subjetividade daquela mulher dos anos 70 configura-se ao modo de um autômato, ou seja, um ente ou dispositivo, sem consciência, que executa funções imitando um ser animado. O ato sexual não é mostrado. Vemos Jeanne receber o cliente num plano médio que os enquadra de perfil cortando a cabeça da protagonista e exibindo apenas parte dos braços do estranho, e depois a porta do quarto se fechar. Durante um tempo estamos do lado de fora observando uma parte do pequeno corredor escuro e a porta fechada ao fundo. Ao homogeneizar as tomadas, através dos padrões nas atividades e nos modos de filmar e cortar, Akerman cria, como diz Margulies, uma equivalência entre as cenas que o espectador vê e as que
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são sonegadas, que só podem ser presumidas como parte do repertório já mapeado dos tempos, cadências, métodos empregados nas outras atividades. Isso quer dizer que o extracampo mais forte do filme – a relação de Jeanne com os homens, o momento do sexo, do orgasmo que poderia levá-la ao descontrole, do prazer que enfim se manifestaria naquele corpo disciplinado – é incapaz de retirar o espectador da prisão visual que ele ocupa junto com a personagem e a diretora. Nesse sentido, o sexo não pode senão entrar nessa cadeia de atividades controladas, contaminado que está pela frontalidade, repetição e angulação das outras cenas, e portanto ser tomado como reprodução mecânica, mais uma tarefa, que Jeanne executa de maneira disciplinada como um títere que não pode ser afetado. Ao construir um esquema perceptivo para o espectador através do enqua dramento primordial que concede essa textura homogênea ao filme e faz equivaler todas as ações da personagem, Akerman iguala dois lugares femini nos a princípio opostos: o da mulher do lar que cuida dos afazeres domésticos e se dedica à família; e o da mulher da rua, que vende seu corpo para “fazer a vida”. Essa equivalência se dá às custas de um aparato seco e aprisionante que ao revelar uma vida asséptica, monótona e sem afetos, acaba através da reprodução formal da disciplinarização, denunciando os lugares femininos como lugares de opressão. A rotina e a prostituição são formas de confinamento, que retiram do corpo da mulher as potências da vida, e a tornam um corpo frio que apenas cumpre os protocolos e roteiros diários como se cumprisse uma ordem cujo mandatário está oculto. A escolha de Akerman pelo efeito de mise-en-abyme do filme, de orquestração das cenas que parecem se espelhar ao infinito, de forma a refazer as grades próprias ao cinema e aprisionar o espectador, coloca as ações nesse plano no qual o controle, ou a disciplina, como já dissera Foucault, não tem mandatários. Talvez daí a dificuldade de ler o filme por um viés exclusivamente feminista, e/ou psicanalítico (que a própria Akerman admite se esquivar), uma vez que as causas, os responsáveis, os culpados – o falo, o homem, a estrutura social – nada disso pode ser inferido numa perspectiva que concede ao gesto formal da diretora a justa implicação narrativa e dramática na construção dos olhares e, portanto, dos sentidos. Porém se o olhar esquadrinhador de Chantal e os gestos automáticos de Jeanne compõem uma mesma máquina, poderíamos acreditar que a diretora em sua estrutura rigorosa corrobora com a disciplinarização da personagem. Mais que isso, ao lançar mão desse mecanismo, Akerman conduz o espectador, sobretudo a espectadora, a desenvolver uma cumplicidade com a ordem ali existente, que passa a ser o único lugar de conforto perceptivo para lidar com um filme no qual nada de significativo acontece. Ou seja, a diretora faria a
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espectadora corroborar também com o lugar de Jeanne. Contudo, ao confinar o confinamento que o dia a dia de Jeanne a submete, o resultado é o inverso, o olhar que deflagra a disciplinarização não poderia compactuar com ela, mas sim afirmar sua existência na pura materialidade cinematográfica. Apesar de ambas, Chantal e Jeanne, procurarem o controle, a primeira no rigor dos procedimentos cinematográficos e a segunda no rigor dos procedimentos domésticos, a diretora tem o poder que institui o mecanismo de reprodução e Jeanne é refém desse mecanismo. Após dois dias de repetição dessas tarefas meticulosas e insignificantes, algo de perturbador acontece: Jeanne queima as batatas que seriam o jantar daquela noite para ela e o filho. Se um fato tão banal surpreende por ser a força de desestruturação da ordem diária e cinematográfica, é justamente porque em Jeanne Dielman toda a narrativa se constrói através de acontecimentos miúdos, aqueles que seriam cortados dos filmes tradicionais, os restos, as entre-imagens que viram elipses nos melodramas domésticos, de onde Akerman rouba os clichês femininos que irá desconstruir. É nesse cotidiano desdramatizado, de ações corriqueiras desierarquizadas, que o ato de queimar as batatas ganha valor narrativo, e se compara, num grau infinitamente menor, a um turning point, o evento diegético a partir do qual o rumo da história e das personagens se transforma. Aqui a mudança – como todas as alterações de um filme no qual cada tomada parece um “jogo de sete erros” em relação a outra – é minimal. Uma vez que Jeanne se põe a andar pela casa como quem procura algo, a câmera se movimenta para acompanhá-la, uma vez que ela passa a ficar sentada no sofá ou na mesa da cozinha sem fazer nada, a câmera vai durar mais nessas cenas do que nas tarefas diárias. Caso a espectadora não tenha cumprido a exigência da atenção focada, dificilmente terá chegado a esse momento do filme ou chegou de forma que prosseguirá sem notar as alterações sutis no comportamento de Jeanne e na escritura que daí decorre. Caso tenha enfrentado a resistência da obra, já sabe que, após as batatas, alguma coisa ficou fora da ordem: o cabelo de Jeanne está despenteado, a roupa desalinhada e as tarefas descontroladas. É como se houvesse, como diz Margulies, um animismo dos objetos que se colocam contra ela. O tempo parece sobrar, ela está adiantada na cena, e portanto na vida. Ela para, espera, se perde, esquece o que fazer, não tampa a sopeira após colocar o dinheiro do cliente, anda de um lado para o outro e depois desata a limpar estranhamente os bibelôs que estão guardados na cristaleira da sala de estar, pega e sacode várias vezes o bebê do qual toma conta recolocando-o no moisés sem conseguir fazê-lo parar de chorar. Pequenos movimentos fora
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do controle, irrisórias estranhezas, restos dos restos dos quais as sequências são feitas, importam enormemente para se ver um micro, porém intenso, transtorno no cotidiano limpo e organizado de Jeanne. Um mísero caos para começar, como numa vagarosa reação em cadeia, a mudar a cadência que fazia daquela estrutura uma ordem. A partir daí, já no terceiro dia, as expressões de Jeanne que dificilmente se via variar com os estados do corpo, começam a abrigar finos estados de ânimo: preocupação, certa melancolia, talvez um tédio ou uma dúvida se esboce. Quando a ordem é quebrada gradualmente uma consciência parece tomar conta do corpo autômato de Jeanne, ainda que debilmente. Até que o grande corte, o golpe cinematográfico, surge como que vindo do cansaço e da tensão acumulada ali: pela primeira vez vemos a cena de sexo de Jeanne, o homem sobre ela e seu rosto dando as pistas do orgasmo, ela levanta e calmamente abotoa a camisa em frente ao espelho, no mesmo ritmo ela pega um tesoura na penteadeira e de repente, a vemos golpeá-lo no pescoço. Corte seco, golpe seco... um movimento ainda que na mesma cadência dos demais, sobra no meio dos restos, uma imagem surge nas entre imagens e escapa ao enquadramento primordial. Aquele acontecimento narrativo, ainda que sem drama, pela volúpia que o caracteriza como ação, não se encaixa ao controle formal da diretora, é a erupção do insuportável da ordem. A espectadora que chegou até o final, não teve outra opção senão se fazer cúmplice da personagem e portanto defensora da ordem como único locus existencial onde Jeanne era capaz de se mover. As batatas queimadas repre sentaram a ameaça de aleatoriedade durante todo tempo temida por um olhar já enquadrado numa cadeia estruturada e controlada de eventos. Nesse sentido, a espectadora esteve no lugar disciplinado, não apenas o da cadeira do cinema, mas aquele onde Jeanne estava, o do autômato. Ou seja, era preciso fazer esse pacto de visibilidade, vencer a dificuldade da atenção focada, rever as formas de percepção e relação com a imagem, para estranhar e por isso se deixar marcar pelo lugar do feminino de Jeanne, e como diria Rolnik, produzir um outro corpo no desassossego. Não se trata de sofrer o pathos da heroína, mas sim de uma travessia visual, da difícil incorporação de um esquema perceptivo e do prenúncio de sua quebra. É portanto pela experiência estética e não pela ideológica que a espectadora vive uma opressão feminina, corporal e singular, que passa pelo grito abafado do corte, o golpe seco do enquadramento que mostra o assassinato, e chega à quietude, e novamente ao nada, quando a câmera enquadra Jeanne assentada, silenciosa, num longo plano de sete minutos. Mas o nada não é o mesmo que fazia da espectadora
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confinada refém da ordem, mas é um fora, uma potência, mais um estado de corpo daqueles que como diz Deleuze “segregam a lenta cerimônia que religa as atitudes correspondentes e desenvolvem um gestus feminino capaz de captar a história dos homens e a crise do mundo.” (1990: 235)
Referências BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.I. São Paulo: Brasiliense, 1994. BERGSTRON, Janet. Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman. In: Devires – Cinema e Humanidades, v.7 n.1, jan./jun. 2010. DELEUZE, Gilles. Cinema II: a Imagem- tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução e organização MACHADO, Roberto. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. ISHAGHPOUR, Youssef. O fluxo e o quadro. In: Devires – Cinema e Humanidades, v.7 n.1, jan./jun. 2010. MARGULIES, Ivone. Nothing Happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday. Duke University Press, Feb 13, 1996. ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de Subjetividade, v.1 n.2: 241-251, PUC/SP. São Paulo, set./fev. 1993 VEIGA, Roberta. Quantos quadros cabem no enquadramento de uma janela? In: Devires – Cinema e Humanidades, v.7 n.1, jan./jun. 2010.
Kashima Paradise por Chris Marker Kashima Paradise é um filme completo no sentido em que se pode dizer de um homem que ele é completo, isto é, quando rompeu em si um certo número destas barreiras impermeáveis que todos os poderes encorajam para permanecerem como os únicos senhores da comunicação entre áreas consideradas incompatíveis. Exemplos? Um sociólogo que vai para o Japão elaborar uma tese de doutorado sobre o tema “Sociedade rural e industrializa ção rápida em um país capitalista avançado”, eis aqui uma empreitada definida, classificada, bem enquadrada em seus próprios limites. Um cinegrafista que vai ao Japão fazer um filme sobre a metamorfose de áreas rurais industrializadas, eis aí uma outra empreitada igualmente definida, igualmente classificada. A lenta mutação profissional, psicológica, social de um agricultor japonês que vive as transformações um tanto alucinantes de seu ambiente – é uma aventura de outra ordem, que na melhor das hipóteses cabe à observação fria e científica do sociólogo, para o uso de leitores frios e científicos, e que a princípio escapa à observação dos cineastas, pessoas apressadas e pouco equipadas para o estudo em profundidade. Uma região que em um ano passa da agricultura quase medieval à surrealidade industrial, com a construção de um enorme complexo petroquímico, o maior porto artificial do mundo, o maior conglomerado do Japão – trata-se ainda de outra coisa, um assunto para economistas ou poetas épicos, se estes ainda existissem. Um casal que deixa Paris e sua falsa elite para viver o mais perto possível a vida cotidiana de uma sociedade real, e além disso rural – tratase definitivamente de outra coisa, uma aventura pessoal nos limites do incomunicável. Ora, eis que tudo se comunica: a socióloga veio ao Japão com o cineasta, um sábio conselho os instala em um vilarejo que o desenvolvimento do conglomerado modifica em todos os níveis, o camponês em quem se repercute esta mudança mantém relações de confiança com o casal, e melhor ainda, nesta corrente de comunicação que se estabelece, as ações se invertem, as relações se intercambiam: os investigadores são questionados, a pesquisa nutre o filme, o filme questiona a pesquisa a tal ponto que, na chegada, o assunto será diferente, centrar-se-á em um tema nascido do filme, a própria vida do casal transformada pela empreitada – ninguém mais será neutro, a vida terá feito sua entrada, ela terá irrigado tudo, a sociologia, o cinema, o vilarejo, a pesquisa, a usina, o filme...
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Uma das chaves desta desordem, esta coisa que mais falta faz à maioria de nós, especialmente aos cineastas: o Tempo. O tempo de trabalhar, e também, e sobretudo, o de não trabalhar. O tempo de falar, de escutar, e sobretudo o de se calar. O tempo de filmar e de não filmar, de compreender, e de não compreender, de se espantar, e de esperar a vida que ressurge após o espanto, o tempo de viver. O tempo de se acostumar também, de um lado e de outro, e isto não é pouco. Mesmo que a limitação da equipe de filmagem a duas pessoas já reduza o extraordinário trauma que uma filmagem real provoca, o tempo continua a domesticar, a familiarizar. Habitua-se a esta câmera que Yann carrega nos olhos como um míope caça seus óculos, para te ver melhor, minha netinha. Habitua-se a este microfone que Bénie [Deswarte] carrega diante do interlocutor como uma corneta acústica de nossas avós (simpática avó). Habitua-se à presença deles, a este míope e a esta surda, ainda por cima desmemoriados, que anotam tudo, gravam tudo para depois recontar lá, em seu país. São interrogados sobre este país distante, este arquétipo da civilização técnica, que está batendo à porta. Aqui novamente, outras comunidades, outras inversões. É a mulher que fala japonês neste país de homens. O homem se cala e olha, mas olha intensamente. Habitua-se à presença falante, mediadora de um, à presença silenciosa, registradora do outro. Ao fim da aventura, Kashima Paradise, o filme das barreiras rompidas – onde a beleza excepcional da imagem, o rigor do método, o conhecimento das forças em jogo, econômicas e políticas, a intimidade real com os homens, se sustentam mutuamente, onde a sensibilidade da imagem preserva a inteli gência de ser fria, onde a acuidade da análise protege o espetáculo de seu próprio encantamento – o arrebatamento visual de certos momentos, o enterro do militante com seus helicópteros felinianos, a batalha de Narita com seus militares germânicos, vêm banhar tudo isso da única beleza autêntica, a que é dada por acréscimo na medida em que, sobre uma empreitada humana que é primeiro uma busca de verdade, ela vem significar a aprovação dos deuses. Sabemos que o símbolo dos privilégios mágicos do cinema é frequentemente “a flor desabrochada com a imagem acelerada”, essa intrusão de um outro tempo no tempo familiar. Eis aí talvez o primeiro filme em que a história é filmada como uma flor. Tradução: Débora Braun
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Kashima Paradise par Chris Marker Kashima Paradise est un film complet au sens où l’on peut dire d’un homme qu’il est complet, c’est-à-dire quand il a abattu en lui un certain nombre de ces cloisons étanches que tous les pouvoirs encouragent pour rester seuls maîtres de la communication entre des domaines réputés inconciliables. Exemples? Une sociologue qui se rend au Japon pour y élaborer une thèse de troisième cycle sur le sujet “Société rurale et industrialisation rapide dans un pays capitaliste avancé”, voici une entreprise définie, classée, bien cadrée dans ses propres limites. Un opérateur de cinéma qui se rend au Japon pour tourner un film sur la métamorphose des campagnes industrialisées, voilà une autre entreprise également définie, également classée. La lente mutation professionnelle, psychologique, sociale d’un paysan japonais qui vit les transformations un peu hallucinantes de son environnement, c’est une aventure d’un autre ordre, relevant au mieux de l’observation scientifique et froide du sociologue, à l’usage de lecteurs scientifiques et froids, échappant par principe à l’observation des cinéastes, gens pressés et peu outillés pour l’étude en profondeur. Une région qui passe en un an de l’agriculture quasi médiévale à la surréalité industrielle, avec la construction d’un énorme complexe pétrochimique, le plus grand port artificiel du monde, le plus grand combinat du Japon, c’est encore autre chose, un sujet pour économistes ou poètes épiques, s’il en existait encore. Un couple qui quitte Paris et sa fausse élite pour vivre d’aussi près que possible la vie quotidienne d’une société réelle, rurale de surcroît, c’est tout à fait autre chose, une aventure personnelle aux limites de l’incommunicable. Or voici que tout communique: la sociologue est venue au Japon avec le cinéaste, un conseil judicieux les installe dans un village que le développement du combinat modifie à tous les niveaux, le paysan en qui se répercute cette modification entretient des rapports de confiance avec le couple, et mieux encore, dans ce courant de communication qui s’établit, les actions se renversent, les rapports s’échangent: les enquêteurs sont questionnés, la recherche nourrit le film, le film questionne la recherche à tel point qu’à l’arrivée, le sujet sera différent, qu’il se centrera sur un thème né du film, la vie même du couple transformée par l’entreprise, plus personne ne sera neutre, la vie aura fait son entrée, elle aura tout irrigué, la sociologie, le cinéma, le village, l’enquête, l’usine, le film...
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Une des clefs de ce bouleversement, cette chose qui manque le plus à la plupart d’entre nous, particulièrement aux cinéastes: le Temps. Le temps de travailler, et aussi, et surtout de ne pas travailler. Le temps de parler, d’écouter, et surtout de se taire. Le temps de filmer et de ne pas filmer, de comprendre, et de ne pas comprendre, de s’étonner, et d’attendre l’au-delà de l’étonnement, le temps de vivre. Le temps de s’habituer aussi, de part et d’autre, et ce n’est pas rien. Même si la limitation de l’équipe de tournage, à deux personnes, réduit déjà le traumatisme martien que provoque un vrai tournage, le temps continue d’apprivoiser, de familiariser.
Au bout de l’aventure, Kashima Paradise, le film des cloisons abattues, où la beauté exceptionnelle de l’image, la rigueur de la méthode, la connaissance des forces en jeu, économiques et politiques, l’intimité réelle avec les hommes, s’étayent mutuellement, où la sensibilité de l’image préserve l’intelligence d’être froide, où l’acuité de l’analyse protège le spectacle de son propre enchantement – l’éblouissement visuel de certains moments, l’enterrement du militant avec ses hélicoptères felliniens, la bataille de Narita avec ces CRS teutoniques, venant baigner tout cela de la seule beauté véritable, celle qui est donnée par surcroît lorsque, sur une entreprise des hommes qui est d’abord une recherche de vérité, elle vient signifier l’approbation des dieux. On sait que le symbole des privilèges magiques du cinéma est souvent “la fleur tournée en accéléré”, cette intrusion d’un autre temps dans le temps familier. Voilà peut être le premier film où l’histoire est filmée comme une fleur."
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˜ programacao ´
On s’habitue à cette caméra que Yann porte à l’œil comme un myope chausse ses lunettes, pour mieux vous regarder, mon enfant. On s’habitue à ce micro que Bénie [Deswarte] porte au devant de l’interlocuteur comme un cornet acoustique de nos grands- mères (agréable grand-mère). On s’habitue à leur présence, à ce myope et cette sourde amnésiques en plus, qui notent tout, enregistrent tout pour raconter là-bas, au pays. On les interroge sur ce pays lointain, cet archétype de la civilisation technique, qui est en train de frapper à la porte. Là encore, d’autres communautés, d’autres inversions. C’est la femme qui parle japonais dans ce pays d’hommes. L’homme se tait et regarde, mais regarde fort. On s’habitue à la présence parlante, médiatrice de l’une, à la présence silencieuse, enregistreuse de l’autre.
CINE HUMBERTO MAURO 21 NOV | QUARTA-FEIRA 19h30 Sessão de abertura Chasseurs et Chamans Raymond Depardon, 2003, 32’ Xapiri Leandro Lima e Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra, Bruce Albert, 2012, 54’ Sessão comentada por Renato Sztutman e Ruben Caixeta de Queiroz
22 nov | QUINTA-FEIRA 15h Cânone e contra-cânone Sina do Aventureiro José Mojica Marins, 1958, 88’ 17h Cânone e contra-cânone Panca de Valente Luís Sérgio Person, 1968, 95’ 19h Competitiva nacional Tava - A casa de pedra Ariel Ortega, Ernesto de Carvalho, Patrícia Ferreira, Vincent Carelli, 2012, 78 21h Competitiva nacioanal Lullaby André Lage, 2011, 11’ Otto Cao Guimarães, 2012, 71’
23 nov | SEXTA-FEIRA 15h Competitiva nacional Espírito Santo Futebol Clube André Ehrlich Lucas, Lucas Vetekesky, 2012, 29’ HU Pedro Urano e Joana Traub, 2012, 78’ 17h Competitiva nacional Porcos Raivosos Isabel Penoni, Leonardo Sette, 2012, 10’
Pele de branco Takumã Kuikuro, 2012, 25’ Margens dos Marques Mariana Andrade, 2012, 55’ 19h Cânone e contra-cânone Cassy Jones, Magnífico Sedutor Luís Sérgio Person, 1972, 100’ 21h Cânone e contra-cânone Império do Desejo Carlos Oscar Reichenbach, 1980, 95’
24 NOV | SABADO ´
15h Competitiva nacional Mr. Sganzerla, Os signos da luz Joel Pizzini, 2011, 90’ 17h A mulher e a câmera Nathalie Granger Marguerite Duras, 1972, 83’ 19h Competitiva nacional A cidade é uma só? Adirley Queirós, 2012, 80’ 21h Competitiva nacional Câmara Escura Marcelo Pedroso, 2012, 24’ Doméstica Gabriel Mascaro, 2012, 75’
25/11 DOMINGO 15h Competitiva nacional A Anti performance Daniel Lisboa, 2012, 10’ Em busca de um lugar comum Felippe Schultz Mussel, 2012, 80’ 17h Cânone e contra-cânone A$suntina das Amérikas Luís Rosemberg Filho, 1976, 90’ 19h Cânone e contra-cânone Malandro, termo Civilizado Sylvio Lanna, 1986, 26’
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Lobisomem, o terror da meia-noite Elyseu Visconti, 1974, 75’ Sessão comentada pelos diretores
21h Cânone e contra-cânone Mesa de debates: Cânones e contra-cânones no cinema moderno brasileiro Hernani Heffner, Luís Alberto Rocha Melo, mediação: Ewerton Belico
26 NOV | SEGUNDA-FEIRA 14h Oficina com Claire Angelini 17h Cânone e contra-cânone Perdidos e Malditos Geraldo Veloso, 1970, 70’ Sessão comentada pelo diretor
19h Cânone e contra-cânone Bandido da Luz Vermelha Rogério Sganzerla, 1968, 90’ 21h A mulher e a câmera Luz nas Trevas Ícaro C. Martins, Helena Ignez, 2010, 83’ Sessão comentada pela diretora
27 nov | TERcA-FEIRA ´ Claire Angelini 14h Oficina com 17h A mulher e a câmera La nouba des femmes du Mont-Chenoua Assia Djebar, 1979, 115’ 19h A mulher e a câmera Réponse des femmes Agnés Varda, 1975, 8’ Documenteur Agnés Varda, 1981, 63’ Sessão comentada por Ilana Feldman
21h Competitiva internacional Espoir Voyage Michel Zongo, 2012, 82’
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28/11 QUARTA-FEIRA 14h Oficina com Claire Angelini
30 nov | SEXTA-FEIRA
02/12 DOMINGO
14h Oficina com Claire Angelini
17h Competitiva internacional La Friche Magali Roucaut , 2012, 45’ Narmada Manon Ott, Grégory Cohen, 2012, 45’
17h Competitiva internacional Linha Vermelha José Filipe Costa, 2011, 80’
15h Lançamento Paz no mundo camará: a Capoeira Angola e a volta que o mundo dá Carem Abreu, 2012, 54’
19h A mulher e a câmera A Falta que me faz Marília Rocha, 2009, 85’ A Entrevista Helena Solberg, 1966, 20’ 21h A mulher e a câmera Mesa de debates Mulheres no cinema brasileiro Helena Solberg, Marília Rocha, Paula Alves. Mediação: Cláudia Mesquita Lançamento da Revista Devires Cinema e Humanidades v.7 n.1, dedicado à Chantal Akerman
29 nov | QUINTA-FEIRA 14h Oficina com Claire Angelini 17h A mulher e a câmera La guerre est proche Claire Angelini, 2011, 80’ Sessão comentada pela diretora
19h Lançamento Paralelo 10 (DVD) Silvio Da-Rin, 2011, 87’
19h A mulher e a câmera Et tu es dehors Claire Angelini, 2012, 85’ Sessão comentada pela diretora
21h Competitiva internacional Zavtra Andrey Gryazev, 2011, 90’
01 DEZ | SABADO ´
15h Competitiva internacional Eau douce, eau salée Aya Tanaka, 2011, 50’ Cama de Gato Filipa Reis, João Miller Guerra, 2012, 45’ 17h Competitiva internacional Chambres avec vue Léo Zarka-Lepage, 2012, 16’ Bons Baisers de la Colonie Nathalie Borges, 2011, 74’ 19h Lançamentos Shuku Shukuwe – a vida é para sempre Agostinho Ika Muru Huni Kuin, 2012, 37’
Sessão comentada pelo diretor
Sessão comentada por Tadeu Huni Kuin
21h Competitiva internacional Habiter/Construire Clemence Ancelin, 2012, 115’
Una Hiwea – O Livro Vivo (Centro de Memória Aldeia São Joaquim, Associação Filmes de Quintal, Literaterras/UFMG)
17h A mulher e a câmera Reassemblage Trinh T. Minh-ha, 1982, 40’ 18h Lançamento Ao lugar de Herbais Daniel Ribeiro Duarte, 2012, 31’ Sessão comentada pelo diretor
19h Sessão especial (Homenagem a Yann Le Masson e Chris Marker) Kashima Paradise Yann Le Masson, 1974, 107’ 21h Sessão de encerramento Premiação das Mostras Competitivas Lacrimosa Aloysio Raulino, 1970, 12’) Sessão comentada pelo diretor
01 DEZ | SABADO ´
23h Festa de Encerramento Clube Português Rua Curitiba, 746 | 4o andar | Centro
Com a presença de Dani Huni Kuin
21h A mulher e a câmera Surname Viet Given Name Nam Trinh T. Minh-ha, 1989, 108’
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CAMPUS UFMG ´ AUDIToRIO 2 | FACE - FACULDADE ˆ ˆ DE CIeNCIAS ECONoMICAS - UFMG 22 NOV | QUINTA-FEIRA 10h A mulher e a câmera Riddles Of The Sphinx /Enigmas da Esfinge Laura Mulvey e Peter Wollen, 1977, 92´
23 nov | SEXTA-FEIRA
9h30 Sessão especial Xapiri Leandro Lima e Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra, Bruce Albert, 2012, 54’ Sessão comentada por Carlos Fausto
27 nov | TERcA-FEIRA 9h A mulher e´ a câmera
Mesa de debates: Mulheres e Política Roberta Veiga, Carla Maia. Mediação: Inês Teixeira
11h:30 A mulher e a câmera La Flaca Alejandra Carmen Castillo, 1994, 60´ Tarachime /Nascimento, Maternidade Naomi Kawase, 2006, 43´
28 nov | QUARTA-FEIRA
9h A mulher e a câmera Mesa Cineastas indígenas Suely Maxakali, Patrícia Ferreira. Mediação: Renata Otto
11h30 A mulher e a câmera The woman’s film Louise Alaimo, Judy Smith, Ellen Sorren, 1971, 40’ Emerging Woman/A Nova Mulher Helena Solberg, 1975, 48´
30 nov | SEXTA-FEIRA
9h A mulher e a câmera Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles Chantal Akerman, 1975, 200´
´ AUDIToRIO BAESSE | FAFICH FACULDADE DE FILOSOFIA E ˆ CIeNCIAS HUMANAS - ufmg 22 nov | QUINTA-FEIRA 11h30 Lançamento de livro O Profeta e o Principal: A Ação Política Ameríndia e seus Personagens Renato Sztutman (Edusp, 2012, 576pp) Conversa com o autor seguida de lançamento na Livraria Quixote UFMG
29 nov | QUINTA-FEIRA
10h A mulher e a câmera Mesa de debates: Deslocamentos do feminino Lia Zanotta, Érica Souza Mediação: Débora Breder
´ AUDIToRIO LUIZ POMPEU | FACULDADE DE EDUCAcaO - ufmg 26 nov | SEGUNDA-FEIRA
10h A mulher e a câmera Conferência: Luiza Elvira Belaunde Apresentação: Paulo Maia
ENDERECOS ´
Cine Humberto Mauro Avenida Afonso Pena | 1537 | Centro Campus UFMG Avenida Antônio Carlos | 6627 | Pampulha
Instituto INHOTIM Rua B | 20 | Brumadinho - MG +55 31 3571-6598
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´indices
´indice DE FILMES A Anti performance | 80 A cidade é uma só | 81 A Entrevista | 60 A Falta que me faz | 65 A$suntina das Amérikas | 33 Ao lugar de Herbais | 126 Bandido da Luz Vermelha | 36 Bons Baisers de la Colonie | 103 Cama de Gato | 104 Câmara Escura | 82 Cassy Jones, Magnífico Sedutor | 31 Chambres avec vue | 105 Chasseurs et Chamans | 21 Documenteur | 57 Doméstica | 83 Eau douce, eau salée | 106 Em busca de um lugar comum | 84 Espírito Santo Futebol Clube | 85 Espoir Voyage | 107 Et tu es dehors | 59 Habiter/Construire | 108 HU | 86 Império do Desejo | 32 Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles | 51 Kashima Paradise | 115 La Flaca Alejandra | 62 La Friche | 109 La guerre est proche | 58 La nouba des femmes du Mont-Chenoua | 53 Lacrimosa | 131 Linha Vermelha | 110 Lobisomem, o terror da meia-noite | 34 Lullaby | 87 Luz nas Trevas | 64 Malandro, termo Civilizado | 35 Margens dos Marques | 88 Mr. Sganzerla, Os signos da luz | 89
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Narmada | 111 Nathalie Granger | 50 Otto | 90 Panca de Valente | 29 Paralelo 10 | 124 Paz no mundo camará: a Capoeira Angola e a volta que o mundo dá | 125 Pele de branco | 92 Perdidos e Malditos | 37 Porcos Raivosos | 91 Reassemblage | 54 Réponse des femmes | 56 Riddles Of The Sphinx /Enigmas da Esfinge | 52 Shuku Shukuwe – a vida é para sempre | 119 Sina do Aventureiro | 30 Surname Viet Given Name Nam | 55 Tarachime /Nascimento, Maternidade | 63 Tava - A casa de pedra | 93 The Emerging Woman | 61 The woman’s film | 49 Xapiri | 22 Zavtra | 112
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´indice DE DIRETORES Adirley Queiroz | 81 Agnés Varda | 56, 57 Agostinho Manduca Mateus Ika Muru Huni Kuin | 119 Aloysio Raulino | 131 André Ehrlich Lucas | 85 André Lage | 87 Andrey Gryazev | 112 Ariel Ortega | 93 Assia Djebar | 53 Aya Tanaka | 106 Bémie Deswarte | 115 Bruce Albert | 22 Cao Guimarães | 90 Carem Abreu | 125 Carlos Oscar Reichenbach | 32 Carmen Castillo | 62 Chantal Akerman | 51 Claire Angelini | 58, 59 Clemence Ancelin | 108 Daniel Lisboa | 80 Daniel Ribeiro Duarte | 126 Ellen Sorren | 49 Elyseu Visconti | 34 Ernesto de Carvalho | 93 Felippe Schultz Mussel | 84 Filipa Reis | 104 Gabriel Mascaro | 83 Geraldo Veloso | 37 Gisela Motta | 22 Grégory Cohen | 111 Guy Girard | 62 Helena Ignez | 64 Helena Solberg | 60, 61 Ícaro C. Martins | 64 Isabel Penoni | 91 Joana Traub Csekö | 86 João Miller Guerra | 104
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Joel Pizzini | 89 José Filipe Costa | 110 José Mojica Marins | 30 Judy Smith | 49 Laura Mulvey | 52 Laymert Garcia dos Santos | 22 Leandro Lima | 22 Léo Zarka-Lepage | 105 Leonardo Sette | 91 Louise Alaimo | 49 Lucas Vetekesky | 85 Luís Rosemberg Filho | 33 Luís Sérgio Person | 29, 31 Luna Alkalay | 141 Magali Roucaut | 109 Manon Ott | 111 Marcelo Pedroso | 82 Marguerite Duras | 50 Mariana Andrade | 88 Marília Rocha | 65 Marrayury Kuikuro | 92 Michel Zongo | 107 Naomi Kawase | 63 Nathalie Borges | 103 Patrícia Ferreira | 93 Pedro Urano | 86 Peter Wollen | 52 Raymond Depardon | 21 Rogério Sganzerla | 36 Silvio Da-Rin | 124 Stella Senra | 22 Sylvio Lanna | 35 Takumã Kuikuro | 92 Trinh T. Minh-ha | 54, 55 Vincent Carelli | 93 Yann Le Masson | 115
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forumdoc.bh.2012 organização geral Júnia Torres Rafael Barros Glaura Cardoso Vale Carla Maia Cláudia Mesquita Paulo Maia Ruben Caixeta Diana Gebrim Carla Italiano Roberto Romero mostra cânone e contra-cânone Ewerton Belico Rafael Barros mostra a mulher e a câmera Carla Maia e Cláudia Mesquita (coordenação) Paulo Maia Ruben Caixeta
forumdoc.bh.2012
mostra competitiva internacional Bráulio Britto Carla Italiano Milene Migliano mostra competitiva nacional Ana Carvalho Carolina Canguçu Victor Guimarães Sessão homenagem Yann Le Masson e Chris Marker Bruno Vasconcelos Carla Italiano oficina/curso Claire Angelini tradução e assistência Ana Siqueira produção logística Pedro Leal
programa de extensão forumdoc. ufmg.2012 coordenador Paulo Maia coordenadores de projetos Cláudia Mesquita Ruben Caixeta César Guimarães bolsistas Camila Gomes Cordeiro Gabriel Pinheiro Túlio Diniz tradução e legendagem Ana Siqueira Augusto de Castro Carla Italiano Carolina Canguçu Catherine Carignan Débora Braun Flávia Camisasca Henrique Cosenza Laura Torres Marina Sandim Lucas Sander Paula Santos Roger Pattison legendagem eletrônica 4estações projeto gráfico Marilá Dardot arte Coisa Amarela concepção Rafael Barros catálogo Glaura Cardoso Vale (organização) Júnia Torres Carla Maia
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forumdoc.bh.2012 diagramação Ana C. Bahia vinheta Raquel Junqueira Luisa Rabello site Carlos Paulino (programação, consultoria e gestão de banco de dados) Gustavo Teodoro (webdesign e programação) Pedro Aspahan (coordenação e administração) cabine de projeção Pedro Aspahan (coordenação) Bernard Machado (coordenação) Warley Desali Clareana Turcheti assessoria de imprensa Sinal de Fumaça Comunicação Sérgio Stockler Aline Ferreira festival online e cobertura Pedro Aspahan Daniel Ribeiro Milene Migliano Pedro Marra Bernard Machado momentos festivos Rafa Barros Pedro Leal assessoria jurídica e financeira Diversidade Consultoria Diana Gebrim motorista Luciano Ribeiro fundação clóvis salgado (participação) presidente Solanda Steckelberg
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vice-presidente Bernardo Rocha Correia chefe de gabinete Cleidisson Plautino Dornelas diretora artística Edilane Carneiro diretora de ensino e extensão Patrícia Avellar Zol diretora de marketing, intercâmbio e projetos especiais Cláudia Garcia Elias diretora de planejamento, gestão e finanças Cynthia Bernis de Oliveira diretora de programação Sandra Fagundes Campos gerência de cinema da fundação clóvis salgado gerente Rafael Ciccarini assessora Ursula Rösele assistente Alexandra Duarte produtora Flávia Camisasca assistente de produção Bruno Hilário auxiliar de serviços administrativos Luciene Raquel Lima porteiro José Horta de Oliveira projecionistas Mercídio Alvinho Scarpeli Rufino Gomes Araújo agradecimentos Diretoria FaE-UFMG, Cenex-FaE-UFMG, Diretoria FAFICH; UFMG, Cinemateca MAM - RJ, Cinemateca Brasileira, Isabel Casemira, Ricardo, Belinha, Guidinha, Toninho, Frederico Sabino, Mateus Araújo Silva, Hutukara Associação Yanomami, Stella Senra e Laymert Garcia, Bruce
forumdoc.bh.2012 Albert, Instituto Socioambiental ISA, Marcos Wesley, Daniel Castanheira Pitta Costa, Ismail Xavier, Rafael Sampaio, Renato Sztutman, Paula Morgado, Sylvia Caiuby, Chantal Akerman, Laura Mulvey, Trinh Minh-ha, Luc Moullet, Michelle Pistolesi, Paule Maillet, Ilana Feldman, Roberta Veiga, Carmen Castillo, Lia Zanotta, Érica Souza, Débora Breder, Helena Solberg, Marília Rocha, Paula Alves, Sueli Maxakali, Patrícia Ferreira, Renata Otto, Inês Teixeira, Luiza Elvira Belaunde, Helena Ignez, Sinai Sganzerla, Andrea Scansani, Aldeia São Joaquim Centro de Memória, Pajé Agostinho Manduca Ika Muru Huni Kuin, Pajé Manoel Dua Buse Huni Kuin, Dani Huni Kuin, Zezinho Yube, Joviano Mayer, Renata Versiani, Daniel Queiroz, Livraria Quixote, Carlos Cunha, PET Ciências Sociais, Gabriel Sanna, Guilherme Whiitaker, Leo Pyrata, Vebis Junior, Sara Silveira, Helvécio Marins, Matheus Sundfeld, Eugênio Puppo, Leandro Pardi, Hernani Heffner, Marina Person, Regina Jeha, Andrea Ormond, Rubens Gomes Leite, Paulo Sacramento, Sylvio Back, Sylvio Lanna, Elyzeu Visconti, Geraldo Veloso, Mateus Araújo, Jair Fonseca, Affonso Uchoa, Rodrigo Moura, Morgana Rissinger, Luís Rosemberg Filho, Luís Alberto Rocha Mello, Catie Aubry, Salomé Aubry, Guillemette Laucoin, La Cinématèque de Toulouse, Mathilde Le Masson, Raymond Depardon, Claudine Nougaret, Sarah Froux, Palmeraie et désert, Rafael Ciccarini, Ursula Rosele, Flávia Camisasca, EICTV – Escuela Internacional de Cine y TV, Maria Julia Grillo, Miguel Vassy, Fernando Ancil, Carlos Olmedo, Gladston del Vale, Frederico Trindade, Magda Menezes, Oswaldo Teixeira, Bruno Vasconcelos, realizadores que se inscreveram nas mostras competitivas.
associação filmes de quintal Avenida Brasil | 75/sala 06 Santa Efigênia | CEP 30140-000 Belo Horizonte/MG | Brasil +55 31 3889-1997 | 31 2512-1987 www.forumdoc.org.br
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realização
co-realização
participação
apoio institucional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Departamento de Ciências Aplicadas à Educação FAE/UFMG Cenex FaE/UFMG
patrocínio apoio cultural cinemateca do mam cinemateca brasileira
apoio logÍSTICO