Ministério da Cultura
Filmes de Quintal e UFMG
apresentam
17 0 festival do filme documentário e etnográfico fórum de antropologia e cinema
sumÁRIO Sessão de Abertura 09 Retrospectiva de Autor Aloysio Raulino 13 Mostra Jonas Mekas 25 Júri 40 Competitiva Nacional 43 Competitiva Internacional 57 O inimigo e a câmera 77 Sessões Especiais 97 Lançamentos 105 Fórum de debates 109 curso/Oficina 121 Ensaios 129 A Aloysio Raulino 131 Andrea Tonacci A discreta revolução de Aloysio Raulino 132 Jean-Claude Bernardet Eu fiz parte deste território filmado 133 Andréa Daraca Cinepoesia: a dança da música da luz 135 Jair Fonseca A fita 36 143 Paulo Sacramento
O som e a fúria 146 Luís Alberto Rocha Mello Contracultura na barra pesada 149 Maria do Rosário Caetano Jamais esqueçamos 155 Daniel Ribeiro Duarte A fotografia no documentário 156 entrevista com Aloysio Raulino As imagens das greves 162 depoimento de Aloysio Raulino Inventando o cinema 166 conversa de Aloysio Raulino e Reinaldo Volpato com Claudio Kahns Duas Paixões Simultâneas 177 Inácio Araújo A sinfonia dos pobres (ou a modernidade de Aloysio Raulino) 181 João Dumans Movie Journal 191 Jonas Mekas O filme diário 216 Jonas Mekas Manifesto anti-100 anos de cinema 228 Jonas Mekas
A “ordem” do cinema - Jonas Mekas underground 230 Patrícia Mourão Jonas Mekas e o filme-diário 247 Paul Adams Sitney Paraíso perdido e reencontrado 265 Emeric de Lastens e Benjamin Léon Filmar o inimigo é fazê-lo entrar em um filme junto comigo 277 entrevista com Jean-Louis Comolli Vandalismo 288 Jimmie Durham Documentários terroristas? ‒ inimigos de classe no cinema brasileiro contemporâneo 293 Mariana Souto A câmera de combate e o animal paranóide 302 Ivana Bentes Os inimigos de Adrian Cowell 320 Felipe Milanez A terra treme no país de desigualdades e paradoxos 326 Luiz Eduardo Soares Programação 339 Índices 347 Créditos 352
Na hora do racha eu fico com estes filmes que se preocuparam em levar um combate. Aloysio Raulino
Sei que estou na minha terra/não o país amordaçado e sangrado dos ventos alarajados e bandolins cegos da repressão/ não o país das fantasias de poder, ampola de bismuto escrachada sobre a face do planeta/ e gosma paranóica escorrendo de todos os jornais/ não o país torturado, esmagado e prostituído/ suas noites encarceradas em cofres fortes/ e posta à venda a preços de ocasião/não esse país fantasmagórico que se quer presente o tempo todo/ e tenta invadir até mesmo o nosso sonho/ porém outro país, redescoberto agora, mais uma vez/ neste encontro dos nossos olhares/ outro país que ainda lateja sob o tapete trêmulo do terceiro mundo/ algo explode a leste do tempo/ estamos invadindo o coração da história/ estamos vestindo as horas de outra cor/ enquanto nos abraçamos e nos beijamos no centro desta cratera de um vulcão extinto faz quarenta milhões de anos. Claudio Willer Inventário da rapina (1986), filme de Aloysio Raulino
SESSテグ DE ABERTURA
Aloysio Raulino Lacrimosa Brasil, 1970, p&b, 12’
Teremos infância Brasil, 1974, p&b, 13’
Arrasta a bandeira colorida Brasil, 1970, p&b, 11’
O tigre e a gazela Brasil, 1976, p&b, 14’
cine humberto mauro, 21 nov, 19h
Fotos pedro veneroso
Sessão homenagem comentada por Jean-Claude Bernardet Com a presença de Gustavo Raulino, Otávio Savietto, Andréa Scansani
retrospectiva de autor aloysio rau lino
A loysio Rau lino, presente Júnia Torres Aloysio Raulino construiu uma carreira marcante na
direção de filmes, boa parte deles tematizando as condições de vida de trabalhadores, migrantes e excluídos
sociais. Ainda que centrados fortemente no potencial
expressivo das imagens, seus filmes não se rendem jamais a uma contemplação distanciada e desengajada do
mundo. Neles, para além da força poética dos registros,
a câmera deixa sempre impressa uma margem de con-
flito, uma área de disputa e de tensão entre aqueles que olham e aqueles que são olhados.1
Desde 2005, A. Raulino foi presença constante entre nós, no forumdoc.bh: como convidado especial, exibindo filmes, participando do júri, comentando sessões, propondo futuras edições, brindando conosco madrugadas afora, nos contaminando com seu vertiginoso e genial pensamento. Para a edição deste ano havíamos combinado, nós e ele, a realização de um sonho acalentado ao longo de anos de intensa convivência e colaboração,
projeto que o fomos convencendo paulatinamente a topar: a organização de uma retrospectiva tão ampla quanto possível de seu trabalho autoral, reunindo e discutindo o conjunto de seus filmes como diretor. A mostra que partilhamos é, portanto, fruto de uma relação de aprendizado, amizade, colaboração e de impressões que se foram refazendo à medida que Raulino se reencontrava - e frequentemente se reconciliava - com seu próprio trabalho, de maneira comovida, frente à tela do Cine Humberto Mauro durante sessões do forumdoc. O primeiro dos filmes de Raulino aqui exibido foi Porto de Santos (1978), ao final do qual ouvimos de um lacrimoso Raul: “a última vez em que vi o filme foi há dezoito anos. Estou sinceramente tocado”. O mesmo foi se repetindo a cada edição, quando embasbacados assistíamos, a seu lado, filmes como O tigre e a gazela (1976), o Inventário da rapina (1986), novamente Porto de Santos e Jardim Nova Bahia (1971), Lacrimosa (1970). E, como se tivéssemos também nós, espectadores, de
1. João Dumans, Mostravídeo Itaú Cultural, 2011.
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2. Difícil sem ele, Aloysio partiu em abril.
3. Publicamos, anexa ao catálogo, uma separata com hai kai de autoria de Aloysio Raulino, na qual este também se inclui.
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nos aproximarmos aos poucos da forma - ainda hoje marcadamente inventiva - do pensamento, do posicionamento político e humano que os filmes de Aloysio nos revelavam, fomos conhecendo cada título de sua obra, apresentada em pequenas medidas a cada vez como um mote para tê-lo conosco por mais um ano. Nos apaixonamos por Raulino e por seu estupendo trabalho. Juntos, gestamos essa retrospectiva, finalmente acertada por ocasião do último festival, encerrado por Lacrimosa... - primeira exibição pública do filme em décadas e depois de seu restauro (“aquele serzinho lacrimoso renasceu no meio de vocês”, a.r.). Uma sala repleta, aplaudindo o mestre e o grande artista que ele é, assim foi nosso último encontro, assim se encerrou o forumdoc em 2012. Depois de conversas trocadas à distância (lembro-me de um telefonema em pleno reveillon), entusiasmados iniciamos, contando com a colaboração de Jean-Claude, a tarefa de revisitarmos, desta vez em conjunto, seus filmes como autor. Tivemos que completar a empreitada.2 Aqui estamos, teremos o privilégio. Que viva o gigante Aloysio Raulino! “Voam alto os pássaros que sabem o céu que lhes cabe.”3 (a.r.) O conjunto de filmes que compõem a mostra foi o mais abrangente quanto nos foi possível reunir, pois parte de
seu trabalho encontra-se indisponível por problemas de conservação e disponibilidade de cópias, situação em muito agravada pela dificuldade atual de acesso a obras depositadas nas instituições de preservação no país. Assim, Raul, faremos como combinamos e o faremos de toda forma e da maneira possível. Certamente, aquém do que autor e obra merecem, mas iniciamos a tarefa. As entrevistas publicadas e o relato fílmico afetivo realizado por Bruno Vasconcelos exibido na sessão de abertura presentificam e atualizam o posicionamento de Raulino frente ao mundo e sua forma de trabalhar que tanto admiramos, um operário do cinema como ele dizia. “Operário-pensante”, o escuto agora... Às entrevistas, seguem-se textos que jogam luz sobre seu trabalho como diretor, ainda pouco conhecido e sobre o qual tão pouco se escreveu. Agradecemos aos autores dos ensaios, muitos deles escritos especialmente para o catálogo forumdoc.bh.2013 e que, junto à mesa de debates e sessões comentadas realizadas por ocasião da mostra, iniciam um trabalho de reflexão urgente sobre sua obra.
aloysio raulino Ensino Vocacional
Lacrimosa
Brasil, 1969, p&b, 14’ Direção direction Aloysio Raulino, Jan Koudela, João Cândido, Plácido de Campos Jr., Roman Stulbach, Walter Luís Rogério Produção producer ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) Contato contact contato@cinemateca.org.br
Brasil, 1970, p&b, 12’ Direção direction Aloysio Raulino, Luna Alkalay Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Aloysio Raulino Produção producer Aloysio Raulino, Luna Alkalay Contato contact contato@cinemateca.org.br
Um filme sobre a experiência de ensino vocacional no Colégio Oswaldo Aranha, em São Paulo. Baseava-se na criação de um microcosmo social para colocar o aluno em contato direto com a realidade do país.
O retrato da cidade de São Paulo a partir de alguns itinerários. Pela Marginal Tietê e outras vias da metrópole, terrenos baldios, construções de edifícios, fachadas de fábricas e favelas compõem um triste cenário. E nesta lacrimosa paisagem urbana, crianças em completa miséria.
This is a film about the experience of vocational education at Oswaldo Aranha School, in São Paulo. The education was based on the creation of a social microcosm to put students in direct contact with the reality of the country.
cine humberto mauro, 27 nov, 21h
The film is a portrait of the city of São Paulo from some itineraries. Through Marginal Tietê and other roads of the metropolis, vacant lots, buildings under construction, factory faces and slums make up a sad scenario. And in this tearful urban landscape, children in complete poverty.
cine humberto mauro, 21 nov, 19h 17
aloysio raulino Arrasta a bandeira colorida (Carnaval de Rua em São Pau lo)
Jardim Nova Bahia
Brasil, 1970, p&b, 11’ Direção direction Aloysio Raulino, Luna Alkalay Fotografia photography Aloysio Raulino, Luna Alkalay Montagem editing Aloysio Raulino, Luna Alkalay Produção producer Aloysio Raulino, Luna Alkalay Contato contact contato@cinemateca.org.br
Brasil, 1971, cor e p&b, 15’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Roman B. Stulbach Produção producer Aloysio Raulino Contato contact contato@cinemateca.org.br
Cenas de carnaval de rua em table-top e em movimento: Vale do Anhangabaú, escolas de samba, passistas, porta-estandartes, blocos, arquibancadas e assistentes. Cenas mudas apresentam pessoas cansadas ou dançando. O filme tem como trilha sonora músicas do carnaval antigo, de 1886 a 1960, como “Ó abre alas” e “O teu cabelo não nega”.
Depoimento prestado por Deutrudes Carlos da Rocha, baiano de 24 anos, lavador de automóveis, que vive em São Paulo. Em sua primeira parte, o depoimento de Deutrudes é alternado com aspectos de outros baianos da sua mesma condição. Na segunda parte, ele próprio empunha a câmara, exprimindo-se livremente, sem qualquer interferência do realizador.
Scenes of street carnival in table-top and moving: Vale do Anhangabaú, samba schools, samba dancers, standard-bearers, blocks, stands and assistants. Mute scenes of tired people and people dancing. The film has a soundtrack of songs from old carnival, from 1886 to 1960, as 'Ó abre alas' and ‘O teu cabelo não nega’.
Testimony by Deutrudes Carlos da Rocha, 24 years old, a car washer from Bahia that lives in São Paulo. In its first part, the testimony of Deutrudes is alternated with aspects of other Bahia immigrants of his same condition. In the second part, he himself wields the camera freely expressing himself without any interference from the director.
cine humberto mauro, 21 nov, 19h
cine humberto mauro, 22 nov, 19h
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aloysio raulino Teremos In fância
O Tigre e a Gazela
Brasil, 1974, p&b, 13’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Roman B. Stulbach Produção producer Luna Alkalay, Mário Masetti
Brasil, 1976, p&b, 14’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Aloysio Raulino Produção producer Aloysio Raulino; Tânia Savietto; Jorge Bouquet Contato contact contato@cinemateca.org.br
Arnulfo Silva, ex-menor abandonado de São Paulo, relata sua experiência pessoal, marcada por mazelas da infância, período em que foi vítima de todo tipo de sofrimento e humilhação. Uma figura excepcional, dotada de grande inteligência e capacidade de expressão, em seu depoimento, ele chama a atenção da sociedade e reivindica um melhor tratamento para o menor abandonado, a fim de que este não se transforme no bandido de amanhã.
As fisionomias, os gestos e as falas de mendigos, pedintes, loucos e foliões que passam pelas ruas de São Paulo. Os sons e imagens são ilustrados com extratos de Frantz Fanon.
Arnulfo Silva, former waif of São Paulo, tells his personal experience marked by childhood misery, which was a period of his life that he suffered all kinds of humiliation. He’s an exceptional character, endowed with great intelligence and expression. In his testimony, he calls the attention of society and claims a better treatment for homeless children, in order that they don’t become the villains of tomorrow.
cine humberto mauro, 21 nov, 19h
Faces, gestures and speeches of homeless people, beggars, madmen and revellers passing through the streets of São Paulo. The sounds and images are illustrated with extracts of Frantz Fanon.
cine humberto mauro, 21 nov, 19h 19
aloysio raulino Porto de Santos
Noites Paraguayas
Brasil, 1978, p&b, 19’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing José Motta Produção producer Tania Savietto Contato contact contato@cinemateca.org.br
Brasil, 1982, cor, 90’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino, Hermano Penna Montagem editing José Motta Produção producer Wagner Carvalho Contato contact contato@cinemateca.org.br
Descrição poética do Porto de Santos e seus trabalhadores – doqueiros, prostitutas, marinheiros, um capoeirista –, provavelmente envolvidos numa paralisação grevista.
A trajetória de imigrantes paraguaios que se dirigem à Assunción e daí chegam à São Paulo; trabalhadores rurais, músicos, vendedores e subempregados. A sorte que os acolhe em São Paulo é variada e a figura central, trabalhador rural, retorna ao Paraguai e reencontra o país modificado. Dois mundos paralelos: o da cultura guarani e o da aventura brasileira em São Paulo, justapostos por músicas paraguaias e o idioma guarani, falado pelos protagonistas.
The film is a poetic description of the Port of Santos and its workers - dockers, prostitutes, sailors, one capoeirista - probably involved in a stoppage strike.
The path of Paraguayan immigrants who go to Asuncion and then arrive in São Paulo. They’re rural workers, musicians, vendors and underemployed people. Two parallel worlds: the Guarani culture and the brazilian adventure in São Paulo juxtaposed with Paraguayan songs and the Guarani language spoken by the main characters.
cine humberto mauro, 22 nov, 19h 20
cine humberto mauro, 23 nov, 19h
aloysio raulino In ventário da Rapina
Como Dança São Pau lo
Brasil, 1986, cor, 29’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Aloysio Raulino Produção producer Wagner Carvalho Contato contact contato@cinemateca.org.br
Brasil, 1991, cor, 45’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Maria Dora Mourão, Reinaldo Volpato Produção producer Zico Santana
Utilizando texto, relato e música do poeta Cláudio Willer, o filme registra impressões do momento que vivemos hoje no Brasil, podendo ser definido como um drama intimista patriótico.
O vídeo mostra os diferentes espaços e estilos de dança que coexistem na cidade de São Paulo, acabando por determinar diferenças sociais e etárias.
The film uses text, stories and music by the poet Cláudio Willer and records feelings about the moment we live today in Brazil. It may be defined as a patriotic intimate drama.
cine humberto mauro, 22 nov, 19h
This video shows different places and dance styles that coexist in the city of São Paulo. They end up settling age and social differences.
cine humberto mauro, 24 nov, 21h 21
aloysio raulino Credo
Nos muros recortados
Brasil, cor/p&b, 4’ Direção direction Aloysio Raulino, Reinaldo Valpato Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Reinaldo Valpato, Júnior Carone Som sound Aloysio Raulino Produção producer Aloysio Raulino
Brasil, cor, 15’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Eduardo Santos Mendes Produção producer Joel Yamaji
Um trocadilho satírico ao som de “Creio em ti”.
Um ensaio sobre a arte de rua de São Paulo nos anos 80.
The film is a satirical pun that has as soundtrack “I believe in you”.
The film is an essay on the street art of São Paulo in the ‘80’s.
cine humberto mauro, 24 nov, 21h
cine humberto mauro, 01 dez, 21h
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aloysio raulino São Pau lo Cinemacidade
Puberdade 2
Brasil, 1994, cor, 30’ Direção direction Aloysio Raulino, Grostein, Marta D, Regina Meyer Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Maria Dora Mourão Produção producer Jean Claude Bernardet
Brasil, cor/p&b, 1996/1997, 48’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Mauricio Cavalieri, Tamy Marrachine Som sound Francisco Mosquera Produção producer Jan Koudela
A cidade em 5 atributos: transformação, anonimato, multidão, precariedade e dimensão. Imagens captadas dialogam com filmes já realizados em São Paulo.
Segundo episódio da série de 3 filmes sobre adolescentes, dirigidos por Aloysio Raulino. Neste filme, o diretor mergulha no universo de jovens de classe média, em busca das significações de amor, disciplina, desordem e destino.
Five city attributes: transformation, anonymity, crowd, precariousness and dimension. New images dialogue with films made in São Paulo.
cine humberto mauro, 24 nov, 21h
This is the second episode of the 3 films about teenagers directed by Aloysio Raulino. In this one the director dives into the world of middle-class youth searching for the meaning of love, discipline, disorder and fate.
cine humberto mauro, 01 dez, 21h 23
aloysio raulino Puberdade 3
Celeste
Brasil, cor, 1996 /1997, 45’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Gabriel Varalla, Mauricio Cavalieri, Tamy Marrachine Produção producer Jan Koudela
Brasil, 2009, cor, 5’ Direção direction Aloysio Raulino Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Paulo Sacramento Som sound Gustavo Lima Contato contact contato@movafilmes.org.br
Último episódio da série de 3 filmes sobre adolescentes. Aloysio Raulino conversa com jovens de periferia sobre luta, tribos, amores, sonhos, destino.
Contra um céu adverso, Celeste alça seu vôo. Se subiu, ninguém sabe, ninguém viu.
This is the last episode of the three films about teenagers. Aloysio Raulino talks with lower class youngsters about fighting, tribes, loves, dreams, fate.
Celeste takes off despite of an adverse sky. If it worked nobody knows, nobody saw it.
cine humberto mauro, 01 dez, 21h
cine humberto mauro, 24 nov, 21h
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mostra jonas me kas
A feto manifesto Carla Maia, Carla Italiano Em tempos de grandeza, espetáculos, produções de cem vocação poética, sua predileção pelo inútil, sua defesa milhões de dólares, eu quero falar em nome das pequenas, do menor e da ação em comunidade. Ao lado de outros invisíveis ações do espírito humano: tão sutis, tão pequenas, estrangeiros do cinema, o cineasta lituano fala uma que morrem sob os holofotes. Quero celebrar as pequenas língua diferente da maioria. Seus filmes são apelos à formas de cinema, as formas líricas, o poema, a aquarela, contemplação e à sensibilidade, contra a cegueira e a etude, desenho, cartão postal, arabesco, triolé, e pequenas afasia daqueles que só se interessam por lucro e fama. canções de 8mm. Nos tempos em que todo mundo quer ter Avesso à lógica da indústria e suas rígidas exigências, sucesso e vender, eu quero celebrar aqueles que abraçam o Mekas toma a prática cinematográfica como forma de fracasso, social e diariamente, para buscar o invisível, o dar vazão ao que sente e pensa, segundo o “imperativo pessoal, coisas que não trazem dinheiro ou pão e não fazem da liberdade reivindicado por aqueles que descem ao história contemporânea – história da arte ou qualquer outra subterrâneo (underground) porque não desejam partihistória – cipar de um jogo que só aceita duas posições: o poder ou a luta por ele”.1 Eu sou pela arte que fazemos uns para os outros, como amigos, para nós mesmos. Mekas não apenas trabalha com o cinema - ele passeia com ele, em longas caminhadas pelas ruas de Nova Muito do que se pode dizer sobre Jonas Mekas está Iorque. Ele come, dorme e acorda com o cinema. “Faço nas linhas e entrelinhas desta declaração, trecho de filmes de família, logo vivo”, diz sua célebre frase em seu “Manifesto Anti-100 anos de cinema”, de 1996: sua Walden (1996). Diariamente - o que significa todos
1. MOURÃO, Patrícia. A ordem do cinema. Ensaio publicado neste catálogo.
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os dias, mas também aos moldes de um diário, num exercício autobiográfico – ele filma cada coisa ao seu redor, da sua família na cozinha ao casal no Central Park, da esquina da rua onde mora à vista da janela onde passa as férias. Seu cinema caseiro (em inglês, home movie) é composto de pequenas ações e momentos de graça – a dança da filha, o pulo do gato. Sua Bolex é atraída pelo acidente e pelo improviso. Um rosto pode mudar todo o percurso, como pode também uma flor na janela, uma certa luz de inverno.
de concentração nazista, é compreensível essa aversão pelo sofrimento. Se o passado se prova terrível demais, trata-se de enfatizar e celebrar o momento presente, em sua vibração efêmera.
Entre uma imagem e outra, porém, resta uma melancolia mal disfarçada, aquela de um expatriado que já não pode voltar para casa – lost, lost, lost – de um homem do século xx, nascido entre-guerras, que testemunhou a ascensão de Hitler e a queda do World Trade Center. Sua narração lenta, seu inglês de sotaque estrangeiro, Em sua deriva imagética, ele compõe filmes de epifa- sua voz um tanto gasta não deixam de testemunhar o nias dispersas, que surpreendem pelo acúmulo quase vivido, imprimindo aos filmes uma certa tristeza de se obsessivo de imagens, uma coleção particular de mo- saber parte de um mundo caduco, violento, mortífero. mentos, em sua maior parte, felizes e belos. Seu amplo Que ele tenha optado pela graça, pela leveza, pela inventário inclui flores, árvores, crianças, rostos de liberdade expressiva que vemos em seus filmes não amigos, animais de estimação, mudanças de estação, é sinal de alienação ou desengajamento. Sua procura detalhes do chão, refeições, encontros festivos. Na por glimpses of beauty (lampejos de beleza) não é algo montagem – que pode acontecer no momento mesmo trivial: é um modo de resistir. da filmagem, ou anos depois, num trabalho que envolve horas e horas de material bruto – ele privilegia os bons Também é uma forma de resistência seu modo de se momentos, buscando a beleza em cada fotograma, como relacionar com os filmes. Figura central do cinema quem remonta a vida mesma, retirando dela o que há underground, fundador da Film Makers’ Cooperative, de triste e sombrio. Para quem passou por um campo em 1962, e do Anthology Film Archive, em 1964, ele 28
trabalhou arduamente para incentivar a produção e a circulação de filmes experimentais que dificilmente teriam existido ou vindo a público não fosse sua atuação. Sempre preferiu agir em comunidade: no princípio, ao lado do irmão Adolfas – com quem criou, em 1954, aquela que seria uma das mais importantes publicações sobre cinema nos Estados Unidos, a revista Film Culture - depois, com os amigos que conheceu em Nova Iorque, dentre os quais Stan Brakhage, Ken Jacobs, Tony Conrad, Peter Kubelka e Hollis Frampton. É importante destacar sua atuação como crítico: além da Film Culture, ele manteve de 1958 a 1971 uma coluna no Village Voice, seu célebre Movie Journal, parcialmente traduzido para este catálogo.2 Faz sentido que ele investisse em escrever suas impressões e pensamentos sobre os filmes que via, os festivais que frequentava. Sua concepção de cinema inclui uma necessidade de partilha, de esforços mútuos, de cumplicidade nas escolhas. Com isso, ele se afasta em larga medida de um cinema de autor – na contracorrente da tendência europeia3 – para se aproximar de modos coletivos de ver e fazer filmes, despretensiosamente mas com elevado comprometimento afetivo e intelectual. De certo modo, foi através do cinema que ele conseguiu, finalmente,
reencontrar seu paraíso perdido, agora reinventado no Brooklyn, ao lado de uma grande família de realizadores, críticos e artistas de diversas áreas. A vida, no fim das contas, lhe foi gentil o bastante para que ele se considerasse, como anuncia o título de um de seus filmes mais recentes, a happy man. Aos 91 anos, Mekas continua em atividade. Revela-se, como sempre, um homem do seu tempo: seu trabalho abraçou o digital sem o saudosismo de alguns de seus colegas apegados à película 4, sem reconhecer no vídeo o mesmo valor artístico. Em 2007, ele lançou em sua página na internet (www.jonasmekas.com) o 365 days project, série de 365 vídeos, postados um por dia, com duração entre dois e quinze minutos, num total aproximado de trinta e oito horas de material. A ideia permanece a mesma - fazer do cinema um trabalho diário - agora com as facilidades que a produção digital e a divulgação on line permitem. Tem de tudo: livros que está lendo, declarações de amor, cenas de arquivo, e muitos, muitos encontros e viagens. A lógica de seus filmes anteriores - valorizar cada momento, sem buscar homogeneizar o conjunto deles, mas intensificando o que há de singular e epifânico em cada um - marca
2. O catálogo da mostra Jonas Mekas realizada no CCBB em 2013, organizado pela curadora e pesquisadora Patrícia Mourão, traz traduções inéditas de textos do diretor escritos para a Film Culture e o Movie Journal. Selecionamos aqui trechos do Movie Journal ainda não traduzidos, buscando complementar o trabalho iniciado junto ao CCBB. Para os originais em inglês, conferir MEKAS, Jonas. Movie Journal: The Rise of a New American Cinema, 1959-1971. NY: Collier Books, 1972.
3. Cf. MOURÃO, Patrícia. A ordem do cinema. Neste catálogo.
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fortemente a iniciativa. Se nos filmes, contudo, ele ainda se mostrava devedor de uma certa ordenação cronológica ou temática, dessa vez ele se liberta por completo, fazendo valer por si cada fragmento em sua diversidade de cenários, personagens e assuntos. Não há necessariamente correspondência entre a data de filmagem e a data de divulgação. O que resta, intacto, é seu desejo de fazer da câmera algo como um cronômetro ou um metrônomo, cadenciadora do tempo que passa, cobrindo o calendário de imagens e indissociando, de vez, cinema e vida.
4. Peter Kubelka, por exemplo, é um desses colegas. Cf.‘I’m an Outsider. I’m a Monk. I’m Somewhere Else’. Interview with Jonas Mekas. In: http://www. rouge.com.au/12/ mekas.html
5. THOREAU, Henry David. Walden; or, Life in the woods, 1854.
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estão intimamente imbricados na forma com que são traduzidos em sons e imagens. Como o próprio título indica, a referência ao Walden de Thoreau5 (obra seminal da escrita autobiográfica estadunidense) reforça essa criação como sendo da ordem do diário, ainda que as notas e os esboços filmados evidenciem as camadas de um material enraizado em origens e tempos diversos.
Já em Reminiscences of a Journey to Lithuania, é o retorno à Lituânia de origem, após uma ausência de vinte e cinco anos, que impulsiona a criação fílmica. Os reencontros com a mãe, os irmãos e o vilarejo de Foi uma decisão natural, portanto, privilegiar na nascença colocam em operação a retomada de uma vida curadoria da presente mostra seus mais célebres fil- em comunidade, ainda que se reconheça a impossibimes-diário. A começar por Walden, primeiro filme a lidade de um retorno efetivo ao local do passado, ou lançar as bases da estilística que marcaria sua filmo- um conhecimento da Lituânia do presente das filmagrafia. Ao compor uma obra que incorpora uma série gens. A visita ao local onde ele e Adolfas viveram em de trabalhos prévios, com imagens de vários even- um campo de trabalho forçado (durante a II Guerra tos e espaços, e propostas de filme que foram sendo Mundial) surge como um dos muitos atravessamentos gradualmente abandonadas, Mekas criou um todo entre história coletiva e trajetória pessoal no cinema fílmico que transforma sua fragmentação em força desenvolvido por Mekas. A sensação de não pertenmotriz. Walden concebe a ancoragem do cinema no cimento, da displaced person, evocada em Reminiscences cotidiano a partir de sua própria estrutura, na qual os está igualmente presente em Lost, Lost, Lost. Aqui, ele gestos de rememorar e fabular, filmar a vida e vivê-la, dá continuidade ao modo de escrita diarístico por meio
de um regresso ao começo, com as primeiras imagens duração, que abrange o longo período de 1970 a 1999. captadas por Jonas e Adolfas ao chegarem em Nova A atenção para o que acontece “entre ações”, para os Iorque em 1949. A primeira Bolex, a comunidade de gestos que conformam o dia a dia, o ambiente familiar emigrantes lituanos, os eua da década de 1950. Por e a esfera doméstica, nos mostram como o extraordimais que as imagens nos mostrem as transformações nário faz parte da vida cotidiana assim como o que em curso, e a narração indique o retorno a um “lar” (tão convencionamos chamar de ordinário – algo que o reiterado quanto impossível), elas só evidenciam como cinema de Mekas vem afirmando há décadas. “Nada nós nunca saberemos, de fato, “o que um refugiado acontece nesse filme”, dizem os intertítulos. Que esse pensa à noite, em Nova Iorque”. “nada” esteja impregnado de significação e beleza, é só mais um modo de reafirmar sua aposta na vida como Em Paradise Not Yet Lost (aka Oona’s Third Year), o foco fonte infindável de matéria fílmica. E ao acompanhar está no núcleo familiar recém formado, com sua esposa o caminho trilhado por Mekas no decorrer de trinta Hollis Melton e, em especial, com Oona, a primeira anos, por meio de imagens combinadas ao acaso (ou filha do casal. Um filme dedicado aos fragmentos do assim ele nos diz), parece ser possível adentrarmos paraíso, para citar um de seus intertítulos, que tam- em sua própria memória, à procura de “algum tipo de bém pode ser lido como uma carta para Oona sobre ordem nisso, sua própria ordem”, como anuncia uma sua infância (no presente das imagens) e seu futuro das falas de abertura do filme. Uma procura que não (com os conselhos proferidos por Mekas ao longo do pretende, ao fim, encontrar uma resposta para suas filme), dialogando com o passado no país de origem próprias indagações. com outra viagem à Lituânia. Compondo o recorte de filmes-diário apresentamos Com As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Out-takes from the Life of a Happy Man, longa-metragem Glimpses of Beauty, vemos sua empreitada diarística finalizado em 2012 com imagens que não encontraram radicalizada em um filme de quase cinco horas de lugar nos demais filmes. A mostra também contempla 31
trabalhos que não se inserem no recorte dos filmesdiário, mas possibilitam um maior aprofundamento acerca da trajetória pessoal e cinematográfica de Jonas Mekas. Dentre eles, The Brig, adaptação de uma peça de Kenneth Brown (que havia sido fuzileiro naval durante a II Guerra) que retrata a brutalidade de uma prisão militar dos eua. Aliado a Guns of the Trees (1962), seu primeiro longa-metragem, é uma obra de indiscutível influência ficcional, apontando para um caminho que seria posteriormente abandonado no que concerne a linguagem e as temáticas desenvolvidas nas décadas seguintes.
ao final, de uma homenagem de um emigrante lituano para outro.
Completando a seleção de filmes onde o foco reside em amigos, artistas e demais figuras notórias que se relacionaram com o autor ao longo de sua vida (ainda que também seja um filme-diário), He stands in a desert counting the seconds of his life figura como obra central. Dividido em 124 partes, o filme (que seria inicialmente intitulado “Anthropological Sketches”) aponta para um material de caráter mais impessoal, para “a vida observada a uma leve distância”. Mekas apresenta sua comunidade: vemos imagens de Hans Richter, Destacamos ainda os médias-metragem Notes for Jerome Rossellini, Marcel Hanoun, Adolfo Arrieta, Henri e Zefiro Torna or Scenes from the Life of George Maciunas, Langlois, Cavalcanti, Kubelka, John Lennon, Jackie duas belas elegias endereçadas a amigos próximos. O Onassis, Lee Radzwill, John Kennedy Jr. e Caroline, primeiro, um retrato do artista Jerome Hill, acompa- Andy Warhol, P. Adams Sitney, Yoko Ono, Allen nha visitas à casa de Hill na cidade francesa de Cassis, Ginsberg, dentre vários outros. construindo uma sensível homenagem a um amigo falecido. Já em Zefiro Torna acompanhamos seu amigo The Brig (1964), Walden (1964-68/1968-69), Reminiscences Georges Maciunas em momentos do dia a dia, eventos of a Journey to Lithuania (1971-1972), Lost, Lost, Lost e performances do grupo Fluxus, enquanto Mekas lê (1949-63/1976), Notes for Jerome (1966-74/1978), Paradise passagens de seu próprio diário em voz over. Trata-se, Not Yet Lost (1977/1979), He stands in a desert counting the seconds of his life (1969-84/1985), Zefiro Torna or Scenes 32
from the Life of George Maciunas (1958-72/1992), As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (1970-99/2000) e Out-takes from the Life of a Happy Man (2012), formam um conjunto coeso e representativo dos filmes que compõem sua obra. É possível notar as repetições e correspondências, de um filme a outro - viver não é repetir ações, dia após dia? Apesar disso, é importante estar atento às mínimas variações, aos detalhes ínfimos: toda a beleza do mundo pode ser revelada num fotograma. No cinema de Jonas Mekas, cada imagem é impregnada desse gesto obstinado de ligar a câmera diariamente e, assim, vibrar com o presente. Essa mostra contou com a colaboração de Patrícia Mourão, que além de material bibliográfico e das legendas dos filmes, compartilhou conosco suas ideias sobre o trabalho do diretor e os possíveis caminhos de aproximação à sua obra. A pesquisadora também participa deste catálogo com ensaio inédito e apresenta a sessão do filme Walden. Agradecemos ainda a Pip Chodorov, por ter nos auxiliado com a localização das películas exibidas, a Mateus Araújo e Yann Beauvais, por terem aceito o convite de debater a obra de Mekas
na mesa redonda que compõe nossa programação, e ao Cine Humberto Mauro/Fundação Clóvis Salgado pelo apoio em relação aos direitos de exibição dos filmes. Um agradecimento final vai para os autores dos textos publicados neste catálogo – Paul Adams Sitney por “Jonas Mekas e o filme-diário”6, Benjamin Léon e Emeric de Lastens por “Paraíso perdido e reencontrado”7 e, é claro, ao próprio Jonas Mekas, sem o qual não teria sido possível realizar essa mostra.
6. Originalmente publicado como um dos capítulos do livro Eyes Upside Down: Visionary Filmmakers and the Heritage of Emerson de Paul Adams Sitney. Nova York: Oxford Press, 2008.
7. Originalmente publicado em Jonas Mekas : films, videos, installations (19622012) – catalogue raisonné, Pip Chodorov (org.,) com o título “Paradis perdu et retrouvé”. Benjamin Léon & Emeric de Lastens. Paris: Paris Expérimental, 2012.
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JONAS MEKAS The Brig A prisão
Walden - Diaries, Notes and S ketches Walden - diários, notas e esboços
EUA, 1964, 16 mm, p&b, 68’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem: Adolfas Mekas Produção editing David C. Stone Contato contact info@jonasmekasfilms.com, filmmakerscoop@gmail.com
EUA, 1964-68/1968-69, 16 mm, cor, 180’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem editing Jonas Mekas Contato contact info@jonasmekasfilms.com, lightcone@lightcone.org
Peça de Kenneth H. Brown encenada no Living Theatre, Nova Iorque. Sem leveza ou compaixão, este angustiante exercício revela o tratamento metódico e cruel imposto 24 horas por dia a 10 prisioneiros por 3 guardas, todos, aparentemente, no cumprimento de seu dever.
“Desde 1950 mantenho um filme-diário (…). Tenho caminhado por aí com minha Bolex e reagido à realidade imediata: situações, amigos, Nova Iorque, as estações do ano. Em alguns dias filmo dez quadros, em outros dez segundos, em outros, ainda, dez minutos. Ou não filmo nada. Quando você escreve um diário, é um processo retrospectivo: você se senta, reflete sobre seu dia e deita tudo sobre o papel.” – j.m.
Play by Kenneth H. Brown staged at the Living Theatre, New York. Unrelieved by one whit of lightness or compassion, this harrowing screen exercise depicts the methodical, round-the-clock fiendishness inflicted on 10 prisoners by three guards, all of it apparently in the line of duty.
cine humberto mauro, 27 nov, 17h 34
“Since 1950 I have been keeping a film diary (…). I have been walking around with my Bolex and reacting to the immediate reality: situations, friends, New York, seasons of the year. On some days I shot ten frames, on others ten seconds, still on others ten minutes. Or I shot nothing. When one writes diaries, it’s a retrospective process: you sit down, you look back at your day, and you write it all down.” – j.m.
cine humberto mauro, 23 nov, 21h
JONAS MEKAS Reminiscences o f a Journey to Lithuania Reminiscências de uma viagem para a Lituânia
Lost, Lost, Lost
EUA, 1971/1972, 16 mm, cor/p&b, 82’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem editing Jonas Mekas Contato contact info@jonasmekasfilms.com, cinedoc@wanadoo.fr
EUA, 1949-63/1976, 16 mm, cor/p&b, 180’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem editing Jonas Mekas Contato contact info@jonasmekasfilms.com, lightcone@lightcone.org
“Este filme está dividido em três partes. A primeira parte é composta pelo material que filmei com minha primeira Bolex, durante meus primeiros anos na América, sobretudo entre 1950 -1953. A segunda parte foi filmada na Lituânia. Quase tudo em Semeniskiai, o vilarejo onde nasci. Não se pode perceber de fato como a Lituânia é hoje: pode-se percebê-la apenas através das memórias de um exilado que retorna à casa pela primeira vez após 25 anos.” – j.m.
“Estes seis rolos de meus filmes-diários são dos anos de 1949-1963. Eles começam com minha chegada a Nova Iorque, em novembro de 1949. O primeiro e segundo rolos lidam com minha vida como um jovem poeta e um sujeito deslocado no Brooklyn. Mostra a comunidade de imigrantes lituanos, suas tentativas de se adaptarem à nova terra e seu trágico esforço de se libertarem de seu país de origem.” – j.m.
“The film consists of three parts. The first part is made up of footage I shot with my first Bolex, during my first years in America, mostly from 1950-1953. The second part was shot in Lithuania. Almost all of the footage comes from Semeniskiai, the village I was born in. You don’t really see how Lithuania is today: you see it only through the memories of a Displaced Person back home for the first time in twenty-five years.” – j.m.
cine humberto mauro, 28 nov, 19h30
“These six reels of my film diaries come from the years 1949-1963. They begin with my arrival in New York in November 1949. The first and second reels deal with my life as a Young Poet and a Displaced Person in Brooklyn. It shows the Lithuanian immigrant community, their attempts to adapt themselves to a new land and their tragic efforts to regain independence for their native country.” – j.m.
cine humberto mauro, 22 nov, 21h 35
JONAS MEKAS Notes for Jerome Notas para Jerome
Paradise Not Yet Lost (a.k.a. Oona's Third Year) Paraíso ainda não perdido (ou o terceiro ano de Oona)
EUA, 1966-74/1978, 16 mm, cor, 45’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem editing Jonas Mekas Contato contact info@jonasmekasfilms.com, filmmakerscoop@gmail.com
EUA, 1977/1979, 16 mm, cor, 96’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem editing Jonas Mekas Contato contact info@jonasmekasfilms.com, filmmakerscoop@gmail.com
“Durante o verão de 1966 passei dois meses em Cassis, como hóspede de Jerome Hill. Voltei a visitá-lo brevemente em 1967, com Paul Adams Sitney. O material deste filme foi feito nessas duas visitas. Mais tarde, depois da morte de Jerome, visitei sua casa em Cassis, em 1974. Aqueles foram, para mim, verões solitários, pensava muito sobre minha casa. Por isso este filme, essa elegia a Jerome, é dedicada ‘ao vento da Lituânia’.” – j.m.
“Este filme está dividido em seis partes. A primeira parte se passa em Nova Iorque. Vemos muito da vida doméstica e da cidade. Vemos muito de nossa filha Oona. (…) É um filme-diário e ao mesmo tempo uma meditação sobre o tema do Paraíso. É uma carta a Oona; para servir a ela, algum dia, como uma lembrança distante de como era o mundo ao seu redor nos seus três anos de vida.” – j.m.
“During the summer of 1966 I spent two months in Cassis, as a guest of Jerome Hill. I visited him briefly again in 1967, with P. Adams Sitney. The footage of this film comes from those two visits. Later, after Jerome died, I visited his Cassis home in 1974. Those were lonely summers for me, I thought a lot about home. That’s why this film, this elegy for Jerome is dedicated ‘to the wind of Lithuania’.” – j.m.
“The film is divided into six parts. The first part takes place in New York. We see a lot of home life and the city. We see a lot of our daughter Oona whose third year of life this is. (…).It’s a diary film but also it is a meditation on the theme of Paradise. It is a letter to Oona; to serve her, some day, as a distant reminder of how the world around her looked during the third year of her life.” – j.m.
cine humberto mauro, 26 nov, 19h
cine humberto mauro, 01 dez, 19h
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JONAS MEKAS He Stands in a Desert Counting the S econds o f His Life Do deserto ele conta os segundos de sua vida
Ze firo Torna or Scenes From the Life o f George Maciumas Zefiro Torna ou cenas da vida de George Maciunas
EUA, 1969-1984/1985, 16 mm, cor, 150’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem editing Jonas Mekas Contato contact info@jonasmekasfilms.com, cinedoc@wanadoo.fr
EUA, 1952-78/1992, 16 mm, cor, 34’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem editing Jonas Mekas Contato contact info@jonasmekasfilms.com, lightcone@lightcone.org
“As filmagens cobrem o período entre 1969 e 1984. Estou incluindo no filme apenas as filmagens mais impessoais. Retratos de pessoas com quem estive, lugares, estações do ano, o tempo, muitos de meus amigos cineastas como Hans Richter, Rossellini, Henri Langlois, Cavalcanti (…) ou apenas amigos, como John Lennon, Jackie Onassis, John Kennedy Jr. & Caroline, Allan Ginsberg, George Maciunas, e tantos outros.” – j.m.
Uma homenagem de um expatriado lituano a outro, Zefiro Torna é Jonas Mekas em seu mais profundo e sincero sentimento. Construído a partir de cenas da vida de Maciunas desde meados dos anos de 1950 até sua morte trágica e precoce nos anos 70, essa produção do início dos anos 90 é um belo retrato de um amigo que partiu, um espírito vivo.
“The footage covers the period from 1969 to 1984. I am including in this film only the most impersonal footage. Portraits of people I have spent time with, places, seasons of the year, weather, many of my filmmaker friends such as Hans Richter, Rossellini, Henri Langlois, Cavalcanti (…), or just friends, such as John Lennon, Jackie Onassis, John Kennedy Jr. & Caroline, Allen Ginsberg, George Maciunas, and countless others .” – j.m.
cine 104, 24 nov, 20h30
A tribute from one Lithuanian expatriate to another, Zefiro Torna is Jonas Mekas at his most heartfelt. Comprised of diary footage of Maciunas from the mid-50s until his tragically early passing in the mid-70s, this early-90s production is a beautiful portrait of a lost friend and living spirit.
cine humberto mauro, 27 nov, 17h 37
JONAS MEKAS As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty Ao caminhar entrevi breves lampejos de beleza
Out-takes from the Life o f a Happy Man Restos da vida de um homem feliz
EUA, 1970-99/2000, 16 mm, cor, 288’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem editing Jonas Mekas Contato contact info@jonasmekasfilms.com
EUA/Inglaterra, 2012, 16 mm, cor, 68’ Direção direction Jonas Mekas Fotografia photography Jonas Mekas Montagem editing Jonas Mekas Contato contact info@jonasmekasfilms.com, the@film-gallery.org
“Filmado entre 1970 e 1999, editado em 2000. Ao caminhar entrevi breves lampejos de beleza é um registro de sutis sentimentos, emoções, alegrias diárias, gravadas nas vozes, rostos e pequenas atividades cotidianas das pessoas que conheci, convivi ou observei – algo que venho filmando há anos. Isto em oposição às espetaculares, divertidas, sensacionais e dramáticas situações que dominam grande parte da produção cinematográfica contemporânea.” – j.m.
“Um filme composto de breves cenas de diários não utilizadas em filmes realizados entre 1960 e 2000; e imagens auto-referenciais gravadas em vídeo durante a montagem. Breves vislumbres de familiares, amigos, namoradas, a cidade, estações do ano, viagens. Ocasionalmente falo, relembro, ou toco músicas que gravei durante estes anos. É um tipo de poema diarístico, autobiográfico, uma celebração da felicidade e da vida.” – j.m.
“Filmed between 1970 and 1999, edited in 2000. As I Was Moving Ahead... is a record of subtle feelings, emotions, daily joys of people as recorded in the voices, faces and small everyday activities of people I have met, or lived with, or observed -- something that I have been recording for many years. This, as opposed to the spectacular, entertaining, sensational, dramatic activities which dominate much of the contemporary film-making” – j.m.
cine 104, 30 nov, 18h 38
“A motion picture composed of brief diaristic scenes not used in completed films from the years 1960-2000; and self-referential video footage taped during the editing. Brief glimpses of family, friends, girl-friends, the City, seasons of the year, travels. Occasionally I talk, reminisce, or play music I taped during those earlier years. It’s a kind of autobiographical, diaristic poem, celebration of happiness and life.” – j. m.
cine humberto mauro, 26 nov, 19h
competitivas
Júri Competitiva Nacional
César Guimarães
Tadeu Huni Kuin
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Doutor em Estudos Literários (Literatura Comparada) e pós-doutorado pela Universidade Paris 8 (2002). Tem atuado principalmente nos seguintes temas: cinema moderno (ficção e documentário) e experiência estética. Editor da revista Devires: Cinema e Humanidades.
Morador da aldeia São Joaquim do rio Jordão, no Acre. Professor formado pela comissão pró Índio do Acre, pratica o ensino diferenciado nas aldeias. Formado como realizador pelo Vídeo nas Aldeias co-dirigiu o filme Shuku Shukuwe, a vida é para sempre (2012) e participou da realização do filme Xinã Bena, Novos Tempos (2006), Huni Meka, os Cantos do Cipó (2006) e Já me transformei em Imagem (2008)
Geraldo Veloso Diretor, critico, curador e montador. Dirigiu o centro de estudos cinematográficos (cec) e editou a Revista de Cinema. Coordenou várias das edições do festival de curtas de Belo Horizonte. Geraldo Veloso montou Anjo Nasceu, Matou a família e foi a cinema e Lágrima Pantera, de Júlio Bressane, blábláblá, de Andrea Tonacci, dentre outros, e dirigiu Perdidos e Malditos, Homo Sapiens e O Circo das Qualidades Humanas.
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Júri Competitiva Internacional
Luiz Pretti
Vincent Carelli
Cineasta e montador, membro da produtora/coletivo Alumbramento. Como diretor realizou inúmeros curtas e 4 longas lançados em cinema comercial, exibidos e premiados em importantes festivais nacionais e internacionais.
Indigenista e coordenador do vídeo nas aldeias. Realizador de vários filmes, finalizou em janeiro de 2009, Corumbiara, premiado em diversos festivais nacionais e internacionais.
Roberta Veiga Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da ufmg. Integrante do Grupo Poéticas da Experiência onde desenvolve a pesquisa: “Formas de escrita de si no cinema contemporâneo”. Editora da Revista Devires: Cinema e Humanidades.
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mostra competitiva nacional
A cidade, o corpo, a cena Carolina Canguçu, Ewerton Belico, Victor Guimarães O Arrudas desce tranqüilo, grosso e pesado, Carregando cervejas, fetos guardados, rótulos de Farmácia, águas tristes refletindo estrelas. Tudo, ao depois, continuará irremediavelmente Como no princípio. Somente, ao longe, Na solidão de um poste, num fim de rua, O vento agita o capote do guarda.
o filme como “um abalo sísmico de 7 graus na escala Richter no cinema documentário em geral, ou, mais precisamente, no documentário baseado na fala”. E perguntava: “Pode-se superar Jogo de cena? Sim, mas como?”
Passados seis anos daquela noite arrebatadora, o abalo provocado pelo filme – e sintetizado por Bernardet – Dantas Mota, Noturno de Belo Horizonte parece fazer mais sentido do que nunca. No conjunto de filmes que a Competitiva Nacional de 2013 abriga, O ano era 2007. Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, era estão em jogo diferentes formas de deriva pelos mundos o filme de abertura do forum.doc. No intenso questio- ficcionais, que inventam lugares para o cinema docunamento do estatuto da representação cinematográfica mentário – e para o espectador – que oscilam entre a – e dos modos de implicação do espectador do docu- veracidade e a fabulação, entre a presença dos corpos e mentário – que o trânsito entre os relatos das atrizes a liberdade da memória. Diante de certo esgotamento convocava, toda uma tradição do cinema brasileiro (da de estratégias documentais clássicas e modernas – a qual Coutinho, um tanto paradoxalmente, era um dos mania de explicação, a predominância da entrevista –, maiores expoentes) parecia ser colocada em cheque. esses filmes fazem da multiplicação dos procedimentos Pouco tempo depois, Jean-Claude Bernardet definia ficcionalizantes um território livre de experimentação,
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tem a chance de ser, novamente, reconfigurada pelo filme. No devir ficcionalizante da memória, Mauro em Caiena descobre uma força de irrigação que contagia Em Filme para poeta cego, o encontro com Glauco não apenas a voz over – com sua tarefa constante de Mattoso é o disparador de uma aventura cinemato- destilar encantamento em tudo o que vemos –, mas gráfica singular: o documentário é tragado pela von- também as imagens, que se transformam numa matade de ficção de seu personagem, que não hesita em téria enfeitiçada em que cabem tanto as brincadeiras submeter o realizador aos estertores da fantasia mais infantis nas cercanias do bairro quanto os monstros delirante. Já em Avanti popolo, é o pacto ficcional que importados do oriente. é colocado em crise, seja na rarefação do drama, na conjuração das imagens de arquivo, nas performances Essa imensidão da memória também ganha corpo na dos atores-cineastas ou na encenação do luto pelo fim visita do cinema à casa do excêntrico Max Conrad Jr. em de um cinema. A que deve a honra da ilustre visita esse simples marquês?: entre os quadros, as revistas e os móveis antigos, o Em A onda traz, o vento leva, o cotidiano de um jovem personagem habita um território povoado por fantassurdo aparece transfigurado pelo gesto dramatúrgico, mas dos mais diversos. Em Espíritos batizam crianças que decide encontrar um traço romanesco ali onde (que recupera o gesto de Tatakox, filme que iniciava a menos se espera, nessas vidas ordinárias que se inven- produção audiovisual autônoma dos Maxakali na aldeia tam entre a casa e a rua. Retrato de uma paisagem, por Vila Nova), o cacique narra o batismo tradicional das sua vez, precisa instalar um bufão entre os transeuntes crianças, num ritual de iniciação que permite aos medo centro de Fortaleza, pois só assim é possível fa- ninos frequentarem a casa de reza (Kuxex). É através zer perguntas que não cabem no regime da fala veraz. do imenso repertório mítico e da variedade de cantos Na fratura entre a presença do flâneur inventado e os relacionados a eles que os Maxakali conservam na atendentes de lojas, os guardas e os camelôs, a cidade memória e nos corpos o modo de vida dos antepassados em que a crença parece sempre vacilar, numa busca constante de novos engajamentos com o mundo.
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e, diariamente, nos encontros dos homens no Kuxex e nas danças com os espíritos (yãmiyxop), estabelecem suas relações com os encantados. Na aventura de O Mestre e o Divino, o diretor não-indígena tenta representar um processo histórico doloroso por meio da relação entre os dois cineastas protagonistas , ao convocar os arquivos para provocar conversas entre eles. Em uma relação que se produz entre a admiração mútua e os dissensos acerca da história, as imagens são o terreno do conflito. Em Os dias com ele, a realizadora assume a difícil tarefa de imergir no passado de seu pai, insistindo em revelar aspectos do período da ditadura militar por meio das experiências daquele homem. Nessa busca, enfrenta sua resistência em falar de uma memória traumática e encontra uma forma de conhecer a si mesma na relação com um homem tão próximo e quase desconhecido. A proximidade e o desconhecimento constituem ainda parte do par dialético de oposições que se atravessam em Memória de Rio, entre o que há de mais visível e persistentemente denegado, o visível que não pode contudo se dar a ver: o rastro de destruição e barbárie
que atravessa nossa experiência coletiva e se materializa no Rio Tietê. A cidade constitui-se então como a arena de um rememorar de experiências silenciadas, mas conservadas nos corpos e nas ruínas. A potência dos corpos capazes de tanto rememorar quanto prefigurar uma fugidia experiência coletiva que se perdeu – mas que também se anuncia na forma dos rastros de uma utopia – atravessa dois filmes díspares, mas irmanados na crença no poder da dança para restituir uma espécie de sentido comum ao espaço em que se partilha a anomia e o anonimato: Esse amor que nos consome e A Batalha do Passinho. Pois nesse último vemos encenar-se nas disputas em torno do passinho a formação e a dissolução de identidades (e estereótipos) supostamente prefixadas em um turbilhão aonde se gesta uma espécie de cultura periférica afrodescendente radical e radicada na cidade. Essa cidade mesma aonde se vê, em torno dos gestos de um amor outonal em Esse amor que nos consome, a tentativa de radicar na produtividade da criação artística tanto a tentativa de reencontrar e reocupar uma cidade ameaçada e esvaziada ( desvelam-se então os signos da ameaça de destruição e os presságios de um renascer) quanto o 47
esforço de dissolver essa mesma produtividade na vida, de um modo em que as duas se confundam do mesmo modo em que, no filme, confundem-se o documental e o ficcional. Os rostos que povoam nossa experiência urbana empobrecida atravessam o percurso de Têta, protagonista de O Filme de Têta. Figura-se a cidade como utopia de liberdade das mulheres que vemos encarceradas e como máquina infernal, locus gerador dessa experiência de regulação e confinamento dos corpos. Pois o que se encena nos filmes que selecionamos, para além do caráter híbrido de trabalhos que a todo instante espreitam a ficção, é também o poder dos corpos, a potência lábil de um conjunto de performances que podem dar suporte ao que é mais frágil, quase irrepresentável, do que se resiste a dizer, somente se revela como canto, memória, objetos, dança, ficção.
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competitiva nacional A Batalha do passinho Passinho Dance O f f
A onda traz, o vento leva Ebb & Flow
Brasil, 2012, cor, 75’ Direção direction Emílio Domingos Fotografia photography Daniel Neves, Paulo Castiglione Montagem editing Guilherme Schumann Som sound Julio Lobato Produção producer Júlia Mariano, Emílio Domingos (Osmose Filmes) Contato contact osmosefilmes@gmail.com
Brasil/Espanha, 2012, cor, 28’ Direção direction Gabriel Mascaro Fotografia photography Gabriel Mascaro Montagem editing Eduardo Serrano Som sound Gabriel Mascaro, Joana Claude Produção producer Rachel Ellis Contato contact films@desvia.com.br
Quando o vídeo Passinho Foda atingiu 4 milhões de acessos no YouTube, Beiçola e seus amigos se surpreenderam. Gravado com uma câmera fotográfica digital num churrasco no quintal da casa, o vídeo mostrava uma nova forma de dançar funk. Em menos de uma semana, tinha virado febre na internet. Um fenômeno que revela como a cultura do funk se expandiu para além dos bailes, DJs e favelas.
Rodrigo é surdo e trabalha numa equipadora instalando som em carros. O filme é uma jornada sensorial sobre um cotidiano marcado por ruídos, vibrações, incomunicabilidade, ambiguidade e dúvidas.
When the video Passinho Foda reached 4 million views on YouTube, Beiçola and his friends got surprised. It was recorded with a digital camera at a barbecue in the backyard and showed a new way to dance funk. It was a hit on Internet in less than one week. A phenomenon that reveals how the funk culture has expanded beyond the parties, DJs and slums.
cine humberto mauro, 24 nov, 19h
Rodrigo is deaf and works installing sound systems in cars. This film is a sensory journey about a daily life marked by noise, vibration, incommunicability, ambiguity and doubt.
cine humberto mauro, 24 nov, 17h 49
competitiva nacional A que deve a honra da ilustre visita esse simples marquês? To what do I owe the honour o f this illustrious visit?
Avanti Popolo Avanti Popolo
Brasil, 2013, cor, 25’ Direção direction Rafael Urban, Terence Keller Fotografia photography Elisandro Dalcin Montagem editing Larissa Figueiredo Som sound João Menna Barreto Produção producer Ana Paula Málaga, Rafael Urban, Terence Keller Contato contact rafael@tuitamfilmes.com
Brasil, 2012, cor, 72’ Direção direction Michael Wahrmann Fotografia photography Rodrigo Pastoriza Montagem editing Ricardo Alves Jr., Fellipe Barbosa Som sound Fernando Russo Produção producer Sara Silveira Contato contact sara@dezenove.net
Max Conradt Jr. guarda a memória de um mundo em sua casa e recebe cada visitante com a mesma indagação: “A que deve a honra de tão ilustre visita este simples marquês?”
Através do resgate de imagens Super-8mm captadas pelo seu irmão nos anos 70, André tenta reavivar a memória do seu Pai que há 30 anos espera seu filho desaparecido.
Max Conradt Jr. keeps the memory of a world at home and welcomes each visitor with the same question: “To what do I owe the honour of this illustrious visit?”
Through the rescue of Super-8mm images shot by his brother in the ‘70s André tries to revive the memory of his father, who waits for his disappeared son over 30 years.
cine humberto mauro, 23 nov, 15h
cine humberto mauro, 22 nov, 17h
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competitiva nacional Espíritos Batizam crianças
Esse amor que nos consome This Love That Consumes
Brasil, 2012, cor, 22’ Direção direction Ismail Maxakali Fotografia photography Ismail Maxakali, Josemar Maxakali Montagem editing Ismail Maxakali, Marilton Maxakali Som sound Ismail Maxakali, Josemar Maxakali Produção producer INCTI (Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa) Contato contact rtugny@gmail.com, estrela@gmail.com
Brasil, 2012, cor, 80’ Direção direction Allan Ribeiro Fotografia photography Pedro Faenstein Montagem editing Ricardo Pretti Som sound Ives Rosenfeld Produção producer Ana Alice de Morais Contato contact allancinema@gmail.com
Enquanto as brumas da madrugada se dissipam, os Yãm yxop chegam na aldeia e tomam as crianças Maxakali/Tikm n carregando-as penduradas em suas costas. Faz-se necessário acordar o rio e amansá-lo para que banhe e batize os novos homens que agora passarão a frequentar a casa dos cantos. O filme expõe uma parcela do delicado sistema educacional Tikm n.
Gatto e Barbot são companheiros de vida há mais de 40 anos e acabam de se instalar em um casarão abandonado no Centro do Rio de Janeiro. Ali, eles passam a viver e ensaiar com sua companhia de dança. A luta do dia a dia se mistura à criação artística e à crença em seus orixás. Através da dança eles se espalham pela cidade, marcando seus territórios.
While the mists of dawn dissipate the Yãm yxop arrive in the hamlet and take the Maxakali/Tikm n kids on their back. It is necessary to wake up the river and tame it so the new men can be baptized and attend the chant house. The film exposes an aspect of the delicate educational system of the Tikm n people.
Gatto and Barbot are love partners for over 40 years and have just moved to an abandoned mansion in downtown Rio de Janeiro. They start to live and rehearse with their dance company there. Daily life struggles mix with artistic creation and the belief in their deities. Through dance they spread themselves over the city and mark their territories.
cine humberto mauro, 24 nov, 19h
cine humberto mauro, 25 nov, 17h 51
competitiva nacional Filme para Poeta Cego Film for B lind Poet
Mauro em Caiena Mauro in Cayenne
Brasil, 2012, cor, 26’ Direção direction Gustavo Vinagre Fotografia photography Thais Taverna Montagem editing Rodrigo Carneiro Som sound Ivan Russo Produção producer Juliana Vicente Contato contact festivais@pretaportefilmes.com.br
Brasil, 2012, cor, 18’ Direção direction Leonardo Mouramateus Fotografia photography Leonardo Mouramateus Montagem editing Leonardo Mouramateus, Salomão Santana Som sound Leonardo Mouramateus, Rodrigo Fernandes, Lucas Coelho de Carvalho Produção producer Leonardo Mouramateus Contato contact lmouramateus@gmail.com
Glauco Mattoso, poeta cego sadomasoquista, aceita participar de um documentário sobre a sua própria vida, mas as condições que ele impõe dificultam o trabalho do jovem diretor.
Admiro pra caramba essa capacidade, Mauro. De se transformar em outra coisa. Como um dinossauro ou uma lembrança.
Glauco Mattoso is a blind sadomasochistic poet that agrees to participate in a documentary about his life but the conditions he imposes to the young director make the work very difficult.
cine humberto mauro, 24 nov, 17h 52
I truly admire this ability to transform oneself into something else as a dinosaur or a souvenir, Mauro.
cine humberto mauro, 22 nov, 17h
competitiva nacional Memória de rio River's Memory
O filme de Têta The Têta's film
Brasil, 2013, cor, 14’ Direção direction Roney Freitas Fotografia photography André Luiz de Luiz Montagem editing Alexandre Taira Som sound Eric Ribeiro Christani Produção producer Daina Giannecchini Contato contact roneyfreitas@gmail.com
Brasil, 2012, cor, 62’ Direção direction Raquel do Monte Fotografia photography Marcelo Lordello Montagem editing Raphaella Spencer Som sound Moab Filho Produção producer Natália Vilar Contato contact rdomonte@gmail.com
“Destino, predestinações... meu destino. Estas águas Do meu Tietê são abjetas e barrentas, Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses.”
O documentário acompanha a rotina de Teta, uma recifense que acaba de passar por uma grande mudança em sua vida. Todos os domingos ela volta ao local em que ficou presa por anos. Lá, entre afetos e histórias, revive parte do seu passado. No entanto, apesar de tudo e com muita esperança, algo a conduz para outros lugares e é a consciência do seu papel que a faz seguir outros caminhos.
“Fate, predestination…my destiny. My Tietê waters are abject and muddy, they give fever, certainly give death and herons and antithesis.”
This documentary follows Teta’s routine, a woman born in Recife that has just experienced a big change in her life. Every Sunday she returns to the place where she was imprisoned for years. Among affection and stories she lives again part of her past. However, in spite of all and hopefully, something drives her to other places and it’s because she’s aware of her role that she follows other paths.
cine humberto mauro, 25 nov, 17h
cine humberto mauro, 23 nov, 15h 53
competitiva nacional Os dias com ele The days with him
O mestre e o Divino The master and Divino
Brasil, 2013, cor, 107’ Direção direction Maria Clara Escobar Fotografia photography Maria Clara Escobar Montagem editing Julia Murat, Juliana Rojas Som sound Maria Clara Escobar Produção producer Paula Pripas Contato contact paulapripas@filmesdeabril.com.br
Brasil, 2013, cor, 84’ Direção direction Tiago Campos Tôrres Fotografia photography Ernesto de Carvalho Montagem editing Amandine Goisbault Som sound Nicolas Hallet Produção producer Vincent Carelli Contato contact amandine.goisbault@gmail.com
Uma jovem cineasta mergulha no passado quase desconhecido de seu pai. As descobertas e frustrações de acessar a memória de um homem e de uma parte da história que são raramente expostos. Ele, um intelectual brasileiro, preso e torturado durante a ditadura militar não fala sobre isso desde aquele tempo. Ela, uma filha em busca de sua identidade.
Dois cineastas retratam a vida na aldeia e na missão de Sangradouro, Mato Grosso: Adalbert Heide, um missionário Alemão, que logo depois do contato com os índios, em 1957 começa a filmar com sua câmera Super-8; e Divino Tserewahu, jovem cineasta Xavante, que produz filmes desde os anos 90. Eles dão vida aos seus registros históricos, revelando bastidores bem peculiares da catequização indígena no Brasil.
A young filmmaker dives into the almost unknown past of her father. She comes across findings and frustrations when accessing the memory of a man and a part of history that is rarely exposed. He’s a Brazilian intellectual imprisoned and tortured during the military dictatorship and doesn’t talk about it since then. She is a daughter searching her identity.
cine humberto mauro, 25 nov, 19h 54
Two filmmakers portray life in the village and in the church mission of Sangradouro, Mato Grosso: Adalbert Heide, an German missionary, who soon after the contact with indigenous people in 1957 starts filming with his Super-8 camera, and Divino Tserewahu, a Xavante filmmaker who produces movies since the 90s. They give life to their historical records making come on the scene aspects of indigenous catechism in Brazil.
cine humberto mauro, 23 nov, 17h
competitiva nacional Retrato de uma paisagem Portrait o f a Scenery
Brasil, 2012, cor, 34’ Direção direction Pedro Diogenes Fotografia photography Victor de Melo Montagem editing Guto Parente, Luiz Pretti, Ricardo Pretti Som sound Pedro Diogenes Produção producer Carol Louise Contato contact contato@alumbramento.com.br
Um filme sobre a cidade. Um filme sobre pessoas. Estamos vivendo o começo da era da sociedade urbana. Um novo campo ainda ignorado e desconhecido. E o cenário do futuro ainda não se encontra estabelecido. This film is about the city and people. We are experiencing the beginning of the urban society era, which is still an unknown and ignored field. And the future scenario is not yet established.
cine humberto mauro, 24 nov, 17h 55
mostra competitiva internacional
A Caça Impossível Tiago Mata Machado, Pedro Portella, Raquel Junqueira “The Hunting of the Snark” é o título de um poema nonsense de Lewis Carrol que descreve “a caça impossível de uma tripulação improvável por uma criatura inconcebível”. No filme homônimo de François-Xavier Drouet, essa “criatura inconcebível” são os alunos da Snark, uma instituição educacional independente, de cunho não-repressivo, onde vão parar crianças que não se adaptam ao sistema escolar belga. A ideia de começar a mostra por esse filme em que os adultos (professores obstinados, em um eterno trabalho de Sísifo) se veem às voltas o tempo inteiro com o mistério insondável da juventude (seu louco dispêndio de energia psíquica) não foi uma escolha de todo fortuita. O filme de Drouet nos deixa uma pista, uma questão: afinal, o que faz com que os jovens, em sua imaturidade selvagem, sejam personagens sempre tão mais flagrantemente interessantes do que seus perseverantes professores, por que parecem ter até mesmo mais a dizer e a ensinar do que estes? E de onde vem, haveremos de nos perguntar nas sessões subsequentes da mostra, esse elo funda-
mental do cinema com essa “criatura inconcebível”, o jovem? De onde vem essa obsessão do cinema pela imperfeição, pelo não-acabado, pela inferioridade e a insuficiência – a juventude, enfim – se o homem tende tanto ao absoluto, se “o infinito é tão indispensável ao homem quanto este pequeno planeta onde ele mora”, como dizia certo personagem dostoievskiano, se até o mais estúpido de nós tem a necessidade da ideia do grande a ponto de ficar doente e em desespero se dela privado? Le diable, probablement – responderia um certo Robert. O diabo é que “o homem não quer ser Deus” (a provocação lançada por Gombrowicz aos existencialistas), o “homem quer ser jovem”. A caça impossível na Snark lembra algo dos romances de Gombrowicz: nela encontramos um tanto da dialética (correspondente às idades do homem) entre a plenitude e a não-plenitude, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento, valor e subvalor (ou entre a ordem e o caos, para voltar a Lewis Caroll): a educação con59
1. Não seriam os filmes também fruto de uma tal dialética entre as formas acabadas (e superiores da arte) e as não-acabadas, entre a liberdade dos corpos e a sua contenção no espaço (seu aprisionamento no quadro), entre o “presente indeterminado” dos acontecimentos filmados e a totalidade temporal, o passado, conferidos pela montagem? Não seria o pé fincado na modernidade pelo cinema um fruto da dissensão constante entre ordem (o mundo perfeitamente codificado e homogêneo das formas superiores, da grande arte que seja, sua pureza) e caos (o mundo como coleção de objetos heterogêneos, ruído, impureza)?
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sistindo muitas vezes em infantilizar os jovens através das ditas “formas superiores”, domesticar a potência bruta de ruptura da imaturidade através do mundo superior da cultura (se se detivesse um pouco mais nos professores, Drouet talvez descobrisse por trás da máscara de tolerância sábia alguma subcultura envergonhada, paixões inconfessadas, vícios compensatórios, compensações de toda espécie).1
equipe de cinema à caça de um personagem. Expulsos da comunidade no momento em que se decidiam por filmar Ricardo, os cineastas Gerardo Nauman e Nele Wohlatz arranjam uma bolsa para o jovem estudar em Buenos Aires, com a condição de que aceite ser protagonista do filme. A situação é contornada, mas a tensa negociação entre a comunidade e a equipe de cinema permanecerá como pano de fundo. Esse jogo em que a família e a comunidade tentam manter os pés Bem, cá estamos diante de Ricardo Bar, o personagem- do jovem bem fincados na tradição e o cinema entra título do segundo longa da mostra, um jovem em busca como agente desestabilizador e desenraizador (revelande sua vocação, às voltas com o infinito. Muito longe do, ainda uma vez, o seu velho e diabólico pacto com de ser um jovem-problema, um rapaz perfeitamente a modernidade) nos é apresentado de maneira irônica, integrado à sua comunidade, batistas descendentes distanciada, pelos cineastas, abordagem que constitui de alemães que vivem na fronteira da Argentina com um dos pontos fortes da obra. Uma forma que os reao Brasil. Lúcido, centrado, Ricardo é um típico bom- lizadores encontraram talvez de compensar a violência moço. No entanto, ele se vê obrigado a decidir entre de sua intervenção inicial, o fato de se terem posto a a vida de missionário e o trabalho na propriedade da extrair a fórceps (com base em uma quase chantagem) família, e é por essa indecisão momentânea, transição o devir do personagem. Nada a julgar: mesmo Drouet, natural na vida de qualquer jovem, que ele se torna um com seu método um tanto wisemaniano de abordar a personagem a ser seguido. É bem verdade que o rito Snark, sabe que um filme não se faz sem que o mundo de passagem de Ricardo Bar talvez houvesse transcor- se ponha a dançar, sem que o personagem dê um passo rido com mais naturalidade não fosse a chegada, na em direção à câmera (ao autor) e vice-versa. comunidade, de uma “tripulação improvável”, uma
Além do mais, como julgar a obsessão de um criador por seu personagem? A garota do sul, a terceira atração da mostra, é desses filmes que provam que uma obsessão é algo que se constrói. No filme de José Luís García testemunhamos a lenta elaboração de uma obsessão de vida inteira. A garota do sul começa pelas imagens colhidas em VHS por García em um encontro internacional da juventude comunista, o último promovido pela União Soviética, na Coreia do Norte, em 1989, pouco antes da queda do Muro de Berlim. Turista-revolucionário-acidental, substituindo o irmão militante por força do acaso, García testemunha, com sua câmera, a aparição meteórica e irresistível de uma jovem sul-coreana que burlara a vigilância das autoridades de seu país para se consagrar como “a flor da reconciliação” no evento soviético – a ascensão de uma estrela. De volta a Buenos Aires, García perde de vista sua heroína depois de descobrir que a moça fora presa na fronteira quando tentava retornar a seu país, condenada a três anos de prisão. Anos depois, com a ajuda de um amigo do bairro coreano, García se lança em busca do tempo perdido: Im Su-kyong, A garota do sul, já terá se consolidado para ele, a essa altura, em uma espécie de madeleine – uma ideia perdida de
sua juventude, como a de Proust, mas também, depois, como descobre o cineasta na longa e conflituosa relação que passa a estabelecer com a personagem no reencontro de 20 anos depois, uma espécie de duplo esvaziado, como a Madeleine de Hitchcock (Vertigo). A mulher temperamental e triste que García encontra anos depois, traumatizada pela morte do único filho, guarda pouca semelhança com a jovem heroína das memórias de García, e ainda que os créditos finais do filme nos informem sobre o seu futuro como deputada, o que resta de A garota do sul é uma impressão muito viva de que a verdadeira força política, o élan da mutação, está irremediavelmente ligado à juventude, ao heroísmo (e ao encanto com o próprio heroísmo) do jovem, sua nova percepção de mundo, uma verdadeira potência de ruptura. O quarto programa da mostra talvez seja, nesse sentido, o mais urgente, dois filmes em que a estética encontrase um pouco a reboque da política, de uma beleza que se confunde com a precariedade das vidas postas em cena. Se Ricardo Bar era um jovem que, apesar de perfeitamente integrado e amparado por sua comunidade, não escapava das vicissitudes naturais de um rito de 61
passagem juvenil, os jovens desses dois filmes, imigrantes, refugiados, clandestinos, exilados, excluídos do abrigo da tutela jurídica de um Estado, obrigados a lutar diariamente pela própria sobrevivência, vivem uma espécie de limbo, em uma eterna vida provisória, um permanente estado de exceção. Habitam o mundo como se este fosse apenas uma fachada por trás da qual podem se esconder. No entanto, porque são jovens, adaptam-se mais facilmente a essa situação, porque não encontram amparo em outra parte, amparam-se a si mesmos – de certa forma, eles são os verdadeiros heróis de um mundo em que o estado de exceção vem, pouco a pouco, a se tornar regra, mutantes do novo mundo. Dois filmes (complementares) em torno da figura do “homo sacer” contemporâneo, dos que vivem hoje sem cidadania plena, dos que se definem pelo prefixo “sem”: os sem-pátria e sem-Estado em Les Chebabs de Yarmouk (de Axel Salvatori-Sinz), filme em que acompanhamos o exílio eterno de um grupo de jovens nascidos em um campo de refugiados palestinos na Síria – obra realizada sem muitos recursos, mas da qual emerge uma impressionante “poética do campo”, verdadeiras reflexões sobre o exílio. Os “sem-direitos” e “sem-documentos” (os sans-papiers, “os piores escravos do mundo”, 62
como afirma um deles), em Sans image (filme de Fanny Douarche e Franck Rosier), filme que acompanha o dia a dia de um grupo de jovens imigrantes africanos na França. Essas vidas permanentemente colocadas em jogo são existências fundamentalmente éticas – era o que dizia Agamben a propósito da “vida dos homens infames” (de Foucault): “Ética não é a vida daquele que simplesmente se submete à lei moral, mas a do que aceita, irrevogavelmente e sem reservas, pôr-se em jogo”. O mais interessante desses filmes é a maneira como essas vidas se colocam em cena, o “pôr-se em jogo” adquirindo aqui uma conotação mais ampla, o outro significado do “jouer” francês (encenar): o laboratório teatral de Sans image, o petit théâtre brechtiano do grupo de Les Chebabs, o teatro como lugar possível de articulação político-coletiva, como resistência. Em Um verão com Anton, a resistência está onde menos se espera. O que assistimos, a princípio, é à reatualização de A Infância de Ivan (Tarkovsky), a história de uma criança que se deixa moldar para a guerra. Anton Belakov é um garoto russo de 12 anos que mora com a avó. O verão se aproxima e seu único verdadeiro anseio é ir passar as férias na Escola Kaskad, uma espécie de
campo de treinamento militar criado pelo governo Putin, estrondoso sucesso entre as crianças russas (os créditos nos informam que 60% delas já passaram pela escola). Na Kaskad, Anton aprende a lutar, a atirar e a odiar os muçulmanos tchechenos. O filme de Jasna Krajinovic, coproduzido pelos irmãos Dardenne, é um retrato alarmante do militarismo russo e do que já podemos convencionar chamar de “juventude putinista”. Mas, ao mesmo tempo, para Anton, a guerra não passa de uma grande brincadeira, a intensificação do jogo à sua máxima condição – a guerra como “jogo supremo” dos homens. O que resiste, em O verão de Anton, contra toda a vilania do Estado, é a inocência da infância – se Anton decide passar as férias em uma pré-escola militar, é porque quer se divertir e porque, como intui muito bem, brincar (de soldado ou de médico) é mais nobre do que trabalhar. É nesse sentido que a imagem de abertura do filme seguinte, 31 st Haul (de Denis Klebleev), tem algo de lúdico: dois soldados alquebrados, Vitalik e Yuri, tentando tirar da lama um velho tanque russo atolado. Para lubrificar um dispositivo do veículo, Yuri lança mão de um pote de maionese. O que parece começar com uma alegoria algo burlesca do fim do império soviético desemboca em uma inusitada
incursão etnológica, quando os viajantes chegam, enfim, a seu destino, uma pacata vila do extremo leste russo, onde são esperados, ansiosamente, pela dona do único armazém local – haverá quem se lembre do filme de Sergey Dvortsevoy, Bread Day (1998). A cultura militar serve também como pano de fundo em O capitão e seu pirata, em que um navio de carga de bandeira alemã é sequestrado por piratas somalis e se torna palco de um caótico motim. Rejeitado por sua tripulação, o velho capitão encontra um aliado inesperado na jovem figura heroica de um pirata somali. O filme de Andy Wolff é uma bela demonstração daquilo que René Girard (o autoproclamado “antropólogo da violência”) convencionou chamar de “crise do degree”.2 De todas as sociedades humanas, a militar é a mais sistematicamente hierárquica, logo, a mais estruturalmente mimética, uma longa e obediente cadeia de imitação cujo topo é sempre a parte mais vulnerável: sociedades assim, sugere Girard, tendem a se desintegrar de cima para baixo e, quanto mais ordenadas e disciplinadas, mais facilmente nelas a desordem se espalha quando aparece. No filme, a “crise de degree” do navio alemão nos é relatada pelo velho capitão (obri-
2. GIRARD, René, “O Teatro da Inveja”, Editora Realizações, p. 315 a 320.
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3. Não será exibido por problemas de distribuição do filme.
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gado a uma espécie de retiro forçado, depois de retornar a seu país) e pelo pirata somali que lhe foi solidário (em pleno exercício de suas atividades). A versão dos dois, perfeitamente complementar, bate de frente com a que o restante da tripulação impôs à mídia alemã. Em sua potência narrativa, esse documentário algo eletrizante tende à ficção. O programa 7 termina fazendo o caminho de volta, com A batalha de Tabatô,3 uma ficção pós-colonial africana que não deixa de remeter, em sua proposição, às origens do cinema etnográfico. Filmado na Guiné-Bissau por um cineasta português nascido em Angola, João Viana, o filme é uma surpreendente combinação da improvisação dramatúrgica das ficções africanas de Rouch com a algidez formal da escola bressoniana europeia. Ainda atormentado por lembranças da guerra colonial, o pai de Fatu, há anos exilado em Portugal, volta à Guiné-Bissau para o casamento da filha, professora universitária, na vila de Tabatô, onde vive uma antiquíssima linhagem de cantores-poetas, os músicos djidius. A batalha de Tabatô não deixa de ser um estranho objeto cinematográfico: quem já se habituou às estratégias consagradas pelo cinema contemporâneo haverá de estranhar a forma como documentário e ficção nele se combinam de ma-
neira bem mais espontânea e mesmo inocente – Viana parece ter atingido aquele ponto incerto da curva em que é possível reencontrar a inocência dos primeiros tempos por um desvio do saber. Nesse quesito, no entanto, nada se compara a Sieniawka, o filme que encerra a competitiva deste ano, de longe nossa escolha mais ousada. Um filme contemporâneo (“dedicado a tudo aquilo que do passado não se deixa recuperar”), mas às avessas: o caminho escolhido pelo polonês Marcin Malaszckak é o inverso daquele que se tornou o mais convencional no dito cinema contemporâneo, em que o material documental entra para pavimentar o chão de ficções mínimas, como garantia de autenticidade. Malaszckak, ao contrário, se serve da ficção, a máxima ficcionalização possível (teatro do absurdo + science fiction), para chegar à potência do falso de imagens documentais/observacionais retiradas de um sanatório polonês – isto é, nesse filme que pode ser visto como uma radicalização do espetáculo das Titicut Follies de Wiseman, é o documental que realiza as potências da ficção, levando muito mais longe, inclusive do ponto de vista estético, o teatro do absurdo encenado em seu prólogo. Com esse filme de extremos, perfeito ovni cinematográfico, encerramos a 17ª competitiva inter-
nacional do forumdoc .bh, tendo procurado dar conta da tarefa sempre um tanto paradoxal de articular, a partir do corpo de filmes que chegaram até nós, o comum (uma sensibilidade da época) e o singular, mantendonos sempre abertos a toda riqueza de possibilidades do cinema em suas relações simbólicas com o real.
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The impossible hunting* Tiago Mata Machado, Pedro Portella, Raquel Junqueira
* Tradução: Alessandra Carvalho
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“The Hunting of the Snark” is the title of a Lewis “inconceivable creature” come from? Where does the Carroll nonsense poem that describes “the impossible cinema obsession for imperfection, inferiority, insufhunting of an inconceivable creature by an unlikely ficiency and for the unfinished (youth itself) come crew”. In the homonymous movie by François-Xavier from if mankind tends to the absolute, if “the infinite Drouet, this “inconceivable creature” is represented by is so essential to man as this small planet in which he the students of Snark, an independent, non-repressive inhabits” (according to some Dostoievisky’s character); educational institution, where they receive children if even the most stupid of us is enslaved by the idea of who do not fit the Belgian school system. greatness? (to the point of getting sick and desperate if we are deprived of this idea?) Le diable, probablement, To open this exhibition with this movie, in which adults a certain Robert would answer. (obstinate teachers, in an endless Sisyphus effort) are implicated in the inscrutable mysteries of youth (the The damned thing is that “man doesn’t want to be mad waste of psychic energy), was not completely by God” (a Gombrowicz provocation to the existentialists), chance. Drouet’s movie leave us a hint, a question: “man wants to be young”. The impossible hunting of what makes of these young people –wildly immature the Snark (the school) brings to our memory some of creatures– notoriously more interesting characters than Gombrowicz’s novels: we find in it some dialectics their committed teachers? Why does it seem that they (regarding the ages of man) between plenitude and have more to tell us than the teachers? And where non-plenitude, development and underdevelopment, does the fundamental link between cinema and this value and undervalue (or simply between order and
chaos, according to Lewis Carroll). Commonly, to educate means nothing more than infantilize young people or domesticate their power to break by imposing a “superior culture”. If Drouet had detained himself a bit more on the teachers, may be he would have find an ashamed subculture, some unmentionable passions or addictions behind their masks of tolerance.
to be followed. It’s quite true that his rite of passage could have been elapsed more naturally were it not for the arrival of “an unlikely crew” in his community: a movie team “hunting” a character. As the filmmakers, Gerardo Nauman and Nele Wohlatz, were not accepted by the baptist community when they decided to shoot Ricardo, they arrange him a scholarship in Buenos Aires. Obviously with the condition that he accepts Here we are facing Ricardo Bar, the main character to take part in the movie. The situation is temporarily of the second movie in this exhibition. He is a young overcome, but the tense negotiations between movie man in search of his religious vocation, dealing with team and community will remain as the background. the infinite. Far from being a rebel, he is perfectly In this game, family and neighbors try to keep the integrated in his community of german descendant, young man well fastened to the traditions while cinema baptists who live near the border of Argentina and is the agent that upsets the stability (revealing, once Brasil. Ricardo represents the typical well balanced more, his ancient, diabolical pact with modernity). “good lad”. However, he has to decide between the This game is played by the filmmakers in a distant, missionary life and to work in his family property. It’s ironical way. This is one of the strengths of the work because of this natural, transitory hesitation in the life and maybe a way of compensating the violence of their of a young person that Ricardo becomes a character initial approach: the fact that they tried to capture by
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force (almost by blackmailing) the character’s devenir. Nothing to judge: even Drouet – with his wisemanian method of approaching Snark– knows that a movie is not made unless the world starts dancing or unless the character takes a step towards the camera (the author) and vice-versa. Besides, how to judge the creator’s obsession with his creature? The girl from the south proves that an obsession is something that one can build. In this movie by José Luís García we can witness the slow development of a whole life obsession. The opening images were shot in VHS during a youth international communist meeting promoted by the Soviet Union in North Korea (in 1989, shortly before the fall of the Berlin wall). Accidentalrevolutionary-tourist, replacing his militant brother by chance, García witnesses through his camera the rise of a star: the meteoric apparition of a young south korean woman who deceived the authorities of her country and became a symbol of the event: “the flower of reconciliation”. Back to Buenos Aires, García loses sight of his heroin. The last notice was that she had been arrested and sentenced to three years in prison when she was trying to cross the border. Some years later, with the 68
help of a korean friend, García is engaged in a search of lost time: Im Su-kyong, the south girl, becomes for him a kind of “madeleine”, the idea of his lost youth (as for Proust) but also a kind of emptied stuntman, like Madeleine in Hitchcock’s Vertigo. Years after, García meets a sad, temperamental woman broken by the death of her only son. This woman has little in common with the heroin of García’s memories. Even knowing that she becomes a deputy, what remains from The girl from the south is a very lively impression that the real political strength –the elán of the chance– is inevitably linked to youth, to the heroism of the young people and their renovated perception of the world: the true breaking capacity. In this sense, the fourth program is probably the most urgent one: two movies in which aesthetics trails behind politics, exposing beauty in relation to the unsafeness of life. If Ricardo Bar, despite of being perfectly integrated and supported by his community, doesn’t escape the natural ups and downs of a rite of passage, young people in these two movies have to face a little more harsh situation as immigrants, refugees excluded
from any juridical shelter. Forced to fight daily for risk, are essentially ethical. This is what Agamben their survival, these people live in a kind of limb, in a says about Lives of infamous men by Foucault: “A life permanent state of exception. They inhabit the world as is ethical not when it simply submits to moral laws it would be only a façade behind where they can hide. but when it accepts putting itself into play”. The most However, as young people, they can adapt themselves interesting thing about these movies is how those more easily: if they are not legally supported, they are human existences are “put into play”; this expression able to support themselves. In some way, these people corresponding, in a broad assertion, to the french word are the true heroes of a world in which the state of “jouer” (to stage, to play). This is what we see in the exception is becoming the rule. These movies are about theatrical laboratory of Sans image, the brechtian petit the contemporaneous “homo sacer”, people who can théâtre of the group Les Chebabs as the possible “place” be defined by deprivation: lack of document, lack of for playing politically and as means of resistance. citizenship, lack of country. In Summer with Anton, the act of resistance lies where Les Chebabs de Yarmouk (Axel Salvatori-Sinz) shows it’s not expected. At first, we watch to a kind of updatthe exile of young people born in a palestinian refugee ed version of Ivan’s Childhood (Tarkovsky), the story camp. Despite of being a low budget movie, this work of a child shaped for the war. Anton Belakov is a 12 inspires a really impressive “field poetics”, what makes years old russian boy who lives with his grandmother. of it a true reflection on exile. Summer is getting close and his sole desire is to spend vacations at a school called Kaskad, a kind of military Sans image, by Fanny Douarche and Franck Rosier, is training field created by Putin. This military field is a about a day in the life of young african immigrants resounding success among russian kids (in the closing living in France. They are undocumented (sans-papiers) credits we are informed that 60% of them have expeliving under no rights (“the worst slavery in the world”, rienced a summer in this school). In Kaskad, Anton as one of them says). These lives, permanently under learns how to fight, to shoot and to hate tchechenien 69
muslims. The movie by Jasna Krajinovic, co produced by the Dardenne brothers, is an alarming portrait of the russian militarism and represents what we can already define as a “putinist youth”. But at the same time, war is nothing more than a big game for Anton –the highest degree that a game can reach, war as a kind of human’s “utmost game”. In Summer with Anton, the innocence of childhood is what resists against the villainy of the State. If Anton decides to spend vacations at a military school is because he wants to have fun and because playing (soldier or doctor) is nobler than working, as he correctly guesses. In this sense, the opening image of the next movie, 31 st Haul (by Denis Klebleev), is kind of playful: two broken down soldiers, Vitalik and Yuri, are trying to take an old Russian tank off the mud. In order to lubricate the vehicle Yuri uses mayonnaise sauce. What seems to begin as a burlesque allegory of the end of the Soviet empire converges to an unusual ethnological incursion when the travellers finally arrive to their destination: a quiet far east Russian village where they are anxiously expected by the owner of the single local grocery store (some people will probably remember Sergey Dvortsevoy’s Bread Day, 1998).
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Military culture is also the background in The captain and his pirate. A ship loaded with German flags is kidnapped by Somali pirates and becomes the stage of a chaotic riot. The old captain, disallowed by his crew, finds an unexpected ally in the young heroic figure of a somali pirate. Andy Wolff’s movie is a great example of what René Girard (the self-proclaimed “anthropologist of violence”) called “crisis of degree”. Of all human societies, the military is the most systematically hierarchical. Consequently, it is also structurally mimetic. It could be seen as a long and submissive imitation chain whose highest point correspond exactly to the most vulnerable one. Societies like this, as Girard suggests, tends to disintegrate from the top to the bottom. The more they are ruled by discipline and order, the easier the disorder spreads around when it comes. In this movie, the “crisis of degree” of the german ship is reported by the old captain (forced to a kind of retirement after returning to his country) and by the somali pirate, the captain’s ally. Both versions, perfectly complementary, are in opposition to the version reported to the german media by the rest of the crew. Somehow thrilling, this documentary tends to fiction because of its narrative strengths.
The 7th program closes by making the way back with The Battle of Tabatô, an african post-colonial fiction that alludes to the origins of ethnographic movies. Shot in Guinea-Bissau by João Viana (a portuguese filmmaker born in Angola) the movie is a remarkable result of the dramatic improvisation typical in the african movies by Rouch mixed with the formal coldness of the bressonian european school. Fatu’s father, still haunted by the memories of the colonial war, goes back to Guinea-Bissau for the marriage of his daughter after years of exile in Portugal. The marriage takes place in Tabato, a village where there is a very ancient lineage of singers and poets, the djidius musicians. The Battle of Tabatô is somehow a strange cinematographic object. Those who are used to the strategies of the contemporary cinema will be surprised by the way how fiction and documentary mingle spontaneously. Viana seems to have reached that point on the curve in which is possible to find the innocence of the first time again. In this matter, however, nothing compares to Sieniawka, the movie that closes this exhibition: no doubt it represents the most audacious choice among the others. It is certainly a contemporary movie (“devoted to ev-
erything from the past that cannot be recovered”), but upside down. The path chosen by the polish filmmaker, Marcin Malaszckak, is the opposite of that which became conventional in contemporary cinema: the way the documental material prepares the soil for fiction as a guarantee of authenticity. Malaszckak, on the other hand, takes advantage of fiction –of the utmost degree of fictionalization (Theatre of the Absurd + Science-Fiction)– to reach the powers of fake in some documental/observed images shot in a polish asylum. That means, in this movie (that can be seen as a radicalization of Wiseman’s Titicut Follies) the documental part carries out the fictional powers going further than the Theatre of the Absurd rehearsed in the prologue, including from the aesthetics point of view. This extreme movie, a perfect cinematographic ufo, closes the 17th forumdoc.bh international competition. The presented selection is remarkable in the sense that, since the first edition, we have tried to carry out this paradoxical task of articulating what is common (an updated sensibility) and also singular, keeping us always open to all the prolific possibilities given by the cinema in its symbolic associations with real. 71
competitiva internacional
A lone 31st Hau l Russia, 2012,cor, 60’ Direção direction Denis Klebleev Fotografia photography Denis Klebleev Montagem editing Denis Klebleev Som sound Denis Klebleev Produção producer Denis Klebleev Contato contact dklebleev@gmail.com
China, 2012, cor, 89’ Direção direction Wang Bing Fotografia photography Huang Wenhai, Li Peifeng, Wang Bing Montagem editing Louise Príncipe Som sound Antoine Fournier Produção producer Sylvie Faguer, Mao Hui Contato contact chineseshadows@gmail.com
Em 3 meses, os moradores de um lugarejo distante chamado Kamchatka comeram 102 toneladas de comida - e eles querem mais. Yura e Vitalik, motoristas de um veículo antigo estilo exército, vão fornecê-los mais suprimentos. Mas o problema é que o veículo quebrou. O filme que começa como um road movie, aos poucos introduz novos personagens, explorando a profundeza das relações humanas.
Versão mais curta de Três Irmãs. Wang Bing foi até a província de Yunnan, onde filmou, em uma aldeia montanhosa muito pobre, o cotidiano de três irmãs com as idades de 10, 6 e 4 anos. A mãe partiu há três anos para um destino desconhecido e o pai trabalha em uma cidade remota. A vida delas muda drasticamente quando o pai decide levar as duas mais novas com ele e deixar a mais velha com o avô.
In 3 months the residents of a faraway Kamchatka village have eaten 102 tonnes of food – and they want some more. Yura and Vitalik, the drivers of an old army-style vehicle, are gonna fetch them more of supplies. But the problem is that their vehicle broke down. Starting as a road movie the film gradually introduces new characters and explores the depth of simple human relationships.
cine humberto mauro, 26 nov, 17h 72
Shorter version of Three Sisters. Wang Bing went to the province of Yunnan where, in a very poor mountain village, he filmed the daily lives of three sisters aged 10, 6 and 4. The mother left three years ago for an unknown destination; father works in a remote town. Their life changes drastically when father decides to take the youngest two with him and leave the eldest with grandpa.
cine humberto mauro, 29 nov, 19h30
competitiva internacional Der Kapitän und sein Pirat The captain and his pirate
La Chasse au Snark The Hunting o f the Snark
Alemanha/Bélgica, 2012, cor, 76’ Direção direction Andy Wolff Fotografia photography Andy Wolff Produção producer Stefanie Brockhaus Contato contact assistant@docandfilm.com
França, 2013, cor, 95’
Imagine que você é o capitão de um navio porta-contêineres e é sequestrado por piratas da Somália. Depois que a empresa do navio e o exército alemão parecem tê-lo abandonado, o capitão assume o controle. Ele fará qualquer coisa para salvar sua equipe e a si mesmo. O filme é sobre a complexa relação entre criminoso e vítima, e conta a história da amizade entre o capitão e o pirata.
Um olhar de 95 minutos sobre a vida em snark, uma escola belga para jovens problemáticos. Filmado ao longo de um ano letivo completo, esse olhar pelo buraco da fechadura foca no comportamento anti-social dos jovens e na dificuldade da equipe em manter o equilíbrio. Todo aconselhamento é repleto de tensões que podem explodir a qualquer momento.
cine humberto mauro, 30 nov, 21h
cine humberto mauro, 30 nov, 19h30
Imagine you are the captain of a container ship: you get hijacked by Somali pirates. After the shipping company and the German army seem to have abandoned the ship, the captain takes things in his own hands. He will do anything in order to save his crew and himself. The film is about the complex relationship arising between culprit and victim and will tell the intimate story of the friendship between the captain and the pirate.
Direção direction François-Xavier Drouet Fotografia photography François-Xavier Drouet Montagem editing Cédric Jouan Som sound Bruno Schweisguth Produção producer Marie-Odile Gazin Contato contact fxdrouet@yahoo.fr
The Hunting of the snark: a 95-minute glimpse of life inside snark, a Belgian boarding school for troubled youths. Filmed over a full school year, this keyhole view zooms in on the youths’ antisocial behavior and the staff ’s difficult balancing act. All counseling is fraught with tension which can explode anytime.
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competitiva internacional La chica del Sur The girl from the South
Les Chebabs de Yarmou k The Shebabs o f Yarmou k
Argentina, 2012, cor, 94’ Direção direction Jose Luis Garcia Fotografia photography Jose Luis Garcia Montagem editing Alejandra Almirón, Alejandro Penovi, José Luis García Produção producer Jose Luis Garcia Contato contact festivals@taskovskifilms.com
França, 2012, cor, 78’ Direção direction Axel Salvatori-Sinz Fotografia photography Axel Salvatori-Sinz Montagem editing Aurélie Jourdan Som sound Axel Salvatori-Sinz Produção producer Magali Chirouze Contato contact yekric@yahoo.fr
1989. O acaso leva o documentarista argentino José Luís García até a Coréia do Norte, para a última conferência internacional da juventude comunista e conhece Lim Su-Kyong, uma ativista estudantil sul-coreana que exigia a reunificação das Coréias do Norte e do Sul. Vinte anos mais tarde, García embarca em uma viagem para descobrir o que aconteceu com a menina que ficou conhecida como “A Flor da Reunificação”.
Os Shebabs formavam um pequeno grupo de meninos e meninas desde que eram adolescentes. Hoje no início da fase adulta têm uma verdadeira sede de vida e de plenitude, embora enfrentem situações complicadas. Entre a necessidade de liberdade e a adesão ao grupo, entre o desejo de revolta e a perspectiva de uma vida bem ordenada, as escolhas são difíceis; ainda mais se você for um dos refugiados palestinos no campo de Yarmouk, na Síria.
1989. A Chance leads The Argentine documentary filmmaker José Luis García to North Korea, for the last international conference of communist youth where he learns of Lim Su-Kyong, a S. Korean student activist, who had come to demand the reunification of North and South Korea. Twenty years later García embarks upon a trip to find out what has happened to the girl who was once hailed as “The Flower of Reunification”?
cine humberto mauro, 28 nov, 17h 74
The Shebabs have made up a small group of boys & girls since they were teens. Now on the eve of adulthood, they have a genuine thirst for life and for absolute, while being all confronted to intricate situations. Between the need for freedom and sticking to the group, between longing for revolt and the prospect of a well-ordered life, choices are hard to make; even more so if you’re a Palestinian refugee in the camp of Yarmouk, in Syria.
cine humberto mauro, 30 nov, 15h
competitiva internacional Ricardo Bär
Sans image No image
Argentina, 2013, cor, 92’ Direção direction Gerardo Naumann, Nele Wohlatz Fotografia photography Lucas Gaynor Montagem editing Felipe Guerrero Som sound José María Avilés, Francisco Pedemonte Produção producer Christoph Behl, Gerardo Naumann, Nele Wohlatz Contato contact nele@wohlatz.eu
França, 2013, cor, 76’ Direção direction Fanny Douarche, Franck Rosier Fotografia photography Fanny Douarche, Franck Rosier Montagem editing Laurent Leveneur Som sound Thibault Dufait Produção producer Alexis Taillant Contato contact info@wendigofilms.com
Ricardo Bär (22) é um jovem que vive com sua família numa fazenda na província argentina de Misiones, fronteira com o Brasil. Ricardo deixa para trás sua juventude para entrar no mundo adulto, mas ao contrário do resto dos jovens de lá, não quer trabalhar na roça, mas se tornar pastor. Os problemas para fazermos o filme começam quando Ricardo ouve a voz de Deus e a comunidade desconfia da câmera.
Enquanto leis repressivas contra os imigrantes ilegais estão se multiplicando, Matenin, um migrante do Mali, e dois compatriotas, Abdoulaye e Gaye, tentam elaborar sua própria maneira de resistir. Toda semana, eles vão para a oficina de teatro dirigido por Mayleh, diretor de palco. Juntos eles escrevem uma peça inspirada em suas experiências.
Ricardo Bär (22) is a young man who lives with his family on a farm in the Argentine province of Misiones, at the Brazilian border. Ricardo leaves behind his youth to enter the adult world, but, unlike the rest of the young men there, he doesn’t want to work the soil; he wants to become a pastor. Problems for the film shoot begin when Ricardo hears the voice of God and the community too mistrusts the camera.
cine humberto mauro, 27 nov, 19h
Whereas repressive laws against illegals are multiplying, Matenin, a malian migrant, and two fellow countrymen, Abdoulaye and Gaye, try to elaborate their own way to resist. Every week, they go to a Theater workshop directed by Mayleh, a stage director. Together, they write a play inspired by their experiences.
cine humberto mauro, 30 nov, 15h 75
competitiva internacional Sieniaw ka
Une Été avec Anton Summer with Anton
Alemanha/Polônia, 2013, cor, 126’ Direção direction Marcin Malaszczak Fotografia photography Marcin Malaszczak Montagem editing Stefan Stabenow Som sound Jochen Jezussek Produção producer Marcin Malaszczak Contato contact marcin@mengamukfilms.com
Bélgica, 2012, cor, 60’ Direção direction Jasna Krajinovic Fotografia photography Jorge Léon Montagem editing Marie-Hélène Mora Som sound Quentin Jacques Produção producer Julie Frère Contato contact cba@skynet.be
Em uma era irreal, em um cenário marcado pela mineração de carvão a céu aberto, pessoas ainda vivem; homens velhos, seus rostos marcados por rugas profundas. Um cosmonauta vestido com uma roupa térmica especial inspeciona a terra saqueada: futuro, passado e presente se unem em Sieniawka, um filme de poucas palavras.
Anton tem 12 anos. Ele vive com a avó em uma pequena casa na periferia de Moscou. Ele passa os feriados com os amigos ou simplesmente brinca com seu baboushka, que amorosamente responde às brincadeiras. Esses alegres dias de verão terminam quando ele parte para o campo de treinamento militar, como a maioria das crianças russas, onde o vemos armado e uniformizado...
In an unreal age, in a landscape scarred by open-cast coal mining, people still live; old men, their faces marked by deep lines. A cosmonaut in a weather-worn boiler-suit inspects the plundered earth: future, past and present come together in Sieniawka, a film of few words.
cine humberto mauro, 01 dez, 15h 76
Anton is 12 years old. He lives with his grandmother in a little house outside Moscow. He spends his holidays with his pals or just plays round with his baboushka, who lovingly teases him back. Those carefree days of summer vanish when he goes off to a military training camp, like most Russian children do, where we find him armed and in uniform…
cine humberto mauro, 26 nov, 17h
o inimigo e a c창mera
O Inimigo e a Câmera* Ruben Caixeta de Queiroz “O inimigo e a câmera” completa a trilogia que o forumdoc.bh ufmg iniciou em 2011, com a mostra-seminário “O animal e a câmera”, seguida por “A mulher e a câmera” (2012). No caso do animal, pensamos que a câmera funcionava como uma espécie de arma e armadilha, ao mesmo tempo disposta a aprisioná-lo ou enquadrá-lo, o que nos levou a tematizar por uma vertente nova a já conhecida relação posta pelo pensamento cinematográfico entre “quadro” e “prisão”. Filmar é capturar e “enquadrar” uma parte do todo, ato que, simultaneamente, deixa de fora do quadro outras partes.
objeto e da irracionalidade, enquanto o homem ocupou o lugar do sujeito e da razão. Pelo menos no caso da mulher, o movimento feminista vem nas últimas décadas desmitificando e desmontando a falácia dos homens, o que pode ser verificado em algumas cinematografias contundentes.
Já na terceira parte da trilogia, “O inimigo e a câmera”, enfrentamos um tema ainda mais espinhoso: filmar o inimigo, ainda que para combatê-lo, como escreveu Jean-Louis Comolli, é de alguma forma colocar-se ao lado dele, compartilhar da mesma cena que ele, já que Já na mostra-seminário “A mulher e a câmera”, tra- o “cinema é uma máquina de aprisionar, domesticar, tava-se de refletir sobre o pensamento da mulher no familiarizar, aproximar, estreitar as relações”. Então, cinema, e, ainda, sobre como ela se tornou protagonista filmar o inimigo não é uma tarefa fácil e totalmente não apenas da cena, mas do fazer cinematográfico no controlável, como uma primeira visada poderia sugerir. mundo contemporâneo. Se há uma semelhança parcial Filmar a monstruosidade (do poder, do Estado, da entre o animal e a mulher, é o fato de ambos terem polícia, da violência, dos políticos, das instituições de sido, na história do ocidente, colocados no lugar do vigilância, do coronel do nordeste, das elites, do tal
* Na escrita deste texto, contei com a imprescindível colaboração de Cláudia Mesquita, que, além de fazer a revisão final, agregou comentários sobre alguns filmes da mostra: aqueles do cinema brasileiro, os de Rithy Pahn e Avi Mograbi.
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agronegócio) pode ser transformá-la numa imagem menos feia e menos terrível, se para tanto fizermos apelo à linguagem da publicidade e do espetáculo.
1. Cf. Sessão Ensaios deste catálogo, tradução Débora Braun.
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Descrevê-lo, desmontá-lo historicamente (de onde ele vem? Em qual história ele se inscreve?). O cinema ativista tem o dever de colocar em foco, tornar claro. Trata-se de combater as falsas ideias, as confusões, as Já no ano de 2001, na quinta edição do forumdoc.bh, misturas, para fazer aparecer o inimigo tal qual ele é discutíamos este assunto (a presença do inimigo e da de verdade, na realidade. O cinema é uma ferramenpolítica no cinema) e publicávamos um artigo em- ta de conhecimento. Isso significa que a exigência é blemático de Jean-Louis Comolli: “Como filmar o sempre de alcançar o espectador pela via da razão e inimigo?” (1997). Na edição de 2013, portanto, voltamos não somente da paixão. É preciso odiar o inimigo, a colocar o debate em circulação, buscando atualizá- sem dúvida, e combatê-lo sem piedade, mas para isso -lo com a publicação de uma nova entrevista com o é preciso compreendê-lo e poder contar a história que crítico e cineasta francês. Nela, pode ser confirmada é dele e que ele não conta”.1 sua máxima segundo a qual, se os inimigos mudaram, ainda mais forte é a urgência em filmá-los, em mostrar As maiores motivações para organizar esta mostrasuas contradições, bem como o lado grotesco de seus seminário, “O inimigo e a câmera”, foram proporcionacorpos e palavras. das pelos recentes acontecimentos no Brasil, quando as ruas foram e estão sendo ocupadas por uma multidão Num certo momento de sua entrevista, Comolli se (múltipla) que se manifesta sobre assuntos os mais dipergunta e responde: “O que é útil à luta que penso versos, contra a corrupção, a favor do transporte público conduzir utilizando o cinema dito ‘documentário’? A e gratuito, por melhoria na educação e aumento salarial única resposta, na minha opinião, é filmar para ver, para dos professores. A grande mídia e os governantes se ver melhor, para melhor compreender o que há nos com- apressaram em construir uma imagem negativa desta portamentos e mesmo na cabeça do inimigo: em qual multidão, acusando-a de, se formada por uma parte história isso se inscreve? Quais são as formas postas de “gente do bem”, ter “outra parte” composta por “baem jogo? Se eu filmo o inimigo, é para perscrutá-lo. derneiros”, “vândalos”, “inimigos da democracia”. Por
outro lado, o movimento denominado midialivrismo, conjunto de táticas de repressão conjugadas com apliem relação direta com a internet, ganhou destaque cações de mais leis coercitivas às livres manifestações. nessas manifestações, ao desmontar e desmascarar os Por outro lado, os manifestantes parecem não perder tradicionais meios de registro, construção e transmissão o rumo e formulam seus anseios através de atitudes dos fatos e das informações. “O inimigo e a câmera” e palavras de grande lucidez, como estas duas abaixo, exibirá uma parte significativa destes registros sobre as que tomamos livremente da internet: manifestações, levará para as ruas de Belo Horizonte imagens e intervenções, e, ainda, organizará debates Os “vândalos” das manifestações de Belo Horizonte com integrantes de coletivos midialivristas e ativistas, destoam muito da imagem identificada com a classe média universitária que, em muitas análises, constituem pesquisadores e realizadores. Acreditamos que está sendo produzida uma grande quantidade de informações sobre tais manifestações, que ainda não foram formuladas em termos de linguagem cinematográfica, naquele sentido dado por Jean-Louis Comolli. Contudo, apostamos que este novo movimento de midialivrismo tem potencial para produzir não só transformações no status-quo da economia-comunicação-política de nosso mundo atual, mas também no campo estético do audiovisual.2 Se ainda não temos imagens potentes organizadas (montadas), já temos um conjunto de palavras e ações políticas inimaginável há um ano no Brasil. Basta observar que nossa elite (política, econômica...) transtornou-se diante de tais fatos, e, como reação, tem produzido um
o núcleo duro do fenômeno. São ou parecem ser jovens
de periferia, das vilas e favelas, para os quais a violência
é uma linguagem cotidiana, ditada, muitas vezes, pela
própria ação policial, pela ausência de aparatos de esta-
do, por carências materiais múltiplas, pelo preconceito
generalizado. Se este é um momento de catarse para a
classe média, porque não seria para eles?
Ontem no final da noite morreu um trabalhador.
Tinha 21 anos e caiu de um viaduto. O mundo em
volta dele naquele momento dizia que estava ali
para mudar as condições de vida que ele tinha e que
ele sabia muito bem quais eram. Muitos dos que
ali estavam “para mudar o mundo” não tem ideia
do que é a vida de um trabalhador como Douglas.
2. A propósito, ver, neste catálogo, a rica análise das imagens produzidas pelos midiativistas no ensaio de Ivana Bentes, "A câmera de combate e o animal paranóide".
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Ontem morreu mais um trabalhador, mais um destes que
morrem todos os dias neste país. O fato não produziu
o fato que tantos de nós temíamos, o fato só produziu o espetáculo de seu corpo caindo e sendo filmado “em tempo real”. Não era o cadáver esperado, era apenas um trabalhador.
E, ainda, para citar o movimento que fez eclodir as manifestações de rua numa forma mais contundente e potente, podemos nos lembrar da Carta aberta do mpl-sp à Presidenta, de 24 de junho de 2013, que diz: Os movimentos sociais no Brasil sempre sofreram com
a repressão e a criminalização. Até agora, 2013 não foi
diferente: no Mato Grosso do Sul, vem ocorrendo um
massacre de indígenas e a Força Nacional assassinou, no mês passado, uma liderança Terena durante uma
reintegração de posse; no Distrito Federal, cinco militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
(mtst) foram presos há poucas semanas em meio às
mobilizações contra os impactos da Copa do Mundo
da fifa. A resposta da polícia aos protestos iniciados
em junho não destoa do conjunto: bombas de gás foram jogadas dentro de hospitais e faculdades; manifestantes
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foram perseguidos e espancados pela Polícia Militar;
outros foram baleados; centenas de pessoas foram presas arbitrariamente; algumas estão sendo acusadas de
formação de quadrilha e incitação ao crime; um homem
perdeu a visão; uma garota foi violentada sexualmente
por policiais; uma mulher morreu asfixiada pelo gás la-
crimogêneo. A verdadeira violência que assistimos neste junho veio do Estado – em todas as suas esferas. [...].
Esperamos que essa reunião [na qual a Presidenta Dilma recebeu o movimento] marque uma mudança
de postura do governo federal que se estenda às outras lutas sociais: aos povos indígenas, que, a exemplo
dos Kaiowá-Guarani e dos Munduruku, tem sofrido
diversos ataques por parte de latifundiários e do poder público; às comunidades atingidas por remoções; aos
sem-teto; aos sem-terra e às mães que tiveram os filhos
assassinados pela polícia nas periferias.
*** Além dessas imagens de embates nas manifestações populares de rua, em junho de 2013, no Brasil, a mostra está composta por alguns filmes que tramam, sem a urgência dos registros de rua, maneiras particulares de
“filmar o inimigo”. Nossa ambição não é realizar um panorama exaustivo, mas compartilhar e problematizar a pertinência, o alcance e a potência das táticas mobilizadas, em diferentes contextos, para dar “corpo e presença ao inimigo”, como escreveu Jean-Louis Comolli, “para que ele apareça em sua potência”.
de confronto, comentários críticos às declarações de alguns personagens, contraponto musical, justaposição de imagens de sentido contraditório, uso de atores para encenação de caricaturas, entre outros. Deste modo, coloca sob suspeita não apenas as motivações alegadas pelos diversos envolvidos (madeireiros, funcionários da Funai etc.), como a pretensa isenção da linguagem Para abrir a mesa de debate “Zonas de enfrentamen- documental tradicional. Ao final, é a própria equipe to no cinema contemporâneo”, exibiremos um filme de Bianchi e os seus interesses que são diretamente antológico dos anos 1980 (mas tão atual que poderia questionados por um velho índio Kaygang. ter sido feito hoje numa das inúmeras aldeias indígenas sob a mira dos ruralistas, com a conivência do Finalizado em 1982, Mato Eles? é um ensaio posicionado, Estado): Mato eles?, de Sérgio Bianchi. O filme se que expõe duramente o destino reservado a boa parte passa no oeste do Paraná, terra da atual ministra da dos índios ainda hoje. No filme, Bianchi pergunta a Casa Civil, Gleisi Hoffmann, que, para negar direi- padres, índios, funcionários da Funai, espectadores e tos, citou recentemente um estudo feito pela Embrapa a si próprio: o que seria dos índios depois que acabasque demonstraria não haver mais índios no Estado.3 sem todos os recursos de suas terras? (notadamente a A declaração ecoa falas que ouvimos no filme de madeira, que estava sendo extraída de Mangueirinha Bianchi, empenhado em denunciar os interesses que de forma ilegal). Qual foi o destino do líder indígena se ocultam sob as retóricas justificadoras dos inimi- Ângelo Cretã, ali desaparecido em janeiro de 1980, gos dos índios. Para criticar o conjunto de posições envolvido num suspeito acidente de carro, ainda hoje dos diferentes atores sociais envolvidos nos conflitos não esclarecido? Como Cretã, há muitos amarildos em torno da reserva de Mangueirinha, onde vivem indígenas neste país, ontem e hoje. índios Xetás, Guaranis e Kaygangs, o filme se vale de procedimentos audiovisuais diversos – entrevistas
3. Diante deste “fato”, em nítido ato inconstitucional, mandou a Funai suspender os estudos de demarcação de território indígena naquele (e em outros) Estados. Tal jogada política contra os direitos dos índios se tornou mais escandalosa quando, em seguida, a própria Embrapa afirmou nunca ter feito este tipo de estudo. Não obstante, a velha frase que diz que “índio bom é índio morto” parece ainda ter força entre nossos governantes e na elite latifundiária do país.
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Outros filmes feitos no Brasil compõem duas outras sessões da mostra. Na primeira, dois documentários notáveis, realizados em uma mesma época (final dos anos 1970, começo dos anos 1980), compartilham estratégias semelhantes: ambos chegam bem perto de seus inimigos, homens políticos afeitos à atuação e à exibição de si, sob o risco de “conivência ou complacência”, como alertou Comolli. Em Theodorico, imperador do sertão (Eduardo Coutinho) e O Terceiro Milênio (Jorge Bondanzsky), os personagens se mostram cúmplices da realização do documentário, ávidos talvez por visibilidade e legitimação; é a partir de certa proximidade, portanto, que os “inimigos” aparecem em suas contradições, e que formas sutis de distanciamento são produzidas, ora em cena, ora na montagem. 4. Ver, de Cláudia Mesquita e Leandro Saraiva, “O cinema de Eduardo Coutinho – notas sobre método e variações”, em Eduardo Coutinho (org. Milton Ohata), Cosac Naify, 2013, p. 388-399.
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Em Theodorico, Coutinho dá corpo à “voz do dono”. Este documentário, realizado para o programa Globo Repórter, é narrado pelo “inimigo”, o coronel Theodorico Bezerra, fazendeiro e deputado estadual pelo Rio Grande do Norte. Através da auto-mise-en-scène de Theodorico e de sua condução de entrevistas com trabalhadores de sua propriedade, o filme apresenta criticamente a perpetuação de uma ordem social base-
ada na dominação pessoal do todo-poderoso “senhor” sobre “seus” moradores. Criticamente porque, se o filme toma a “voz do dono” como eixo estruturador, a câmera e a montagem não endossam sempre a exposição do mundo segundo o coronel. Em momentos-chave, o narrador implícito introduz uma dissonância entre o que o narrador explícito (Theodorico) diz e o que a câmera mostra. É o caso da marcante passagem na qual o coronel tece loas à vida no campo, enquanto as imagens evidenciam a pobreza e a precariedade da vida daqueles que o escutam e obedecem. Sem confrontar verbalmente o inimigo, Coutinho e sua equipe se aproximam suficientemente para que ele se exponha, vaidosamente, mas também trabalham formas de distanciamento através do trabalho de câmera (em cena) e da montagem.4 O Terceiro Milênio dá corpo ao discurso político, registrando os encontros (e desencontros) do senador da república Evandro Carreira, em viagem de campanha, com a paisagem e com moradores de rincões amazônicos, objetos de sua plataforma e de sua retórica inflamada. Um filme político, portanto, no sentido de Comolli, pois que inscreve algo da “relação entre a
ideia política e o corpo político”. Em cena, confrontada com seu “representante”, a população ribeirinha tem a oportunidade de retrucar, discordar, argumentar – ou, constrangida, silenciar. O populismo tardio de Carreira, distribuindo cartões de visita para os índios ou livros para aqueles que “sabem ler”, recebe respostas contundentes, como na aldeia Tikuna: “O senhor é mentiroso, é tudo mentiroso”. Mas a relação do filme com o senador, político do mdb, não é de total distanciamento, oscilando entre simpatia e rejeição. Nalguns momentos, o discurso do documentário e o de Carreira parecem mesmo coincidir, caminhando juntos (como quando denunciam a situação absurda vivida pelo antropólogo Paulo Lucena, perseguido pela Funai). Noutros, o filme faz valer sua alteridade, distanciando-se do senador e ironizando (sobretudo pelo trabalho de câmera) a sua performance. É hilária a cena em que Carreira discursa em cima do barco, aproveitando-se da presença da câmera e alçando-se defensor dos direitos indígenas. O enquadramento o apanha da cintura para cima, mas lentamente abre-se o zoom e vemos que o senador discursa de calção de banho, menos em missão do que a passeio.
Os dois filmes se valem, portanto, do ímpeto exibicionista de seus personagens, homens políticos para quem a realização de um filme sobre si interessa e envaidece. Não é bem o caso de membros das elites brasileiras alvejados em documentários recentes (realizados, sobretudo, no Nordeste). Para se aproximarem de seus “inimigos”, protegidos atrás dos muros vigiados de mansões ou em coberturas de luxo vista-mar, oscilando entre desejar e temer a visibilidade, alguns desses filmes controversos armam “tocaias” e “armadilhas”, os cineastas disfarçados para se infiltrarem em território inimigo, como analisa Mariana Souto.5 Nesses trabalhos, que se voltam principalmente contra membros das classes dominantes, empenhados em criticar o seu modo de vida, os cineastas não expõem sempre, na abordagem dos sujeitos filmados, os seus verdadeiros “motivos” (retomando a postura crítica e combativa na montagem). Valem-se de “disfarces” para penetrar no território do inimigo, estimulando-o a se expor sem restrições ou censuras, como se estivesse “entre iguais”. O resultado nem sempre justifica a “armadilha”, que por vezes parece se tornar um fim em si mesma, como nota Souto.
5. Ver, neste catálogo, o ensaio “Documentários terroristas? Inimigos de classe no cinema brasileiro contemporâneo”.
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Além dos filmes brasileiros, três obras de grande reverberação apresentam cineastas que se embatem com inimigos públicos de envergadura. Uma cinematografia realizada na zona do confronto entre “movimentos populares” e a elite governamental-militar é a de Patricio Guzmán: vamos exibir um dos três episódios da premiada série “Batalha do Chile”, na qual o cineasta chileno, no final dos anos 60 e início dos 70, filmou intensamente a conquista do poder por Salvador Allende, as assembleias populares, ocupações de fábricas e latifúndios, passando pelos militantes de direita e o golpe militar que derrubou o governo socialista e levou os militares sob comando de Augusto Pinochet ao poder, com o apoio das elites locais e da cia.
federal (na época da Guerra do Líbano era ministro da defesa), Sharon estava em campanha eleitoral por Bibi Netanyahu, candidato a primeiro-ministro pelo Likud, partido israelense de extrema direita.
Pontua How I learned to overcome my fear and love Ariel Sharon uma situação recorrente: Mograbi se coloca diante da câmera, compartilhando suas dúvidas e reflexões com o espectador. Sobretudo, angústias que orbitam a questão: “como filmar o inimigo?” Pois nesta irônica “fábula documentária”, depois de uma enorme dificuldade de aproximação, Mograbi se depara com Sharon, homem de carne e osso, e acaba seduzido pelo carisma e pela proteção do inimigo. Aproximandose demais, vê balançarem suas próprias convicções (e, segundo o filme, seu casamento). O tom de ironia No Camboja, Rithy Pahn enfrenta Kaing Guek Eav, que perpassa todo o filme parece sugerir: a personagem mais conhecido como Duch, que dirigiu a m13, prisão do documentário de Mograbi (ele mesmo, um cineasta controlada pelo Khmer Vermelho na década de 70, de esquerda), que reluta para não se deixar levar por sendo considerado responsável pelo assassinato de mais Ariel Sharon, encarna bem as contradições da sociedade de 12 mil pessoas. Já Avi Mograbi, preso por se recusar israelense e daqueles que consideram Sharon um a servir na guerra de Israel contra o Líbano (1982), criminoso de guerra, mas não deixam de elegê-lo (em resolve em seu filme de estreia (1997) fazer um “acerto nome da “segurança”, sobretudo). de contas” pessoal com Ariel Sharon. Então deputado
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o inimigo e a cÂMERA Duch, le maître des forges de l'en fer Duch, o mestre das forjas do in ferno
How i learned to overcome my fear and love Ariel Sharom Como aprendi a superar meu medo e amar Ariel S
França/Camboja, 2011, cor, 110’ Direção direction Rity Panh Fotografia photography Prum Mésar Montagem editing Marie-Christine Rougerie, Rithy Panh Som sound Sear Vissal, Myriam René Produção producer Catherine Dussart, Cheap Sovichea Contato contact festival@filmdistribuition.com
Israel, 1997, cor, 62’ Direção direction Avi Mograbi Fotografia photography Ron Katzenelson, Ronen Schechner, Ran Carmeli, Yoav Gurfinkel Montagem editing Avi Mograbi Contato contact www.avimograbi.com
Kaing Guek Eav, mais conhecido como Duch, foi por quatro anos diretor da M13, uma prisão controlada pelo Khmer Vermelho na década de 70. Como secretário do partido coordenou um sistema de torturas e execuções, sendo considerado responsável pelo assassinato de mais de 12 mil pessoas. Levado à corte internacional por seus crimes, ele foi peça chave na revelação sobre como funcionava e agia o Khmer Vermelho.
Em 1996, quando a campanha eleitoral em Israel se aproxima, Mograbi decide fazer um filme sobre a contestada figura política de Ariel Sharon. O diretor possui uma relação bastante pessoal com o líder do Likud, pois este era ministro da defesa em 1982, ano em que Mograbi se recusou, alegando razões políticas, a servir o exército de Israel na guerra contra o Líbano. Durante a filmagem Mograbi começa a ver Sharon por outra perspectiva.
Kaing Guek Eav, known as Duch, was director for four years of M13, a prison controlled by the Khmer Rouge in the 70’s. As party secretary coordinated system of torture and executions, being considered responsible for killing more than 12,000 people. Taken to the international court for his crimes, he was the key revelation about how it worked and acted the Khmer Rouge.
In 1996, as the electoral campaign in Israel approaches, Mograbi decides to make a movie about the contested politician, leader of Likud, Ariel Sharon. In 1982, for political reasons, the diretor refuses to join the army in the war against Lebanon. At this moment Ariel Sharon is the Minister of defense and Mograbi has a close relationship with him. While shooting, the director starts to see Sharon through a new perspective.
cine humberto mauro, 29 nov, 17h
campus ufmg | fae, 28 nov, 9h30 87
o inimigo e a cÂMERA A Batalha do Chile III - O poder popu lar The batt le o f Chile - Popu lar power
Montanhas de Ouro Mountains o f gold
Cuba/Chile/França/Venezuela, 1975-1979, cor, 82’ Direção direction Patrício Guzmán Fotografia photography Jorge Müller Montagem editing Pedro Chaskel Som sound Bernardo Menz Produção producer Patrício Guzmán Contato contact patricio.guzman@wanadoo.fr
Brasil, 1990, cor, 52’ Direção direction Adrian Cowell Fotografia photography Vicente Rios Montagem editing Som sound Vanderlei Castro, Rafael de Carvalho e Nélio Reis Produção producer ATV Contato contact socpenid@fiocruz.brr
“Numerosos setores da população e, em particular, as camadas populares que apoiam Allende organizam e põem em marcha uma série de ações coletivas, com a intenção de neutralizar o caos e superar a crise. Essas instituições, em sua maioria espontâneas, representam um ‘estado’ dentro do Estado.” – Patricio Guzmán
Adrian Cowell analisa a dinâmica econômica, social e ambiental na província mineral Carajás. Os conflitos e contrastes entre a atuação da empresa, dona da concessão, e a dos garimpeiros. A ascensão e queda da produtividade, no garimpo de Serra Pelada, o crescimento exponencial da produção industrial ao longo da década de 80 e o rastro da destruição deixado na floresta ao redor.
“Numerous sectors of the population and, in particular, the lower classes which support Allende organize and set in motion a series of collective actions intended to counteract chaos and overcome the crisis. These institutions, mostly spontaneous, represent a ‘State’ within the State.” – Patricio Guzmán * Com a contribuição de Cris Marker e Intituto del Arte y la Industria Cinematográficos [ICAIC] Cuba
Adrian Cowell analyses the economical, social and environmental dynamics at Carajás, the richest mineral province of the planet. Conflicts and contrasts between the companies, whom owns the concession, and the gold prospectors (or garimpeiros) in their acting. The gold minining productivity’s increase and decrease at Serra Pelada, the industrial production’s exponential rate of increase during the 80’s and the trail of destruction left behind at the surrounding rainforest.
cine humberto mauro, 30 nov, 17h
campus ufmg | FAFICH | aud. sÔNIA VIEGAS, 26 nov, 11h
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o inimigo e a cÂMERA Theodorico, Imperador do S ertão Teodorico, The emperor o f the interior
Mato eles? Shou ld I Kill Them?
Brasil, 1978, cor, 50’ Direção direction Eduardo Coutinho Fotografia photography Dib Lutfi Montagem editing Wilson Bruno Som sound Jair Duarte Produção producer Rede Globo Contato contact isabel@videofilmes.com.br
Brasil, 1983, cor, 33’ Direção direction Sérgio Bianchi Fotografia photography Pedro Farkas Montagem editing Eduardo Albuquerque, Sérgio Bianchi Som sound Marian Van de Ven Produção producer Jacó Piccoli, Sérgio Bianchi
Theodorico Bezerra é um integrante da elite rural brasileira, fazendeiro e político desde os anos 40, eleito em 1978 deputado estadual pelo Rio Grande do Norte. Ele concentra em si as características de coronel e líder populista. Neste documentário, realizado como um programa Globo Repórter, Eduardo Coutinho faz de Theodorico o narrador, mas também se distancia criticamente do protagonista pelas operações de montagem.
O extermínio suave dos últimos índios da reserva de Mangueirinha, no sudeste do Paraná, com a conivência daqueles que os deveriam proteger. Com uma ironia cortante, as questões do filme se desenvolvem como numa estrutura de teste de múltipla escolha.
Theodoric Bezerra is a member of the Brazilian rural elite, farmer and politician since the 40’s, elected as a state congressman in 1978 by Rio Grande do Norte. He concentrates in himself the characteristics of colonel and populist leader. In this documentary, realized as a TV show, Globo Reporter, Eduardo Coutinho makes Theodoric the narrator, but also critically distances the protagonist by the edition operations.
cine 104, 27 nov, 18h30
The softly extermination of the Indians of the last mild Mangueirinha, reservation in southeastern Paraná, with the connivance of those who are supposed to protect. With biting irony, the issues in the film develop as a structure of multiple-choice test.
campus ufmg | FAFICH | aud. sÔNIA VIEGAS, 26 nov, 11h 89
o inimigo e a cÂMERA O Terceiro Milênio The Third Millennium
Um lugar ao sol High-Rise
Brasil,1981, cor, 90’ Direção direction Jorge Bodanzky Fotografia photography Jorge Bodanzky Montagem editing Maria Inês Villares Som sound David Pennington Produção producer Stopfilm Ltda. Contato contact jorgebodanzky@gmail.com
Brasil, 2009, cor, 71’ Direção direction Gabriel Mascaro Fotografia photography Pedro Sotero Montagem editing Marcelo Pedroso Som sound Phelipe Cabeca Produção producer Gabriel Mascaro Contato contact films@desvia.com.br
Agosto de 1980. Evandro Carreira, senador, sai de seu diretório em Manaus para percorrer suas bases eleitorais pelo Estado do Amazonas, na região do Alto Solimões, fronteiriça ao Brasil, Peru e Colômbia. Através da mediação de Carreira, o documentário registra encontros com caboclos, madeireiros, índios brasileiros e peruanos, sertanistas e representantes da Funai.
Um Lugar ao Sol traz diálogos com moradores de luxuosas coberturas de Recife, do Rio de Janeiro e de São Paulo. O diretor conseguiu acesso aos moradores através de um curioso livro que mapeia a elite e pessoas influentes da sociedade brasileira. No livro, são catalogados 125 donos de coberturas. Desses, apenas oito cederam entrevistas. Através desses depoimentos, o documentário traz um rico debate sobre desejo, altura, status e poder.
August 1980. Senator Evandro Carreira leaves his territory in Manaus to go to his constituencies through Amazonas state, in Alto Solimões area, border between Brasil, Peru and Colômbia. Through the mediation of Carreira, the documentary register meetings with caboclos, lumbermen, Brazilian and Peruvian indians, explorers and Funai agents.
cine 104, 26 nov, 18h30 90
High-Rise brings dialogues with residents of luxury penthouses from Recife, Rio de Janeiro and São Paulo. The director gained access to residents through a curious book that maps the elite and influential people of the Brazilian society. In the book, are cataloged 125 owners of penthouses. Of these, only eight gave interviews. Through these interviews, the documentary brings a rich debate on desire, height, status and power.
CAMPUS UFMG | FAE, 27 nov, 9h30
o inimigo e a cÂMERA Em trânsito In transit
Vista Mar
Brasil, 2013, cor, 19' Direção direction Marcelo Pedroso Fotografia photography Luis Henrique Leal Montagem editing Paulo Sano Som sound Rafael Travassos Produção producer Marilha Assis Contato contact marcelo.pedroso@gmail.com
Brasil, 2009, cor, 12' Direção direction Claugeane Costa, Henrique Leão, Pedro Diógenes, Rodrigo Capistrano, Rubia Mercia, Victor Furtado Fotografia photography Pedro Diogenes Montagem editing Guto Parente Som sound Rodrigo Capistrano, Glaugeane Costa Produção producer Victor Furtado, Henrique Leão, Rúbia Mércia
Elias, em trânsito.
Se uma imagem vale mais que mil palavras... essa vista custaria a biblioteca inteira.
Elias, in transit.
CAMPUS UFMG | FAE, 27 nov, 9h30
If a picture is worth a thousand words ... this view would cost the entire library.
CAMPUS UFMG | FAE, 27 nov, 11h 91
o inimigo e a cÂMERA Câmara Escura
Brasil, 2012, cor, 24’ Direção direction Marcelo Pedroso Fotografia photography Luiz Pretti, Marcelo Pedroso, Ricardo Pretti Som: Rafael Travassos, Phelippe Cabeça, Guma Farias Montagem editing Marcelo Pedroso Produção producer Símio Filmes Contato contact marcelo.pedroso@gmail.com
“Quando as imagens dos objetos iluminados penetram num compartimento escuro através de um pequeno orifício e se recebem sobre um papel branco situado a uma certa distância desse orifício, veem-se no papel os objetos invertidos com as suas formas e cores próprias.” (Leonardo da Vinci, CodexAtlanticus, sec. XVII). “When images of illuminated objects… penetrate through a small hole into a very dark room… you will see [on the opposite wall] these objects in their proper form and color”. (Leonardo da Vinci, Codex Atlanticus, 17th century)
CAMPUS UFMG | FAE, 27 nov, 9h30 92
O cinema contra o Estado
Mostra de vídeos
Levando em consideração o contexto de manifestações que ganhou mais força a partir de junho deste ano, a mostra “O inimigo e a câmera” abre espaço para imagens que registraram a luta nas manifestações de rua mais recentes no país, sublinhado os conflitos microscópicos que formam os grandes embates. O midialivrismo, em relação direta com a internet, ganhou destaque nessas manifestações, ao desmontar e desmascarar os tradicionais meios de registro, construção e transmissão dos fatos e das informações. A edição ganhou outros contornos, e as gravações publicadas em plataformas como youtube e vimeo ou as transmissões ao vivo, feitas por manifestantes – ou seja, por qualquer um – trazem a informação sem uma pretensão de abarcar todo o contexto e todos os fatos: o processamento da informação está mais a cargo do espectador, de casa, ao tomar o olho do/da manifestante como seu próprio olho. A experiência de ser este olho, tanto do lado de quem realizou/realiza as transmissões, quanto de quem assistiu tudo pelo computador, é o que está aqui em pauta.
Assim, o forumdoc.bh abre espaço para este contexto de transmissão de informações e de produção audiovisual. Vídeos selecionados entre os mais de sessenta registros recebidos pelos organizadores do festival, após convocatória online feita durante os meses de setembro e outubro, bem como material colhido ao acaso na internet e selecionado pela curadoria da Mostra, irão compor duas sessões, chamadas de “Cinema Contra o Estado”. Foram selecionadas, dentro da convocatória, filmagens realizadas por: Antenor Martins, Bruno de Figueiredo e Silva, Cléber Henrique de Jesus Viana, Coletivo UrGente, Diogo da Fonseca, André Miguéis, Yussef Kalume, Douglas Duarte, Vitor Leite, Fabiana Leite, Felipe Aguiar Chimicatti, Pedro Carvalho Moreira, Henrique Dimitri, João Grilo, Jorge Bloom, Henrique Bocelli, Leonardo Nabuco, Mídia Ninja, Ricardo Bugarelli, Tamás Gontijo Bodolay.
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Esta mostra também contempla duas mesas de discussões, denominadas “Filmando o inimigo na rua”, compostas por integrantes de coletivos midialivristas e ativistas, pesquisadores e realizadores. cine humberto mauro, 22 nov, 15h campus ufmg | fae, 25 nov, 9h30
sessÕES ESPECIAIS
SESSÕes especias A frican Independence
Jean-Louis Comolli, filmer pour voir!
EUA , 2013, cor, 117’ Direção direction Tukufu Zuberi Fotografia photography Jabari Zuberi, John Hazard (Kenya), Charles Moss (Africa do Sul e Ghana), Tanji Gilliam (EUA) Montagem editing Jabari Zuberi Produção producer Tukufu Zuberi Contato contact TZ Production Company (info@tzproductioncompany.com)
França , 2013, cor, 110' Direção direction Ginette Lavigne Fotografia photography João Ribeiro Montagem editing Ginette Lavigne Som sound Guillaume Solignat Produção producer INA / Gerald Collas Contato contact lavigne.g@wanadoo.fr
O filme destaca o nascimento, realização e problemas enfrentados pelos movimentos de independência em África. A história é contada por meio das vozes dos guerreiros da liberdade e líderes que alcançaram a independência, liberdade e justiça para os povos africanos. Ao focar em quatro momentos divisores de águas – a Segunda Guerra Mundial, o fim do colonialismo, a Guerra Fria, e a era das Repúblicas Africanas – African Idependence mostra um lado ímpar da história recente da África.
Jean–Louis Comolli, filmar para ver! É um ensaio sobre o cineasta. No espaço fechado de um estúdio de cinema, confrontado com alguns trechos significativos de sua obra, Jean-Louis Comolli fala sobre seu trabalho e sua concepção de cinema. Desta maneira, ele convida o espectador a entrar no seu ateliê, na sua prática de enlace do real.
The film highlights the birth, realization, and problems confronted by the movement to win independence in Africa. The story is told by channeling the voices of freedom fighters and leaders who achieved independence, liberty and justice for African people. Through the lens of four watershed events African Independence shows a unique side of Africa’s recent history.
cine humberto mauro, 28 nov, 18h30 98
Jean-Louis Comolli, filming to see! It is a portrait about this filmmaker. In the enclosed space of a movie studio, faced with some significant passages of his work, Jean-Louis Comolli talks about his work and his idea of cinema. In this way he invites the viewer to enter his studio, in his practice of embracing reality.
cine humberto mauro, 24 nov, 18h30
SESSÕes especias Riocorrente
Sobre o Abismo
Brasil, 2013, cor, 79’ Direção direction Paulo Sacramento Fotografia photography Aloysio Raulino Montagem editing Idê Lacreta, Paulo Sacramento Som sound Thiago Bittencourt Produção producer Clarissa Knoll, Pablo Torrecillas, Paulo Sacramento Contato contact www.olhosdecao.com.br
Brasil, 2012, cor/p&b, 30’ Direção direction André Brasil Fotografia photography Bernard Machado Montagem editing Clarissa Campolina, Luiz Pretti Som sound Bruno Vasconcelos Produção producer Morgana Rissinger Contato contact agbrasil@uol.com.br
Marcelo é jornalista. Carlos é um ex-ladrão de automóveis. Renata é uma mulher dividida entre dois relacionamentos tão diversos quanto seus desejos. Exu é o porvir.
Por essa tela já passou boa parte da história do cinema, mas a cada sessão é como se ela estivesse ainda virgem, antes do começo de tudo. A tela em branco é um imenso abismo feito de esquecimento.
Marcelo is a journalist. Carlos is a former car thief. Renata is a woman torn between two relationships as diverse as her wishes. Exu is the future.
A great part of cinema history has been through this screen but it seems it’s still virgin in each screening, before the beginning of everything. The white screen is a vast chasm made of oblivion.
cine humberto mauro, 28 nov, 21h
cine humberto mauro, 28 nov, 19h 99
SESSÕes especias MARACATU
SYNTAGMA
Brasil, 2012, cor, 16’27’’ Direção direction Gustavo Raulino, André Szilágyi Fotografia photography Gustavo Raulino, André Szilágyi, Aloysio Raulino Montagem editing Gustavo Raulino Produção producer Mova Filmes Contato contact contato@movafilmes.com.br
Grécia, 2012, cor, 6’ Direção direction Gustavo Raulino Fotografia photography Gustavo Raulino, André Szilágyi Montagem editing Gustavo Raulino Produção producer André Szilágy Contato contact contato@movafilmes.com.br
Registro etnográfico do Grupo Maracatu Ilê Aláfia, sob o sensível olhar de Aloysio Raulino.
Recortes da sociedade grega, no ano de 2012, em meio à crise econômica.
Ethnographic film about the group Maracatu Ilê Aláfia by Aloysio Raulino with his sensible look.
cine humberto mauro, 24 nov, 21h 100
Scraps of Greek society in the year of 2012 amid economic crisis.
cine humberto mauro, 24 nov, 21h
SESSÕes especias Carta para Francisca A letter to Francisca
S emana santa
Brasil/Portugal, 2013, cor, 13’ Direção direction Glaura Cardoso Vale Fotografia photography Francisca Manuel Montagem editing Glaura Cardoso Vale Som sound Daniel Ribeiro Colaboração collaboration Bernard Belisário, Samuel Marotta Contato contact glaura.cardoso@gmail.com
Brasil, 2013, cor, 72’ Direção direction Samuel Marotta, Leonardo Amaral Fotografia photography Gabriel Martins Montagem editing Leo Pyrata Som sound Maurilio Martins, Leo Pyrata, André Novais Produção producer Pedro Leal Contato contact pedro.leal@gmail.com
Qual o destino de um poema? Um filme em processo. Descubro uma cena de confraternização após o término das filmagens num edifício da Avenida da Liberdade. Lisboa, julho de 2012. Separados agora pelo mar, envio uma carta do Brasil para Portugal endereçada aos amigos que ficaram lá e a quem mais possa chegar. Solicito: Al Berto, Ana Martins Marques, Hilda Hilst, Júlia de Carvalho Hansen, para dar conta de uma saudade impronunciável.
“Pai, perdoá-lhes, pois eles não sabem o que fazem.” “Father, forgive them, because they do not know what they are doing.”
What’s the fate of a poem? A film in process. I find a scene of a celebration after the end of the filming in a building of Liberdade Avenue. Lisbon, July 2012. Today, separated by the sea I send a letter from Brazil to Portugal addressed to friends that have stayed there and whoever gets it. I quote Ana Martins Marques, Al Berto, Hilda Hilst, Julia Hansen to stand this unpronounceable absence.
cine humberto mauro, 29 nov, 23h
cine humberto mauro, 29 nov, 23h 101
SESSÕes especias O Boi foi beber água até chegar no São Francisco
Esperando o Putuxop - Cantos do Putuxop Waiting Putuxop - The Putuxop Chants
Brasil, 2013, cor, 25’ Direção direction Gercino Alves Batista, Carolina Canguçu, Bernard Machado Fotografia photography Bernard Machado, Bruno Alves, Carolina Canguçu, Francys Raphael, Gercino Alves, Kerstin Cunha, Matheus Diniz, Terezinha Neves Montagem editing Carolina Canguçu Som sound Bernard Machado, Carolina Canguçu, Francys Raphael Produção producer Irmandade dos Atores da Pândega Contato contact irmandadedapandega@hotmail.com
Brasil, 2013, cor, 39’/27’ (total 66’) Direção direction Toninho Maxakali, Manuel Damásio Maxakali, Guigui Maxakali Fotografia photography Derli, Marilton, Juninha, Janaína, Fernando, Joanina, Zé Carlos, Bernardo, João Duro Maxakali. Montagem editing Bruno Vasconcelos, Leonardo Rosse Produção producer Aldeia Vila Nova do Pradinho, Filmes de Quintal, Instituto Catitu Oficina workshop Mari Correa, Carolina Canguçu, Rafael Barros Contato contact filmes@filmesdequintal.org.br
O boi da manta reencontra, depois de uma década de aventuras, 3 mestras da tradição do boi, as verdadeiras fontes das águas que o boi já bebeu. Da primeira vez que encontramos com essas senhoras foi para aprender a falar o sotaque, caminhar nas trilhas de boi, de preferência de pé no chão, aprender o que meu pai, boiadeiro velho, deixou nas entrelinhas de seus cantos pra gente decifrar.
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Os Tikm da Aldeia Vila Nova do Pradinho celebram a colheita do milho com um convite aos Putuxop, os povos papagaio-espíritos, a virem passar momentos com eles. Os homens saem à caça, as mulheres preparam a grande comida, as crianças se pintam. Os Putuxop são exímios cantores e eram grandes aliados dos Tikm n nas guerras contra os botocudos. Toda a aldeia investiu no desejo de gravar momentos de partilha com os Putuxop.
The “boi da manta” (sacred ox) meets 3 masters of this tradition. They are the true sources of water that the ox has drunk. The first time we met these ladies was to learn how to speak the accent, to walk barefoot on the ox trails, to learn what my old cowboy father left between the lines of his songs for us to decipher.
The Tikm n from the village Vila Nova do Pradinho celebrate the corn harvest inviting Putuxop, the parrot-spirit people, to come and take part in it with them. Men go out to hunt, women prepare the great food, and children paint themselves. The whole village was committed in filming moments shared with Putuxop.
cine humberto mauro, 01 dez, 17h
cine humberto mauro, 01 dez, 17h
SESSÕes especias Matéria de Composição
sessÃo filmes de quintal
Brasil, 2013, cor, 82’ Direção direction Pedro Aspahan Fotografia photography Pedro Aspahan Montagem editing Pedro Aspahan Som sound Hugo Silveira, Pedro Durães Produção producer Morgana Rissinger Contato contact contato@pandufilmes.com, www.materiadecomposicao.com
Documentário sobre o processo de criação da composição musical contemporânea na relação com o cinema. Entregamos um mesmo vídeo ensaio a três compositores: Guilherme Antônio Ferreira, Teodomiro Goulart e Oiliam Lanna, e encomendamos deles uma peça musical que dialogasse com o vídeo. Dois anos depois, após acompanhar todo o processo, da composição aos ensaios, concerto, gravação e mixagem das músicas, chegamos a este filme. Documentary about the contemporary music creation process filmed in Belo Horizonte, Brazil. We gave a short poetic video to three composers, Guilherme Antônio Ferreira, Teodomiro Goulart and Oiliam Lanna, and asked them to create a music piece that would dialogue with the video. Two years later, after following the whole process, from composition to rehearsals, concerts, recording and mixing of the musics, we have reached this movie.
cine humberto mauro, 24 nov, 15h 103
lanรงamentos
LANÇAMENTOs JÁ VISTO JAMAIS VISTO
Brasil, 2013, cor/p&b, 54’ Direção direction Andrea Tonacci Fotografia adicional additional photography Mark Perlmann Montagem editing Cristina Amaral Trilha sonora original original soundtrack Ruy Weber Catalogação de acervo collection Max Fagotti Produção producer Patrícia Mourão Contato contact extremart@extremart.com.br
Uma ficção afetiva, um percurso de invenção, um diálogo visual entre memórias e sentimentos do autor a partir de imagens de sua familia, amigos, paixões, pinturas e viagens, que filmou e guardou ao longo de mais de 40 anos de atividade cinematográfica, só agora recuperadas. Segmentos de filmes realizados, de vida pessoal, fragmentos de filmes esboçados, nunca revistos nem editados, imagens como seres outros que nos alteram a percepção do presente, ausências interferindo numa vida que lhes é posterior, imprevisível. A fiction, a reflection, an inventive editing, a visual dialogue between the author’s memories and feelings through personal and affectionate images filmed and kept for more than 40 years of cinematic activity. Fragments of personal life never exhibited before, not reviewed nor edited.
cine humberto mauro, 29 nov, 21h 106
LANÇAMENTOs revista devires - cinema e humanidades, v.9, n.2
Com a exibição de Já Visto Jamais Visto (2013), realizado a partir da montagem de fragmentos do rico acervo de Andrea Tonacci, a revista Devires - Cinema e Humanidades lança em seu v.9 n.2 um dossiê inteiramente dedicado ao trabalho do cineasta. Caracterizada pela permeabilidade aos processos vividos, a obra de Tonacci é rica em imbricamentos e passagens (entre filme e vida, cena e realidade presente, documentário e encenação), articulando, como poucas, o cinema à experiência histórica no Brasil. In the context of the exhibition of the film Já Visto Jamais Visto (2013), made out of the editing of parts from the rich collection of Andrea Tonacci, the magazine Devires - Cinema e Humanidades releases a dossier devoted entirely to the work of this filmmaker. The work of Tonacci is characterized by permeability of lived processes and it’s rich in imbrications and passages (between film and life, scene and actual reality, documentary and fiction). It articulates, as few do, cinema to historical experience in Brazil.
cine humberto mauro, 29 nov, 21h 107
fÓrum de debates
MESAS REDONDAS
25 NOV | SEGUNDA-FEIRA CAMPUS UFMG
25 NOV | SEGUNDA-FEIRA
Auditório Luiz Pompeu | FAE
CINE HUMBERTO MAURO
11h O inimigo e a câmera
21h O inimigo e a câmera
Mesa: Filmando o inimigo na rua I
Mesa: Zonas de enfrentamento no cinema contemporâneo
Kamikia Ksedje, Júlia Mariano (Mídia Ninja RJ), Ivana Bentes, Felipe
Vincent Carelli, Marcelo Pedroso
Altenfelder (Mídia Ninja SP), Marcela Leite (Coletivo Projetação)
Mediação: César Guimarães
26 NOV | TERÇA-FEIRA CINE HUMBERTO MAURO
21h Mostra Jonas Mekas Mesa: Jonas Mekas e o filme-diário Yann Beauvais, Mateus Araújo Silva Mediação: Carla Maia e Carla Italiano
29 NOV | SEXTA-FEIRA CAMPUS UFMG
Auditório Sônia Viegas – FAFICH 11h O inimigo e a câmera Mesa: Filmando o inimigo na rua II Paulo Junior (Coletivo Mariachi), Tiago Barnabé (Maria Objetiva), Raissa Galvão (Mídia Ninja BH), Marcos Abílio (UFMG)
27 NOV | QUARTA-FEIRA CINE HUMBERTO MAURO
21h Aloysio Raulino Ensino vocacional, 14´ Mesa: Aloysio Raulino, autor Ismail Xavier, Paulo Sacramento Mediação: Ewerton Belico
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SESSÕES COMENTADAS
23 NOV | SÁBADO CINE HUMBERTO MAURO
21 NOV | QUINTA-FEIRA
21h Mostra Jonas Mekas
CINE HUMBERTO MAURO
Walden 180’
19h Sessão de abertura
Sessão apresentada por Patrícia Mourão
Retrospectiva de autor Aloysio Raulino Lacrimosa 12’
24 NOV | DOMINGO
Teremos infância 13’
CINE HUMBERTO MAURO
Arrasta a bandeira colorida 11’
15h Sessão Filmes de Quintal
O tigre e a gazela 14’ Sessão homenagem comentada por Jean-Claude Bernardet Com a presença de Gustavo Raulino, Otávio Savietto, Andréa Scansani
22 NOV | SEXTA-FEIRA
Sessão comentada pelo diretor 21h Retrospectiva Aloysio Raulino São Paulo cinemacidade 30´ Credo 4´ Como dança São Paulo 45´
CINE HUMBERTO MAURO
Celeste, 5´
19h Retrospectiva Aloysio Raulino
Sessão especial
Jardim Nova Bahia 15’
Syntagma, Gustavo Raulino, 6´
Porto de Santos 19’
Maracatu, Gustavo Raulino / André Szilágyi, 16´
Inventário da rapina 29’
Comentada pelo diretor
Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet
112
Matéria de composição, Pedro Aspahan, 82´
28 NOV | QUINTA-FEIRA CINE HUMBERTO MAURO
19h Sessão especial Sobre o abismo, André Brasil, 30’ 21h Sessão especial lançamento Riocorrente, Paulo Sacramento, 79´ Sessão comentada pelo diretor
29 NOV | SEXTA-FEIRA CINE HUMBERTO MAURO
21h lançamento Revista Devires Já visto jamais visto, Andrea Tonacci, 54´ Sessão comentada pelo diretor
01 NOV | DOMINGO CINE HUMBERTO MAURO
17h Sessão especial O boi foi beber água até chegar no São Francisco, Gercino Alves Batista, Carolina Canguçu, Bernard Machado, 25´
26 NOV | TERÇA-FEIRA CINE 104 (CENTOEQUATRO)
18h30 O inimigo e a câmera Terceiro milênio, Jorge Bodanzky, 90’ Sessão comentada por Cláudia Mesquita
28 NOV | QUINTA-FEIRA CINE 104 (CENTOEQUATRO)
18h30 Sessão especial African independence, Tukufu Zuberi, 117´ Sessão comentada pelo diretor
27 NOV | QUARTA-FEIRA CAMPUS UFMG
Auditório Luiz Pompeu | FAE Vista mar, Claugeane Costa, Henrique Leão, Pedro Diógenes, Rodrigo Capistrano, Rúbia Mércia, Victor Furtado, 12´ Câmara escura, Marcelo Pedroso, 24´ Em trânsito, Marcelo Pedroso, 19´ Sessão comentada por Mariana Souto
Esperando o Putuxop / Cantos do Putuxop, Toninho Maxakali, Manuel Damásio Maxakali, Guigui Maxakali, 66´ Sessão comentada pelos realizadores
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26 NOV | TERÇA-FEIRA CAMPUS UFMG
Auditório Sônia Viegas – FAFICH 11h O inimigo e a câmera Mato eles? Sérgio Bianchi, 33´ Montanhas de ouro, Adrian Cowell, 52´ Sessão comentada por Vincent Carelli
Andréa Scansani Diretora de Fotografia graduada em Cinema com especialização em Fotografia Cinematográfica pela eca/ usp. Mestre em Multimeios (Cinema) pelo Instituto de Artes da unicamp, especializada em Fotografia Cinematográfica pela Academia de Cinema e Drama de Budapeste/Hungria. Coordena o grupo de pesquisa fotocrias (ufsc), o Núcleo de Direção de Fotografia do Grupo de Cinema Ap.43, supervisiona o Laboratório de Estudos de Cinema (ufsc) e integra o coletivo artístico Usina da Alegria Planetária. Atualmente é professora da Universidade Federal de Santa Catarina. Colaborou com Aloysio Raulino em diversos trabalhos. Andrea Tonacci Cineasta e fotógrafo, dirigiu, dentre outros títulos, Olho por olho (1966), Blá-bla-bá (1968), Bang-Bang (1970), Serras da desordem (2006), Já visto jamais visto (2013), além da série para a tv em 3 episódios Os Arara (19813), ao lado do sertanista Sydney Possuelo, e Conversas no Maranhão (1983).
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Anita Leandro Anita Leandro é graduada em Comunicação/Jornalismo, com mestrado e doutorado em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Université Paris iii - Sorbonne -Nouvelle (1992-1997). Trabalhou como redatora e editora em televisões brasileiras e como repórter para o serviço brasileiro da bbc de Londres. É professora adjunta da eco-ufrj e, com apoio do cnpq, desenvolve pesquisa teórica e prática sobre o reemprego das imagens de arquivo no cinema. Carla Italiano Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais, com graduação em Cinema pela Universidade Federal de Santa Catarina. Desempenha atividades de pesquisa, curadoria e produção. Desde 2011 integra o coletivo Filmes de Quintal, no qual participa da realização do forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Realizou o média-metragem Regresso (2010), participou da vídeo-instalação Cartografia do Ruído (Sesc Palladium/2012, em parceria com coletivo 4e25 ) e da curadoria do FestCurtasbh 2013.
Carla Maia Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da ufmg. Ensaísta e pesquisadora de cinema, atua também como curadora, professora e produtora. É diretora do documentário Roda, co-dirigido por Raquel Junqueira. Integra o coletivo Filmes de Quintal. César Guimarães César Guimarães é Professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da fafich-ufmg e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (cnpq). É coordenador do grupo de pesquisa Poéticas da experiência e editor da revista Devires: Cinema e Humanidades. Cláudia Mesquita Cláudia Mesquita é professora do Programa de PósGraduação e do Curso de Comunicação Social da ufmg, onde participa do Grupo de Estudos Poéticas da Experiência. Pesquisadora de cinema, com mestrado e doutorado pela Escola de Comunicações e Artes da usp. Publicou, com Consuelo Lins, o livro “Filmar o
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Real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo” (Jorge Zahar Editor, 2008). Ewerton Belico Formado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor, curador e crítico de cinema, colabora, desde 2006, na organização e curadoria do forumdoc.bh, entre outros projetos da Associação Filmes de Quintal. Felipe Altenfelder É um dos fundadores e editor da Mídia Ninja. Além de sua atuação na gestão nacional do ninja, Altenfelder atua desde 2007 na Rede Fora do Eixo. É um dos responsáveis pela concepção e implementação de projetos como a Rede Brasil de Festivais Independentes – que conta com 130 festivais – o Festival Grito Rock – presente em 300 cidades – e o portal Toque no Brasil – TnB. Ismail Xavier Mestre em Teoria Literária pela usp, sob orientação de Paulo Emílio Salles Gomes, com a dissertação À procura da essência do cinema: o caminho da avant-garde e as iniciações brasileiras. Tornou-se phd em Cinema
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Studies pela New York University, onde concluiu seu pós-doutorado. Foi professor da eca-usp, professor-visitante na Universidade de Nova Iorque, Universidade de Iowa e Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. É membro do conselho da Cinemateca Brasileira, publicou obras referenciais sobre cinema no Brasil. Ivana Bentes Pesquisadora na área de Comunicação e Cultura. É doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é professora do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura da ufrj e diretora da Escola de Comunicação da ufrJ. É pesquisadora do cnpq e desenvolve as pesquisas: “Estéticas da Comunicação: novos modelos teóricos no capitalismo cognitivo e “Periferias Globais”. Jean-Claude Bernardet Crítico de cinema, ensaísta, cineasta, roetirista, ator. Publicou obras referenciais sobre cinema brasiliero. Foi professor de Cinema da eca-usp e doutor em Artes pela mesma instituição. Segue colaborando com diversos projetos cinematográficos, mostras e festivais de cinema. Escreve no blogjcbernardet.blog.uol.com.br
Julia Mariano Júlia Mariano, cineasta e jornalista, é formada pela Escuela Internacional de Cine y tv de San Antonio de losBaños (eictv, Cuba), pela Escola de Comunicação da ufrj (eco) e pela Baden-WüttembergFilmakademie em Stuttgart, na Alemanha. Atua no mercado como pesquisadora, roteirista e assistente de direção com foco em documentários e programas para a TV. Atualmente se dedica ao desenvolvimento de projetos da Osmose Filmes. KamikiaKisêdjê KamikiaKisêdjê nasceu em 1984, na aldeia Kisedje na Terra Indígena Wawi/leste Xingu - mt. Em 2004 foi secretário da atix – Associação Terra Indígena Xingu. Em 2005 foi diretor financeiro da aik -Associação Indígena Kisedje, local onde atua até hoje. Também coordena equipes da aik Produções, produtora de video ligada a Associação Indígena Kisedje. Marcela Leite Motion designer, graduada em design gráfico pela UniverCidade. Em 2004, foi vj de uma banda chamada Quilombos Urbanos, com conteúdo sócio-político. Em 2013, formou junto com outras 15 pessoas o Coletivo
Projetação. Promovem arte política e aulões para qualificar o debate e reinventar o espaço público. Luz em movimento para transformar o caos. Marcelo Pedroso Marcelo Pedroso é graduado em Jornalismo pela ufpe e membro da produtora pernambucana de cinema Símio Fiomes. Depois de experiências com curtas-metragens, Pedroso dirigiu, em parceria com Gabriel Mascaro, o longa kfz-1348. Dedica-se também a atividades pedagógicas, sendo colaborador de projetos como o Vídeo nas Aldeias. Marcus Abílio Marcus Abílio é professor do departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Sociologia Política pela Universidade de Coimbra, Portugal. Coordena o grupo de pesquisa “Democracia Digital”. Os seus interesses de investigação centram-se em questões relacionadas com a teoria democrática, teoria dos movimentos sociais e o uso de novas tecnologias de informação e comunicação.
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Mariana Souto Doutoranda em Comunicação Social pela ufmg e mestre pela mesma universidade, onde pesquisa cinema brasileiro. Professora de audiovisual. Diretora de arte e figurinista de curtas-metragens. Mateus Araújo Mateus Araújo Silva desenvolve pós-doutorado em cinema na eca-usp, com pesquisa sobre Glauber Rocha. Ao longo dos anos, tem articulado sua formação filosófica com trabalhos no campo da história, da teoria e da crítica de cinema. Organizou curadorias na França e no Brasil, em torno de Glauber Rocha, Jean Rouch, Pierre Perrault, e do cinema moderno. Traduziu Glauber Rocha na França (Le Siècle du Cinéma, 2006) e uma série de autores franceses no Brasil. É um dos editores da revista Devires – Cinema e Humanidades, da ufmg. Patrícia Mourão Doutoranda em cinema pela Universidade de São Paulo, onde pesquisa cinema autobiográfico experimental; mestre em comunicação e semiótica pela puc-sp. Atua também como curadora, professora e produtora.
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Paulo Júnior Formado em filosofia política pela uerj, é coordenador de programação do Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro - Curta Cinema. Foi curador da mostra “Homossexualidade na Mídia: O que mudou?” e colaborador do RioFan Festival Fantástico do Rio. Atualmente colabora com o Coletivo Mariachi na cobertura das manifestações no Rio de Janeiro. Paulo Maia Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Antropologia Social pelo ppgas/ Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com ênfase em Etnologia Sul Americana, Educação Indígena e Antropologia e Cinema. É também um dos idealizadores do forumdoc.bh. Paulo Sacramento Diretor, montador e produtor paulista que estreou em 2002 na direção de longa-metragem com o documentário O prisioneiro da grade de ferro, filme vencedor do É Tudo verdade – Festival Internacional de Documentários e do prêmio da crítica no Festival de Gramado, além de ter sido slecionado para o Festival de Veneza. Riocorrente, seu último filme recebeu pre-
miações importantes como Melhor Montagem (Idê Lacreta e Paulo Sacramento) e Melhor Fotografia (Aloysio Raulino). Raissa Galvão Raíssa Galvão atua na rede Fora do Eixo e é uma das editoras nacionais do ninja - Narrativas Independentes de Jornalismo e Ação. É gestora de coberturas colaborativas por todo Brasil e já atuou na Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro; Conexões Globais, em Porto Alegre e na 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Trabalha também como gestora de redes sociais e mídias digitais da regional Minas Gerais dentro da rede Fora do Eixo. Ruben Caixeta de Queiroz Professor de Antropologia na ufmg. Coordena o Laboratório de Etnologia e do Filme Etnográfico (lefe) e é co-fundador do forumdoc.bh. Membro do corpo editorial da revista Devires - Cinema e Humanidades. Tiago Barnabé É membro fundador, fotógrafo e cinegrafista do Maria Objetiva desde 2012. Fundou e foi fotógrafo do estúdio Persona, em Belo Horizonte, de 2009 a 2012. Em 1998,
foi fotógrafo convidado para o Projeto Copan / Plano de Revitalização do Centro (Prefeitura de São Paulo). Vincent Carelli Vincent Carelli é indigenista e documentarista. Desde 1973 está envolvido com projetos de apoio a grupos indígenas no Brasil – em 1987, por meio do Centro de Trabalho Indigenista (cti), que fundou com um grupo de antropólogos, criou o projeto Vídeo nas Aldeias. Em 1999, Carelli ganhou o Prêmio Unesco na 6ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico. Yann Beauvais Cineasta e crítico francês, é co-fundador da Light Cone, uma das mais importantes cooperativas europeias de criação e difusão do cinema experimental desde 1982. Foi conservador e programador do instituto American Center. Seus artigos, publicados em várias revistas, foram reunidos no livro Poussières d’image, de 1998, pela editora Paris Expérimental. Atualmente vive em Recife, onde participa do espaço Bcubico. Gustavo Raulino Sócio-fundador. Diretor da MOVA Filmes – Produtora de conteúdo audiovisual, diretor, roteirista, editor e
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finalizador de imagem. Trabalhos recentes: Riocorrente (Paulo Sacramento), câmera/2a unidade, still e making-off; Os Residentes (Thiago Mata Machado) Finalização digital; Celeste (Aloysio Raulino), composição e gravação da trilha musical. Dirigiu os filmes Maracatu e Syntagma, exibidos no forumdoc.bh.2013. COLETIVOS Coletivo Mariachi Formado por profissionais de comunicação (jornalistas, fotógrafos e documentaristas), o “Coletivo Mariachi” está acompanhando as manifestações e protestos na cidade do Rio de Janeiro (como cidadãos e) para a produção de documentários. Alguns dos vídeos produzidos pelo grupo estão disponíveis no http://www. youtube.com/user/coletivomariachi. Coletivo Projetação Coletivo multidisciplinar que promove ações buscando gerar reflexão política, integrar e alinhar discursos, em torno de projeções, em espaços públicos, de frases e imagens de impacto que amplificam as pautas defendidas pelos levantes populares, em compromisso com a informação e a liberdade de expressão. 120
Maria Objetiva O coletivo Maria Objetiva é formado por artistas midialivristas-ativistas do cenário audiovisual, literário e fotográfico de Belo Horizonte que, ao longo do tempo, se consolidou como um canal de comunicação não tradicional, transmitindo informação de forma artística. Todo o conteúdo gerado pelo Maria Objetiva é registrado pela licença CreativeCommons cc by-sa. Midia Ninja Mídia Ninja (sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), é um grupo de mídia formado em 2011, relacionado à rede Fora do Eixo. Sua atuação é conhecida pelo ativismo sociopolítico, declarando ser uma alternativa à imprensa tradicional. O grupo tornou-se conhecido mundialmente na transmissão dos protestos no Brasil em 2013. As transmissões da Mídia Ninja são em fluxo de vídeo em tempo real, pela Internet, usando câmeras de celulares e uma unidade móvel.
curso/o ficina
MORALIDADE E PODER ATRAVÉS DA CONDUTA DO SOM curso com Deborah Stratman
Apresentação Geralmente, pensamos em áudio como algo que exala linearidade – uma narrativa temporal. E quanto ao áudio que funciona de formas arquiteturais, simultâneas e espaciais? Esse curso se dedica a paisagens sonoras lineares e não-lineares. Iremos explorar como o áudio percebe, perturba, camufla e anima o espaço. Como o som nos informa? Como nos engana? Como nos controla? Como nos empodera? Discutiremos a transmissão de áudio e a relação politizada do espectro eletromagnético com o espaço público, e examinaremos o enorme potencial do som de afetar a resposta e o comportamento humanos. Abaixo com inserir músicas no último instante. Abaixo com gravações de baixa qualidade. Abaixo com o som condenado a repetir, de forma redundante, informações já conhecidas sobre uma imagem. Vamos nos levantar e utilizar o traço essencial do som de não ser restringido pelo quadro. 122
Vamos desenterrar modos com que o som possa se sustentar por conta própria, contradizer, dirigir, infiltrar, desafiar, eletrizar, usurpar e reforçar o que é visto na tela. Vamos construir o espaço com o som. Realizada em parceria com o Ministério das Relações Exteriores – Governo Federal Belo Horizonte
Biografia Deborah Stratman é uma artista e cineasta interessada em paisagens e sistemas. Grande parte de seu trabalho volta-se para a relação entre ambientes físicos e as lutas humanas por poder e controle que ocorrem no terreno. Recentemente, seu trabalho tem questionado narrativas históricas elementares acerca de fé, liberdade, levitação, expansionismo, áudio tático e crateras. Stratman trabalha com múltiplos meios
incluindo escultura, fotografia, instalação, desenho e áudio. Ela exibiu internacionalmente em lugares como Bienal do Whitney Museum, moma ny, Centre Georges Pompidou, Hammer Museum, Witte de With, Walker Art Center, Yerba Buena Center for the Arts, Taipei National Palace Museum e realizou projetos site-specific [pensados e desenvolvidos para um lugar específico, ndt] com locais tais como o Center for Land Use Interpretation, Temporary Services, Mercer Union e Ballroom Gallery Marfa. Os filmes de Stratman foram exibidos em diversos festivais internacionais como Sundance, Full Frame, Ann Arbor, True/False, cph:dox, Oberhausen, Rotterdam e Viennale. Ela foi contemplada com as bolsas Fullbright e Guggenheim e subvenções de Creative Capital, Graham Foundation e Wexner Center. Stratman vive atualmente em Chicago, onde leciona na Universidade de Illinois.
cine humberto mauro, 25 a 29 nov, 14h Às 17h
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Programa 25 de Novembro, segunda-feira Introdução: Como o som constrói o espaço e conforma a experiência Filmes: Untied, 2001, 3 min, 16mm film Hacked Circuit, 2014, 15 min, HD video On the Various Nature of Things (1 min. excerpt), 1995, 25 min, 16mm film
27 de Novembro, quarta-feira A física do Rádio: O estado imóvel do éter Filmes e projetos: Power/Exchange, 2003, public sonic sculpture …These Blazeing Starrs! 2011, 14 min, 16mm film
28 de Novembro, quinta-feira Sons procuram por corpos: Phantom versus experiência corporificada Filmes:
26 de Novembro, terça-feira Áudio tático: Operações psicológicas, camuflagem e vigilância Filmes e projetos: Caballos de Vigilancia, 2009, public sonic sculpture Ball & Horns, 2011, public sonic sculpture Tactical Uses of a Belief in the Unseen, 2010/2012, sonic sculpture Village, silenced, 2012, 7 min, SD video In Order Not To Be Here, 2002, 33 min, 16mm film
Immortal, Suspended, 2013, 6 min, HD video How Among the Frozen Words, 2005, 1 min, SD video It Will Die Out in the Mind, 2006, 4 min, SD video The Magician’s House, 2007, 6 min, 16mm film The Name is not the Thing named, 2012, 11 min, SD video Kings of the Sky, 2004, 68 min, SD video
29 de Novembro, sexta-feira Dar voz, fazer História: testemunha, testemunho, encenação Filmes e projetos: Kuyenda N’kubvina, 2010, 40 min, SD video Ray’s Birds, 2010, 7 min, 16mm film Pentagonal Address, 2012, public sonic sculpture O’er the Land, 2009, 52 min, 16mm film
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In Order Not To Be Here
Kings o f the S ky
EUA, 2002, cor e pb, 33’, 16mm Direção direction Deborah Stratman Fotografia photography Deborah Stratman Montagem editing Deborah Stratman Música music Kevin Ross Mixagem de som sound mix Jacob Ross Contato contact delta@pythagorasfilm.com
EUA, 2004, cor, 68’ Direção direction Deborah Stratman Fotografia photography Deborah Stratman Montagem editing Deborah Stratman, Mike Olenick Som sound Deborah Stratman, Fausto Caceres, Carl Lee Mixagem de som sound mix Jacob Ross Contato contact delta@pythagorasfilm.com
Um olhar descompromissado sobre formas com que a privacidade, a segurança, a conveniência e a vigilância determinam nosso meio ambiente. Inteiramente filmado à noite, o filme confrontra a natureza hermética das comunidades de colarinho branco, dissecando o medo por trás da concepção contemporânea dos subúrbios.
Kings of the Sky acompanha o artista de corda bamba Adil Hoxur enquanto ele e sua trupe viajam em turnê pelo deserto chinês Taklamakan, entre os Uyghurs, um povo turco/muçulmano à procura de autonomia religiosa e política. O filme paira graciosamente entre o travelogue, poesia visual etnográfica e vídeo de combate pela preservação de uma forma de arte tradicional. É um filme sobre a procura de equilíbrio.
An uncompromising look at the ways privacy, safety, convenience and surveillance determine our environment. Shot entirely at night, the film confronts the hermetic nature of white-collar communities, dissecting the fear behind contemporary suburban design.
Kings of the Sky follows tightrope artist Adil Hoxur as he and his troupe tour China’s Taklamakan desert amongst the Uyghurs, a Turkic Muslim people seeking religious and political autonomy. The film gracefully hovers between travelogue, ethnographic visual poetry, and an advocacy video for preserving a traditional art form. It is a film about seeking balance.
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O'er the Land
Kuyenda N'kubvina (Wal king is Dancing)
EUA, 2009, cor, 52’, 16mm Direção direction Deborah Stratman Fotografia photography Deborah Stratman Montagem editing Deborah Stratman Música music Maryane Amacher, Kevin Drumm, Steve Rowell, Lustmord Mixagem de som sound mix Jacob Ross Contato contact delta@pythagorasfilm.com
EUA, 2010, cor, 40’ Direção direction Deborah Stratman Contato contact delta@pythagorasfilm.com
Uma meditação sobre a ameaça endereçada à identidade nacional, à cultura de armamentos, à vida sevagem, ao consumismo, ao patriotismo e à possibilidade de transcendência pessoal. O filme aproxima ícones culturalmente aceitáveis de um heroísmo nacional, com uma sugestão de consequências históricas inaceitáveis, em que lugares que parecem benignos se tornam zonas de angústia moral.
Poucos bens de exportação, culturais ou não, chegam ao oeste da África vindos do sudeste. Estimulado por uma curiosidade em relação às formas como se dissemina conhecimento sobre os espaços, o filme lança um olhar sobre como o pensamento e a cultura se propagam em Malawi. Ao cruzar videotecas, livrarias, estações de rádio e pistas de dança, encontramos malawianos que transitam por entre ritmos e ideias.
A meditation on the milieu of elevated threat addressing national identity, gun culture, wilderness, consumption, patriotism and the possibility of personal transcendence. The film forces together culturally acceptable icons of heroic national tradition with the suggestion of unacceptable historical consequences, so that seemingly benign locations become zones of moral angst.
Relatively little export, cultural or otherwise, reaches the west from southeastern Africa. Spurred by curiosity about how knowledge of place spreads, Kuyenda N’kubvina looks at how thought and culture propagate in Malawi. Weaving our way through video halls, book stores, radio stations and dance floors, we meet Malawians who traffic in rhythm and ideas.
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O ficina O inimigo e a Câmera Apresentação
Programa
As manifestações de junho, as redes sociais e o fácil acesso a câmeras e filmadoras formaram um ambiente que possibilitou, talvez, o maior exercício de produção, compartilhamento e consumo de conteúdo independente da história brasileira.
Apresentar técnicas básicas de produção de conteúdo jornalístico: responsabilidade social, posicionamento em campo, abordagem, apuração de informações, construção da narrativa e publicação;
A cobertura feita pela mídia tradicional, sem levar em consideração os interesses por detrás das grandes empresas jornalísticas, foi feita de uma maneira rasa e despreparada. Por outro lado, muitos ‘midialivristas’, por serem ativistas e estarem mais envolvidos em etapas que precederam os conflitos violentos, possuíam uma compreensão mais aprofundada daquele momento. Entretanto, essas várias lacunas deixadas pela cobertura da grande mídia não foram totalmente preenchidas, muitas vezes, pela carência do domínio de técnicas básicas de produção de conteúdo jornalístico. Esta oficina consiste em apresentar técnicas básicas em torno de como produzir conteúdo em conflitos violentos.
Exibir referências de conteúdos produzidos durante as manifestações; apresentar técnicas básicas de produção de conteúdo jornalístico: responsabilidade social, posicionamento em campo, abordagem, apuração de informações, construção da narrativa e publicação; Ensinar técnicas de como se proteger do inimigo, e discutir sobre equipamentos para produção do vídeo; Debater sobre Conflict Sensitive Journalism (Jornalismo Sensível à Conflitos) – a capacidade do jornalista/midialivrista de influenciar nas resoluções de conflitos. centoequatro, 24 nov, 14h Às 18h 127
Biografia Jornalista, trabalhou no jornal O Tempo e co-fundou o coletivo odin, passando a atender Folha de S. Paulo, IstoÉ e Veja bh. Durante os protestos de junho atuou como jornalista independente, produzindo quatro vídeos que somam quase 400mil visualizações e co-fundou o coletivo de arte-ativismo Nós, Temporários, responsável pela confecção dos bandeirões unfair players, cpi dos transportes, fora clésio andrade, porque eu quis e pelo vídeo do Capitão Bruno, em Brasília. Teve oito fotos selecionadas para as últimas cinco edições do livro O Melhor do Fotojornalismo Brasileiro.
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ensaios
Foto acervo andrea tonacci
a A loysio Rau lino Andrea Tonacci
A repentina ausência do Aloysio, soube pelo telefone, tive que sentar-me lentamente no chão, deitar parado, meu corpo ficou inteiro doendo por uma semana. Sentime um inválido, um mutilado, fiquei menor, mais pobre, sem um pedaço. E os dias seguintes vieram, com a consciência de estar mais só, mais inteiro, mais disposto ainda, e muito grato pela lição de vida e coragem de quem estivera ao lado. Estivéramos juntos uma semana antes de sua morte, quando ele revisou a marcação de luz e cores do novo telecine que a Cinemateca Brasileira fez do Conversas. Fora eu a fazer câmera e fotografia do filme em 1977, e parecia que fora ele, revelando-me a luz e seu olhar daquele lugar. Penso que foi isso, foi essa sensação que nos aproximou. Nos encontramos nas imagens dos nossos primeiros filmes, no olhar mútuo que tinhamos pro mundo naquele tempo. Só anos mais tarde trabalhamos juntos. Ver, olhar (o corpo) o Aloysio trabalhando com a câmera no olho era como perceber o sentimento da imagem que ele via.
Seu corpo, sua postura e movimento revelavam-me o sentimento daquele enquadramento que o conduzia. Eu podia “ver” o que ele via. Bastava-me um som de voz, um toque de dedo no seu corpo para “dirigir” o que me mostrava. Ele me revelava o olhar que eu buscava na cena. Nosso “vídeo-assist” era físico-mental. O olhar do Aloysio tinha a liberdade da atenção plena, da vida plena, íntimo à vida vivida. Para ele bastava ver-me olhando e trabalhando a ação para intuir e reconhecer meu ponto de vista, o comportamento do “olhar” da câmera, a dramaticidade impregnada na luz desejada, bastava um olhar, meia palavra, e já ia à frente dando forma ao meu imaginário. Aloysio era diretor, e como fotógrafo de cinema sabia incorporar-se à visão desejada, que para nós coincidia.
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A discreta revolução de A loysio Rau lino Jean-Claude Bernardet
Nos anos 70 Aloysio Raulino transforma o documentá- Esses são pontos essenciais à poética de Raulino e sobre rio no Brasil. Abre novas perspectivas. Já em Lacrimosa eles tínhamos resolvido conversar diante do público que ele realiza ainda na Universidade, 1970. durante a retrospectiva no forumdoc.bh de 2013. E exibiríamos planos no ritmo da fala. A duração do plano. Lacrimosa abre com um plano de extrema duração. O tempo passa a contar no cinema Há um outro ponto que achávamos essencial: a trilha documentário. A duração, até Raulino, era decorrente musical. A música extradiegética é frequente nos seus da informação contida no plano. A partir dele, o tempo filmes. Entradas e saídas de música sem apoio nos cortes passa a ser uma forma de relacionamento com a reali- nem nas articulações da ação surpreendem o especdade filmada. A realidade precisa de tempo. tador. Essa montagem sonora tem o efeito de abstrair o filmado, dizia eu a Aloysio, do circunstancial, ela As pessoas também. Esse é outro aporte fundamental. desperta reflexão filosófica e provoca expansão poética. Tanto a demorada presença da câmera diante da pessoa filmada quanto o demorado olhar da pessoa filmada Também sobre música teríamos conversado. em direção à câmera esgotam a circunstância para deixar aflorar uma subjetividade que não se revela mas manifesta sua presença e sua opacidade.
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EU FIZ PARTE DESTE TERRITÓRIO FILMANDO Andréa Daraca
Do que é feito um cineasta? Um diretor de fotografia? Qual a matéria, a mistura, a alquimia de seu corpo? Que impulso corre em suas veias? Por quais poros emana sua inquietação? Com que ferramenta modela sua alma? Ao evocar Aloysio Raulino nestas linhas, reminiscências preciosas eclodem nas lembranças de meu mestre, amigo e parceiro de baile.
Não de todos os cinemas, mas de um manifesto pessoal. Um cinema que experimenta, tateia, observa, baila. Um cinema instintivo, atento, feito no exato momento do encontro entre cineasta e corpo, cineasta e face. Sua câmera não é nem mais nem menos que seu pulmão, seu coração, seu fígado e, assim, ao empunhá-la como órgão vital, completa sua engrenagem, apazigua sua inquietude. E neste encaixe perfeito conversa com o Com ele vivi a artesania da imagem em movimento. mundo a sua maneira: em detalhes e poesias talhadas Essa estranha tarefa de transitar e operar entre supor- em prata, em pixel, em movimento e espessura fílmica. tes materiais e imateriais: entre memórias, histórias, sonhos e desejos vistos em forma de ruas, navios, pas- Sua matéria é a percepção, o tempo presente. E seu sarelas e rostos, muitos rostos. Testemunhei poemas ofício a tradução das invisibilidades em grãos, fotoescritos por itinerários urbanos; pinturas traçadas em gramas, matéria, imagens, que ao serem projetadas luz e cor; encontros com olhares; sussurros através da recriam novas sensibilidades e encontros. Um mestre lente; lágrimas tímidas que molharam equipamentos; no domínio do espaço entre a câmera e o filmado, este e muitas, muitas conversas de fala mansa num corpo lugar onde o mistério se apresenta e onde habita o livre impaciente, um corpo-câmera, um corpo-cinema. arbítrio do cineasta. Este campo magnético recheado
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de matéria e percepção que aciona os corpos embalados pela música do motor da câmera. Assim revisito as ausências que esse homem, esse gigante, me traz. Uma lacuna que de certa forma é preenchida por seus olhares, seus manifestos transformados em filme. Em toda a sua obra, querido Alú, fico impregnada pela duração de um rosto, pela extrapolação da presença do plano, por ver sua câmera ultrapassar a barreira fílmica para deixar-se ver. Como eu gostaria de, neste exato momento, bailar contigo no viaduto Santa Ifigênia onde tudo começou e lhe dizer o quanto de mim é composto por estas reminiscências, por este encontro privilegiado. Ya te despedías y así, sin eco
moría
tu último día 1
Notas 1. De pensamentos em poemas a serem editados no Uruguai, Aloysio Raulino.
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Foto acervo andrea tonacci
Cinepoesia: a dança da música da luz Jair Fonseca estamos invadindo o coração da História estamos vestindo as horas de outra cor Claudio Willer Eu filmo, porque a câmera eu vejo de dentro. A câmera é meu corpo.
aos finais de O Tigre e a Gazela (1976) e O Porto de Santos (1978), de Raulino. E neles colocam-se à prova as durações que constituem os ritmos de tempo e espaço pulsantes, designados e desenhados – “escritos” em signos – pela luz nas imagens visuais e sonoras em movimento.
Aloysio Raulino
Essas pequenas obras-primas em preto-e-branco, às quais acrescentaremos outro curta (Lacrimosa, de 1970), Segundo Abel Gance, o cinema é a música da luz. e um filme em cores (Inventário da rapina, de 1986), Podemos dizer sobre muitos dos filmes de Aloysio fazem de Raulino um grande cineasta do olhar – do Raulino que eles são a poesia da luz, e mais: a dança seu e do olhar do outro. Isso, que poderia parecer uma da música da luz. Para o cinema, a música e a poesia, o platitude e um clichê relativos ao cinema em geral, é ritmo é fundamental. Sendo a fotografia – matafórica mesmo uma das marcas de sua fotografia de poesia, e etimologicamente – a escrita da luz, em alguns cine- caracterizada pelo gosto do retrato – humano, prinastas essa “escrita” não é apenas narrativa ou descritiva, cipalmente. Nesses filmes, os retratados encaram o mas poética, pois configura ou desfigura imagens que olhar de Raulino, ou seja, o olhar da câmera e o nospulsam, como os brancos adereços do carnaval e as luzes so olhar, num desafio não só às famosas convenções dos navios, ambos em noite escura, respectivamente do cinema clássico, mesmo do documentário, mas ao
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próprio filme que se faz ali e captura olhares captores, os quais insistem, resistem, olham de volta, como se rimassem na luz. A epígrafe de Lima Barreto (o escritor, não o cineasta), em O Tigre e a Gazela, sintetiza isso com uma bela alegoria da dialética do olhar: “Eu a olhava, com meu olhar pardo, em que há o tigre e a gazela”. O olhar que captura também é o da presa, e vice-versa. Também a citação final de Frantz Fanon, no mesmo filme, diz bem disso tudo: “Oh, corpo meu, faz de mim um homem que interrogue”. O olhar de Raulino – câmera acoplada a seu corpo – interroga os olhares interrogantes dos corpos fotografados, e é capaz de cruzar, política e poeticamente – de forma inédita – em seu pensamento de cinema, as reflexões poético-políticas dos dois intelectuais-escritores: o sofrido mulato brasileiro, mal aceito no mundo dos brancos, e o revolucionário negro martinicano, que procurou desnudar e combater os mecanismos da opressão e dominação coloniais, principalmente em suas relações com o racismo. Em O Tigre e a Gazela e O Porto de Santos, a fotografia em preto e branco é bem marcada, a luz é estourada. Há imagens de gente negra e mestiça com crianças louras; dias brancos são sucedidos por noites negras, e vice-versa; peles reluzem nas películas em 136
exposição: ambas com seus poros e grãos salientados pelo brilho. Lá estão o preto no branco e o branco no preto da pobreza, no contexto opressivo da ditadura, mas sem a explicitação da denúncia, e sem referência ao “modelo sociológico”, que marcaria grande parte da produção fílmica nesse período, segundo Jean-Claude Bernardet em Cineastas e imagens do povo, sendo que filmes como os de Raulino recebiam a pecha de formalistas e de não serem tão empenhados politicamente: O que foi qualificado de formalismo não era uma fuga.
O trabalho sobre a linguagem e sobre a forma era (é) necessário, já que esta linguagem está repleta de ideologia, já que ela é ideologia. Opor-se ao “modelo sociológico” e
fazer experiências formais radicais que podiam parecer
herméticas na época, implicava um trabalho sobre o social. (bernardet, 1985, p. 187)
A respeito de O Porto de Santos, Bernardet também atenta para o papel da sensualidade nesse filme que lida com o “Labor” – termo que aparece duas vezes como imagem de um monumento, e se duplica como legenda alegórica para o trabalho de operários e prostitutas e possivelmente para a suspensão do trabalho,
considerando-se o contexto da campanha salarial dos trabalhadores portuários, e seu direito ao prazer. Mais além, diria que tanto nesse quanto nos outros filmes citados “a alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro”, conforme a oswaldiana letra de Torquato Neto para a canção tropicalista de Gilberto Gil. Nos retratos em branco e preto que temos neles, além de olhares interrogantes, se produzem risos e sorrisos, mesmo em quadros de grande miséria. Acrescento que isso também pode ter causado incômodo aos mesmos “setores da esquerda” que acusariam de “formalistas” os filmes de Raulino (bernardet, 1985, p. 186-187). Como se a alegria não pudesse ser também uma arma política, um modo de resistência. Não é preciso dizer o quanto o próprio cineasta era um homem de esquerda, empenhado na luta contra a ditadura, em ações de militância diretamente política, pois isso está em cada grão ou pixel de seus filmes e vídeos, bem como em seus sons, mas é bom que se diga. Raulino compartilha, com outros companheiros de geração e atividade, da mesma opção preferencial pelos pobres e marginalizados em geral: negros, índios, mestiços, lavradores, migrantes, operários, mendigos, bêbados, prostitutas, travestis, mulheres e crianças.
Além disso, Raulino irmana-se a outros artistas e intelectuais brasileiros no latino-americanismo inaugurado pela Tropicália e acentuado na década de 1970, quando ditaduras ferozes dominam os países do subcontinente, garantindo e aumentando pela força a exploração capitalista. Nos filmes de Raulino, esse latino-americanismo assume muitas vezes um caráter festivo e gozoso, sem o luto e a melancolia, ou a gravidade, que marcavam a música latino-americana no contexto do protesto ou da resistência às ditaduras. Note-se, por exemplo, que Porto de Santos, junto às imagens das bandeiras dos barcos de alguns países latino-americanos, traz na banda sonora, além de muitos ruídos e vozes dessincronizadas, não só a música de Paco de Lucía (significativamente intitulada “Entre dos aguas”), num arranjo latino-americanizado pela percussão, mas também o deboche de “Amante latino”, cantada entre risos por Sidney Magal. Esta última é coreografada num longo plano em que a alegria e a jocosidade explodem na dança risonha de um estivador ou caiçara, descalço e só de sunga, cercado por várias pessoas, numa rua de terra, junto a cãezinhos pulguentos – canção mixada a sons de latidos também dessincronizados, sendo o ritmo perfeito. 137
Em O Tigre e a Gazela, outro momento de epifania dos pobres pela dança também se dá ao som de uma “música latino-americana”, também brasileira, que nesse caso é de Milton Nascimento e surge, ao final do filme, na sequência dessincronizada das imagens do carnaval, às quais imprime um outro ritmo, extraordinário. O carnaval toma outro sentido – alegórico – quando em vez do costumeiro e óbvio samba-enredo, realisticamente aceitável, ouve-se “Pablo nº 2 (Festa)”, a embalar o baile da passista que rebola e rebrilha fotograficamente a pele escura e os cabelos louros, ao lado de um outro membro da escola em desfile, fantasiado de Preto Velho. Como no caso da supracitada legenda (“Labor”), mais uma vez Raulino re-alegoriza o que “na realidade” já é alegórico, e com isso vai contra a maré naturalista do documentário social, ao retirar imagens de seus contextos originais e ao recontextualizar poeticamente esses fragmentos heteróclitos. Daí o papel importante, nesses filmes, da montagem vertical som-imagem, através da dessincronização, que acentua o caráter disjuntivo da alegoria – diferente do caráter associativo do símbolo e do realismo, cujos elementos são solidários e não fragmentários. Daí a 138
recusa, nesses filmes, das entrevistas e depoimentos, em favor das imagens interrogantes dos corpos filmados, mesmo quando há som direto, como no caso da senhora negra, que canta e se move coreograficamente, na rua, cercada por crianças, n’O Tigre e a Gazela. Em jogo com os fragmentos textuais de Frantz Fanon, que denunciam a desfiguração e o aniquilamento da história dos oprimidos pelos senhores, a mulher negra entoa embriagadamente o samba-exaltação “Salve a Princesa Isabel”, de Paquito e José Soberano: “Não há mais preconceito de cor!”; sendo que noutra sequência ela canta o “Hino da Independência”, de Dom Pedro I e Evaristo da Veiga. Esse registro documental é bem mais que isso, de fato, e também assume uma evidente dimensão alegórica, a qual supera inclusive a ironia da situação flagrada, ou deflagrada, pelo filme, através da ambígua afirmação de uma liberdade conquistada pelo próprio corpo que canta. Tais performances filmadas da senhora negra, que deixa a humildade de lado, se relacionam claramente ao letreiro com mais uma reflexão de Fanon, tornada legenda alegórica: “Apesar de toda sua técnica, o inimigo dá a impressão de chafurdar e desaparecer pouco a pouco na lama. Nós cantamos, cantamos.” O samba-exaltação e o hino deixam de
corresponder às versões oficiais da história ao serem apropriados aos berros, na rua, por essa cantora sui generis, e também se relacionam a outro belo momento do filme, em que dois rapazes mulatos, visivelmente pobres, encaram a câmera, brincam, riem, ficam sérios, ao som de “Salve linda canção sem esperança”, de Luiz Melodia. Além do efeito tocante desse jogo entre canções, imagens visuais e o silêncio em que elas irrompem (e se interrompem), é notável também o cuidado de Raulino nas escolhas temáticas dessas músicas, sendo que a canção de Melodia, já no título, é uma paródia melancólica do “Hino à Bandeira Nacional”, de Olavo Bilac e Francisco Braga. No curta anterior, Lacrimosa, a tristeza pela miséria e pelo momento opressivo da ditadura se acentua com o cinza da fotografia, pela paisagem desolada, num tempo chuvoso, que justifica o título do filme, tirado do trecho homônimo do Réquiem, de Mozart, parte da trilha musical. Há um longo travelling pela recém-aberta Marginal Tietê, em São Paulo, que “nos obriga a ver a cidade por dentro”, conforme o letreiro no início do filme, o qual por sua vez nos obriga a ver as favelas mais miseráveis, ao som, além da “Lacrimosa”
de Mozart, de música latino-americana, sendo que o letreiro final traz um trecho de uma letra do compositor chileno Ángel Parra. Para sermos obrigados a ver, nos incomodarmos com isso e estranharmos o que vemos, a música se interrompe, há silêncios, termina a viagem de carro da câmera que vasculha as margens da Marginal, onde, por exemplo, um jovem negro dança (sem que ouçamos música) e fala (ou canta?) sem som. Por isso, apesar de ser aparentemente mais grave do que os outros dois filmes de que tratamos, Lacrimosa, como eles, também não sucumbe à tristeza, mas dança e brinca – o que se nota também no jocoso detalhe, pouco perceptível, de um grupo de garotos que calça sapatos femininos, no chão enlameado da favela, num retrato capaz de causar um estranhamento buñueliano. A sequência inicial de O Porto de Santos, em que se veem monumentos da cidade, ao som de uma locução com voz over sobre a história colonial, poderia levar a crer que se assiste a um documentário convencional, apesar da estranha beleza, digamos, eisensteiniana, já prenunciada pelo hieratismo dos monumentos e navios nos planos iniciais de fotografia claríssima, a qual adiante será contrastada pelas imagens noturnas, 139
em que as águas escuras do mar dançam nos reflexos luminosos e as luzes de neon piscam na zona boêmia de Santos, ao som de cantigas de roda, enquanto o olhar da câmera-corpo atrai olhares atraentes de outros corpos. No posterior e colorido Inventário da rapina, o baile será das estátuas dos monumentos à colonização, através de travellings e planos-sequências, com solene música sinfônica; além das danças de rua, ao som da “Aquarela do Brasil” tocada por uma bandinha que apregoa loteria; da coreografia, ao som de rock e música erudita, das crianças de olhos vendados com panos pretos; e da menina com roupa vermelha de bailarina que salta, perseguindo bolhas de sabão, ao fim do filme, enquanto se ouve uma versão instrumental e mais lenta do Hino Nacional do Brasil. Nesse Inventário da rapina, como nas outras fitas, há sempre a música da luz e sua dança, no tratamento cinepoético da situação política do presente (no final da ditadura, neste caso), em sua relação com a história colonial – sendo isso evidente nas imagens das estátuas de índios e conquistadores cobertas por dejetos de pássaros. Também quanto a isso, salienta-se a cor de sangue, desde o início do filme, já nos títulos e na tinta que se mistura à água, e em alguns planos completamente vermelhos, bem 140
como num trecho do poema de Claudio Willer sobre García Lorca, em letras rubras caligrafadas sobre um vidro por trás do qual se vê a cidade: “alguns mortos incomodam demais/e ninguém quer saber/ninguém quer ver/ninguém quer saber o que tem a ver”. Ouvemse e leem-se, no filme, outros poemas do livro Jardins da Provocação, de Willer, e um deles, que aparece em fosforescentes letras verdes na tela de um computador pioneiro, assim começa e termina: “ajuda-me a desembrulhar esta cidade/e seus pacotes de percepção/(...) revela o que está oculto/por trás da turva sombra/sinal dos tempos luminoso e precoce”. É o que faz Raulino, em mais uma cinepoética incursão pela cidade, que junta à referida visada histórica elementos auto-biográficos, inclusive familiares, num belo exemplo de ensaísmo fílmico. Nele, acentua-se a citação literária, além dos poemas, pois ouvem-se na banda sonora a leitura de trechos da prosa de Norman Mailer, e temos a imagem do próprio cineasta num dos planos do filme para relatar, à maneira de Borges, sua busca de um livro de Borges para dar à sua mulher, e os estranhos encontros ocorridos por isso numa livraria, sendo que, no plano seguinte, a
mulher aparece segurando para a câmera um exemplar de O livro de areia, e dizendo: “é esse o livro que ele me deu”. Sendo infinito o livro de areia, ou seja, sendo infinitas a criação literária, a leitura e a imaginação que a ela presidem e às outras artes – como o cinema – o relato de Raulino, com o olhar fixo na câmera e em nós, leva a outras praias: as do Brasil (cujo ufanismo se inscreve na areia que a língua do mar apaga) e da própria fabulação extraordinária do cineasta. Outro livro que se torna personagem importante em Inventário da rapina é um dos volumes da Crítica de cinema no Suplemento Literário, de Paulo Emílio Salles Gomes, uma das figuras fundamentais do cinema brasileiro e um dos mestres de Raulino na USP. Na capa do livro, que aparece por três vezes, salientam-se os olhos na foto do escritor e pensador do cinema, que escreveu, entre muitos outros textos, os artigos “Um mundo de ficções” e “Uma situação colonial?”. Raulino fala de seu trabalho como “a busca do cinepoema”,1 e em relação a eles vale a definição discutida por Pasolini para o “cinema de poesia”, que visa “fazer com que a câmera se sinta” (pasolini, 1982, p. 150). Essa câmera, sensível como um corpo, se faz sentir
de diversos modos, através de muitos recursos e da captura dos olhares, como temos observado, sendo fundamental mais uma vez a relação entre imagem visual e som, evidenciando-se, além dos poemas e da música instrumental, alguns momentos em que o canto é importante, sendo isso anunciado no relato borgesiano do cineasta, em que seu estranho personagem, “um homem negro” emite um som, “uma melopeia”, como se fosse “um canto tribal”. Logo no início do filme, temos um dos jovens negros que aparecem no Inventário da rapina tocando violão e cantando. Numa das cenas musicais de rua, além do violinista, branco, que toca “A Marselhesa”, vemos um pequeno grupo de forró, provavelmente uma família nordestina, no qual a câmera flagra (ou deflagra) o olhar interrogante de uma menina, com o rosto inclinado, que a encara, antes de começar a cantar. E mais uma vez há na trilha musical uma canção de Luiz Melodia, ouvida numa sequência de belos planos noturnos da cidade, cujos versos podem sintetizar poeticamente o projeto estético e a realização artística de Aloysio Raulino, em seu empenho político-social: “Falando de pobreza sem ser triste/falando de tristeza sem ser pobre”.
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Referências BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. MELO, Rocha Luís Alberto. O som e a fúria. Filme Cultura, n. 58, p. 46-47, jan./fev./mar. 2013. Disponível em: http://filmecultura.org.br/categoria/edicoes/#. Acesso em: 22 de out. de 2013. PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo hereje. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982. RAULINO, Aloysio. Contracultura na barra pesada. Correio Braziliense, Brasília, 1° out. 1984. Entrevista a Maria do Rosário Caetano. Disponível em: http:// abraccine.wordpress.com/2013/05/27/dossie-raulino-parte-i-diretor/. Acesso em: 22 de out. de 2013. RAULINO, Aloysio. Fotografia de cinema no Brasil hoje. Filme Cultura, n. 38-39, p. 26-29, ago./nov. de 1981. Entrevista a João Silvério Trevisan. Disponível em: http://filmecultura.org.br/categoria/edicoes/#. Acesso em: 22 de out. de 2013.
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Notas 1. Entrevista a Maria do Rosário Caetano, originalmente publicada no Correio Braziliense, em 1° de outubro de 1984: “Contracultura na barra pesada”. A matéria e a entrevista tratam do único longa-metragem de Raulino, Noites paraguayas (1982), em que, aliás, também se identificam o latino-americanismo e a cinepoesia com que caracterizamos os curtas tratados aqui.
A fita 36* Paulo Sacramento
No final de 2001 me vi diante de imenso desafio: montar o recém-filmado longa O prisioneiro da grade de ferro. À minha frente estavam mais de 170 horas de um material intenso e selvagem captado na Casa de Detenção de São Paulo por uma equipe mista composta de detentos e profissionais de cinema, sob minha coordenação. Por conta da limitação de espaço no hd da ilha de edição (mal entrávamos no mundo dos gigabytes), foi necessário seguir uma lógica matemática extremamente rígida no início do trabalho: a cada fita contendo uma hora de material bruto eu deveria dispensar, já na primeira visão, 80% das imagens captadas. Do contrário, o equipamento não comportaria as dimensões do projeto. Assim trabalhei até me deparar com a fita 36. O curso básico de linguagem audiovisual que fora oferecido por nós aos detentos já havia terminado e eles partiam da fase teórica para a prática, com o intuito de extrair do
seu cotidiano uma resposta contundente à superficialidade com que a mídia os retratava. Uma mudança também se operava em nossa equipe técnica. A fotografia do filme estava sendo assumida por Aloysio Raulino, cineasta de grande experiência, responsável por uma inflexão político-poética radical em nossa produção documental nos anos 60 e 70. Ele foi meu professor na eca/usp, mas será que conseguiríamos trabalhar em sintonia, tal a diferença geracional que havia entre nós? A resposta começaria a se esboçar desde a primeira fita que Aloysio registrou para o filme, a de número 36. Pedi a ele que filmasse, sem qualquer interferência, um prédio praticamente abandonado a que chamavam de hospital – o pavilhão 4. Após esse dia de trabalho solitário ele integrou-se à nossa equipe e enfrentamos juntos mais seis meses de filmagens, no qual aliás aprendemos muito mais do que ensinamos aos presos. 143
Foto acervo andrea tonacci
De volta à ilha de edição e à fita 36, um problema se impunha. Seu conteúdo era tão lindo e triste que eu não tinha como selecionar dez minutos e dispensar o restante. Decidi pular aquela fita, seguir limpando o material para voltar a ela mais à frente, quando o filme estivesse mais estruturado. O tempo foi passando e a montagem, realizada em íntima parceria com Idê Lacreta, se estendeu por longos 17 meses. Por fim chegamos ao formato final de 123 minutos com o qual o filme foi finalizado. Durante sua primeira exibição pública, súbito me caiu a ficha: e a fita 36? Aquela que havia se tornado praticamente mítica para mim, em que a crueldade transpirava beleza e poesia, havíamos esquecido de utilizá-la no filme... Então compreendi sua força e seu diferencial. Muito mais que a revelação de uma intocada e crua realidade, o essencial ali era a visão particular, sensível e não distanciada dessa mesma realidade. E isto também estava registrado em todo o material que fizemos juntos dali em diante. Com seu talento, experiência e mais do que tudo, humanismo, Raulino contaminou
a todos, transformando radicalmente o filme a partir de sua chegada. Irmanados, realizamos um filme em que não é possível diferenciar o material filmado pelos presos das imagens captadas por nossa equipe. Enfim, um filme feito com os detentos, e não sobre eles. Tive muita sorte de encontrar dentro e fora da prisão parceiros que se revelaram inestimáveis para realizar um projeto que muitos julgavam impossível. Para além do filme, sedimentei nesse tempo algumas das minhas mais sólidas amizades. E ganhei um irmão mais velho, do qual nunca mais me afastei. Aloysio se foi há poucos dias, abraçado à cidade que tanto amava. Mas não deixou indiferentes aqueles que privaram de sua amizade. Com seu particular e constante senso de humor, ensinou-nos a cada dia e de forma definitiva a afinar nosso olhar e não dissociar, em nenhuma hipótese, a emoção do intelecto e da ética. Notas *Originalmente publicado na Folha de S. Paulo (28/04/2013): http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/04/1269930-a-fita-36.shtml
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O som e a fúria* Luís Alberto Rocha Mello
Em diversas ocasiões, Aloysio Raulino definiu a câmera como uma extensão de seu próprio corpo. Três curtasmetragens dirigidos e fotografados por Raulino nos anos 1970 e restaurados em 2009 pela Cinemateca Brasileira – Lacrimosa, O tigre e a gazela e Porto de Santos – confirmam essa íntima relação do cineasta com a fotografia: são ensaios audiovisuais que arrebatam o espectador pela força das imagens. Mas o intuito aqui não é falar desses três curtas a partir da fotografia, e sim de um outro elemento com o qual Raulino também soube lidar de forma admirável: o som e seus múltiplos significados políticos. Lacrimosa (correalizado com Luna Alkalay, 1970) é certamente aquele que traduz com maior dramaticidade o clima de asfixia imposto pela ditadura. Compõe-se de um longo travelling de carro pela Marginal Tietê, então recém-aberta, e de vários planos tomados em uma favela, na periferia de São Paulo. O clima chuvoso
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torna a paisagem ainda mais desoladora. Na favela, crianças circulam pelo lixo; um morador canta algo para a câmera, em close. Mas não ouvimos a sua voz. Assim como não ouvimos nenhum som proveniente da favela ou da rodovia. A pista sonora é uma longa faixa de silêncio, quebrada aqui e ali por excertos musicais – entre eles, uma canção latina e o Réquiem de Mozart, especialmente o trecho “Lacrimosa”, usado em dois breves momentos que não ocupam mais do que 30 segundos. O silêncio é soberano – mas desafiado ao final pela canção chilena Paloma pueblo, de Ángel Parra: “Han muerto tantas palomas/de mil formas y colores/pero a la paloma pueblo/no hay muerte que la aprisione.”
O Tigre e a Gazela Já nesse filme, portanto, insinua-se a importância da canção popular – embora cantada em outra língua – como
forma de resistir e desobedecer. Seis anos depois, em O tigre e a gazela (1976), essa estratégia será aprofundada. Na faixa sonora, ainda persistem os momentos de longo silêncio. Mas eles disputam lugar com ritmos percussivos, batucadas, fragmentos de música erudita e textos de Frantz Fanon narrados por um locutor off. Aqui, a música popular brasileira ganha maior relevância, quase sempre ressignificando as imagens. Por exemplo, quando a bela Salve linda canção sem esperança, de Luiz Melodia, dialoga com planos documentais de operários e populares em situações de ócio. Ou
ainda quando a latina Pablo nº 2 (Festa), de Milton Nascimento, é surpreendentemente combinada à coreografia dos passistas de uma escola de samba. Não só a trilha sonora se diversifica como provém de várias origens: fonogramas, locução gravada em estúdio para o filme e – o que é mais significativo – a voz na rua em som direto. Em dois momentos, uma mulher negra, talvez moradora de rua, rosto inchado pelo álcool, aparece cantando aos berros. No primeiro, ela canta o samba Salve a Princesa Isabel: “Todo negro pode ser doutor/Deputado, senador/Não há mais
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preconceito de cor”. No segundo momento, ela grita o Hino da Independência. Para além do sentido irônico que o filme empresta a essas músicas, importa o gesto libertador de cantar, aqui reforçado pelo uso do som direto em sincronismo – presente apenas nessas duas passagens.
aparente. Daí também um novo sentido dado à música popular. Na cena mais marcante de Porto de Santos, a que mostra um operário ou caiçara dançando de sunga a canção Amante latino (cantada por Sidney Magal), temos a síntese dessa nova postura defendida por Raulino: a música (posta sobre a imagem) não apenas como instrumento de denúncia, mas também como espaço do prazer e da sensualidade.
Em Porto de Santos (1978), o som diegético parece ainda mais pronunciado. Mas se trata de uma ilusão: os sons que ouvimos destacam-se com frequência da imagem Do silêncio cinzento à alegria do canto e da dança, um referencial. A trilha sonora compõe-se de trechos de novo entendimento da palavra “política”. Ou, como música instrumental (Entre dos aguas, com Paco de diz Fanon em um dos letreiros de O tigre e a gazela: Lucía), muitos ruídos (embarcações, docas, ambiente “Apesar de toda a sua técnica e de sua potência de fogo, praiano, gaivotas, ondas de rádio, boates na noite o inimigo dá a impressão de chafurdar e desaparecer santista) e vozes gravadas em som direto. Além disso, pouco a pouco na lama. Nós cantamos, cantamos.” a locução off também cumpre uma função irônica: uma voz feminina, didática e impessoal, fornece breves Notas dados históricos sobre a cidade de Santos. O espaço * Originalmente publicado na Filme Cultura 58 – jan/mar de para o silêncio agora é mínimo, quase se reduz aos 2013. fades sonoros. O ruído, a voz e a música parecem ter enfim conquistado o direito à expressão – jamais como ilustração das imagens, e sim contraponto, elementos de criação poética. Daí o total assincronismo (falas desconectadas das imagens) ou a sincronização apenas 148
Contracu ltura na barra pesada* Maria do Rosário Caetano
Dos seis longas-metragens exibidos na mostra Cinema Brasileiro dos Anos 80 – Diretores Estreantes, um chamou atenção por sua originalidade: Noites paraguayas, de Aloysio Raulino. Misturando documentário e ficção, o filme corre por estradas ramificadas, construindo o que seu autor define como “cine-poema”. Raulino é carioca de nascimento e paulista por adoção. Trinta e sete anos, 18 dos quais dedicados ao cinema. Tudo começou com a realização de filmes de curtametragem. Até estrear com Noites paraguayas, Aloysio tinha realizado 22 curtas. Dois deles são apaixonantes: Tarumã e Teremos infância?, este premiado no Festival de Oberhausen, na Alemanha. Além de dirigir filmes curtos, Raulino atuou na equipe técnica de dezenas de filmes. Em 1972, como aluno da eca-usp (Escola de Comunicação e Arte) participou de longa-metragem coordenado pelo cineasta-professor Roberto Santos, Vozes do medo. O filme, composto de episódios, tor-
nou-se um retrato contracultural da barra pesada dos anos Médici. Os episódios dirigidos por Roberto (Piá Sofre?), e Aloysio (Santa Ceia) foram interditados pelo ministro da Justiça, Alfredo Buzaid. “Não só interditados”, lembra Raulino. “Na realidade o filme teve seus negativos sequestrados, depois de ser visto pelos ministros Buzaid, Jarbas Passarinho e Delfim Netto. Só mais tarde, Roberto Santos conseguiu recuperar nossos episódios, graças a uma cópia com som meio dessincronizado”. Nos anos 70, Raulino produziu e fotografou o longametragem Cristais de sangue, de Luna Alkalay, rodado na Chapada Diamantina baiana, e participou do ciclo de documentários sobre o abc Paulista, fotografando vários filmes, entre os quais Braços cruzados, máquinas paradas, de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo. Outro
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trabalho de Aloysio, no documentário de longa- mericano que resolve abandonar o campo, partir para metragem, aconteceu com Canudos, de Ipojuca Pontes. a capital de seu país e, depois, para a maior cidade da América do Sul, São Paulo. Queria também remexer Nos anos 80, fotografou dois filmes festejados: O homem políticas transculturais. E aí está o mote do meu fasque virou suco, de João Batista de Andrade, Medalha cínio pelo Paraguai: lá o colonizador espanhol não de Ouro no Festival Internacional de Moscou, e conseguiu destruir a cultura primeira – a dos guaranis. O baiano fantasma, de Denoy de Oliveira, Kikito de Ainda hoje a cultura guarani se mantém íntegra no País. melhor filme em Gramado. Até setembro de 1984, A maioria da população não fala espanhol. Aloysio Raulino presidia a Apaci (Associação Paulista de Cineastas). Passou o cargo, em assembleia geral, a seu CBz – Você já conhecia o Paraguai ou resolveu sucessor, João Batista de Andrade. Aloysio conversou estudar sua realidade para tomá-la como ponto de com o Correio Braziliense, no escritório da Embrafilme, partida? na Esplanada dos Ministérios. Ao contrário de sua imagem costumeira – tensa e brigona – o cineasta Sou neto de uruguaios e morei, durante anos, em países estava calmo, bem-humorado e, como sempre, atento da América Latina. Conheço bem a música do contie crítico ao “momento de extrema gravidade” vivido nente, principalmente a guarânia. Voltei minha atenpelo cinema brasileiro. ção para o Paraguai, porém, para tentar compreender um povo que passou por duas guerras extremamente CBz – Por que você escolheu o Paraguai como tema cruéis – a da Tríplice Aliança e a do Chaco – e não de seu primeiro longa? foi exterminado no que tem de mais forte: a cultura guarani. Nós, nas escolas brasileiras, ouvimos falar da Porque o Paraguai sempre me fascinou. A guarânia Guerra do Paraguai, por alto. Nunca tomamos contato marcou muito minha adolescência. Além do mais, eu real com os fatos: Argentina, Brasil e Uruguai quase queria mostrar o itinerário de um migrante latinoa- destruíram o país dos paraguaios. Quando a Guerra 150
acabou, 90% da população masculina do Paraguai estava exterminada. Isto no fim do século passado (o XIX). De 1930 a 1932, o País sofreu outra guerra, a do Chaco, contra a Bolívia, por causa do petróleo. Em 1949, o Paraguai viveu uma verdadeira Guerra Civil. Foi então que o General Strossner assumiu o comando do País, que mantém até hoje. Que povo é este? Que País sofrido, mas forte, é este? Que carisma carrega a Nação guarani, para sobreviver a tantas dificuldades? Estas perguntas me fascinavam.
22 curtas e médias-metragens. Quis fazer um filme cuja narrativa rompesse com as estruturas do romance burguês do século XIX, de estilo bem demarcado. Fiz um filme-colagem. CBz – E isto lhe vem causando dissabores, cobranças de um estilo homogêneo?
Freqüentemente. A Embrafilme, na qualidade de coprodutora, lamentou que Noites paraguayas não tenha um estilo definido. Não é comédia, não é drama, não CBz – E como você criou o argumento e o roteiro é chanchada, não é um documentário, e por aí afora. do filme? Eles foram feitos previamente ou ao sabor Isto, no meu filme, é intencional, pois quis fazer uma das filmagens? colagem. Na minha proposta não dava para tratar a vida no Paraguai da mesma forma que no Brasil. No Foram feitos previamente. O argumento é meu e de campo paraguaio viceja uma cultura forte, orgânica, a Tânia Savietto e o roteiro final meu e de Hermano cultura guarani. Em São Paulo, o migrante encontra Penna. Para elaborá-lo, recorremos às pesquisas de uma cidade de cultura estilhaçada. Isto tinha que passar Leon Pomer e à trilogia do Júlio Chiavenatto (A no filme. Recorro, em sua construção, à chanchada, só Guerra do Paraguai, A Guerra do Chaco, O Paraguai que de forma natural. Assisti a centenas de filmes deste de Strossner). Não fiz, porém, um filme histórico. De gênero. Não uso a metalinguagem como fim, mas sim forma alguma. Minha proposta era a busca do cine- como meio. Adoro os filmes do Bressane, mas há que poema. No meu longa de estréia, queria dar seqüência se reconhecer que a relação dele com a metalinguagem às minhas experiências narrativas desenvolvidas em cinematográfica é um fim em si mesmo. 151
Em Noites paraguayas, há muito de documentário. E tinha que haver. Fiz 22 documentários, tive contato com Joris Ivens, com Fernando Birri, com Roman Karmen, que são patriarcas do gênero. Karmen, por exemplo, estava no júri do Festival de Oberhausen que premiou Teremos Infância?, e ficou entusiasmadíssimo com meu trabalho. Queria de todas as formas me dar uma força. Com Jean-Claude Bernardet, que foi meu professor na USP, conheci o documentário mais como um caminho poético, que um documento de natureza jornalística e sociológica. CBz – Em que medida esta sua postura incomoda a carreira comercial do filme? Quando fiz Noites paraguayas, senti que corria riscos. E quis corrê-los. Sabia que estava optando por um modelo amaldiçoado. Fiz um filme sem atores de novela, sem erotismo e sem estrutura linear, três princípios que regem a produção brasileira, desde os anos 70. Acho, porém, que a Embrafilme tem que ser plural, abrir espaço para produções variadas. Ela não pode amaldiçoar este tipo de filme.
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CBz – Mas amaldiçoou Noites paraguayas! Prefiro dizer que isto é coisa do passado. Nestes dois anos em que o filme ficou na prateleira, esperando distribuição, me consumi muito, me angustiei demais. Acho, porém, que tudo está mudando. O Aurelino Machado, da Superintendência de Comercialização da Embrafilme, está mostrando interesse pelo filme, e prometeu um bom lançamento. Em março/abril do próximo ano ele deve chegar ao mercado. Confesso que acredito na democratização da Embrafilme. CBz – Como presidente da Abraci, como você se relacionou com a Embrafilme? Como vê o trabalho do diretor-geral, Roberto Parreira? Acho que Parreira compreende a importância das entidades de classe e dá ouvido ao que elas dizem. Como presidente da Apaci, participei de várias reuniões e sei que nossas sugestões são levadas em conta. A situação difícil, que vem afastando técnicos e realizadores do cinema, está radiografada pela gestão Parreira e ele não tem medido esforços para contornar a crise. É bom lembrar que ele levou o secretário geral do
MEC, Coronel Sérgio Pasquale, ao Rio para que to- CBz – Que solução há para resolver tão grave crise? masse ciência das dificuldades da Embrafilme. Para os próximos meses, muitas medidas – por enquanto Na Secretaria de Cultura de SP, onde atuo como repaliativas – serão adotadas. presentante dos cineastas (na Comissão de Cinema), estamos contando com o apoio do secretário Jorge CBz – Como você vê o momento cinematográfico Cunha Lima. Ele está dando força à produção paulista nacional? através de dois projetos: o Concurso de Roteiros, para dez longas, e o Prêmio Estímulo, para dez filmes de Como muito grave. Há um estrangulamento total curta-metragem, ao custo de 23 milhões cada um. Isto de mercado e a produção está diminuindo assustado- é fundamental, pois com o exercício do curta-metraramente. Para se ter uma ideia da gravidade a que a gem, São Paulo vem formando sucessivas gerações de situação chegou, basta um exemplo: a Secretaria de realizadores. Outro ponto importante é a conquista Cultura de SP está promovendo, em convênio com a da televisão. Com a tv Cultura, estamos conseguinEmbrafilme, um concurso de argumentos para sele- do colocar o filme de curta e média-metragem no ar, ção dos dez melhores. Cada um destes dez receberá graças ao programa Cine Brasil. Isto, porém, é muito cinco milhões de cruzeiros para o detalhamento do pouco. E para nossa angústia, a rtc (Rádio e Televisão roteiro, projeto de produção, etc. Apareceram 101 pro- Cultura), que pertence ao Governo do Estado de SP, jetos, muitos dos quais oriundos da Boca do Lixo. Isto ainda não compreendeu seu papel com a profundidade é muito significativo, pois os realizadores da Boca necessária. O Conselho Curador do órgão segue o nunca buscaram apoio de órgãos oficiais. Sempre modelo de uma casta egípcia. O Fernando Pacheco se mantiveram trabalhando com recursos próprios. Jordão tem planos incríveis para a emissora, mas não Agora, a barra pesou. Até eles estão pedindo ajuda. consegue levá-los adiante. Três membros do National Film Board, do Canadá, estiveram em SP visitando os estúdios da rtc e ficaram espantados com o 153
que viram. Segundo afirmaram, em nenhum país do Terceiro Mundo encontraram uma tv Educativa tão bem equipada e tão mal aproveitada. No próximo ano, 40 bilhões de cruzeiros da Secretaria de Cultura serão repassados à rtc . Mesmo assim, a casta que domina a Rede continua fechada aos interesses dos artistas e aos anseios do titular da Secretaria de Cultura do Estado. A tv Cultura é muito importante. Ela atinge, atualmente, quatro milhões de espectadores nos Estados de sp, mg e Paraná. CBz – As iniciativas que você mostrou são paulistas. E o resto do País? Estamos trocando ideias em todos os cantos para buscar saídas. Se continuar do jeito que está, não vai dar. É preciso fomentar a indústria cinematográfica, empregar técnicos, aumentar o número de salas exibidoras. Em São Paulo, estamos procurando organismos que tenham fundos destinados ao fomento cultural. No momento, estudamos possibilidades de encontrar apoio junto ao Bandesp, através do Fundo Metropolitano de Fomento. Se a situação continuar do jeito que está, o cinema brasileiro acabará. O momento é terrível, humilhante, 154
faz mal, dá câncer. E não vejo porque algumas pessoas estão pregando o fim da Embrafilme. Ela precisa ser democratizada, adequada aos novos tempos e não destruída. Chega de mártires. Paulo Emilio e Glauber Rocha morreram percorrendo repartições públicas e implorando apoio para o cinema brasileiro. É preciso lutar contra este momento agônico, esta paralisia generalizante Notas * Originalmente publicado no Correio Braziliense em 1º de outubro de 1984.
Jamais esqueçamos Daniel Ribeiro
Poeticamente, Aloysio Raulino habitou esta Terra e, por consequência, o cinema. Que estivesse sempre nas proximidades da morte, isso era da natureza da sua atividade, a de fotógrafo. Mas arrisco que haveria imagens sempre prontas a morrer nos seus olhos (para ganhar uma mais-vida no filme), pois mantinha-se num estado de tensão física e de acutilância do pensamento tal que não parece ter nunca deixado de estar no fio da navalha. Como poeta que era de câmera na mão, tinha a capacidade de ver o escuro em plena luz do dia. E terá ainda muitas vezes, sempre que se fizer o breu numa sala de cinema, para que a luz possa devolver ao espectador futuro as obscuras imagens de cada filme que teve o privilégio do seu fazer. Quase nunca com moderação, no mínimo com interesse, no crescendo do entusiasmo ou na glória da esganação, Raul varou imensas madrugadas. Em cada
uma, seu interlocutor espantado ouviria sobre o cinema brasileiro histórias tão singulares quanto as suas imagens, num recorte febril. Sua mescla da mais alta erudição com a mais pura sacanagem, que a tantos ouvintes embriagou, conduziu-nos repetidamente ao limite das manhãs. E invariavelmente, acordaríamos um molambo qualquer. O território das margens, lugar que dignamente, e sempre, transitou, padece do ritmo da própria destruição – que nada lamenta, sequer a perda de um grande herói. Nunca lhe diremos adeus completamente, pois sua inteligência trouxe-nos imagens difíceis de esquecer. Os lavadores de carros, estivadores, prostitutas prisioneiros e meninos de rua, margens obscurecidas deste mundo, saudados por você como iguais, se lembrarão de ti? Em memória dos esquecidos, jamais esqueçamos Aloysio Raulino.
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A fotografia no documentário* entrevista com Aloysio Raulino
Em 2005, o forumdoc.bh realizou uma mostra dedicada a seis importantes fotógrafos da cinematografia brasileira: Adrian Cooper, Aloysio Raulino, Dib Lutfi, Edgar Moura, Mário Carneiro e Walter Carvalho. Foi a primeira vez que Aloysio Raulino veio ao festival, sendo, desde então, uma presença constante, um amigo querido. Na altura, foi publicada uma entrevista inédita para o catálogo da qual reproduzimos aqui as respostas dadas por ele às questões colocadas por Cláudia Mesquita e Daniel Ribeiro Duarte: Nos filmes de ficção, um dos principais critérios para definir uma boa fotografia tem sido a iluminação. No documentário, por outro lado, nem sempre é possível filmar com condições controladas de luz, seja pelas exigências da externa, pela iluminação variável, ou mesmo por situações criadas pela própria filmagem. Diante disso, como é possível tirar partido dessas limitações? Quais são as particularidades do trabalho de fotografia em documentário? 156
Aloysio Raulino – Bem, de fato são bem diferentes as origens da imagem entre ficção e documentário. Pelo menos em princípio a ficção tem uma imagem mais controlada, mais planejada previamente, inclusive. Você pode planejar previamente um documentário, evidentemente, mas nem sempre isso é possível. Quer dizer, não devemos ficar perseguindo os mesmos acontecimentos e as variáveis são muito maiores, pois há variações de situações e de locais onde elas acontecem. Então, de fato, existe uma diferença. Em ficção existe um planejamento prévio, story board, você tem uma série de procedimentos que no documentário são obviamente fora do princípio, até da narrativa, da linguagem. Evidentemente que o documentário hoje em dia está multi-afetado, ele tem várias tendências, nuanças ou possibilidades: tendências mais experimentais, o documentário mais convencional para a televisão, o “docudrama”, que é um nome... Enfim, o documentário tem variações internas, eu acho, maiores que a ficção.
Mas de qualquer maneira, tirar partido dessa situação significa o quê? Em primeiro lugar: você estar muito atento a essas possibilidades, você ter uma elasticidade bastante grande com relação aos acontecimentos que você está ali filmando, e você ter um conhecimento o mais aprofundado possível das possibilidades técnicas de captação da imagem. Isso significa o quê? Significa que você tem que saber com o que você conta em termos de possibilidade de trabalhar com pouca luz, de explorar as relações de contraste nos altos e baixos etc. É mais ou menos essa a diferença que eu vejo.
essa quantidade de variações possíveis da situação. Se você impuser a priori a sua necessidade de o que você chama de excelência técnica, muitas vezes isso vai acontecer em detrimento de uma outra virtude, digamos assim, de uma outra qualidade que seria a vida latente do documentário, que é, digamos assim, a sua tensão estrutural com a realidade. Então se você não seguir essa vocação do documentário para humanizar as imagens a partir das próprias precariedades, ou seja, dar a isso uma estética, falar disso um pouco com a imagem, você está condenado a fazer documentários bastante convencionais e que aí são documentários que eu acho bastante aborrecidos. O documentário quando é totalmente pré-organizado de imediato, eu acho que ele é tedioso. Eu sou contra esse tipo de encaixotamento da necessidade expressiva do humano dentro do documentário.
A relação do fotógrafo com aqueles que são filmados é marcada pela imprevisibilidade, o que pode levá-lo a relativizar a excelência técnica em função da necessidade de movimento, da condução da situação pelos sujeitos filmados, do improviso. Como se dá, a seu ver, a tensão entre o que é convencionalmente correto (do ponto de vista fotográfico) e a imprevisibilidade dessa relação? Cada vez mais realizadores fazem seus filmes em vídeo. Quais as diferenças entre filmar em película e nos novos Aloysio Raulino – Bom, aí sim que você toca no as- equipamentos digitais? sunto da elasticidade mesmo, da..., não sei se a palavra é prevenção, é uma certa agilidade que deve haver Aloysio Raulino – Bom, o que se pode diferenciar entre no sentido de você estar realmente preparado para os dois, e isso é bastante notável, é o custo. O custo não
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significa só o preço de uma câmera, seu aluguel, sua aquisição, nem só também o preço do material sensível, a diferença de preço de fita magnética, fita vídeo, e agora disco etc., ou a película, que implica também revelação, processamento e depois telecinagem e copiagem. A diferença é o custo, além dessas características que são técnicas. Técnicas e mecânicas. Tem uma outra diferença de custo muito grande que é a agilidade do tamanho da equipe. Quer dizer, o tamanho da equipe se converte em economia, se converte em agilidade, no sentido de que você precisa de menos gente e de menos tempo de preparação e ajuste para a confecção da imagem. Você precisa em alguns casos, de menos luz, porque há câmaras bastante sensíveis em vídeo, que permitem trabalhar com condições de iluminação bastante baixas, bastante escassas em termos de quantidade. Então o vídeo ajuda, e isso mesmo antes de haver esses procedimentos que hoje são corriqueiros de transferência de vídeo para película a posteriori – você captar a imagem em vídeo digital e depois fazer um procedimento de conversão para negativo em 35mm. Você pode arguir que a qualidade não é tão precisa, digamos assim. A virtude plástica, técnica da película, em termos de definição e de resolução pode até ser melhor, 158
mas o que você ganha em troca disso é espantoso. Vou dar só um exemplo: O prisioneiro da grade de ferro é um filme em que a gente captou cento e setenta e tantas horas de material. É um filme de duas horas ao longo de sete meses, só de imaginar nosso percurso dentro desse filme, que é todo dentro de um presídio, o Carandiru, só de pensar isso em película já seria impossível de se fazer. Completamente diferente, não é? Em todos os aspectos, o custo disso... nós tínhamos uma equipe de seis pessoas, o que é impensável em qualquer filme em película, menos se captado em 16 e super 16mm, o custo do equipamento ao longo desse tempo e essas 180 horas de material sensível, não é preciso nem dizer que seria feito de outro jeito, e eu tenho certeza, de maneira menos expressiva, então ficava mais precário o resultado final, embora a gente saiba que a película tem seu preciosismo e tal. Mas nesse caso por exemplo era totalmente impossível. Acho que quase a totalidade dos documentários em longa-metragem hoje estão revestidos dessas características. No documentário, a responsabilidade do fotógrafo pela mise-en-scène é significativa. O caráter da filmagem dá uma autonomia maior ao cinegrafista, muitas vezes
responsável por transformar em “cena” o acontecimento Como fotógrafo, como você acha que deve se dar o trabalho ou a situação filmados (sem ter como consultar o diretor). de equipe num documentário? Como você vê o papel do fotógrafo no processo criativo dos filmes documentais? Aloysio Raulino – Bom, eu já mencionei essa colaboração, essa simbiose, essa identificação muito Aloysio Raulino – Na verdade se não houver uma grande, entre o diretor e o fotógrafo, não é? Na prática colaboração no documentário, realmente, ou ele esfria mesmo, na práxis da execução do filme entre diretor e ou ele realmente perde um pouco a agudeza, digamos fotógrafo, mas acho também que tem outras interações assim. Perde um pouco o olho das coisas. Eu tenho a que são importantíssimas, por exemplo, com o som. impressão que esse colaborador, esse que faz a imagem É muito importante, porque, o técnico de som e o no documentário, ele também não pode se impor e fotógrafo estão munidos de visões, de tempos concretos querer também autonomia, dar as costas, começar a de fazer as coisas, noção do espaço e questão até de fazer algo que seja à revelia de uma ideia maior, de uma tempo de preparação que cada um precisa. E se esse ideia total do filme. Isso também é uma coisa que a tempo estiver mais ou menos identificado e mais ou gente tem que levar sempre em consideração, quando menos bem sincronizado, no lato senso, porque se não você falar em um projeto de um diretor, aí é ou não houver uma mentalidade, assim de maneiras... desse é... Há uma ideia, há um percurso narrativo que ele modus operandis das unidades, o som e a imagem, se propõe a ter com você, então esse equilíbrio é im- realmente aí a coisa desanda bastante, não é? Isso portante. Isso que dá a cara artística, a cara narrativa é um ponto chave. Quer dizer, o que seria de um ao documentário, o tempero necessário. Que dizer, o documentário com o som deficiente? Em tese, o que traz de interessante nisso é esse equilíbrio dessa documentário, além da força expressiva das imagens, é a colaboração entre o fotógrafo e o realizador. expressão das palavras, muitas vezes como fio condutor de tudo. Então, quer dizer, se falha esse encontro, fica precário, fica desequilibrado, eu acho que isso aí 159
transforma o documentário numa coisa muito precária, edita não vai, também, menosprezar um material que não só técnica como expressivamente. E em segundo é um pouco mais precário tecnicamente do que outro, lugar, eu vejo que existe, por exemplo, a questão da não vai querer maquiar nem limitar, entre aspas, as produção. Quando há o elemento de produção dentro situações que às vezes são de uma enorme riqueza, do filme, tem que haver uma compreensão também embora mais precárias tecnicamente. Se juntar tudo mútua de que não se pode fazer exigências descabidas isso eu acho que você tem um bom documentário. à produção, exigências de recursos, de situações ideais etc. Também isso ajuda muito, com muita agilidade, Eduardo Escorel, numa conferência recente, falou que uma a produção em documentário, ela [a produção] é das tendências com as quais se defrontam os documentaristas necessariamente um ato criativo. É um ato criativo hoje é a “obsolescência”: para quê filmar o “outro” se, com a porque ele é justamente uma parte da realização e popularização das câmeras digitais, os “objetos” dos filmes da compreensão do andamento dos acontecimentos, podem se tornar sujeitos de suas próprias representações? que é importantíssimo. Nesse momento, eu fico com Como se põe esse desafio para os fotógrafos? grande certeza de que o que eu vi no trabalho do Gustavo Steimberg no filme O prisioneiro da grade de Aloysio Raulino – Eu acho que nós temos que saudar ferro. Ele foi realmente um mentor ali, da possibilidade esse acontecimento, na verdade. Os fotógrafos não humana e técnica do filme, então, fica muito evidente, detêm mais o fogo sagrado da imagem, e essa energia e inclusive em palavras estrangeiras tem a figura do toda do cinema está realmente passando por alguma produtor do documentário, que se chama “Produtor transformação. Mas eu acho que nós estamos dentro criativo”. Então já está embutida essa ideia de que a disso, quer dizer, todos fazem e nós fazemos também. criação passa necessariamente pela produção, e outra coisa importantíssima, e a posteriori, mas também é a Eu tenho a impressão de que essas duas coisas camimesma equipe de realização do documentário, é você nham juntas, e não uma ou outra. Não quem já vinha ter uma noção que isso vai ser editado... de que quem fazendo ou quem passa a fazer a partir do acesso aos 160
insumos, aos meios expressivos do equipamento. Eu dentro da expressão, dentro do documentário, dentro citaria como um exemplo que eu participei, que eu vivi, da fotografia. O prisioneiro da grade de ferro, filme que como se sabe foi feito em conjunto com os prisioneiros – os residentes, Notas vamos chamar assim , com eles próprios sendo os in- * Originalmente publicado no catálogo do forumdoc.bh.2005, com o título “A fotografia no documentário: uma entrevista teressados no assunto. Minha impressão é a seguinte: com cinco fotógrafos brasileiros”, por Cláudia Mesquita e Daniel todos têm lugar ao sol. O que seria obsolescência, no Ribeiro Duarte. caso, citando aqui o Eduardo, seria você dar as costas para esse fato. Você se encastelar de volta numa coisa que não existe mais, que é a coisa outorgada de você ser o detentor do conhecimento, do equipamento, da mancha estrutural da expressão. Então, como isso não vai mais ser assim, eu não vejo obsolescência a não ser que você se retire dessa possibilidade de estar no meio das coisas também. Então, eu falei em “luz para todos”: todos com lugar ao sol e todos fazendo a sua expressão. E estilo também é bom. Estilo é indivíduo, a maneira de ver é do indivíduo, é uma percepção do mundo, e todo mundo tem em maior ou menor grau. Eu tenho medo é dessa coisa ser achatada: “Popularização, liberou geral, todo mundo fazendo de qualquer jeito...” Eu acho que não é assim, cada um vai achar sua individualidade
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As imagens das greves* depoimentos dos diretores de fotografia Aloysio Raulino, Zetas Malzoni e Adrian Cooper, com a participação de Renato Tapajós Aloysio Raulino – Eu fiz mais ou menos 70% do Greve!, do Batista, fiz o Trabalhadores: Presentes!, dele tam bém, um filme que me interessa, um filme que, como cinema, como documentário, acho mais bem estruturado que o Greve!. Fiz o Braços Cruzados, do Roberto e do Sérgio, um trabalho interessantíssimo sobre o qual eu gostaria de falar mais tarde. Nesse setor, nesse tipo de cinema voltado para um balanço da história imediata, acho que é por aí. Eu concordo que há uma diferença. O Batista tem uma preocupação eminentemente política e o cinema na práxis do Batista é a forma de estudar, existir, agir, ele estrutura o cinema dele de maneira totalmente pensada, racional, consciente, a partir de certos pressupostos que decorrem dessa postura. A gente tinha tido um trabalho comum ainda no tempo da usp, em Paulicéia Fantástica (1970), um longa da trilogia sobre cinema paulista que ele estava realizando junto com o Jean-Claude Bernardet. Foi ali o nosso primeiro contato de trabalho. Era um filme 90% apoiado em 162
material de acervo. O tempo passou e cada um seguiu sua trajetória cinematográfica. Mas nos encontramos muito em função da atuação nas entidades, ele mais para o lado da Apaci e eu na ABD, entidades que nós ajudamos a criar. Era esse o nosso contato, mais de discussão política do cinema, das questões de mercado etc. Mas o nosso cinema, cada um seguia a sua trajetória. Tanto que o Batista só veio a ver os filmes que realizei há cinco ou seis anos, há pouquíssimo tempo. Como já disse, cada um no seu trabalho. Ele na TV, eu num processo de produzir filmes retirando recursos de onde pudesse, com dificuldades cada vez maiores. Cada filme feito corresponde a 10 que eu no consegui fazer. A preocupação do Batista era mais mobilizadora. FC – Como fica você como fotógrafo em projetos que no parecem, pelo menos a primeira vista, muito identificados com suas propostas, suas concepções de cinema?
Como é que você se resolve nessas circunstancias? Você oferece sugestões? Como se relaciona? Raulino – Esses filmes têm como denominador comum o fato da indispensável agilidade, do necessário grau de improviso, do registro imediato, embora não o tempo todo nem nas mesmas proporções, nem mesmo dentro de uma mesma proposição de realização cinematográfica. De qualquer forma nesse traço comum embarco eu, um operador de câmara, um olho atento, um terceiro elemento da questão – o realizador, o fato e a mediação muito louca que deve ser feita na medida do possível e dentro de uma conversa que antecede tudo. A gente deve ter bem claro que não se trata de um cinema com uma decupagem muito rígida. Não é um cinema onde seja possível definir o canto do quadro. Existe uma certa margem de atuação para o operador, na verdade eu me sinto – no bom sentido – um operador de câmara. No caso do Greve!, para dar uma ideia, o Batista me procurou 24 horas antes de começar tudo. E, imagine, nós tínhamos uma enorme quantidade de película preto e branco e negativo colorido vencido, Ektachrome. Isso teve que ser transformado numa coisa só depois. Contratipagens complexas, perda de
qualidade tremenda, o que então passa a ser assumido como condições de trabalho. Você tem que dizer é isso mesmo, isso tem importância, e um fato, e um ímpeto, é o lance do Batista. F.C. – De modo geral, a interferência do fotógrafo é inversamente proporcional à experiência do diretor, mas mesmo trabalhando com profissionais experientes a intervenção do fotógrafo é significativa. No caso desses filmes como é que você se coloca como “operador de câmara”? Raulino – No caso desses filmes havia uma afinidade muito grande, eu já conhecia o Batista e conversei muito com o Sergio e o Roberto. Formamos um corpo orgânico onde a câmara e quem estava com ela era um membro vivo que agia em consonância com o resto. Acontece que o pique da questão estava ali na nossa frente e não pensamos muito: agimos. Vamos conferir: existiu pouca conversa sobre a forma que o trabalho deveria ter. Quando o realizador dizia: “vamos lá, vamos entrevistar aquele cara” , era uma correria – no bom sentido da palavra –, uma correria o tempo todo. Os filmes tinham o pique, o ritmo do lance. 163
F.C.– Imagino que alguns profissionais não topassem trabalhar nessas condições. Raulino – Tem fotógrafo que não topa mesmo. Nesse trabalho eu aceitei trabalhar como quem filma atualidades, sempre tentando (e sabendo que os filmes não queriam ser só atualidade) dar o melhor possível dentro desse conceito. Tem fotógrafos que resistem a isso, porque não é a pratica deles, não é a maneira deles entenderem o trabalho, e daí no se dispõem a isso. É o estilo de cada um. Eu digo assim... uma coisa até que o Jean-Claude disse outro dia. O evento está ali. E você esta frente a ele com uma série de possibilidades, de combinações do que a imagem pode dar dele. Você tem uma série de pressupostos, de posições como ser humano, como cineasta, pontos de vista técnicos, ideológicos, estéticos etc. Sem contar questões internas da própria narr ativa do cinema. Como eu acumulo função, na medida em que realizo e fotografo, eu acabo assumindo uma posição crítica e talvez por isso eu procuro muito elidir como eu estaria vendo como realizador. Eu procuro ao máximo fazer uma osmose, me imbuir, me fazer dominar pela visão do realizador. Eu me esfrio, quase me despersonalizo de tudo o que 164
eu poderia estar dizendo, selecionando, interferindo. Digamos que se eu tivesse ido à Vila Euclides, por minha própria vontade, para fazer um filme meu onde eu estaria acumulando funções. Tenho a impressão de que estaria fazendo coisas absolutamente diferentes daquilo. Do ponto de vista expressivo, do ponto de vista do olho para o evento, grande parte de Braços cruzados, máquinas paradas seria totalmente diversa. Mas num esforço de disciplina – no bom sentido – percebo que estou ali para dar suporte a um discurso político cinematográfico como gerador das imagens. Isso é treino e um pouco de afinidade, é claro; um fotógrafo que só gosta de trabalhar em cima de carrinho não se adapta e este tipo de trabalho. Em resumo: você abstrai a sua visão de realidade para servir a uma proposta de realização. F.C. – Em termos bem gerais, você acha que esses filmes ficam parecidos uns com os outros? Raulino – Acabam tendo pontos de semelhança muito fortes, sim. F.C. – Isso não reduziria um pouco a eficiência dos filmes?
Raulino – Eu me pergunto também. Mas por outro lado eu sei que esses filmes tem um grande poder de mobilização – isso esta comprovado porque eles foram remetidos de novo as suas origens, a classe que os gerou. Isso se comprova. Mas em que medida isso se comprova? Como Maiakovski dizia: “Qual o nível das massas? É aquilo que a gente se resigna a ver ou aquilo em que a gente vai interferir?”
linha política. Há uma tábula rasa, há um senso comum que perpassa todos eles. Notas
*Originalmente publicado na revista Filme Cultura, edição 46.
F.C. – Qual é essa maneira de ser cinema? Raulino – É uma maneira didática onde se pressupõe que você deve se afirmar na tela perante um espectador dado; em termos mais abertos seria o povo ou mais nitidamente a classe operária mobilizada. Você tem que ter um discurso dado que tem que partir de um enunciado, tem que ter um certo didatismo, ser razoavelmente circunspecto, não pode ceder à emoção em momento algum, tem que ter tudo sob controle, você não desbunda nunca, não assume uma plasticidade, um nível de espetáculo que transcenda um pouco o que é discurso estrito político, a aula, o pedagogismo. Nessa, todos os filmes se entendem por mais que haja divergências ou discordâncias pessoais e mesmo de 165
In ventando o cinema* conversa de Aloysio Raulino e Reinaldo Volpato com Claudio Kahns
Aloysio Raulino (32 anos) e Reinaldo Volpato (29) são dois curta-metragistas paulistas que há muitos anos batalham, cada um à sua maneira, para viverem de seu trabalho. O que não deixa de ser um privilégio em se tratando de cinema. Aloysio tem 14 curtas (outros 30 em projeto) como diretor, mais de 100 filmes (entre acabados e inacabados) como fotógrafo e é, sem dúvida, um dos mais destacados representantes de sua geração. Formou-se na escola de comunicações e Artes da usp cm 1970. No momento, prepara a produção de seu primeiro longa-metragem Noites paraguaias, sétimo filme do Pólo Cinematográfico Paulista. Reinaldo acabou o mesmo curso de cinema em 1974, tem seis filmes como diretor e faz parte, com mais seis colegas de turma da produtora chamada Gira Filmes. Já trabalhou na Globo e é, em São Paulo, um montador bastante requisitado. Seu roteiro para o longa-metragem Nenhum pássaro abrasasas, é um dos aprovados no Programa de Desenvolvimento de Projetos da embrafilme. Reinaldo e seu grupo têm 166
ideias que no mínimo podem ser consideradas polêmicas e pretende “sem nenhuma modéstia, reinventar o cinema”. Prolixo, pode falar horas sobre cinema e seus projetos. Aloysio e Reinaldo representam duas correntes de opinião, às vezes bastante diferenciadas. E o debate só pode ser enriquecedor, neste momento de aberturas e (re)definições do cinema brasileiro. Reinaldo – A Gira Filmes está fazendo um trabalho de pesquisa: como é que nós, enquanto artistas, criadores de cultura, podemos interferir na realidade? Somos 7 pessoas trabalhando juntas. De um lado, como se organizar e por outro como dar desenvolvimento ao trabalho que queremos fazer? Isto tem criado muitos problemas. Nosso trabalho independe de toda corrente cultural, de toda ligação política com as pessoas, com os produtos, com a Embra. Há uns três ou quatro anos atrás, nossa grande preocupação era saber como o
oprimido se manifesta. Um dia, descobri que era resultado. Começou com Pergunta de amor, e todos uma grande safadeza com o operariado acreditar os trabalhos seguintes fizemos assim. Começamos que é uma coisa oprimida, e nunca libertar a energia a perceber o seguinte: que este trabalho só pode dele mesmo, a consciência possível, o que o identifica ter uma função se ele for exibido da mesma forma como ser humano, como pessoa, como homem no como ele é produzido. dia-a-dia, cheio de grilos, mas cheio de maravilhas. A que resultado está nos levando este processo Batalhamos para abrir uma nova frente de exibição, de pesquisa? Começamos a fazer alguns f ilmes: A Gira não quer passar como informação aquilo Pergunta de amor, Paixão Maria, Sete vidas. que a gente já sabe. Queremos descobrir qual a informação que existe. Não quero manipular as C. K. – Estes filmes estão criando esta relação nova informações na perspectiva de contar o que eu acho, com o espectador? minha análise da realidade. Quero que ela esteja presente na hora em que a gente estiver filmando, Reinaldo – Não posso dizer que estão criando, através da nossa construção. Não vou te perguntar porque não completaram o processo todo. Mas a quanto você ganha e provar que teu patrão te exploprática é esta, e o futuro de nosso trabalho é este. ra. Agora, vou querer ficar sabendo como é que você A gente fala que está inventando o cinema brasi- se relaciona com teu patrão. E se esta informação leiro. Pode ser pretensioso, mas é isso. A gente existir, que ele te explora, ela aparece. Acabar um quer inventar esta história do personagem-sujeito. pouco com esta história do cinema de autor, onde o “O que você acha importante falar com o Brasil cara vai lá e se expõe, manipula todas as informações inteiro? O que é importante registrar?”. Eu vou para dizer o que ele quer. Isto cria a possibilidade da perguntar: – “De que jeito”, “como é que é”, “assim realidade se manifestar como ela se apresenta mesmo, tá bom”, “assim tá errado”, e a gente vai construindo não como uma pessoa acha. Agora, como é que este um trabalho cinematográfico juntos. E isso tem filme seria veiculado? Se a gente filma em 16 mm, 167
amplia e coloca no mercado, vai tudo bem, mas não faz a cabeça como a gente propõe, não cria a relação cinematográfica que a gente propõe que seja criada. Então começamos a querer inventar outra forma de cinema. Tudo isso dentro do trabalho, não foi uma coisa teórica. Fomos verificar na prática.
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Estamos trabalhando há seis anos. Realizamos este trabalho sem a mínima infraestrutura em Brasília, nas cidades-satélites. Foi pouquíssima gente ver, a maior sessão teve 150 pessoas, mas foi tão lindo, tão aquilo que a gente estava procurando. Não é aquela coisa fechada, o cara vai, entra vê o f ilme, vai embora. É um acontecimento, um espetáculo, festivo, popular. A população participa. Com isso, você muda fundamentalmente a característica do cinema capitalista. Você inventa uma nova estrutura de comportamento cinematográfico. É isso que eu estou propondo.
Por exemplo, os filmes do João Batista de Andrade. Quando ele vai fazer os filmes, não tem nada a ver com o que o operário pensa disso ou daquilo. O que o filme está levantando é o seguinte: o que o Batista acha dessa relação do operário com não-sei-o-que. Agora, estou discutindo se é bom ou ruim. Para mim é muito difícil falar de minha ralação com ele, porque é uma coisa muito pessoal. Mas um dia eu disse que ele era muito paternalista. Escutei três horas de discurso, ele ficou provando por A mais B que não era paternalista. Por outro lado, ele dirigiu toda produção do Cinema de Rua: “É assim que se faz”, “é deste assunto que trata”, “é desta forma que você tem que falar”. O dia que percebemos a quantidade de manipulação que estava envolvendo nossa cabeça, na Jornada da Bahia em 1976, quando o Cinema de Rua ganhou dois prêmi o s , e u f a l e i , “ N ã o , n u n c a m a i s ”. Quando descobri este paternalismo todo, este dirigismo, saltei do pedaço.
O cinema merece um destino muito maior do que f icar contando estas estórias caretas para a população. Eu proponho que o cinema tenha uma interferência na sociedade, na vida das pessoas.
Antes as pessoas trabalhavam juntas porque se gostavam, ninguém era obrigado a nada, fazia porque era um aprendizado. Quando foi montado o mercado, toda esta produção parou. Ninguém mais tem esta
perspectiva; quando as pessoas vão filmar agora já se tem esta relação do mercado pré-estabelecida. A relação da economia mudou, a relação política/estética mudou. Fazer cinema não é mais um trabalho de interação cultural do artista com a população, virou questão de comércio. A gente sempre trabalhando para entrar numa estrutura comercial de cinema que nos é imposta, e que a gente quer atuar nela da mesma forma que ela nos é imposta. Havia um projeto de cinema popular na década de 60, engajado. Hoje quando se fala em cinema popular é o contrário. Mesmo que se use A Dama do Lotação, mesmo que se use características populares, a relação que está pré-estabelecida para pegar o povo e colocar na tela é o Mercadão. E muito mais um padrão Global que cultura popular. Aloysio – A capacidade de produzir e exibir fora do esquema comercial tem existido. Há outras respostas além da Gira Filmes. O problema é que os filmes que se opõem a isso, os que fazem uma resistência popular mal estão chegando à população. Eu e outros cineastas estamos fazendo isso com um grupo
de 4 ou 5 f ilmes, na periferia de São Paulo, em Osasco, com 6 ou 7 pessoas. Verificando junto a quem supostamente se dirigem nossos filmes. Não fomos nós que chegamos e perguntarmos: O que vocês acharam? São pessoas das respectivas comunidades de bairros que promoviam estas projeções, que nos deram esta resposta. Braços cruzados, máquinas paradas, filme de que eu participei, foi visto por um milhão de pessoas no Brasil. Em praças públicas, no Norte, Nordeste, Sul, nos grandes centros, nas pequenas cidades. Talvez quase um milhão e meio. O filme chegou a passar em Teresina para 4 mil pessoas em praça pública. As pessoas pediam para parar o filme, bater papo, voltar algumas sequências. Não é o grupo que realizou o f ilme que o está exibindo. É a oposição sindical. Há trinta cópias em exibição neste esquema. Reinaldo – O cineasta ainda não está fazendo este trabalho. Outras pessoas é que estão. Aloysio – Mas é claro, a cineasta não tem o patrimônio da divulgação de seu trabalho. Na medida em que este trabalho tenta ser orgânico, num processo 169
de luta política, a gente não tem obrigatoriamente o patrimônio. Pelo contrário, quanto mais ele sair de nossa mão, mais ele se democratiza.
Se você faz filmes científicos, é um sonho meu, se alguém faz química, aprendo muito com um filme. Uma vez fotografei um filme pare o George Jonas, fiquei fascinadíssimo. É tão bonito, tão inexplorado, C. K. – Voltemos ao Braços cruzados, máquina paradas. você se ligar aos cientistas e desenvolver o cinema junto a eles, mas é uma coisa de país rico. Você pode ter Aloysio – Este f ilme foi a única resposta a um verdadeiras obras-primas. Eu tenho um projeto de momento que o país vivia. Não é um filme inovador, filmes sobre poetas, onde a cada poeta corresponde é um documentário mais tradicional possível. Todo um um momento social da vida, da história. Começa didatismo que é uma opção dos realizadores. Achei com Sousândrade, passa pelos românticos, pelo que o filme poderia ser mais emocionado, havia Cruz e Souza, os modernos até o Ferreira Gullar. material para isso, poderia ser menos pesado. Agora, Você investigaria o que é a nossa cultura, a nossa se discutiu e se estudou a questão. Neste sentido é emoção, a nossa estética, o nosso país, a nossa um filme rigoroso e eu respeito. Inclusive porque cultura toda, o que é a economia de nosso país, o partiu de gente extremamente jovem, de 20, 22 que gera um grupo literário. anos. Quem deu o tom e a linha do filme foram os implicados. Foi a oposição sindical, os metalúrgicos, C. K. – Como é que o cineasta se coloca agora em relação (inclusive o finado Santo Dias) iam à moviola, era aos partidos? Por exemplo, o Batista e o Ricardo da a coisa mais comovente; ele ia na moviola e dava Federação de Cineclubes fizeram um documento palpites, com uma modéstia incrível, orientando a sobre política cultural para o pmdb. É uma atitude montagem. Quantas vezes não vi ele fazer isso? É uma clara de duas pessoas da área cultural se posicioexperiência nova. Agora, não precisa ser com operário nando frente a um partido. ou com quem está em luta. Se o filme é bom é porque ele se aproximou bem, teve amor, rigor técnico, ele Aloysio – Não acredito num cinema imediato, com tentou não ser miserável. fins propagandísticos provisórios. O cinema pode 170
ter como opção se engajar na luta política, o cinema dele tem que ser parte do engajamento na luta política, não da forma imediatista que vem ocorrendo. Essa coisa de quebrar um galho com o cinema. O resultado deste cinema é péssimo, nefasto.
a Petrobras. Cabe a nós verificar, discutir, criticar e eventualmente negar a atuação da Embra em suas várias atribuições. Por exemplo, no caso da exibição, que é uma pedra no caminho do cinema brasileiro, parece que f inalmente a Embra está acordando para uma coisa que há dez anos se vem alertando. Reinaldo – De um lado, tenho necessidades so- Há o caso da Pelmex que pode ser mencionado ciais de participar de um partido político. Por outro como exemplo porque o México tinha, de certa tenho uma necessidade profissional de desenvolver maneira, características parecidas do ponto de vista meu trabalho, independente inclusive deste parti- cinematográfico. A Pelmex tem 30 anos, porque o do a que me filiei. Votei no mdb este tempo todo. cinema ali estava desenvolvido e desde o início eles Nem por isso congracei com as ideias do mdb. Muito se preocuparam com a exibição. A Pelmex tem hoje pelo contrário: minhas experiências com ele foram uma rede de exibição nacional, com ramif icações altamente grilantes, era um nível de controle muito em outros países. É preciso que a Embra despergrande. Isso para mim é um grilo: o que, e como é te rapidamente pare este problema, porque senão que eu deveria fazer, encaminhar, que informação vai virar um absurdo ela continuar investindo na eu teria de realizar, que preocupação eu deveria ter. produção. Tem o outro lado da questão, que é a Embra continuar com a sua política dentro do que C. K. – Como é que vocês acham que deveria ser a aí está, a lei de obrigatoriedade etc. Esta polítiEmbrafilme? O que pode ser a Embra? ca de “carro-chefe”, de oligopólio, da qual eu discordo totalmente. Apostar em cinco f ilmes Aloysio – A Embra existe por causa dos cineastas que carregam o déficit da empresa. Tenho certeza, e pessoas de cinema. Foi uma luta nacionalista, que posso garantir que isto vai se revelar um erro crasso. historicamente surgiu em determinado momento, como Isso não acontecerá mais, porque não se repetem 171
três ou quatro Dama do Lotação. Não é assim que se comporta o mercado, isto tudo, tem um aspecto muito grande de aventura. Acho que isso vai levar a uma reação em cadeia, estrangulando o mercado e produção. O que já vem acontecendo porque é um absurdo f icar abastecendo as prateleiras. Ela precisa se conscientizar de que a produção deve ser incentivada onde ela existe, o papel dos pólos é muito menos de desbravar, do que uma aceitação de uma situação de fato. Também no momento em que a Embra atribui um padrão de cinema, um modelo, isto é baseado em que autoridade? Em que pressupostos, em que reflexão? Reinaldo – O próprio nome da Embrafilme já quer dizer muita coisa. A perspectiva do cinema de operar dentro do mercado pré-estabelecido pelo cinema estrangeiro criou uma empresa estatal que não opera no fundamento da questão. Se a Embra é uma proposta nacionalista, não podemos desembocar numa proposta que diz: “Não somos contra o cinema estrangeiro, somos a favor do nacional”. Se ela não é contra o cinema estrangeiro, a perspectiva não é nacionalista. Tem um furo fundamental. A 172
Embra não tem dentro de si, o caráter de propor a independência cinematográfica brasileira. Ela fica sempre batalhando na dependência; nunca interferiu na criação de infraestrutura industrial no Brasil. Aloysio – A Embra não toma iniciativa de nada. Já virou uma lenda dizer que ela só funciona sob pressão. Nós estamos em perpétua insegurança com relação às multinacionais que operam aqui dentro, os monopólios. A Kodak faz o que quer de nós, ela impõe o preço que ela bem entende. Uma lata de filme aumenta de preço muito acima da desvalorização do dólar, ao mesmo tempo que cai o depósito compulsório. Então, que espécie de timidez é esta que a Embra tem, depois de ter sido alertada há anos de que isto ia virar monopólio. A Kodak acabar alijando todos concorrentes daqui? Isso nos afeta muito mais do que a gente pensa. C. K. – Quais são as alternativas concretas para o pessoal que faz curta? Aloysio – Olha, a primeira coisa é se conscientizar do que se deve fazer para perder um pouco dessa
preguiça mental, deste terrorismo cultural, e realmente começar a discutir o que somos. Isso nunca se fez. Está absolutamente virgem este território. Ninguém tem consciência de si mesmo, do seu papel na sociedade, ninguém estuda isso. Coloco com pé f irme. A gente não tem que ter medo do nosso miserabilismo. É preciso falar dele para que seja transformado. Você perguntou qual o caminho para a nossa atividade. Acho que o primeiro é esse, é preciso perder um pouco dessa preguiça mental. É preciso saber que na intuição e no grito não vai se fazer nenhuma transformação; a intuição te leva até certo ponto, depois é preciso estar informado do que é cinema, do que é o mundo, o país em que você vive. Isso realmente o curta-metragista não faz, como dificilmente o longa-metragista faz. Tem sempre as honrosas exceções. Em toda tentativa de debate, desde 1974, quando nossa categoria começou a se organizar, (eu participei disso) o que se tentou foi introduzir um eixo no debate interno, do que nós somos, do que fazemos, para onde vai nosso trabalho. Nunca se conseguiu. Nunca. Virou bate-boca. O approach com o mercado, o que cada um estava fazendo no momento, inclusive, desmantelou completamente a
discussão. Toda vez eu vejo formarem-se comissões em que as pessoas nunca assumem responsabilidade nenhuma. Tem sempre uma hora em que “ já está na hora de se fazer o debate cultural”. A hora era 75, 76, 77. O momento de começar esta discussão é todos os momentos. C. K. – Por que você acha que acontece isto? Aloysio – Porque nós somos um país culturalmente miserável. Então o cinema acaba sendo implacavelmente um retrato da miséria cultural de nosso país. Reinaldo – O que você quer dizer quando você fala em miséria cultural? Aloysio – É justamente não poder dispor de um setor de criação, de produção cultural, de material humano, que tenha tentado ler, se informar, agir, pensar, debater, avançar, inovar esteticamente, se informar do que foi a luta estética do cinema, o que ela pode vir a ser, debater os filmes, se preocupar em ver os filmes do outro. Isso nunca acontece aqui. Nós não sabemos o que o outro anda fazendo. Isso vem 173
de um fato concreto de que nós dependemos disso para sobreviver. Essa luta pela sobrevivência é muito cruel, desgastante, e poucos são os que estabelecem uma trincheira de conduta do tipo: eu vou padecer, reclamar pra burro, mas vou defender certos pressupostos da minha vida. Não vou me desesperar e sair por aí como um cego, batendo a cabeça na parede, sem tentar preservar o que eu tenho de melhor, que é minha inteligência, minha necessidade de aprender, tentar melhorar sempre. Há uma acomodação que vem do desespero, do desalento que se abate sobre as pessoas que estão numa situação dessas. Se debatem indo pra cá e pra lá, tentando resolver de qualquer maneira, com a primeira coisa que aparece e isso leva as pessoas a entrarem nas piores barras. Um cineasta colombiano, Carlos Alvarez, tem uma frase muito boa: “Em certos momentos o silêncio é revolucionário”. Não faço. Penso e tento resolver como é que eu vou fazer depois. A miséria é isso: esta dor de você ter muito mais a tua filmografia fantasma que a tua filmografia real. Você produzir uma parcela do que você queria estar produzindo. Tuas ideias vêm e se perdem, você não pode mais concretizá-las, então, teu sonho nunca vai ser tão real quanto 174
você gostaria. Você perde filmes a cada semana, a cada mês eles vêm, te entusiasmam; aí você cai no desânimo, deixa pra trás, vem novo filme. De vez em quando você acerta e então vira filme, que nunca vai ser como você queria. Reinaldo – Depois da implantação da lei do curta, a produção cinematográfica se transformou muito. Aloysio – Claro, é fato novo de uma proporção grande, as proporções são gigantescas, um mercado muito maior. Cresceu tudo. Isso vai tender rapidamente a uma definição, a nível da própria Embra e uma definição de que tipo de filme a Embra quer. Este impasse não pode continuar. Um filme como o da Tânia Savietto feito em 35 mm, sobre a emigração italiana rendeu Cr$ 200,00 no último trimestre, com 4 cópias no mercado. Agora, surge um fato novo; o exibidor é produtor. Aí ele vem com sua estética, com uma arrogância, seu reacionarismo, tudo aquilo que a gente sabe e tenta ganhar os realizadores para a proposta de fazer filmes. Alguns cedem por mixaria, eu já fui chamado, fui lá espionar.
poderes estrangeiros. O Estado nunca tem dinheiro para esta relação mercadológica com o cinema. O empresário de uma fábrica de parafusos vai ao banco fazer um empréstimo. No cinema tem que se fazer isso também. É uma indústria como outra Reinaldo – Eu acho o contrário. As pessoas estão qualquer. Ao invés de se ficar pedindo ao Estado sabendo muito bem que tipo de filmes estão fazen- “pelo amor de Deus me dá uma grana”. do, direitinho como é que elas levantam os modos de produção para filmar e tal. Não é uma coisa in- Aloysio – Mas isso nos já fizemos. O cinema paulista consciente, é assim que as pessoas estão propondo já faliu três vezes por causa disso. Eu participei de duas. cinema. Quando nasceu a lei do curta, as pessoas se adaptaram a este escoadouro; a grana que vai entrar é Reinaldo – Tá perfeito. Eu não vou ficar brigando pouca e a longo prazo. Então tem que investir pouco no campo do inimigo. e criar uma qualidade de filme que tenha este tipo de relação. Todo mundo então começou a criar filmes Aloysio – Mas o banco é o campo do inimigo por nesta perspectiva, ficou fácil fazer filmes de obras de excelência, quem é que manda nesse país? arte, mas limitou-se muito a criação cinematográfica. Dentro desta perspectiva foram feitos muitos fil- Reinaldo – Por que você acha que é um sonho eu mes. O grande grilo é o entrave do exibidor com querer inventar uma outra relação cinematográfica? o produtor. O produtor nunca exige que o exibidor defina sua atuação objetivamente e de outro lado, o Reinaldo – Eu acho que é um sonho... Não é exibidor nunca se definiu a favor do cinema brasileiro. de hoje que uma pequena minoria da produção de O produtor sempre se adaptando às características curta-metragem tem uma preocupação real com as da exibição e o exibidor sempre se adaptando aos coisas. Não é de hoje que se filmam artistas plásticos, C. K. – Este mercado do curta não está criando filmes unicamente para preencher este espaço, sem qualquer preocupação com o que está fazendo? Como é que estes filmes estão chegando ao público?
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personalidades, eventos deste tipo. Esta deformação é antiga. O curta, aqui, nasceu com o cinema mundial. A primeira coisa que aconteceu, é o que manteve o cinema brasileiro nas suas crises periódicas; é o que manteve a mão de obra contínua no cinema; quer dizer, é o que manteve a taxa de desempenho num nível aceitável. Para não se mudar de profissão; o que fez o pessoal atravessar décadas no cinema, foi o curta, sempre. Daí, as deformações que fazem o filme curto ter um approach oficial. Na filmografia de JeanClaude Bernardet de 1900 a 1935, a grande maioria são f ilmes curtos, of iciais, com uma característica de oportunismo que é evidente, de “cavação” como eles chamavam aqui. Mas desta situação sempre surgiram os que se opõem a isso, Humberto Mauro e um monte de gente. Em cada geração surgem os imobilistas e os que tentam atuar dentro de uma cultura nacional. Esta ruptura surge com o Cinema Novo. É uma dívida que ninguém vai negar. Na hora do racha eu fico com estes filmes que se preocuparam em levar um combate. Notas *Originalmente publicado na revista Filme Cultura, edição 37.
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Duas Paixões Simu ltâneas* Inácio Araújo**
Noites paraguaias – Direção e Produção; Aloysio Raulino, Roteiro e Fotografia: Aloysio Raulino e Hermano Penna. Montagem: José Mona. Elenco: Rafael Ponzi, José Dumont, Aurora Duarte, Emanuel Cavalcanti, Ana Maria Ferreira, 1982. Existem, em Noites paraguaias, duas paixões simultâneas: a do documentarista – que Aloysio Raulino sempre foi – e a do narrador que começa a ser. Não é de surpreender, portanto, que seu Filme oscile entre momentos em que o documental se acrescenta ao narrativo, e momentos em que estes dois registros de certo modo se repelem.
mos tempos: momentos poéticos em que, pelo simples encadeamento de imagens, o espectador se dá conta de uma situação (a morte do pai). Momento que serve para avaliar um cineasta, isto é: alguém que deve falar por imagens (coisa tão evidente mas, que parece, vem sendo desgraçadamente esquecida por nossos cineastas).
Momento em que Raulino, sem se deixar seduzir pelas ideias de “gênio”, chega a evocar um Vestida para matar de Brian de Palma e mostrar-se efetivamente original. Ali, as cenas que pontuam os últimos momentos do velho pai são cortadas por imagens extáticas, simples expressões faciais captadas em contato com o campo (isto é, o cenário das vidas dos personagens): ao No primeiro caso, o resultado é algumas das belas contrário do que se poderia esperar, o documental sequências iniciais; no segundo, certos momentos agrega-se à narrativa até desembocar na sequência da peregrinação do jovem paraguaio por São Paulo. do enterro, bela por sua atmosfera de poesia simples Fiquemos por algum tempo, com a sequência inicial, e eficaz que consegue extrair desse ritual ao mesmo uma das mais belas feitas no cinema brasileiro nos últi- tempo único (só se morre uma vez) e vulgar (todos 177
passamos por ele); pela virtude de uma música que, cumprindo com seu papel, transmite as ideias de um transtorno irrecuperável.
imprecisos, no que acompanham a imprecisão dos próprios personagens. Raulino, documentarista, acumula seu filme de situações acidentais que se justapõem sem dar conta da Babel paulistana. O registro cinematoO que vem a seguir é menos feliz: o jovem paraguaio gráfico, aqui, incorre no que tem sido o defeito mais abandona sua noiva rumando para Assunção e daí para frequente do cinema brasileiro nos últimos tempos São Paulo. Itinerário de uma errância: alguém solto no sua incapacidade de ultrapassar a si mesmo, de criar, mundo, sem outra pátria, exceto a música, a sua música. a partir das imagens mostradas, uma segunda exisNo momento em que chega a São Paulo, mais espe- tência capaz de engajar efetivamente o espectador. O cificamente no momenta em que Raulino insere uma realismo documental como que alija da tela seu próprio sequência com um garçom perseguido pelo demônio, objeto: uma série de personagens, situações e cenários o filme se deixa dispersar. Ao contrário do brilhante que se adicionam, não compõem um conjunto vivo. É início, o documental e o narrativo já não aderem um como se oferecessem ao espectador uma impotência ao outro, mas se repelem. O que era errância de um a um só tempo tautológica (um filme é um filme) e personagem, torna-se errância do próprio filme. Pode autoritária (vejam!). existir aí, não sei, uma proposta estética de identificar o referencial ao filme, o objeto ao sujeito do discurso Estas observações levam de maneira quase obrigatória a – mas inegável que um tal desenvolvimento traz à me- uma pequena digressão sobre o atual estágio do cinema mória do espectador filmes como Homem sem rumo brasileiro. Moderno no período do Cinema Novo, a de King Vidor, em que a errância do personagem era partir de 68 teve de encarar ainda incipiente o desafio do absorvida pela solidez da narrativa. pós-modernismo, isto é, a crença generalizada no fim da arte. O problema nunca foi - que eu saiba - objeto Aqui, ao inverso, a errância se traduz por dispersão de um trabalho teórico mais detido. O fato é que, de da mise-en-scène, os enquadramentos se tornam vagos, alguns anos para cá, pode-se observar uma ausência 178
de rumo quase generalizada, proporcional a de um pensamento capaz de abarcar, num só movimento, os problemas de uma arte e uma sociedade em permanente convulsão. Observamos a incerteza de um Nelson Pereira a partir de Azyllo muito louco ou o naufrágio de um Joaquim Pedro (autor de um belo O padre e a moça) com a mesma indiferença que vemos Raulino, em sua estreia, deixar escapar de suas mãos personagens extremamente ricos em troca de um vanguardismo a todo preço, tanto mais artificial quanto premeditado. Felizmente no entanto, é possível dizer que em Noites paraguaias o diretor deixa antever o cineasta que é será, na medida em que abandone certos preconceitos culturalistas para dedicar-se à tarefa (tão mais difícil do que simples) de investir em suas paixões. “Só existe uma maneira de filmar alguém entrando num escritório”, dizia Raoul Walsh. A citação não é literal, mas o sentido sim.
pela câmera que têm na mão. À custa de evitarmos qualquer paixão pelo objeto, terminamos por obliterar a paixão do cinema, indispensável a quem quer que filme. Aqui, eu gostaria de voltar a Noites paraguaias e ao trabalho de Aloysio Raulino. Mesmo nos momentos em que seu filme parece mais fraco, é possível discernir um encanto pela música paraguaia capaz de resgatá-lo e deixar o espectador, ao final, com uma impressão
De conjunto favorável. Reprimida por vezes, mas sempre presente, existe a unificar e dar vida a este filme uma indisfarçável paixão por esta música. Música melancólica que remete seu ouvinte a sensações de morte e de perda: morte do pai (no filme) ou morte de um país após a guerra; perda de sua saída para o mar. A harpa é, assim, o mar paraguaio: instrumento de uma música que se propaga em ondas e que, evitando os altos e baixos, sugere uma ideia de horizontalidade. Pela Num cinema como o nosso, passando por uma crise harpa o paraguaio encontra o mar (e por consequência que não se pode mais ignorar, temos cem, duzentas o seio materno se aceitarmos a hipótese de Ferenczi em maneiras de filmar uma pessoa entrando num escritório. Thalassa) e sua saída para o mundo. O Paraguai pode Poucas delas, no entanto, se dão conta da pessoa ou prescindir da sua língua (o fato do filme ser falado mesmo do escritório, fascinadas pela pura escritura, quase todo em guarani é uma feliz demonstração desta 179
angustiante verdade pelo vazio que instaura), mas não da harpa e de sua música. O Paraguai é, nesse sentido, único, e o filme seria mais realizado se concentrado nesta ideia em lugar de permitir que se perdesse em outras não só secundárias, como desenvolvidas de forma inconsciente. Quando a harpa se põe a tocar, no entanto, é como se Raulino assumisse a única atitude necessária a um diretor de cinema: abrir-se de lado a lado, mostrando-se inteiro para mostrar alguma coisa do mundo. Filme equilibrado entre a sinceridade comovente e simples e as facilidades de artifícios vanguardistas (quantos cineastas não recorrem a eles para garantir o valor “cultural” de seu trabalho”), Noites paraguaias tem o mérito de revelar um cineasta. Isto é, alguém capaz de amar seu objeto e seu instrumento. Condições indispensáveis para, no correr de outros filmes, encontrar sua expressão mais madura. Não é de muitas estreias que se pode dizer isso. Notas *Originalmente publicado na revista Filme Cultura, edição 43. **Crítico de cinema e TV da Folha de São Paulo.
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A SIN FONIA DOS POBRES (ou a modernidade de A loysio Rau lino) João Dumans
Com a morte de Aloysio Raulino, em maio de 2013, o Brasil perdeu não apenas um de seus melhores fotógrafos, mas um de seus mais inventivos cineastas. A agilidade e a independência de Raulino, sua indiferença pelos métodos clássicos de se fazer filmes, pela própria ideia de uma “obra” fizeram dele uma espécie de primitivo em sua arte, no melhor sentido da palavra, como um jovem cineasta dos anos 1920 que, por um descompasso histórico, se pusesse a filmar no Brasil dos anos 1970. Movidos por um ímpeto de experimentação constante, seus filmes reatam a história do cinema brasileiro com a melhor tradição de vanguarda dos anos 1920 e 1930, aquela para a qual o cinema era ainda um meio a ser inventado, e cujas virtudes residiam menos na reprodução dos esquemas narrativos herdados do século xix do que na invenção de todo um novo conjunto de procedimentos, efeitos e sentimentos artísticos: um cinema capaz de conciliar o realismo e o surrealismo, o construtivismo e a preo-
cupação social, e talvez, o mais importante, o ímpeto subversivo e a poesia. Tomemos, por exemplo, aquele que é provavelmente o seu filme mais belo: Porto de Santos (1978). Como negar o misto de desconcerto e felicidade que se sente ao ver esses estivadores filmados de maneira tão confiante por Raulino, ou a jovem prostituta dos subúrbios de Santos ou a dança erótica do bandido “Escorregão” – que segundo o próprio diretor, havia ameaçado a equipe caso essa se recusasse a filmá-lo? Como não ver aí uma afinidade com o olhar ao mesmo tempo objetivo e poético dos primeiros documentaristas de vanguarda: Vertov, Cavalcanti, Ivens, e, porque não, o Vigo de À propos de Nice (1930) – filme em relação ao qual Porto de Santos se coloca como uma espécie de duplo em negativo: balneário de repouso da elite francesa em férias versus zona portuária dos trabalhadores brasileiros em greve?
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Por caminhos diferentes, mas partindo do mesmo lugar mes que dirigiu – Lacrimosa (1970), Jardim Nova Bahia – o “ponto de vista documentado” – Raulino e Vigo (1971), Porto de Santos, O Tigre e a Gazela (1977), Noites alcançam resultados simples e brilhantes. E antes que se paraguaias (1982), Inventário da Rapina (1986), dentre acuse o absurdo da comparação, deixemos o cânone um outros – e vários dos que fotografou, têm como foco pouco de lado e vejamos novamente esse filme notável, o universo urbano, entendido tanto pelas figuras vide pouco menos de 20 minutos, nos perguntando com suais e sonoras muito próprias que ele é capaz de criar, franqueza se o próprio Vigo não saberia reconhecer sua quanto pela experiência de vida real de seus habitantes, originalidade? O jovem diretor de O Atalante (1934) e sobretudo aqueles que vivem à margem do sistema Zero de conduta (1933) é e será sempre o patrono de todo econômico e social. cinema livre, poético, engajado, bem-humorado – e Porto de Santos, para roubar suas próprias palavras, é A originalidade de Raulino enquanto cineasta (e de cinema “no sentido que nenhuma arte, nenhuma ciência, certo modo, enquanto fotógrafo, se levarmos em conta poderia substituí-lo em seu ofício”; e é também um os filmes dos quais participou) consiste em não desprecinema “social”, na medida em que “é capaz de revelar zar nenhuma dessas contribuições, produzindo uma a razão oculta de um gesto, de extrair de uma pessoa conjunção inesperada entre dois gestos a princípio banal e do acaso sua beleza interior ou sua caricatura, contraditórios: um elogio poético à cidade e às suas de revelar o espírito de uma coletividade a partir de figuras, tributário, de certo modo, das vanguardas dos suas manifestações puramente físicas”.1 anos 1920; e outro, absolutamente político, de diagnóstico da falência do projeto econômico dessa mesma Se quisermos pensar a “modernidade” de Raulino por modernidade, sobretudo em sua vertente capitalista um outro ângulo, não apenas pela via do estilo, basta e imperialista. Se é verdade que na forma seus filmes perceber como seu cinema sempre demonstrou uma nos remetem ao espírito de livre invenção da primeira enorme sensibilidade para os personagens, a agitação metade do século, seu conteúdo político pertence a e as contradições da vida urbana. Boa parte dos fil- um momento muito específico dos anos 1960 e 1970, 182
aquele das guerras anticoloniais na África, das ditaduras latino-americanas, dos combates localizados contra o avanço do capitalismo no terceiro mundo, das lutas contra as segregações econômicas, raciais, sociais e geográficas. É o caso de Lacrimosa e O Tigre e a Gazela, filmes separados por dez anos de distância, mas que revelam o talento de Raulino para as soluções cinematográficas simples – e também, se quisermos, para uma espécie de “meditação no improviso”, qualidade maior do seu estilo como cineasta e fotógrafo. Em Lacrimosa, depois de um rápido plano de apresentação, o filme se abre com os seguintes dizeres: “Recentemente foi aberta uma avenida em São Paulo”, e em seguida: “Ela nos obriga a ver a cidade por dentro”. Sem mais, o carro de Raulino e Luna Alkalay começa a percorrer a Marginal Tietê. Objetividade característica do cinema de Raulino, que nem por isso o diretor cumpre como um programa: a câmera vacila, o zoom hesita, a paisagem se transforma rapidamente, entre prédios modernos e favelas – o que só faz crescer, contra todo planejamento prévio, a sensação de imprevisto e o sentimento de urgência. A certa altura, Raulino desce do carro com a câmera
e entra numa favela, um pequeno arranjo de casas improvisadas cercadas de lixo. Alguma coisa da ordem do indescritível e do sublime, como não é raro em seus filmes, acontece então nesse encontro entre câmera e as crianças da favela, quando irrompe por alguns segundos o Requiem de Mozart. A princípio simples e algo desajeitado, o filme explode numa forma nova, como se a realidade saltasse para fora de si mesma, e os moradores daquele lugar (a criança com a ferida na testa, a menina com a bola de borracha na cabeça, o homem com a máscara) nos interpelassem de uma terra distante, como derrotados de um mundo pós-apocalíptico, numa evocação simultânea de Terra sem Pão (1933) e La jetée (1962). Quantos cineastas souberam, com tão poucos recursos à mão, provocar sentimentos tão contraditórios? E quantos souberam despertar a nossa indignação de maneira tão feroz, sem transformá-la em compaixão ou piedade? A imagem do mapa do Brasil, ao fim, restitui a realidade do filme a um espaço específico, e é seguida pelos versos de Ángel Parra, que canalizam a energia do êxtase das sequências anteriores para uma mensagem política muito clara: “Quisiera volverme noche / para ver llegar el día / que mi pueblo se levante / buscando su amanecida”. 183
Algo muito semelhante acontece em O Tigre e a Gazela, onde a energia da junção ritualística entre música erudita e popular, os rostos e as danças também é canalizada na direção de uma atitude revolucionária, emblematizada aqui pelas frases do escritor anticolonialista Frantz Fanon. Exatos quinze anos antes, os escritos de Fanon estiveram na base das reflexões de Glauber Rocha sobre a “estética da fome”, que procurava transpor para o contexto brasileiro algumas das ideias do filósofo sobre as lutas anticoloniais na África. Nesse processo, a violência contra o colonizador europeu se convertia na violência da linguagem contra o cinema dominante, fixando o que, naquele momento, Glauber afirmava ser o projeto estético e político do Cinema Novo. A simples recuperação dos textos de Fanon por Raulino não implica, obviamente, uma referência a esse projeto estético, mas tem o mérito de resgatar a discussão quando ela parecia adormecida, em plenos anos 1980, e de reavivá-la no contexto da abertura política e da redemocratização do Brasil. Como escreveu Ismail Xavier, Fanon procurou revelar em seus escritos a dependência recíproca entre a “luta pela liberdade” e a formação de uma cultura nacional efetivamente viva e pulsante. No filme de Raulino, a fusão dos rostos e 184
das músicas com os textos do escritor francês reitera essa articulação, fazendo da informalidade da festa, da dança e do canto popular (e não necessariamente do imaginário mítico, como em Glauber) uma espécie de reduto de insubordinação e resistência. De resto, O Tigre e a Gazela e Lacrimosa provam que Raulino foi o mestre de uma arte quase esquecida: a de despertar a confiança naqueles que filma – e mais, a de filmá-los de frente, fazendo com que a câmera consiga expressar a tensão ou a alegria do encontro. Nesse sentido, é impossível não evocar o parentesco entre o seu trabalho e o de outro grande realizador de sua geração, Arthur Omar, sobretudo na sua conhecida série fotográfica Antropologia da Face Gloriosa – título que poderia servir, numa outra chave, para sintetizar boa parte da obra do diretor de O Tigre e a Gazela. Mais do que uma comparação minuciosa entre os filmes dos dois cineastas (que revelaria provavelmente muito mais diferenças que semelhanças) é interessante notar como ambos assumem uma postura totalmente própria no interior da história do nosso cinema, recusando a via do documentário clássico (ou sociológico) em nome de uma investigação muito mais livre da realidade
brasileira. Essa postura implica, entre outras coisas, uma predileção pela montagem e pela justaposição de materiais heterogêneos (músicas, documentos, imagens, esculturas etc.), ainda que em Omar a costura desses elementos seja muito mais complexa, e a renúncia à função explicativa do documentário muito mais consciente e pronunciada.
que não significa apenas a reivindicação da abertura política, mas algo como uma “redemocratização total” da sociedade, em que a voz dos marginalizados passaria finalmente ao primeiro plano. A ferocidade do filme anterior dá lugar aqui a um drama mais onírico, em que intervém abertamente o jogo com o surrealismo e o simbólico. Nessa costura de psicologia íntima com a “questão nacional”, Inventário da Rapina parece inAo longo do anos 1970 e início dos anos 1980, des- terrogar o futuro de um país novo, em busca de uma tacam-se nos filmes de Raulino a agilidade e espon- imagem do Brasil com a qual seria possível ainda se taneidade do fazer, de modo que o corpo a corpo do identificar, sem recorrer ao ufanismo característico do fotógrafo com a realidade não exclui, mas prevalece regime militar. A variedade musical do filme, por isso sobre a forma ensaística mais intelectual. Esse período mesmo, também é notável, sobretudo pela mistura de coincide também com a dominância do preto e branco canções populares com hinos oficiais, performados como opção estética, num gesto deliberado de recusa diante da câmera ou inseridos na trilha sonora. da imposição da cor pelo mercado de cinema brasileiro.2 Alguma coisa nesse cenário se transforma a partir de O trabalho com o som e com a música, aliás, sempre 1982, quando o cineasta realiza seu primeiro longa teve um papel central no cinema de Raulino. Nesse ficcional, Noites Paraguaias, e em seguida o média- sentido, seus filmes sempre fizeram jus à riqueza sometragem Inventário da Rapina, filme em que a opção nora do cinema da Boca do Lixo, que foi o que melhor pelo “ensaio” aparece de maneira muito mais radical do soube explorar criativamente as limitações técnicas de que em qualquer outro trabalho que realizou. Assim produção – pensemos, por exemplo, em seu amigo e como O Tigre e a Gazela, esse curta também reflete parceiro Ozualdo Candeias – reinventando a função sobre o processo de redemocratização do Brasil – o do som direto e da dublagem, abusando dos ruídos 185
sonoros e, sobretudo, retirando definitivamente a música do seu lugar de acompanhamento para integrá-la à narrativa, ora sob a forma do comentário, ora como evocação de uma cena cultural específica, ora pelo simples prazer de fazer ouvi-la. Quanto a Raulino, a conclusão óbvia que se chega ao ver qualquer um de seus curtas é que eles não apenas “usam” muito bem a trilha sonora, como são eles mesmos – na dinâmica dos cortes, na alternância de planos curtos e longos, de tomadas fixas e panorâmicas – profundamente musicais em sua estrutura. Chama a atenção, por exemplo, o uso que seus filmes fazem do silêncio. Astuto, Raulino sabe que a melhor forma de fazer ouvir o silêncio não é pela completa ausência de som (como nos filmes mudos) nem pelo abuso do silêncio (como em numerosos filmes experimentais contemporâneos), mas pelo uso expressivo do contraste. Assim, alguns de seus melhores curtas recorrem a este expediente: usam sem ressalvas ruídos e músicas, mas pela simples subtração do som em alguns momentos estratégicos, nos fazem ver com uma profundidade inesperada aquilo que segundos atrás poderia parecer insignificante. Uso poético e 186
construtivo do silêncio e, de certo modo, uso brechtiano: diante de um rosto, ou mesmo do canteiro de uma rodovia, nos sentimos subitamente olhados do outro lado, ou nos descobrimos a olhar. É assim em Porto de Santos, filme em que o som entretém com a imagem um jogo maravilhosamente calculado de aproximações e afastamentos, e também em Lacrimosa, essa espécie de sinfonia do século XX ao avesso, em que o próprio carro corta a autoestrada como o arco de instrumento. Quanto à música propriamente dita, os filmes de Raulino recorrem a um vasto leque de opções e significados. Sem falar de Noites paraguaias, sobre as aventuras de um grupo musical paraguaio no Brasil, A morte de um poeta (1981), em que registra o enterro de Cartola, e Arrasta a bandeira colorida (1970), sobre o carnaval de rua de São Paulo, todos os seus filmes nutrem um diálogo intenso com a música, ora numa chave mais engajada e militante, como em Lacrimosa, ora para embalar os sonhos e as fantasias dos homens comuns, como em O Tigre e a Gazela, Porto de Santos e, especialmente, Jardim Nova Bahia.
Na esteira do importante ensaio de Jean-Claude Bernadet sobre este último filme, fixou-se no imaginário da academia e da crítica de cinema apenas o gesto histórico de Raulino de passar a câmera a Deutrudes, seu entrevistado. Muito pouco se falou, no entanto, da música dos Beatles (Strawberry fields forever) que irrompe de maneira absolutamente inesperada na trilha sonora. E no entanto, tão importante quanto a transferência da câmera para o personagem, nesse filme, é o desejo explícito de captar o seu lado imaginativo, romântico, fabular. Raulino sabe que nenhuma transformação política é possível sem essa compreensão íntima do prazer e do sonho, e é por isso que a atenção dedicada aos homens comuns em seus filmes caminha de par em par com a representação de seus delírios e fantasias. Como o próprio Bernadet já havia notado, “Raulino interessa-se pelo trabalhador enquanto não-trabalhador” – o que faz com que alcance uma profundidade (e uma liberdade) inesperada na representação da realidade brasileira. Como já se notou inúmeras vezes, a abertura ao diálogo com a cultura popular era uma das características mais marcantes da produção da época, fossem nos filmes
ditos marginais ou mesmo nos desdobramentos do Cinema Novo. A obra de Raulino, no entanto, só viria a colher abertamente os frutos dessa aproximação no início dos anos 1980, com Noites paraguaias – filme que realiza, dentre outras façanhas, a de nos fazer passar de Ozu a Buñuel em menos de noventa minutos. No conjunto, Noites paraguaias é um belo filme, com sequências mais e menos felizes, mas que em nenhum momento deixa de despertar o interesse mais vivo em quem o assiste. O filme resgata um tema muito caro a Raulino e ao cinema brasileiro (Zézero [1974], Liliam M [1975], O homem que virou suco [1981], entre outros): o do estrangeirismo, na forma da imigração do campo para a cidade. No filme de Raulino, um imigrante paraguaio vai a São Paulo em busca de melhores condições de vida, o que acaba servindo como pretexto para uma série de encontros documentais, digressões surrealistas e números teatrais. No início predomina o registro plácido e cadenciado, o gosto pelos planos longos e de detalhe, a reflexão sobre a passagem do tempo e sobre os ciclos da vida. Num dado momento, porém, a aparição jocosa e performática de Cláudio Mamberti como o turista brasileiro marca a virada desse estilo 187
inicial, anunciando a chave muito mais paródica e burlesca em que será tratada a realidade do país. Como acontece também em cineastas tão diferentes quanto José Agrippino, Joaquim Pedro de Andrade, Fernando Coni Campos, Waldir Onofre ou Carlos Prates Corrêa, apenas o exagero teatral parece dar conta da realidade do imaginário brasileiro, povoado por ridículos surtos de nacionalismo, euforia e delírios de grandeza. É notável nesse filme também a inteligência das soluções narrativas de Raulino (a sequência do Cassino, a chegada a São Paulo), a frontalidade da encenação e a riqueza dos números teatrais, que mesmo quando não fazem rir, chamam a atenção pelo espírito de liberdade e inventividade com que foram feitos.
bém como um desdobramento natural de seu pendor para o risco e para a experimentação – ainda que isso signifique, aqui, bater em teclas um pouco gastas pelo cinema brasileiro, como o diálogo com a chanchada. De todo modo, Noites paraguaias é um filme que só faz lamentar o fato de seu diretor não ter podido realizar outros nesse mesmo espírito – o espírito subversivo que sempre foi o de Raulino: fotógrafo brilhante, cineasta engajado e comediante nato.
Por muito tempo ainda será preciso reter uma outra lição do seu cinema, talvez a mais importante: além dos méritos de seus próprios filmes, a história de Raulino como realizador e fotógrafo nos deixou o testemunho de uma inquietação constante no que diz respeito às Na verdade, a polifonia e a heterogeneidade do único diferentes maneiras de se fazer cinema. Poucos artistas longa de ficção que Raulino dirigiu surpreendem apenas na nossa história tiveram a chance de experimentar e na medida em que o considerarmos um curta-metra- de participar da construção de tantas formas distingista qualquer, e não o criador inquieto que nunca tas de se fazer filmes, tantas formas de se organizar deixou de ser, preocupado em transmitir sempre, ao em grupo, tantas diferentes maneiras de mobilizar lado de uma idéia política, uma idéia cinematográfica. os recursos técnicos necessários ou de se relacionar A aposta no registro ficcional e os achados burlescos do com as pessoas que são filmadas. Cada um dos filmes filme contrastam efetivamente com a simplicidade das que realizou, e boa parte dos que fotografou, propôs experiências anteriores, mas podem ser entendidos tam- à sua maneira, ao lado de um conjunto de imagens e 188
sons, uma certa dinâmica produtiva, que implicou de diferentes maneiras suas respectivas equipes, o aparato cinematográfico, o tempo de trabalho e, sobretudo, as pessoas filmadas. Raulino não é apenas um inventor de formas. Sua vida e sua trajetória enquanto realizador e fotógrafo – como a de todo vanguardista que se preze – testemunham elas mesmas a pluralidade de modos possíveis de trabalhar, de viver o cinema, de fazer filmes.
1. “Vers un cinéma social” (“Por um cinema social”), texto de apresentação lido por Vigo antes da exibição de À propos de Nice, em 1930. Não se deve esquecer, pela beleza da coincidência, que um dos primeiros biógrafos do cineasta francês, Paulo Emílio Salles Gomes, foi também uma das principais referências intelectuais de Raulino na USP, onde esse último se formou nos anos 1970. 2. “Foi assim: eu me encantei com isso na medida que vi que o B&P resistia tanto, no momento em que a cor estava sendo imposta aqui com pulso de ferro, ou seja, num momento em que éramos obrigados a filmar em colorido, sob pena de não sobreviver. E eu disse: não. Eu desobedeço e continuo a trabalhar em preto e branco”. Entrevista com Aloysio Raulino, Filme Cultura, n. 38/39, Ago/Nov de 1981.
foto pedro veneroso | os residentes (2010), TIAGO MATA MACHADO
Notas
Foto acervo andrea tonacci
MOVIE JOURNAL* Jonas Mekas
4 de Fevereiro, 1959 Chamado por uma loucura da razão cinemática Todo rompimento com o cinema convencional, morto, oficial, é um sinal saudável. Precisamos de menos filmes perfeitos e mais filmes livres. Se pelo menos os nossos jovens cineastas – não nutro esperanças pela velha geração – se soltassem, completamente desprendidos, fora de si, selvagemente, anarquicamente! Não há outra maneira de quebrar as congeladas convenções cinemáticas senão através de um completo desarranjo mental da razão cinemática oficial. 25 de Novembro, 1959 Atirem nos roteiristas Não há dúvidas de que a maior parte do tédio de nossos filmes está conectada de antemão aos assim chamados cabeças dos tais roteiristas. Não somente o tédio: eles também perpetuam as padronizadas construções de filmes, diálogos e tramas. Eles seguem estritamente seu manual do “bom” roteiro. Atire em todos os roteiristas
e talvez ainda tenhamos um renascimento do cinema estadunidense. 23 de Março, 1960 Abaixo os distribuidores Abaixo os distribuidores! Até agora os cineastas estiveram sempre à mercê do distribuidor. Se o distribuidor diz que seu filme não é bom, ele não é bom; se ele diz que seu filme é ok, você está a um passo mais perto de conseguir um espaço de exibição. Ou, como tem sido feito tão frequentemente, ele pega seu trabalho e o corta em pedaços até que sangre. Que filmes americanos ou europeus assistimos e em que formato os assistimos depende do gosto e da concepção do distribuidor. 12 de janeiro, 1961 A alegria criativa do realizador independente Jornais e críticos procuram por ondas. Deixem que procurem por elas, adeus, adeus! Existe um novo cinema, que vem existindo a mais ou menos quinze anos,
*Os textos a
seguir foram originalmente publicados na revista Village Voice em uma coluna mantida por Jonas Mekas entre 1959 e 1971. Uma compilação de alguns dos textos foi publicada no livro Movie Journal: The Rise of a New American Cinema, em 1972, de onde foi extraída esta seleção. Agradecemos ao autor pela publicação. MEKAS, Jonas, Movie Journal: The Rise of a New American Cinema, 1959-1971, NY: Collier Books, 1972.
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o cinema experimental, mas os críticos não o viram. A razão é simples: eles não sabem o que procurar. Como naquele ditado Zen: Está claro demais, então torna-se díficil ver: o homem certa vez procurou por uma fogueira com uma lanterna acesa; se ele soubesse o que era o fogo ele poderia ter cozinhado seu arroz mais cedo. A nouvelle vague francesa não é, realmente, tão nova assim – e não é tão diferente do cinema comercial francês ou de qualquer outro cimema. Se eles são tão convencionais com vinte anos, imaginem como serão aos quarenta! Os novos filmes americanos mais originais nunca tiveram a intenção de competir com o cinema comercial. Começando por The Quiet One até chegar em On the Bowery e The Sin of Jesus, esse cinema foi banido, um cinema forasteiro, e seus autores sabem disso. Eles não estão atrás de uma nova Hollywood; Hollywood faz seu trabalho muito bem sem a ajuda deles. Eu me pronunciei várias vezes contra o profissionalismo. Next Stop 28th Street é um bom exemplo do que quero
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dizer. Nesse filme, a triste e desoladora poesia dos metrôs é capturada como ninguém havia feito antes (exceto por Peter Oslovski), como nenhuma Hollywood, com dezenas de toneladas de luzes e estúdios poderia apreendê-la. Oh, o desamparo dos profissionais, e a alegria criativa do artista independente, perambulando pelas ruas de Nova Iorque, livre, com sua câmera 16mm, na Bowery, no Harlem, na Times Square, e nos apartamentos do Lower East Side - o poeta do novo filme americano, pouco se importando com Hollywood, arte, críticos ou com quem quer que seja. 21 de Dezembro, 1961 Um encontro com o fbi Eu sonhei que J. Edgar Hoover me apalpava em um silencioso corredor do Capitólio... -- Allen Ginsberg em Guns of the Trees. Dois dias depois do Cinema 16 exibir Guns of the Trees recebi um telefonema bem cedo pela manhã. “Meu nome é Schwartz, do fbi” disse a voz do outro lado do telefone.” Gostaria de lhe fazer algumas perguntas”. Schwartz, um bom nome, pensei. fbi. Eu estava meio emocionado. Lembrei dos romances de Mickey
Spillane. Aventura. Marcamos de encontrar na Avenida B. Sempre quis encontrar um agente do fbi. Ou um detetive. Imaginei se seria capaz de reconhecê-lo na rua.
Eu o encarei. Havia um sorriso singular em seu rosto. Estava muito claro aonde ele queria chegar: fotografias, documentos secretos, câmeras – toda a parafernália de espião. Eu lembrei de Five Fingers.
Reconhecê-lo eu consegui; não havia erro quanto a isso. Ele não poderia passar despercebido no Lower “Não”, eu disse. “Encontrei com eles por motivos pessoais”. East Side. Um rosto que parecia saído de um filme de Pensei que isso era vago o suficiente. Sr. Schwartz caminhou em silêncio por um momento. Fazia frio. Carol Reed, com chapéu preto e capa de chuva. Ele olhou para dentro de uma cafeteria, mas eu pre“Você não precisa falar comigo, você sabe”, disse Sr. feria o vento gelado da manhã. “Eles lhe ofereceram Schwartz ao mostrar seu cartão. “Eu não me importo. dinheiro?”, perguntou-me repentinamente. Estou emocionado, estou contente”. Dinheiro! É melhor eu negar essa acusação, e rápido, Ainda assim, olhei em volta. Sentia como se estivesse pensei comigo mesmo. Essa era uma questão perigosa. entrando em uma conspiração macabra. E embora eu soubesse que não era culpado de nenhum crime, senti o “Não”, eu disse. “Não recebi dinheiro de nenhum cienorme poder do Departamento de Estado por detrás dadão soviético e você não precisa se preocupar com isso, se é o que você teme”. desse personagem de Carol Reed. Sr. Schwartz não perdeu tempo: “Você tem encontrado Isso deve ser suficiente, pensei. Não foi. algum cidadão soviético ultimamente?”, ele perguntou. “Tenho informações de que você recebeu dinheiro de “Sim”, eu disse. Não havia motivo para negar minhas cidadãos soviéticos neste país”, disse Sr. Schwartz. conexões com realizadores e críticos de cinema de Caminhamos em silêncio. Se ele não acredita no que qualquer país. digo, porque se dá ao trabalho de me perguntar, pensei. “Você os encontrou profissionalmente? Você sabe, como Era um insulto. O que, de início, parecia uma aventura um fotógrafo?” inocente, um jogo, tornou-se repulsivo.
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“Eu adoraria receber dinheiro de alguém”, eu disse, “estou precisando”. A piada não funcionou. Sr. Schwartz estava esperando uma resposta direta ou uma confissão repentina. Eu havia cometido um erro, pensei. Você nunca deve dizer que precisa de dinheiro – isso pode se tornar uma prova de que você aceitou dinheiro. Você está se esquecendo de seus filmes, pensei.
Eu estava muito comprometido. Queria dizer “Não”, mas o som desapareceu de minha boca. Meu “não” era totalmente irrelevante a essa altura. Eu sabia que se dissesse “Não” soaria exatamente como “Sim”. Eu via o East River na minha frente. Mas sentia o cheiro do Comitê de Atividades Anti-americanas, a Gestapo, a nkvd, e todos os agentes secretos, policias e exércitos que já havia encontrado – as moscas do séc. xx.
“Você está evitando a questão”, disse Sr. Schwartz. “Não”, eu disse, “eu me recuso a responder essa quesPeguei-me imaginando: será que ele está gravando tudo tão. Acho que isso já foi suficiente. E, para lhe dizer a o que eu digo? “Mas a pergunta é ridícula”, eu disse. verdade, eu odeio agentes. Todos os tipos de agente”. “É meu dever descobrir os fatos”, disse Sr. Schwartz.
Eu parei. Olhei para Sr. Schwartz e tive certeza que ele não tinha mais dúvidas: eu era culpado. Eu havia “Mas como você pretende fazer isso se não acredita no me recusado a responder; isso significava que estava que eu falo? É inútil”, eu disse. “Você está desperdievitando a verdade, que era culpado. Eu tinha receçando o dinheiro dos contribuintes com investigações bido dinheiro de Grigori Chukhrai, talvez, ou Sergei inúteis”. Bondarchuk, ou Tatjiana Samailova. “Você paga seus impostos?”, o agente me perguntou. “Sim, eu odeio agentes”, disse. Pensei em repetir essa Eu me calei. Caramba, disse para mim mesmo, ele pode frase em nome do East River. “E então, você acha que investigar meus impostos. Ele provavelmente tem um ao responder sim ou não, isso mudaria alguma coisa? arquivo sobre mim com 25 centímetros de espessura. Minha resposta não mudará nada. Uma vez que você “Você recebeu o dinheiro, sim ou não?”, insistiu o ho- tiver confirmado suas suspeitas, continuará acreditando nelas. Então é melhor eu lhe dizer logo, aqui e agora, mem do fbi. que eu me recuso a cooperar com o fbi”. 194
De repente me senti como um desbravador. “Quem natalinos pendurados nas janelas das lojas, conversando vai me dizer o que fazer ou falar? Sou livre para trocar com ele, tentando provar algo – provar o que? qualquer tipo de conhecimento artístico com quem “ok”, falei finalmente, “eu admito. Estou trabalhando achar melhor – seja essa pessoa russa, grega ou chinesa. em uma enorme fábrica de munições e tenho arquivos Meu conhecimento é universal”. e arquivos de materiais secretos e eu os vendo por “Não”, Sr. Schwartz me interrompeu, “eu sou a pessoa dinheiro para cineastas russos – você sabe, a pessoa que pode dizer o que você pode, ou não, falar para os tem que ganhar seu pão...”. outros. Recebo para isso, essa é a minha profissão, meu Caminhávamos em silêncio agora. A comunicação campo de atuação. Sou a autoridade nisso”. estava desaparecendo rapidamente. Aquilo me calou. Estava surpreendido. “Isso é idiota. Eu vou pra casa”. “Mas eu sou um artista”, disse, “e você é somente um Sr. Schwartz não olhou para mim. agente do fbi. Eu possuo um conhecimento que não está disponível para você. Eu tenho conhecimento “Você se recusa a cooperar?” ele perguntou. A voz era sobre artes e sobre a experiência humana. Somente eu fria como metal. “Você não deseja ajudar o governo? posso decidir como, e onde, utilizar minha experiência Você está cometendo um erro ao não cooperar”. e meu conhecimento. ok? Você devia pensar sobre isso, “Sim, eu me recuso a cooperar porque a coisa toda não estou lhe dizendo isso de um ser humano para outro”. faz o menor sentido. É isso que você deve dizer em
"Você está errado”, disse Sr. Schwartz.
A rua estava muito fria. As chaminés industriais da Con Edison estavam apagadas. O rosto do agente estava frio. De repente, tudo parecia tão estúpido. Aqui estou eu, caminhando com um agente do fbi nessa manhã gelada de Dezembro, no Lower East Side, com ornamentos
seu relatório”.
O agente virou as costas e começou a caminhar em direção à Avenida A. Eu comprei pão e fui para casa. O que diabos ele queria, pensei. O que estaria por trás de tudo isso? Que tipo de esquema? Como será que eles chegaram nessas ideias? E quantas pessoas,
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quantas estariam sendo ameaçadas dessa forma, todos os dias, com suspeitas idiotas, perguntas sem sentido?
o Charles Theater vai fazer mais um de seus festivais de realizadores de 28 de junho a 4 de julho? Você sabia que, para cada cliente que entrou no Charles Theater, Ou talvez eu seja culpado? Talvez eu tenha pecado eno gerente pagou 50 cents de seu próprio bolso? quanto dormia? E quem pagou a gorjeta depois daquela vodka com o cineasta russo (não ousaria mencionar seu Você sabia que Orson Welles levou quatro anos para nome agora)? Ou talvez eu tenha revelado o segredo fazer Othello – que ele e seu elenco trabalhavam simulsobre o tamanho de nossa tela de Cinemascope? Estava taneamente para outros produtores a fim de juntar o vasculhando em minha memória. dinheiro necessário para fazer seu próprio filme? Você sabia que Welles roubou negativos virgens de outros O telefone tocou. Será que ele está sendo gravado? produtores, em todas as ocasiões que pode, filmou Estaria sendo gravado por semanas? Pensei ter escutado Othello com eles e foi processado pelo roubo? Você um clique estranho. Sentei-me à mesa. O telefone sabia que Othello será exibido no Cinema Bleckeer tocou novamente. Eu o observei. Street logo após o programa sobre Renoir? 21 de junho, 1962 Você sabia... Você sabia que Paris é a capital da França? Você sabia que Renoir fez Picnic on the Grass com o dinheiro que ganhou do relançamento americano de A grande ilusão? Você sabia que o Cinema Bleckeer Street vai exibir esses dois filmes de 22 a 25 de Junho? Você sabia que o nome do pequeno gato preto na recepção do Bleecker Street é Breathless? Você sabia que o New York Theater vai realizar um festival de cinema sobre D. W. Griffith? Você sabia que 196
Você sabia que Jules Dassin fez outro filme horroroso chamado Phaedra? Você sabia que o presidente Kennedy assistiu Casablanca quatro vezes? Você sabia que eu apanhei uma vez em um bar porque alguém não gostou de Guns of the Trees – e que eu fui tratado com socos por outros estranho por ter gostado de Bounjour Tristesse? Você sabia que The Connection era inofencivo o suficiente para ser exibido na Casa Branca, mas fez com que os agentes de censura de Nova Iorque ficassem encabulados? Você sabia que Jerome Hill está realizando uma nova comédida, Identical Twins? [finalmente intitulado Open
the door and see all the people]. Que Shirley Clarke está filmando seu segundo longa-metragem, The Cool World? Que eu nunca li Lolita, mas que leio todas as edições da revista Wagner Literary?
a respeito de pilotos, aviões, a poesia das nuvens? Você sabia que a melhor revista sobre cinema publicada na Inglaterra não é Sight and Sound, mas Movie, e que você pode assiná-la escrevendo para Antrim Manions nº 3, Londres, n.w.3? Você sabia que Stan Vanderbeek está Você sabia que o filme de Truffaut Atirem no pianista organizando um programa de comédias experimentais será lançado no Cinema da 5ª Avenida semana que (filmes de Bree, D'Avino, Drasin, etc.) na segunda-feira, vem? Ou que eu considero Atirem no pianista o filme 25 de Junho, no Cinema Maidman, 416 West 42nd Street, de gangster mais engraçado já feito? Você sabia que a sem parar, começando às 19h? Que uma retrospectiva edição de Junho da revista Commentary tem um artigo de Ian Hugo será apresentada no Charles Theater essas de Harris Dienstfrey sobre o New American Cinema? sexta e sábado? Que em 1938 o estado de Wyoming Que o artigo mais bobo já escrito sobre cinema exproduziu um terço de libra de sementes de feijão para perimental e underground está na edição de Julho de cada homem, mulher e criança da nação? Cavalier, escrito por Rudy Franchi? Você sabia que eu darei 10 pratas para Franchi se ele souber nomear pelo menos um filme experimental cujo tema principal é 22 de Novembro, 1962 Em defesa da 42nd street sexo (subject matter usually sex – Franchi)? Você sabe o que Luis Buñuel disse? Ele disse: “Eu Vocês, tolos, que menosprezam os westerns, que só gosto de todos os homens, mas não gosto da sociedade assistem filmes de “arte”, de preferência os europeus – que alguns homens criaram”. E você sabia que Franco vocês não sabem o que estão perdendo. Estão perdendo enviou um telegrama parabenizando o oficial japonês metade do que é feito no cinema, estão perdendo a mais que destruiu a frota americana em Pearl Harbor? Eu pura poesia da ação, poesia do movimento, poesia das li isso em um artigo de Salvador Madariaga na edição paisagens em technicolor. de Junho da revista Atlas.
Você sabia que o filme de Howard Hawks A patrulha da madrugada é o filme mais poético, mas belo que já vi
Fiquei sabendo que algumas pessoas zelosas desejam limpar a rua 42nd Street. O que seria de nós sem nossas espeluncas de cinema, nossas lanchonetes de 197
hamburguer, nossos locais secretos? Lugares limpos! Precisamos de mais sombras, é isso que eu digo. Lá, poderemos cultivar virtudes e belezas proibidas. Os homens precisam de esquinas desnecessárias, esquinas sujas. Assim como nós precisamos de Aldrich, dos westerns também. Eu prefiro a confusão das emoções à claridade e à limpeza decadente, fechada e sem esperança dos materialistas e racionalistas. Soprem, ventos anárquicos, confusos, precisamos desesperadamente de vocês!
ser traduzida em palavras, ideias ou conceitos. Ah, a beleza dos filmes bobos, estúpidos, sem sentido, absurdos, desprovidos de ideias, etc.! Como os reais valores foram deturpados! Piedade de nós e de nossa cultura. Mas as coisas estão começando a mudar. Cinema, essa arte anti-verbal, anti-ideias vem justamente a tempo de salvar nosso sentir irracional, não-conceitual e imediato.
22 de Agosto, 1963 Sobre a censura, o escritório do prefeito e o Mas onde eu estava? Estou perdendo a linha de racio- underground cínio aqui, estou novamente do lado de fora. Amigos e cidadãos: queremos que vocês saibam como nos sentimos. 28 de Fevereiro, 1963 Quando as exibições do Film-makers se mudaram Sobre o sentir imediato para o Cinema Gramercy Artes, pensamos que agora Fui frequentemente interpelado sobre o que haveria de poderíamos continuar em paz com nosso trabalho. O mais em um filme bobo como Touch of Evil. Dizem Cinema precisa do seu próprio espaço, um lugar onde que é um filme estúpido. Ou, sobre o que haveria nos podemos exibir nossos trabalhos finalizados e ainda não filmes sem sentido, estúpidos e absurdos de Ken Jacobs finalizados, testar nossas ideias, e estudar o trabalho ou Jack Smith? Nosso pensamento é ainda tão literário. de nossos colegas. Não temos um sentido imediato acerca da imagem por Estávamos errados. ela mesma, nenhuma experiência imediata da imagem, o que acontece nela. Estamos imunes ao conteúdo e Os agentes da censura e licenciadores estão em nosso à inteligência não-verbal que deriva da experiência encalço. Eles intereferiram em nosso trabalho. Eles imediata da imagem em movimento, e que não pode desconsideraram que grande parte dos filmes exibidos
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são trabalhos ainda em processo e que não podem ser submetidos à censura. Eles estão seguindo cegamente a cartilha burra da burocracia. Eles dizem que estamos corrompendo sua moral. Ficaríamos contentes se pudéssemos. Isso faria bem a algumas pessoas. Existem muitas almas doentias que se enfurecem com a beleza; a desconfiança é a moral que pode ser afetada e “corrompida” pela beleza. Não sejamos ridículos. Censores do Município e do Estado: deixem-nos em paz Existem conversas acontecendo em Washington e no escritório do Prefeito sobre uma ajuda para a cultura e as artes. Existe até um Departamente para Assuntos Culturais em Nova Iorque, uma divisão do escritório do Prefeito. Quando telefonamos para este escritório e pedimos para que tirassem os censores de nosso caminho, ouvimos, de forma seca, que o escritório estava muito ocupado com a cultura e que deveríamos escrever uma carta. Nós dizemos: para o inferno com as cartas. Já escrevemos muitas delas. Vocês sabem muito bem, sem o uso de qualquer carta, do que isso se trata. Tudo o que pedimos é: tirem os censores e licenciadores de nosso encalço. Não estamos no ramos de ganhar dinheiro: conduzimos um espaço de trabalho
experimental, e não ligamos para o que os burocratas dizem que estamos fazendo. Os cinemas comerciais estão vendendo vulgaridades com a sua benção. Nós estamos preocupados com a beleza. Nosso trabalho é não-comercial, descompromissado, que não pode ser comprado, como todas as coisas que concernem ao espírito. Mas isso não é motivo para vocês nos temerem. Viveríamos em tempos terríveis se todos os cineastas tivessem que esconder seus filmes da polícia, se alguns de nossos melhores artistas só pudessem exibir suas obras em undergrounds secretos. Isso seria terrível. Mas é onde nos encontramos hoje! Não nos diga que somos “underground”. Nós estamos, verdadeiramente, mais perto do sol, emitindo luz sobre a triste escuridão, alegria, amor e beleza sobre os sombrios undergrounds da miséria humana. Município, Estado: façam algo pelas artes além de falar e criar departamentos para a arte e a cultura. Façam uma única coisa: aí confiaremos em vocês. Não coloquem os artistas contra vocês por qualquer razão. Vocês precisarão deles. Vocês já precisam deles. Não falamos com raiva, embora pareça, estamos somente exigindo o que sabemos nos pertencer: nossa alegria para criar e experimentar sem que licenciado199
res burocratas nos incomodem, sob quaisquer pretextos. Não estamos sequer exigindo: estamos somente lembrando que, nem na condição de homens, nem de artistas, podemos crescer comprometidos. Mas é isso que vocês pedem de nós. Vocês estão nos mandando entrar na “toca do rato”, nos afastar do público. Vocês estão pedindo que seus artistas se vendam, desistam, e que vão para o inferno. 19 de setembro, 1963 A função da crítica cinematográfica Qual seria a soma do Outono? Qual seu conteúdo, sua forma, seu propósito? Seu estilo, com certeza, possui uma unidade. Mas para que serve? Eh, mas para que o Verão serve, com todo seu verde, suas flores e seu sol? Fontes de vermelho e marrom surgirão em breve. Foi para isso que o Verão serviu. E vocês me perguntam sobre os filmes. Eu não sei para que servem os filmes. Eu procuro por alguma luz por trás deles, atrás das imagens; estou tentando ver a pessoa. Foi Barbara Wise quem me disse outro dia – e ela estava certa: o crítico cinematográfico não deve explicar o que um filme significa, certamente uma tarefa impossível; ele deve ajudar a criar a postura certa a partir da qual 200
olhar para os filmes. É sobre isso que estou divagando aqui, nada mais. Onde eu estava? Sim, divagações. Eu lhes direi a verdade: tudo que aprendi em minha vida (e eu já assisti muitos filmes) serve para isso: as folhas caem todos os Outonos. Eu estarei lá com minha câmera quando elas caírem. 28 de março, 1963 Seis notas sobre como aprimorar o cinema comercial nota um:
1. Anunciar a produção de um filme, The Massacre. 2. Escolha a locação (uma grande garagem vazia no Bronx ou, melhor ainda, fora do centro da cidade, como em Poughkeepsie). 3. Convide todos os críticos de cinema para uma reunião de críticos a fim de que acompanhem as filmagens. 4. Coloque todos os críticos no set de filmagem. 5. Atire nos críticos com metralhadoras. 6. Anuncie o final das filmagens. nota dois: 1. Pegue uma cópia finalizada do filme Exodus. 2. Coloque na máquina reveladora de película. 3. Revele-a novamente. 4. Coloque para secar. 5. Projete para o público.
nota três: 1. Pegue uma cópia do filme Ano passado em Marienbad 2. Instale uma máquina de cortar películas em seu projetor (podem existir duas variações disso: a) quando a lâmina é posicionada acima da abertura do projetor e corta o filme antes mesmo de ser projetado; b) quando a lâmina é colocada abaixo da abertura do projetor e corta o filme após ser projetado. Uma série de outras variações é possível). 3. Projete o filme para o público. 4. Colete os pedaços de filme cortados pela lâmina 5. Distribua-os para as pessoas (eles também podem ser jogados em cima do público por meio de uma máquina especial de produzir vento). nota quatro: 1. Filme um longa metragem “independente” com um orçamento aproximado de $1.200.000. 2. Convide os produtores e convidados para uma exibição especial. 3. Projete o negativo original através do projetor de corte instantâneo (ver Nota Três). 4. Distribua os pedaços de filme para o público (esse metodo resolve todos os “problemas de distribuição"). 5. Agradeça ao público. nota cinco:
uma corrente de ar). 7. Projete-a (para a música usar Brandenburg Concertos 3 e 4). 1. Anuncie uma produção de 15 milhões de dólares de Destruição de Hollywood (ou Chamas de Hollywood). 2. Alugue o maior estúdio de Hollywood. 3. Alugue todo o equipamento disponível em Hollywood e coloque-o no estúdio. 4. Anuncie a finalização de Destruição de Hollywood. nota seis:
Sugestões (por Doc Humes): projete o filme de Preminger Exodus de trás pra frente. Faça o mesmo com qualquer novo filme de Ingmar Bergman. 6 de Fevereiro, 1964 Sobre o olho em expansão Estaria o nosso olho morrendo? Ou só não sabemos mais como olhar e ver? As experiências com lsd nos mostram que o olho pode se expandir, ver mais do que o usual. Mas então, como diria Bill Burroughs (cito de memória): “O que pode ser feito quimicamente também pode ser feito de outras maneiras”.
1. Pegue uma cópia do filme E o vento levou. 2. Elimine todos os segundos pés de cada rolo. 3. Existem muitas formas de se libertar o olho. Isso se Corte os rolos restantes. 4. Passe por um tanque de concretiza mais por meio da remoção de vários blotinta preta. 5. Coloque para secar. 6. Abra as janelas queios psicológicos do que por uma mudança real do (de preferência dos dois lados do auditório, para criar olho. Nós de fato nunca olhamos diretamente para a 201
tela; estamos separados por um oceano opaco de inibições e “conhecimento”. Experimentos que Brion Gysin realiza em Paris com sua máquina flicker (ver a revista Olympia) mostra que, sem o auxílio de drogas, com um isqueiro do tipo flicker (até mesmo de olhos fechados) é possível ver cores e visões que não se podiam ver antes, e a memória disso (como no lsd) permenece mesmo depois do “experimento”. Uma série de bloqueios foi removida. Como o Professor Oster, que está conduzindo experimentos similares no Brooklyn, diz (novamente cito de memória): “o olho está inibido. Em algumas culturas está mais, em outras, menos. Não usamos de forma propriada os padrões ondulados da retina porque achamos que não é algo prático. Nossa cultura da prática reduziu nossa visão”. Salvador Dali acredita que “os artistas gregos e árabes passaram por um treinamento do olho, de liberar as inibições do olho. Somente após a queima da bilbioteca de Alexandria é que a educação do olho foi sendo gradualmente negligenciada”. Dizemos que a técnica do single frame no filme de Markopoulos Twice a Man incomoda os olhos. Pessoas já me disseram, após ter visto o filme de Robert Breer Blazes, ou os filmes de Stan Brackage, que eles tiveram dores de cabeça. O que é muito possível. Outras pessoas dentre nós, que vêm assistindo esses filmes com maior frequência, sentem que os movimentos são por demais 202
lentos – nós aguentaríamos muito mais. Nosso olho se expandiu, as reações de nosso olho se aceleraram. Aprendemos a ver de forma um pouco melhor. Mas nosso olhos ainda são tão limitados! Algumas pessoas ainda conseguem enxergar fadas e duendes. Eu vi um artigo em uma edição recente do New York Times sobre uma mulher em Londres que consegue ler as cores com seus dedos. Brion Gysin escreve: “O que é arte? O que é cor? O que é a visão? Essas questões antigas demandam novas respostas quando, à luz da Máquina de Sonhos (máquina flicker), uma pessoa pode enxergar todas as artes modernas e abstratas de olhos fechados”. Escreve Stan Brackage (em Metaphors of Vision): "Imagine um olho não governado pelas leis humanas de perspectiva, um olho não influenciado pela lógica de composição, um olho que não responde ao nome de todas as coisas mas que conhece os objetos que encontra ao longo da vida através de uma aventura de percepção. Quantas cores existem em um campo gramado para o bebê que engatinha e desconhece Verde? Quantos arco-íris a luz poderia criar para o olho ainda não ensinado?" Escreve Ian Sommerville (em Olympia):
“Eu construí uma simples máquina flicker. Um cilindro de papelão divido em partes que é capaz de ligar um gramofone a 78 rpm com um bulbo de luz em seu interior. Você olha para isso com os olhos fechados e o flicker toca sobre sua pálpebra. As visões começam com um caleidoscópio de cores no plano em frente aos olhos, e aos poucos se torna mais complexo e belo, quebrando como uma onda na costa, até que padrões inteiros de cores estão brigando para entrar. Após algum tempo as visões estavam atrás de meus olhos de forma permanente, e eu estava no meio dessa cena com infinitos padrões sendo gerados ao meu redor. Existia um sentimento quase insuportável de movimento espacial em um certo momento, mas valia a pena passar por isso, pois eu descobri que quando isso parou eu estava muito acima da terra em um estado de glória. Depois disso percebi que minha percepção do mundo à minha volta havia aumentado notadamente. Todas as concepções de se sentir arrastado ou cansado se esvaíram...” Todos esses pensamentos desconexos dizem respeito à nova linguagem cinematográfica que está se desenvolvendo, uma nova forma de ver o mundo. Louis Marcorelles, um dos editores da Cahiers du Cinéma, me escreveu semana passada, falando sobre o New American Cinema: “de repente, não consigo mais olhar
para o cinema comum, até mesmo quando é assinado por Godard”. Sim. Mas até mesmo os críticos, em sua maioria, estão cegos. Temos um alto número de homens e mulheres talentosos criando um novo cinema, abrindo novas visões. Precisamos de um público que esteja disposto a educar, expandir seus olhos. Um novo cinema precisa de novos olhos para ver. É sobre isso que se trata. 19 de março, 1964 Relatório da prisão Algumas notas sobre minha segunda prisão: os detetives que apreenderam o filme de Genet Un Chant d’Amour, não sabiam quem era Genet. Quando eu lhes disse que Genet era um artista reconhecido internacionalmente, disseram-me que era uma fantasia. Fui chamado de “rosa” pelos detetives, e fui apresentado aos outros policiais como “rosa” porque os dois livros que eu carregava, Reviews of Modern Physics e Poetical Works of Blake tinham capas vermelhas. Na corte criminal, antes de ser expremido em uma sala de 3 por 6 metros na qual sessenta pessoas permaneciam de pé por três ou quatro horas, disseram-me para deixar os livros do lado de fora. Eu deixei o Reviews of 203
Modern Physics, mas mantive o Blake. O guarda disse Ao ser liberado, sob pagamento de fiança, perguntei para eu deixar o livro de fora. “O livro pode ser usado por meus pertences, que incluíam minhas chaves, discomo uma arma”, afirmou. Eu lhe disse que era Blake, seram-me para voltar outro dia. Ainda estou dormindo e que ele teria que tirá-lo de mim à força. O guarda na casa dos outros. tomou o livro de minhas mãos à força. Recebi gritos, fui constantemente ridicularizado; eles Durante minha jornada kafkiana ao centro das Tumbas, disseram que fariam de mim uma estátua na Washington os traços de civilização e humanidade se esvaíam. Square; que fariam de mim um “purê de batata”; que eu Enquanto caminhava pela cela, fui empurrado pelas estava “sujando a América”; que lutava contra moinhos costas por um policial. Eu lhe disse para não me em- de vento. Um dos detetives que efetuou minha prisão purrar, já que não estava resistindo. Por esse comentário, disse, ainda no cinema, que ele não sabia porque eso policial me chutou com toda a força pelas costas. tavam me levando para a delegacia: eu devia ter sido Quando eu falei novamente para ele não usar a força, alvejado lá mesmo, em frente à tela de cinema. fui empurrado de novo. O juiz, acredite, o próprio juiz estava fazendo comenEm algum ponto do processo meu nome se tornou tários idiotas sobre “arte”, com um tom e sorriso de “Mexas”. Quando eu tentei uma correção, já que era desdém que deixavam implícito que “arte” era algo desdifícil responder a um outro nome, disseram-me para necessário, estúpido e baixo. Seria uma outra questão ficar quieto, porque meu nome deveria mesmo ser pro- se estívessemos sendo acusados de assassinato! nunciado “Idiota”. Essa é somente uma amostra da justiça em curso, e me Quando coloquei meus pertences na mesa e permaneci faz ficar enojado. O momento para uma mudança total lá, sem roupa, o policial pegou minha caneta e a jogou chegou. Mas ninguém acredita de fato que ela pode, na lixeira. “Porque você fez isso?”, eu perguntei. Fui ou que será, realizada. A corrupção é quase total, do até a lixeira, peguei a caneta, e a coloquei novamente começo ao fim. Ainda assim, “ainda não é tarde demais em cima da mesa. Por ter feito isso, fui ameaçado de para se procurar um mundo novo”. apanhar, a gritos.
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13 de Agosto, 1964 Sobre o cinema verdade, Ricky Leacock e Warhol Com a série sobre o Cinema Direto, a Galeria de Arte Moderna – o museu Huntington Hartford – inaugurou suas exibições de filmes. Cinema Direto, um termo introduzido por Louis Marcorelles, está começando a substituir o mais antigo termo cinéma verité. Ele descreve o cinema que é capturado diretamente da vida, em oposição ao ato de filmar eventos encenados. O novo termo é menos confuso que o anterior ao menos em um aspecto: a realidade, encenada ou não, é verdadeira em si mesma. Como Chris Marker diz, “Vérité n'est pas le but mais, peut-être, la route” (a verdade não é o alvo – é, provavelmente, o caminho). O Cinema Direto começou no Canadá, França e nos eua simultaneamente. Na França, Jean Rouch e Chris Marker (e, posteriormente, Reichenbach, Morin, Rosier); no Canadá, Brault, Juneau, Koenig; nos eua, Leacock, Pennebaker, Mayles. Em cada país, o Cinema Direto caracterizou-se de maneiras diferentes nacionalmente. Chris Marker, por exemplo, é a mente pura, na melhor tradição cartesiana (como Resnais e Bresson). Ele está sempre procurando pela verdade por trás da superfície; organizando e dobrando seus materiais visuais a fim de ilustrar sua própria filosofia, suas próprias
ideias sobre o que “realmente é” (sua ideia sobre a Siberia, sobre Cuba, sobre a China, etc.). Canadenses não são filósofos; na maior parte do Cinema Direto canadense os diretores seguem uma postura moral. Existe sempre um saco de aveia na frente do cavalo. Leacock, Pennebaker, e Mayles, em seus pronunciamentos públicos, e no auge de suas habilidades, tentam excluir suas próprias ideias e morais. Eles insistem que as ideias devem surgir de seus materiais. A maior parte de seus filmes foi muito prejudicada, nesse sentido, por comentários adicionados posteriormente e por editores moralistas. Quaisquer que sejam as falhas, a beleza e a originalidade dos trabalhos de Leacock e Mayles está no fato deles não serem sobre ideias, mas sobre pessoas. A paixão de Leacock, Mayles, Brault e Pennebaker pelo Cinema Direto vem produzindo muitos outros desenvolvimentos. As novas técnicas de câmera e novos materiais temáticos influenciaram vários longas de baixo orçamento. O filme Georg, de Stanton Kaye, é o último a ter se inspirado nas técnicas do Cinema Direto em relação a um evento encenado. Entretanto, é o trabalho de Andy Warhol que detém a palavra final no Cinema Direto. É difícil imaginar algo mais puro, menos encenado e menos dirigido que o filme Eat, Empire, Sleep, Haircut de Andy Warhol. 205
Acho que Andy Warhol é o artista mais revolucionário em atividade atualmente. Ele está abrindo um campo totalmente novo e inesgotável de realidade cinematográfica para os realizadores. Não se trata de uma previsão, mas de uma certeza que em breve veremos dúzias de filmes como Eat, Empire, Sleep, Haircut e Street feitos por diferentes realizadores, e existirão os bons, ruins e medíocres. Bons filmes Eat, muito bons filmes Eat, e alguém fará uma obra prima como Eat. O que para muitos ainda parece uma ação sem sentido, com a mudança em curso de nossa consciência, vai se tornar uma variação infinita e uma empolgação de ver objetos similares, ou o mesmo objeto, feitos de formas diferentes por vários artistas. Ao invés de pedir empolgação do tamanho de um elefante, nós seremos capazes de encontrar prazer estético em um sutil jogo de nuances. Existe algo de religioso em tudo isso. Faz parte daquela “mentalidade beat” que Cardinall Spellman atacou essa semana. Existe algo muito humilde e feliz a respeito de um homem (ou um filme) que se contenta em comer uma maçã. É um tipo de cinema que revela o surgimento da meditação e da felicidade no homem. Coma sua maçã, aprecie sua maçã, ele nos diz. Para onde você está correndo? Para longe de si mesmo? Para qual empolgação? Se todas as pessoas pudessem sentar 206
e olhar para o Empire State Building durante oito e horas e meditar ao longo do processo, não haveriam mais guerras, ódio, terror – haveria novamente felicidade sobre a terra. 8 de Outubro, 1964 Longe demais Uma das convenções mais recente dos críticos é a de acusar o realizador de ter ido “longe demais”. Todos acharam que os dois últimos filmes de Godard foram “longe demais”. Começa a parecer que esses críticos estão tão fora de contato com o que está realmente acontecendo (tanto na vida quanto no cinema) que tudo que tem alguma vida parece, para eles, ter ido “longe demais”. 29 de Abril, 1965 Sobre uma revolução fílmica Eis aqui mais uma coluna de divagações. Minha cabeça está divagando porque eu assisti um belo filme e tenho muito sobre o que pensar. Meus leitores, particularmente os que pensam que sempre perdi a cabeça, espero que não se incomodem com minhas divagações. Muito já foi dito sobre a verdade no cinema. Temos até o chamado cinéma vérité, o “cinema de verdade”. Eu
mesmo já escrevi muitas coisas sem sentido a respeito da verdade no cinema. Há algum tempo, quatro ou cinco anos atrás, quando havia muito de um mesmo tipo de cinema: um cinema hollywoodiano pálido, cansado. A vanguarda, os independentes, estavam dormindo. Existia a necessidade de agitar as coisas, exagerá-las, de se falar sobre o cinema verdade, sobre o “cinema espontâneo”, o cinema sem roteiro, o cinema que capta uma “parte da vida”, o cinema de Nova Iorque. Shadows e Pull My Daisy surgiram como uma renovação, fizeram com que pudéssemos respirar melhor; veio Leacock; logo a avalanche do underground começou a se mover. Mas agora, eu sinto que o cinema se libertou do “regime” hollywoodiano. O realizador está livre das técnicas profissionais, das temáticas hollywoodianas, de esquemas roteirizados, da iluminação hollywoodiana. Tenho a sensação de que agora, o realizador independente, underground, experimental se libertou não só do cinema hollywoodiano, mas também das técnicas do cinema underground. O que eu quero dizer é que ao longo dos últimos quatro anos, frequentemente através do uso da anarquia, através de sua loucura, ou através da rejeição consciente de Hollywood, o realizador adquiriu um novo tipo de liberdade. Agora ele pode usar qualquer técnica que desejar. Seu vocabulário se ampliou de um dicionário Liliput para, digamos, um Webster.
Se ele desejar, ele pode girar sua câmera ao redor de sua cabeça; ou ele pode colocar sua câmera em um tripé; ele pode superexpor, ou criar uma iluminação balanceada; ele pode usar 8mm ou 16mm ou 35mm ou qualquer outro tamanho de película que desejar. Não se surpreenda se, no ano que se inicia, você vir realizadores underground usando todos os tipos possíveis de câmeras e telas. Hollywood permanece congelada e, portanto, está morrendo, não poderia ser reanimada nem mesmo com sangue. O underground, no entanto, está surgindo, livre, e muito forte. 21 de Abril, 1966 Sobre o jornalismo fílmico e os newsreels Eu venho pensando algo nas últimas semanas, e agora devo dizer o que vem me incomodando. É o seguinte: existem tantas coisas acontecendo à nossa volta, dos guetos de la à periferia esfumaçada de Chicago e por todo o país e no Vietnã, e em nossa pequena cidade –coisas grandes, e coisas pequenas, coisas feias, e coisas como ter os olhos consumidos por poluição, caindo e rolando até os esgotos; e como os soldados estão morrendo sorridentes e felizes e glorificados como borboletas. Coisas desse tipo. Não vemos nada em nossos filmes! E não estou falando de nossos poetas: nossos poetas fílmicos fizeram os poemas mais belos 207
do mundo. Estou falando sobre newsreels, sobre documentários e sobre comentários da vida real. Com todas as novas técnicas e os novos equipamentos disponíveis, com câmeras quase sem peso e invisíveis, 8mm e 16mm, e com o som, podemos ir hoje a qualquer lugar que desejarmos e captar tudo em filme. Porque negligenciamos o jornalismo fílmico? Filmes em 8mm deveriam estar sendo enviados em segredo do Vietnã; filmes em 8mm deveriam ser enviados do sul; filmes em 8mm feitos por crianças de dez anos do Harlem armadas não com armas, mas com câmeras 8mm; vamos exibí-los em nossas telas de cinema, nossas telas de casa; filmes em 8mm contrabandeados de prisões, de sanatórios, de todos os lugares, todos os lugares. Não deveria existir um lugar no mundo que não fosse coberto por uma câmera 8mm, nenhum lugar isento do zumbido de nossas câmeras 8mm! Vamos mostrar tudo, tudo. Podemos fazer isso hoje. Temos que passar por isso para que possamos, então, partir para outras coisas. Precisamos ver todas as coisas, olhar para tudo através de nossas lentes, ver tudo como se fosse a primeira vez: um homem que dorme, nossos próprios umbigos, até nossas atividades diárias mais complexas, tragédias, amores e crimes. Em algum lugar, perdemos o contato com nossa própria realidade e o olho da câmera nos auxiliará a fazer esse contato novamente. 208
Porque devemos deixar toda a cobertura jornalística para a imprensa e a tv? São pessoas legais, mas estão interessadas em sobreviver, em dinheiro, em muitas coisas bonitas, mas não em ver as coisas. Sabemos que nunca é possível ver as coisas como de fato são, mas ao menos podemos nos aproximar delas para que possamos sentir o calor de sua existência, ou a frieza de sua morte. Vamos inundar a Cinemateca com newsreels, newsreels caseiros, não os newsreels da Pathe Bros., nem as matérias de Walter Cronkite! Se alguém me perguntar qual foi a coisa mais importante que aconteceu no cinema semana passada, eu diria que foi Shirley Clarke (que fez The Cool Water e Connection) ter comprado uma câmera 8mm! Ela não se envergonha de sua minúscula câmera 8mm, ela a carrega para todos os lugares, e ela continua filmando, filmando. Tenho certeza de que isso marca uma nova fronteira no cinema de Papa: aquele grande navio certamente irá afundar. E não me entenda mal: nós gostamos de estúdios e de 70mm e filmaremos um milhão e dez milhões de filmes. Mas temos que fazer o trabalho do 8mm também. A Film-makers Cooperative concebeu a série de newsreels End of Century que será enviada para
colegas, universidades, cinemas, e quem mais a quiser. com os filmes”. Ele entrou em seu escritório, voltou em Realizadores de filmes caseiros de todo o mundo devem dois minutos e me passou todos os detalhes de minha filmar e enviar à cooperativa o que estiver acontecendo vida. Eles parecem ter um bom sistema de arquivos ao redor de sua cidade, esta cidade, no país; o que for aqui. De qualquer forma, como boas-vindas ao país a excitante, terrível, belo, para outras pessoas assistirem alfândega apreendeu todos os meus diários em filme de e tomarem conhecimento. Precisamos começar a fazer Nova Iorque, e meus diários europeus que eu carregava isso neste exato momento. Vamos filmar o século que como materiais de trabalho. Isso significa o mesmo se esvai e o nascimento de um novo homem. Este é que apreender os cadernos de viagem de um escritor o tempo de mudar a forma do jornalismo feito neste - meus filmes são como tais cadernos de viagem.“Eles planeta. As escolas de jornalismo em breve substituirão são obscenos, esses filmes?” me perguntaram. “Sim”, suas aulas de escrita por aulas de realização em 8mm. eu disse, “esses filmes mostram as ruas de Nova Iorque Vamos correr o mundo com nossas câmeras, de mão em e elas são bem obscenas”. O funcionário da alfândega mão, de modo amável; nossa câmera é nosso terceiro lembrou-me de não fazer piadas com assuntos sérios. olho que nos guiará para fora, para dentro, através. O Mas as leis dos eua são muito engraçadas, engraçadas zumbido de nossas câmeras deve ser mais alto que o como a morte. E para mudá-las, a pessoa tem de lutar. zumbido do acontecimento. Nada deve existir sem Mas lutar produz um efeito negativo em mim. Então, que seja mostrado, sem que seja visto, sujo ou limpo: não irei revidar dessa vez. Devolva-me meus diários deixem-nos ver e sigam adiante, para fora dos pântanos e chamaremos de empate. e em direção ao sol. 26 de Outubro, 1967 29 de Junho, 1967 Um elogio à arte A polícia de Nova Iorque apreende meus diários Durante vários dias o que me manteve vivo nessa cidade foi um pedaço de grama verde que vejo a caminho 22 de Junho: acabei de voltar a Nova Iorque. No aero- do correio, na 8th Avenue com 24th Street. Costumo porto, o funcionário da alfândega olhou para meu pas- parar ali durante um tempo, tentando absorver verde saporte e disse: “hm, você tem problemas nos tribunais, 209
o suficiente com meus olhos, suficiente energia verde de grama viva para me manter vivo ao longo do dia. Uma obra de arte tem o mesmo efeito. Uma pintura. Certos filmes. Certas músicas. Isso desperta em você todo tipo de energia que estava adormecida, ou quase adormecida. Parte de nossas melhores energias, cantos sutis de nossos corpos vivos, são remexidos, revividos por cores, sons, nuances plantadas pelo artista em sua obra. Ah, que falta de sentido é falar da arte como sendo “inútil”. A arte não é inútil. A arte é a coisa mais necessária para nosso ser, próxima à comida e à água, próxima ao ar. Arte é a coisa mais informativa. Arte é conhecimento imediato. Você pode percorrer uma pilha de livros, ou você pode passar pela vida esbarrando em todo tipo de pessoa que suga sua sensibilidade, que o torna cada vez mais burro, emocionalmente, intelectualmente – então você fica diante de um Vermeer, um Jan van Eyck, um Joseph Cornell, e de repente você está acordado, algo começa a se movimentar dentro de você e você quase estremece de horror ao pensar que partes de seu ser estavam morrendo devagar, sem alarde, dia após dia, dia após dia...
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Eu faço aqui um elogio à arte, apenas algumas palavras, porque escuto com frequência, “Oh, tudo é arte”, “Oh, todos são artistas”. Existe um grande mal entendido aqui. O fato dessa possibilidade democrática para qualquer pessoa ter a chance de se auto expressar através da arte ainda não significa que cada um de nós pode fazer de sua “arte” algo além de uma ação terapêutica, algo que signifique para outras pessoas. E não me refiro aos casos extremos, como a maioria dos assim chamados “críticos”, que sentam-se em frente, por exemplo, do filme Gertrud de Dreyer ou de Louis XIV de Rossellini, teimosamente protegendo suas mentes e seus corações com sete camadas, dizendo “ok, agora, Sr. Dreyer, ok, agora, Sr. Rossellini, tentem nos alcançar! Vamos ver se vocês conseguem nos atingir! Desafiem-nos! Surpreendam-nos!”. Essa não é a forma de se conseguir qualquer coisa com a arte. 12 de Dezembro, 1968 Sobre voz e imagem 5 de Dezembro: por dois minutos assisti a um documentário sobre Michelangelo na tv. Tive que desligá-la por causa da estúpida voz que comentava. Não que o comentário fosse completamente estúpido - não, frequentemente algumas verdades eram pronunciadas, pronunciamentos sérios. Mas aquela voz! Aquela voz
vazia, estúpida e banal! Acho que a principal razão de nossos documentários serem pouco sucedidos é em razão das vozes, os narradores são estúpidos. Tive que chegar à conclusão final de que, a menos que a pessoa que escreva ou leia as linhas do comentário seja alguém tão sensível e inteligente quanto as verdades que ele anuncia, o comentário soará superficial, estúpido, pomposo, banal, e destruirá as imagens. É isso que adoro sobre os livros – Deus abençoe os livros! – ali estão eles, todos os grandes poetas, e todos os poetas ruins, e toda a sabedoria, preto no branco, pura e direta naquela página branca que se lê – sem qualquer voz vazia saindo das páginas – oh, que seja abençoado o silêncio, no qual os anjos dormem...
jovens, todos por mortes sem sentido, todos fazem parte da História agora, enquanto nós prosseguimos.
Eu comecei escrevendo esse texto, e ele não fazia muito sentido. Eu queria pular outra coluna. Mas depois eu pensei: milhares de colunas em milhares de jornais estão sendo usadas para promover a estupidez, a vulgariade do cinema ruim. Enquanto eu tiver uma chance, neste pequeno canto aqui, de apresentar às pessoas algumas criações da humanidade que caminham em direção à luz, devo utilizá-la. Então aqui estou novamente, digitando, com uma feição dramática, pensando: como é quase maldoso, quase maldoso que nossos críticos de cinema, sob a atual política, critiquem somente o cinema comercial. Eles se intitulam críticos de cinema, mas não passam de serventes do dinheiro. 20 de Março, 1969 Que maldoso das editoras de nossos jornais diários e Porque escrevo esta coluna nossas revistas semanais levarem ao conhecimento das O estabelecimento da cinemateca da Film-makers na pessoas, dar visibilidade (porque é isso que criticar sigGaleria de Arte Moderna– nosso novo local de exílio nifica) somente para aqueles filmes com longos tempos – forçou-me a pular algumas colunas. Agora não sei de exibição, sem importar o quanto o filme é ruim ou onde começar. A morte inesperada de David Brooks estúpido, e que ignoram, que isolam das pessoas todas nos trouxe de volta ao chão, por um momento, alguns as belas obras que só podem conseguem uma noite ou de nós. Paramos de correr, pensamos em nossos pró- tarde na Cinemateca, no Museu de Arte Moderna, prios destinos, nosso próprio trabalho. Primeiro Maya ou em outro lugar. Um número ainda maior de belos Deren, depois Ron Rice, e agora David Brooks; todos filmes de baixo orçamento são lançados em Nova Iorque toda semana, mais até do que os de alto orçamento, e 211
ninguém fica sabendo a respeieto deles. Seria muito eles existem. As pessoas têm o direito de saber que pedir que nossa imprensa informe as pessoas acerca de existe uma possibilidade de escolha a ser feita. O atual todos os filmes que são lançados em Nova Iorque? Não sistema de críticas é maldoso. Tudo aquilo que priva existem segredos sobre seus lançamentos, a imprensa o homem de escolhas é maldoso, de saber que existe tem conhecimento deles. Teria a imprensa, ou teriam uma variedade mais ampla de experiência cinematoos críticos de cinema, escrito sobre a série de filmes gráfica. Nossos críticos são responsáveis por encolher dinamarqueses no Museu de Arte Moderna? Ou a série os sentidos humanos. de filmes canadenses? Eles escreveram sobre todos os Acho que é uma perda cultural, estética e humana, e filmes estúpidos lançados comercialmente na última também um crime feito por nossa imprensa, que ninsemana, mas conseguiram permanecer em silêncio a guém fique sabendo que ao longo das últimas três semarespeito de todos os filmes interessantes. E eles ousam nas foi exibido o filme Tom, de Ken Jacobs, Horseman se chamar “críticos de cinema”, Associação Nacional e Loving de Brackage, Quixote de Bruce Baillie, The de Críticos de Cinema, ou nomes semelhantes. Acuso Great Blondino de Nelson. Nossa imprensa não possui todos os críticos, e acuso também a Times, a Newsweek, nem desculpas nem o direito de ignorar, de esconder a Variety e o New York Times, o Post, e todos nossos do conhecimento das pessoas essas obras sublimes e jornais e nossas revistas (inclusive grande parte da magníficas, quando eles dão todo o espaço para vulimprensa underground) de cometer um crime cultural garidades fílmicas lançadas nas últimas três semanas. imperdoável ao escrever somente a respeito de filmes Três, quatro obras cinematográficas de grande beleza comerciais, somente filmes com longas temporadas de passaram despercebidas – e eles se intitulam a imprensa, exibição, por ignorarem filmes com exibição única. E os noticiários! Ou as editoras contratam novos críticos não faço isso porque tenho interesse em saber o que os (homens aptos para essa tarefa) para cobrir todos os escritores teriam a dizer sobre Brackage, ou Baillie, ou lançamentos nos cinemas de Nova Iorque – de longa o underground de Chicago: estou lutando por espaço, e curta temporada – ou elas deve fechar e ir para casa. por direitos iguais para a criação estética do homem. Ou, talvez, chegou a hora de nossa própria revoluDeveria-se escrever sobre esses filmes, eles deveriam ção cultural. Os pickets, os grevistas, os estudantes, chegar à atenção das pessoas, elas devem saber que as pessoas em geral deveriam ocupar o edifício da 212
Time-Life, o edifício do New York Times, e exigir uma completa reformulação de sua cobertura cultural, de suas diretrizes e sua equipe. Porque o que disse sobre o cinema pode se aplicar à todas as formas de arte, à música, à dança, ao teatro. Meu sangue ferve de raiva sobre os artigos abomináveis que Barnes escreveu na Times recentemente sobre a série Dance 69. O que esse homem sabe a respeito de dança moderna? Como esses jornais permitem que pessoas com limo saindo de seus traseiros escrevam sobre arte moderna?
vanguarda americano foi exibido no festival desse ano. Surgiram posters denunciando o filme de vanguarda americano. Marcel Martin, um crítico francês, resumiu tudo em Cinema 69, uma revista mensal parisiense: “a vanguarda cinematográfica americana é totalmente apolítica”. Ele estava muito indignado.
É isso: o velho establishment, os capitalistas, e a nova esquerda, todos passam ao largo do verdadeiro significado da arte, e todos a odeiam. O capitalista odeia os filmes de vanguarda porque, se for exposto a eles, seu Estou enraivecido porque vejo artistas como Maya coração se transformaria, a besta seria morta. Aqueles Deren, Ron Rice, e agora Davd Brooks, criando, tra- da nova esquerda que os odeiam são capitalistas latentes. balhando e consumindo suas vidas, morrendo jovens Por Deus, apolíticos! Os três filmes de Ken Jacobs a fim de criar maior beleza nesse mundo, para tornar discutidos acima pertencem a uma das declarações mais a vida das pessoas mais suportável – enquanto todos os fortemente políticas feitas por alguém em atividade nossos meios de comunicação e mídia conspiram para no cinema hoje. Como é estranho, e como é corrupto escondê-la, tirá-la da vista e da alma da humanidade pensar em política somente em termos dos filmes (ou – realmente, realmente, nossa imprensa é maldosa e das ações) de destruição. O realizador de vanguarda, estúpida. o realizador caseiro está aqui com algo maior do que isso: ele apresenta a você, ele o cerca com percepções, 17 De julho, 1969 sensibilidades, e formas que o transformarão em um ser Sobre arte e política, ou “a teoria do autor, 1969” humano melhor. Nossos filmes caseiros são manifestos Existe um festival de curtas-metragem que acontece da política da verdade e da beleza, beleza e verdade. todas as primaveras em Oberhausen, na Alemanha. Nossos filmes ajudarão a sustentar o homem, espirituUm programa extenso e representativo do cinema de almente, como faz o pão, como faz a chuva, como os 213
rios, como as montanhas, como o sol. Venha, venha, pessoal, olhar para nós; não temos a intenção de fazer o mal. Assim falaram os filmes caseiros. Essa é a “teoria do autor”, 1969. 22 de Outubro, 1970 Cinema como paixão Gostaría de resumir o que penso a respeito do underground europeu. Uma coisa está clara: o cinema underground americano não está mais sozinho. De agora em diante, existirá um diálogo entre os filmes undergrounds americanos e europeus. Espero que isso nos traga alguma empolgação. A cena underground europeia está no mesmo nível de excitação e produtividade de, digamos, Nova Iorque ou São Francisco em 1964-1965. Como sabemos, a atual cena underground de Nova Iorque está em uma maré baixa. A profusão de Londres, o alvoroço, a empolgação, trouxeram memórias dos primeiros tempos em Nova Iorque. Entretanto, existe uma diferença entre a primeira cena underground de Nova Iorque e o que acontece agora na Europa. O principal motivador em Nova Iorque e em São Francisco, a maior empolgação, derivou de um fato central: nós havíamos redescoberto o meio fílmico e a câmera. Isso gerou tanta
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energia e paixão que produziu todo um novo cinema que parecia um novo começo para o cinema, um novo passo em termos de forma e linguagem cinematográficas. O único outro caso de similar magnitude que eu poderia citar foi a revolução russa, que produziu o cinema de Dziga Vertov e Eisenstein. Na Rússia, a excitação foi gerada pelo meio (e as ferramentas do meio). Aparentemente, os movimentos, as etapas, os marcos reais, são construídos e somente acontecem quando uma total paixão por algo se torna real e solapa toda uma geração, incondicionalmente, por inteiro. Ainda não consigo enxergar tamanha paixão na Europa. Vejo certa empolgação, mas não um total envolvimento da paixão que eliminaria qualquer outro pensamento, cálculo, qualquer outro cinema, como aconteceu no underground do cinema americano entre 1960 e 1968. O que vejo na Europa é uma aplicação bem realizada de certas conquistas, princípios, diretrizes do underground americano e, é claro, alguns artistas e algumas obras originais, casos singulares. Parte dessas obras ocupará um lugar no vasto repertório do novo cinema. Mas a paixão é individual, não uma paixão massificada, como foi nos eua. Isso é parcialmente causado pelas diferentes realidades políticas. Existia uma notável preocupação política (quero dizer, política a curto prazo, não a longo
prazo) da maioria dos cineastas que conheci em Londes, tantos os de primeiro grau quanto os de terceiro. Mas o interesse político ainda não se tornou uma paixão forte o suficiente para produzir um cinema de paixão. Tradução: Carla Italiano e Sanzio Magno
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O filme diário* Jonas Mekas
Reminiscences [of a Journey to Lithuania] tem a forma de um caderno de notas, ou de um diário, uma forma que grande parte do meu trabalho mais recente parece assumir. Não cheguei a ela por cálculo, mas por desespero. Durante os últimos 15 anos fiquei tão envolvido com o cinema independente que não tive tempo para mim mesmo, para minha própria produção cinematográfica – entre a Film Makers' Cooperative, a Film Makers' Cinematheque, a revista Film Culture e agora o Anthology Film Archives. Quero dizer, não tive longos períodos para preparar um roteiro, depois passar meses filmando, depois editar etc. Tive apenas pedaços de tempo que me permitiram filmar apenas pedaços de película. Todo o meu trabalho pessoal tomou a forma de notas. Pensava que devia fazer tudo o que pudesse naquele momento, do contrário poderia não achar mais tempo livre por semanas. Se posso filmar um minuto – filmo um minuto. Se posso filmar dez segundos – filmo dez segundos. Aproveito o que
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posso, por desespero. Mas por muito tempo não vi o material que coletava dessa maneira. Pensava que o que estava fazendo era praticar. Eu estava me preparando, ou tentando manter o contato com a minha câmera, de modo que, quando chegasse o dia em que tivesse tempo, faria então um filme “de verdade”. Na segunda semana após ter chegado aqui em 1949, peguei dinheiro emprestado de pessoas que conhecia e que tinham chegado antes e comprei a minha primeira Bolex. Comecei a praticar, filmar, e pensei que estivesse aprendendo. Por volta de 1961 ou 1962, vi pela primeira vez o material que tinha coletado durante todo aquele tempo. Ao ver aquele material antigo, notei que havia várias conexões nele. As sequências que considerava totalmente desconectadas de súbito começaram a parecer um caderno de notas com muitos fios unificadores, mesmo naquela forma desorganizada. Percebi que havia coisas nesse material que voltavam de
novo e de novo. Pensava que cada vez que filmava algo diferente, eu filmava outra coisa . Mas não era assim. Não era sempre “outra coisa”. Eu voltava aos mesmos assuntos, às mesmas imagens ou fontes de imagens. Como, por exemplo, a neve. Praticamente não há neve em Nova York; todas as minhas notas de Nova York estão cheias de neve. Ou árvores. Quantas árvores você vê nas ruas de Nova York? Enquanto estudava esse material e pensava sobre ele, tornei-me consciente da forma de um filme-diário e, é claro, isso começou a afetar minha maneira de filmar, meu estilo. E em certo sentido isso me ajudou a ter paz de espírito. Eu disse para mim mesmo: “Bem, muito bem – se não tenho tempo para dedicar seis ou sete meses à produção de um filme, não vou me abalar; irei filmar notas curtas, dia a dia, todos os dias”. Pensei sobre outras formas de diário, em outras artes. Quando você escreve um diário, por exemplo, você se senta, à noite, sozinho, e reflete sobre seu dia, em retrospecto. Mas ao filmar, ao manter um caderno de notas com a câmera, o maior desafio consiste em como reagir com a câmera no instante, durante o acontecimento; como reagir de modo que a filmagem reflita o
que senti naquele exato momento. Se escolho filmar certo detalhe no decorrer da minha vida, deve haver boas razões pelas quais separei esse detalhe específico de milhares de outros. Seja no parque, na rua ou numa reunião de amigos – há razões pelas quais escolho filmar certo detalhe. Pensei que estivesse fazendo um diário bastante objetivo da minha vida em Nova York. Mas os amigos que viram a primeira edição de Walden (Diaries, Notes & Sketches) me disseram: “Mas esta não é a minha Nova York! A minha Nova York é diferente. Na sua Nova York eu gostaria de viver. Mas a minha Nova York é fria, deprimente...”. Foi então que comecei a ver que, realmente, eu não estava fazendo um caderno de notas objetivo. Quando comecei a ver meus diários em filme de novo, notei que eles continham tudo que Nova York não possuía... Era o oposto do que originalmente pensei que estivesse fazendo... Na verdade, estou filmando minha infância, não Nova York. É uma Nova York de fantasia – ficção. Percebi outra coisa. No começo pensei que houvesse uma diferença básica entre o diário escrito, que alguém escreve à noite, e que é um processo reflexivo, e o diário filmado. Em meu diário em filme, pensei, eu 217
estava fazendo algo diferente: estava capturando a vida, pedaços dela, enquanto ela passa. Mas percebi bem cedo que não era tão diferente, afinal. Quando filmo, também estou refletindo. Eu pensava que só estivesse reagindo à realidade. Não tenho muito controle sobre ela e tudo é determinado pela minha memória, meu passado. De forma que esse filmar “direto” também se torna um modo de reflexão. Da mesma maneira, vim a perceber que escrever um diário não é meramente refletir, olhar para trás. Seu dia, quando volta para você no momento da escrita, é mensurado, escolhido, aceito, recusado e reavaliado pelo que e como se está no momento em que se escreve. Tudo está acontecendo de novo, e o escrito é mais fiel ao que se é quando se escreve do que aos eventos e emoções do dia que se foram. Portanto, não vejo mais diferenças tão grandes entre um diário escrito e um diário filmado no que diz respeito ao processo.
ser um cineasta “de verdade” e fazer filmes “de verdade”, e ser um cineasta “profissional”. Eu estava bastante preso às convenções cinematográficas herdadas. Sempre carregava um tripé... Mas então examinei todo o meu material filmado e disse: “A cena do parque, e a cena da cidade, e a árvore, está tudo lá, no filme, mas não é o que vi no momento em que filmei! A imagem está lá, mas falta algo essencial”. Captei a superfície, mas perdi a essência.
Naquela época, comecei a entender que o que faltava em meu material era eu mesmo: minha atitude, meus pensamentos, meus sentimentos no momento em que olhava para a realidade que estava filmando. Aquela realidade, aquele detalhe específico, no começo, atraiu a minha atenção por causa das minhas lembranças, do meu passado. Eu destaquei aquele detalhe com todo o meu ser, com o meu passado total. O desafio agora é capturar aquela realidade, aquele detalhe, aquele Quando decidi ver meus primeiros dez anos de filma- fragmento físico bem objetivo da maneira mais próxima gem, já tinha usado três Bolex. Era a época da libertação possível de como meu Eu está vendo. Claro, o que do cineasta independente, em que as concepções do enfrentava era o velho problema de todos os artistas: fazer cinematográfico mudavam radicalmente. Como fundir a Realidade e o Eu, e produzir uma terceira muitos outros, durante os anos 1950 e 1960, eu queria coisa. Tinha de libertar a câmera do tripé e adotar todas 218
as técnicas e processos cinematográficos subjetivos que já estavam disponíveis ou que acabavam de surgir. Tratava-se de uma aceitação e de um reconhecimento das conquistas do cinema de vanguarda dos últimos 50 anos. Isso afetou o tempo de exposição, movimentos, ritmo, tudo. Tive de descartar as noções acadêmicas de exposição “normal”, movimento “normal”, normal e apropriado isso, normal e apropriado aquilo. Tive de me inserir, de me fundir com a realidade que estava filmando por meio do ritmo, iluminação, exposições, movimentos. Antes de prosseguirmos, gostaria de dizer algo sobre essa coisa chamada “realidade”. Realidade... Nova York está lá, é “real”. A rua está lá. A neve está caindo. Não sei como, mas está lá. Ela leva sua própria vida, é claro. O mesmo com a Lituânia. Então, agora, entro na imagem. E com a câmera. Quando caminho com a minha câmera, algo cai em meus olhos. Quando caminho pela cidade, não conduzo meus olhos conscientemente disso para aquilo e para aquilo. Ao contrário, caminho e meus olhos são como janelas abertas, e vejo coisas, as coisas caem lá dentro. Se ouço um som, claro, olho para a direção do som. O ouvido se torna ativo, e
direciona o olho; o olho está buscando aquilo que fez o barulho. Mas na maioria das vezes as coisas ficam caindo lá dentro – imagens, cheiros, sons, e elas vão sendo separadas na minha cabeça. Algumas coisas que caem chamam a atenção talvez por sua cor, pelo que representam, e começo a olhar para elas, começo a reagir a este ou àquele detalhe. Claro, a mente não é um computador. Mas ainda assim, ela funciona mais ou menos como um computador, e tudo que cai lá dentro é mensurado, corresponde a lembranças, a realidades que foram registradas no cérebro, ou onde quer que seja, e é tudo muito real. A árvore na rua é realidade. Mas aqui, eu a destaquei, eu eliminei toda a outra realidade que a cerca, e escolhi apenas aquela árvore específica. E a filmei. E se agora começo a examinar o que filmei, o que coletei, tenho uma coleção de muitos desses detalhes destacados, e todas vez que eles apareceram, eu não os busquei, eles me escolheram, e reagi a eles por razões muito pessoais, e é por isso que todos eles se conectam, para mim, por uma ou outra razão. Todos eles significam algo para mim, mesmo se não entendo por quê. Meu fime é uma realidade destacada por mim através desse processo 219
muito complexo, e, é claro, para quem o consegue “ler”, esse material diz muito sobre mim – na verdade, mais sobre mim do que sobre a cidade em que filmei: você não vê a cidade, só vê esses detalhes destacados. Portanto, quando se sabe “lê-los”, mesmo que eu não apareça falando ou andando, pode-se dizer tudo sobre mim. No que diz respeito à cidade, é claro, você também poderia falar algo sobre ela partindo de Walden – mas apenas indiretamente. Ainda assim, caminho por essa realidade concreta, representativa, e essas imagens são todas registros da realidade concreta, mesmo se apenas em fragmentos. Não importa como eu filme, rápido ou devagar, como seja a exposição, o filme representa certo período histórico concreto. Mas, como um grupo de imagens, ele diz mais sobre a minha realidade subjetiva, ou você pode chamar de minha realidade objetiva, do que sobre qualquer outra realidade.
me ofendiam técnica e formalmente. Mesmo quando algumas partes captavam algo da essência, se me incomodavam formalmente eu as descartava. Costumo brincar que Rimbaud tinha Iluminações e eu tenho somente eliminações.
Passei muito tempo pensando, experimentando como este ou aquele detalhe, como esta nota ou aquele esboço funcionavam na totalidade do rolo. Foi um problema menor em Reminiscences, mas com Walden (Diaries, Notes & Sketches) tive realmente de trabalhar duro e por muito tempo. Depois de você ficar sentado por duas horas assistindo a um filme, é importante o que acontece durante a terceira hora. Surge a questão da repetição. Por vezes tenho de eliminar até mesmo partes de que gosto, porque muito de uma coisa acaba sobrando. Nesse caso, no caso de Reminiscences, a edição foi muito rápida. Hans Brecht, da Norddeutscher Usei o processo de eliminação, cortando partes que não Television, me ajudou a pagar a película e a Bolex em funcionavam, as partes “mal escritas”, e deixando as troca dos direitos de exibição na televisão alemã. Mas partes que funcionavam praticamente sem mudança em seguida voltei e me esqueci completamente de Hans alguma. Isso significa que não editei as sequências Brecht. E ele se esqueceu de mim. Mas, então, no dia individualmente Deixei as partes que, achei, captu- de Natal ele me ligou. “Está pronto? Preciso dele para o ravam algo, significavam algo para mim, e que não dia 20 de janeiro.” “Em 20 de janeiro? Por que não me
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disse isso mais cedo?” Fui para minha mesa de edição e comecei a trabalhar. Após ter voltado da Lituânia, fiquei pensando: “Como vou editar o filme?”. Esse material me era muito próximo. Eu não tinha nenhum distancimaneto. E mesmo agora, hoje, tenho pouca distância. Tinha mais ou menos o dobro do material que se vê no filme. Então parava e pensava comigo mesmo: “Bem, muito bem. Essa urgência me ajudará a tomar decisões”. Por dois ou três dias eu não toquei no material, pensava sobre a forma, a estrutura do filme. Depois de ter decidido sobre a estrutura, apenas juntei as partes, muito rápido, em um dia. Sabia que era a única forma de lidar com esse material: trabalhar de forma totalmente mecânica. Outra maneira teria sido trabalhar muito tempo nele e fazer um filme completamente diferente, ou destruir o material no processo.
Aqueles de vocês que viram a primeira edição de Walden (Diaries, Notes & Sketches), e agora Reminiscences, verão a diferença entre os dois. A base de Walden é o single frame.1 Há muita densidade ali. E quando estava indo para a Lituânia pensava que fosse trazer material no mesmo estilo. Mas, de alguma forma, quando estava lá, simplesmente não pude trabalhar no estilo de Walden. Quando mais permanecia na Lituânia, mais ela me mudava, e me empurrou para um estilo completamente diferente. Havia sentimentos, estados, rostos que não podia tratar de maneira demasiado abstrata. Certas realidades podem ser apresentadas em cinema apenas através de certas durações de imagens. Cada tema, cada realidade, cada emoção afeta o estilo que você filma. O estilo que usei em Reminiscences não foi o ideal para o filme. É um estilo de concessão. Explicarei por quê. Por exemplo, cometi um erro grande que nunca repetirei. Mudei a sequência temporal apenas em poucas ocasiões. Minha terceira Bolex estragou pouco antes da minha Em Reminiscences mantive a sequência temporal. Em viagem. Já a tinha consertado diversas vezes, mas dessa Walden (Diaries, Notes & Sketches), quando tinha vez não consegui mais consertá-la. Então comprei uma dois longos esboços lado a lado, empurrava um deles nova Bolex. O material lituano foi o primeiro que filmei mais para frente no tempo, ou para trás, por razões com essa nova Bolex. Mas mesmo se duas Bolex fossem estruturais. totalmente idênticas, o simples fato de você nunca ter carregado a nova em suas mãos tem um efeito sobre 221
você. Você tem de se acostumar a cada nova câmera, de modo que, durante a filmagem, ela reaja a você, e você conheça suas fraquezas e seus caprichos. Porque, mais tarde, quando comecei a filmar, descobri que a minha nova Bolex não era de forma alguma idêntica à antiga. Ela era, na verdade, defeituosa, nunca mantinha uma velocidade constante. Eu a ajustava em 24 quadros, e após três ou quatro cenas ela estava em 32 quadros. Você tinha de olhar constantemente para o mostrador, porque as velocidades de quadros por segundo afetam a iluminação, a exposição. E quando finalmente me dei conta de que não havia jeito de consertá-la ou de fixar a velocidade, decidi aceitar e incorporar o defeito como um dos recursos estilísticos, usar as mudanças de luz como um meio estrutural.
completo, ou ao menos o controle “normal” sobre as minhas ferramentas. Mas aqui esse controle me escapava. A única maneira de controlar era aceitar e usar isso como parte da minha maneira de filmar. Usar as superexposições como pontuações; usá-las para revelar a realidade sob, literalmente, uma luz diferente; usá-las para imbuir a realidade de uma certa distância; para compor a realidade.
Quando fui para a Lituânia, foi-me oferecida uma equipe e câmeras, e poderia tê-las usado. Mas não o fiz. Sabia que, embora as imagens filmadas por esses técnicos, seguindo minhas instruções, teriam sido “melhores” profissionalmente, elas teriam destruído o tema que eu estava perseguindo. Quando você vai para casa, pela primeira vez em 25 anos, você sabe, de alguma Quando notei que as velocidades mudavam constante- forma, que as equipes de cinema oficiais não pertencem mente (em especial quando filmava sequências curtas, àquele lugar. Por isso escolhi a minha Bolex. Minha trechos breves), sabia que não seria capaz de controlar filmagem tinha de permanecer totalmente privada, as exposições. Não quero dizer que queria ter uma pessoal, e “não profissional”. Por exemplo, nunca conferi iluminação “normal”, “equilibrada”. Não, eu não acre- a abertura da minha lente antes de filmar. Eu corria dito nisso. Mas consigo trabalhar dentro das minhas meus riscos. Sabia que a verdade teria de depender e irregularidades, dentro do meu estilo de choque entre girar em torno dessas “imperfeições”. A verdade que quantidades de luz, apenas quando tenho o controle captava, o que quer que fosse, teria de depender de
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mim e da minha Bolex. Quando você filma com uma Bolex, você a segura em algum lugar, não exatamente onde está o seu cérebro, um pouco mais abaixo, não exatamente onde está o seu coração – um pouco mais acima... E então você dá corda, você lhe dá uma vida artificial... Você vive continuamente, dentro da situação, em um continuum de tempo, mas você filma apenas em trechos, tanto quanto permita a corda... Você interrompe sua realidade filmada constantemente... Você a retoma de novo...
ser sua vida por mais dez anos. O outro é agrônomo, tem sido agrônomo desde que saiu da escola.
Decido mais tarde, depois da filmagem, que sons vou usar. Coleto os sons sempre que posso. Usualmente finalizo com certa sequência e certos sons cercando a mesma situação. Vejo meu material como lembranças e notas, da mesma maneira que vejo meus sons coletados durante o mesmo período. No caso da música para a parte lituana de Reminiscences, foi uma coincidência eu ter recebido uma gravação que admirava muito. Não gosto de nenhuma forma de mistério. Quanto Trata-se de uma música escrita por volta de 1910 por mais puder contar sobre as pessoas em meus filmes, um jovem compositor/pintor lituano, Ciurlionis, que mais feliz eu fico. Em todos os meus últimos filmes morreu muito cedo em um asilo para loucos. Gravei uso cartelas para contar o que você vê. Gosto de contar certas passagens repetidas vezes, algumas partes dela. com antecedência o que você vai ver, o que vai acon- Talvez haja influências de Scriabin nela (é o que alguns tecer, tanto quanto puder. Claro, não há necessidade disseram), mas essencialmente é música lituana. Há de contar tudo; há limites. certas notas que me dizem algo, e costumava ouvi-la o tempo todo até que o disco foi roubado junto com Meus amigos me perguntam: “O que seus irmãos estão o fonógrafo há mais ou menos dez anos. De forma fazendo lá? De onde você vem? Como é lá?”. Ponho que essa música significa algo para mim, me é muito todas essas informações nas legendas. Kostas tem próxima, e por isso a usei. Usei-a como um motivo tomado conta do celeiro por dez anos, e essa poderá recorrente, em certo sentido. Achei que iria me ajudar a juntar todos os pedaços separados por meio dessa 223
recorrência sonora. Usei Bruckner para a sequência de Kubelka em Viena porque Bruckner era um dos compositores favoritos de Kubelka. O madrigal que usei na biblioteca de Kremsmuenster era um dos madrigais favoritos de Kubelka. Assim, é tudo muito pessoal.
Com frequência digo: “Oh, veja meu filme, está tudo lá, não tenho mais nada a dizer, não sei nada sobre isso”. Porque a verdade é que não vi a vida real lá. Eu estava sempre procurando pelo que restou das lembranças do que existiu, do que foi há muito tempo atrás. Não vi a realidade de hoje, ou a vi através de um véu. Há dois Achei um pequeno quadrado preto em minhas primei- tipos de viajantes, de pessoas que saem de casa. Uma ras filmagens. Estava fazendo experiências, em 1950, categoria é de pessoas que deixam sua casa, seu país tentando fazer divisões num filme, como capítulos por conta própria. Você decide, “Oh, odeio tudo isso, num livro, e pensei em usar um quadrado para indicar vou ganhar mais dinheiro em outro lugar; as pessoas os diferentes capítulos do filme. Mas nunca cheguei vivem melhor em outro lugar; a grama é mais verde a usá-lo, até que o descobri de novo, enquanto traba- lá...”. Você vai e se estabelece noutro lugar. E, é claro, lhava em Reminiscences. Vocês vão notar que uso os ocasionalmente você pensa em sua antiga casa, em seus números de 1 a 100 apenas na parte lituana. Em todas velhos parentes; mas afinal você cria novas raízes, e as outras partes uso o quadrado preto para a separação esquece aquilo tudo. Ocasionalmente você pode pensar de capítulos. Ou talvez sejam apenas parágrafos. Não que talvez fosse mais bonito lá, na velha pátria. Mas consegui pensar, sob pressão de prazo, em outra coisa não sofre por isso. que pudesse fazer. Não queria usar a tela preta. Por sua vez, há outro grupo de pessoas que são arranDigo no filme: “O tempo na Lituânia permaneceu sus- cadas de suas casas à força – seja por força de outras penso para mim, por 25 anos, e agora está começando pessoas ou por força das circunstâncias. Quando você é a se mover de novo”. De modo que quando as pessoas arrancado dessa maneira, sempre quer voltar para casa, me perguntam com é a vida lá agora, estou começando o sentimento fica, nunca desaparece. Você pensa na sua a tentar responder. Mas até agora tenho evitado fazê-lo. antiga casa, a romantiza, isso cresce e cresce. Você tem 224
de vê-la de novo, voltar lá e começar tudo do princípio. Você tem de deixar a sua casa pela segunda vez. Então o sentimento começa a mudar. Por isso em Walden eu filmava Nova York, mas era sempre como se filmasse a minha antiga casa. Então, agora, depois que voltei, tudo isso muito provavelmente começará a mudar. Ken Jacobs me disse que Reminiscences lhe interessou a princípio porque representa a experiência de uma Pessoa Deslocada,2 uma experiência que ele nunca teve, mas pela qual se sente atraído, devido à sua própria infância em Williamsburg, Brooklyn, que praticamente não existe mais. Então, temos, nos Estados Unidos, uma terceira categoria de Viajante: aquele cuja casa é constantemente varrida de sob seus pés pelo moderno código de construção. Tenho lido muito ultimamente. Escolhi Wilhelm Meisters Wanderjahre,3 de Goethe, sobre seus anos de viagem. Eu o tinha lido há muitos e muitos anos atrás. Mas agora comecei a lê-lo e ele adquiriu um significado completamente diferente para mim. Enquanto Wilhelm viaja e conhece pessoas diferentes, vê lugares diferentes, comecei a pensar sobre meus diários em
filme. Comecei a ver conexões interessantes. Ele também visita lugares e conhece pessoas, vai a monastérios, como fiz na Áustria. Mas ele viaja por escolha própria. Ele decidiu deixar a sua casa e ver o mundo, conhecer diferentes tipos de pessoas, aprender. O Wanderer de Goethe é de um século diferente. Minhas viagens representam um Wanderer típico de meados do século xx – e você encontrará esse Viajante em todos os continentes e em todos os países hoje: um Deslocado. O Deslocado, o Exilado, como o Viajante. Existe tal coisa, e não é um conceito abstrato. Uma Pessoa Deslocada, uma P.D., é uma realidade de hoje. Devido aos níveis e complexidades das civilizaçôes contemporâneas, temos o Deslocado. Sou uma delas. E um Deslocado não é idêntico a Wilhelm de Goethe. O Deslocado não pode escolher, não escolheu deixar sua casa. Ele foi atirado no mundo, na Viagem, foi forçado a isso. Reminiscences não é dominado por tristeza. Há muita alegria, ou ludicidade no filme. Ele é equilibrado, acho. O que acontece, na verdade, é que na maioria dos casos, em arte, a tristeza é descartada como parte da experiência humana, como se houvesse algo de errado com ela. Mas não há nada de errado com a tristeza. Ela é 225
uma experiência necessária, essencial. A tristeza é um estado muito real. Precisamos dela. E, claro, como a tristeza é com frequência censurada, quando você a vê num filme pensa que é triste demais.
Quando um Deslocado se torna consciente da Viagem, então ambos, Wilhelm Meister e o Deslocado, começam a se encontrar. Ao menos no meu caso isso está acontecendo. Wilhelm Meister e um Deslocado se encontram numa nova casa, e descobrem que ambos têm a mesma casa: a Cultura.
A verdadeira diferença entre esses dois viajantes está apenas no começo de suas jornadas. No primeiro caso, busca-se algo conscientemente, procura-se algo; no Mas haverá pouquíssimos casos em que os destinos de segundo caso, aceita-se o que vem. As pessoas sempre Wilhelm Meister e de um Deslocado se encontrarão me dizem: “Você não quer ir a esse ou àquele lugar”, na Cultura. Na maioria das vezes eles irão morrer, a e eu sempre respondo: “Não, não quero ir a lugar primeira geração de Deslocados irá morrer com todas nenhum! Nunca quis viajar. Estou muito feliz aqui”. as lembranças de suas antigas casas em seus olhos. “Sim”, elas dizem, “mas você foi até esse lugar e aquele e aquele outro.” “Mas não. Nunca quis ir a nenhum Notas desses países; sempre fui levado ou à força ou pela * Palestra sobre Reminiscences of a Journey to Lithuania profenecessidade, quando não me restava mais nenhuma rida no International Film Seminar em 26 de agosto de 1972 e posteriormente publicada com o título de “The Diary Film” em escolha.” Wilhelm vai, e busca, e procura certas coisas; Sitney, P. Adams (org). The avant-garde film. A reader of Theory ele quer educar-se, descobrir o mundo, ver o mundo. and Criticism. Nova York: Anthology Film Archives, 1987. p. 190-198. A tradução de Daniel Carrara aqui publicada, incluindo as notas Mas eu nunca quis ver o mundo. Estava muito feliz lá, do editor, foi editada pela primeira vez no Brasil em MOURÃO, no mundinho, e não tinha necessidade ou desejo de ir Patrícia (org.) Jonas Mekas. São Paulo: Pró-Reitoria de Cultura e para outro lugar. Mas aqui estou... E é uma situação Extensão Universitária USP, 2013. 1. Tomadas em um só fotograma, ou com velocidades variadas, ligeiramente diferente daquela de Wilhelm. Mas, por vezes, esses dois destinos se encontram... 226
de forma que o fotograma seja evidenciado durante a projeção (N. E.).
2. No original Displaced Person, expressão utilizada no final da II Guerra Mundial pelas forças aliadas para designar os quase oito milhões de sobreviventes dos campos de trabalho forçado, prisioneiros de guerra e refugiados políticos (na sua maioria opositores do regime soviético) que eles acabavam de libertar. Em 1946, seis milhões haviam sido repatriados – espontaneamente ou à força –, os outros dois milhões, dentre os quais muitos lituanos, permaneciam nos “Displaced Person camps”, ou “D.P. camps”. Sempre que o sentido não for prejudicado, usaremos o termo mais familiar à nossa língua: “refugiado” – apenas quando for importante privilegiar a singularidade histórica do “displaced person” como é o caso aqui, usaremos “deslocado” ou “pessoa deslocada”. [N. E] 3. Lançado no Brasil com o título Os anos de aprendizado de Wilhelm Meisters pela Editora 34. [N. E]
MANIFESTO ANTI-100 ANOS DE CINEMA Jonas Mekas
Alguns estão falando sobre o Fim da História. Há outros dizendo que estamos no Fim do Cinema. Não acredite em nada disso! E a indústria cinematográfica e os museus de filme em todo o mundo estão comemorando o aniversário de 100 anos do cinema, e falam sobre os milhões de dólares que o cinema deles tem feito, discutem suas Hollywoods e suas estrelas -mas não há nenhuma menção ao avant -garde, aos independentes, ao nosso cinema . Eu tenho visto os folhetos, os programas dos museus e arquivos e cinematecas de todo o mundo. Sei de que cinema estão falando. Mas quero aproveitar a ocasião para dizer isto: em tempos de grandeza, espetáculos, produções de cem milhões de dólares, eu quero falar em nome
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das pequenas, invisíveis ações do espírito humano: tão sutis, tão pequenas, que morrem sob os holofotes. Quero celebrar as pequenas formas de cinema, as formas líricas, o poema, a aquarela, etude, sketch, cartão postal, arabesco, triolé, e bagatela, e pequenas canções de 8mm. Nos tempos em que todo mundo quer ter sucesso e vender, eu quero celebrar aqueles que abraçam o fracasso, social e diariamente, para buscar o invisível, o pessoal, coisas que não trazem dinheiro ou pão e não fazem história contemporânea -- história da arte ou qualquer outra história -Eu sou pela arte que fazemos uns para os outros, como amigos, para nós mesmos. Eu estou de pé no meio da Rodovia da Informação e rindo -porque uma borboleta em uma pequena flor em algum lugar, em algum lugar, acabou de bater suas
asas e eu sei que todo o curso da história vai mudar drasticamente por causa desse bater de asas -uma câmera Super 8 acabou de fazer um rumor pequeno e suave em algum lugar no Lower East Side de Nova York -- e o mundo nunca mais será o mesmo -a verdadeira história do cinema é a história invisível -história de amigos se reunindo fazendo o que amam - para nós, o cinema está começando a cada novo rumor do projetor, a cada novo rumor de nossas câmeras nossos corações saltam à frente, meus amigos! Tradução: Carla Maia
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A "ORDEM" DO CINEMA - JONAS ME KAS UNDERGROUND Patrícia Mourão
I celebrate myself,
And assume what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you Walt Whitman
O começo Se é necessário que as histórias tenham um início é igualmente necessário inventá-lo. Jonas Mekas cria o seu em 1975, em uma sequência no último rolo de um filme composto por seis, e tendo atrás de si 13 filmes, dos quais pelo menos dois são consensualmente colocados como suas obras primas, paradigmas de uma poética que lhe será muito particular: Walden e Reminiscências de uma jornada para a Lituânia. O filme em questão é Lost Lost Lost e a sequência, introduzida por uma cartela onde se lê: “Atualidades Flaherty, Imagens de Jonas e Ken [Jacobs]”, começa 230
com uma viagem que Jonas Mekas, Ken Jacobs, Tony Conrad e outros jovens que começavam a reunir-se em torno da Film Maker`s Cooperative, cooperativa dedicada a distribuição de filmes independentes fundada por Mekas em 1962, fazem para Vermont, onde pretendem participar do “seminário Flaherty”. Eles levam consigo cópias de Flaming Creatures, filme de Jack Smith cuja polêmica em torno do lançamento levou Mekas a passar alguns dias na prisão, e Blonde Cobra, de Ken Jacobs e Bob Fleischner, no qual Smith também atua. Assim como Flaming Creatures é recusado pela moralidade dos censores de Nova York, os amigos têm sua participação negada no seminário de Flaherty, informação que é anunciada por uma outra cartela (entre as duas cartelas acompanhamos a saída dos amigos da Film Maker’s Coop e a viagem de carro até Vermont, sobressai-se nesses planos de duração muita curta,
editados na câmera, o clima beat de “On the road”). Abre-se então para imagens de um amanhecer com a luz muito estourada, e um movimento de câmera vai pouco a pouco nos apresentando o telhado e a parede externa de uma casa, e depois, ao seu lado, uma caminhonete. Na carroceria, Mekas dorme em um saco de dormir. Nós o vemos acordar, se espreguiçar, saudar o dia. Tony Conrad sai do carro e também se espreguiça. Enquanto a câmera percorre esse espaço e as pessoas acordam, ouve-se, em voz over, Mekas, com seu sotaque carregado e cadência pausada,1 dizer: Enquanto os convidados / documentaristas respeitáveis / importantes cineastas, dormiam em suas camas quentes, / nós víamos o amanhecer com o frio da noite ainda em
nossa carne / e nossos ossos. / Era uma manhã Flaherty.
/ Nós acordamos lentamente. / Não / nós não dormimos bem. / Mas estava bonito. Era a névoa. Havia uma
névoa. A terra estava saindo da noite. O sol já estava no ar. / Nós nos sentimos mais perto da terra e da manhã do que das pessoas nas casas. Nós nos sentimos parte
da manhã. / Estava quieto, muito quieto. / Como uma igreja, / e nós éramos os monges da Ordem do cinema.
A partir daí, a sequência adquire um caráter místico-religioso; indo mais longe, diria que ela introduz um ritual de sagração, de ordenação de Mekas e seus companheiros. À menção à igreja e à “Ordem” seguemse sons de sino; a câmera ganha velocidade e percorre, de perto, em movimento aparentemente desordenado e sem qualquer preocupação com o foco, um gramado. Essas imagens quase abstratas são intercaladas com imagens de Ken Jacobs filmando, e breves planos das outras pessoas presentes. Ainda sob o som dos sinos, vemos Mekas com um cobertor sobre os ombros, que não deixa de lembrar um manto monástico, abrir os braços, levar sua câmera ao olho, espelhando e refletindo o olhar de Jacobs que o filma, e depois curvar-se, afastar a câmera de seu olho, dirigi-la ao chão, começar a andar em zig zag, quase dançando, como se o cobertor/manto fosse um parangolé e a câmera o volante de um carro imaginário em uma brincadeira infantil. Os sinos silenciam-se, e então ouve-se trechos de uma missa. Entendemos aí que a primeira imagem do gramado capturada em movimento veloz e desordenado é o resultado dessa dança, o que será confirmado pela montagem que intercalará, a seguir, imagens feitas por Mekas com outras de Jacobs a filmá-lo. 231
Lost Lost Lost Lost Lost Lost é, em larga medida, uma narrativa de formação na qual Jonas Mekas retraça seu percurso nos Estados Unidos, desde sua chegada, em 1949, depois de cinco anos fugindo, primeiro dos soviéticos, depois dos nazistas, e então em campos para deslocados,2 até 1963, ano que, como se verá, coroa a consolidação do cinema underground nova-iorquino. Nessa narrativa experimental, a história do refugiado lituano e de sua adaptação ao novo mundo é indiscernível da história do cinema underground. Minha hipótese aqui é que, com a sequência descrita acima, Mekas cria retrospectivamente um mito de origem tanto para o seu cinema quanto para o cinema underground norte-americano. Mais que isso, a sequência coroa, a um só tempo, e demonstrando que para Mekas há total identidade entre um e outro, sua adaptação aos Estados Unidos, seu amadurecimento como artista e a fundação de uma comunidade dentro da qual ele encontra seus pares. Quando Mekas monta Lost Lost Lost ele tem atrás de si, além de algumas de suas mais importantes obras, ainda que pouco reconhecidas naquele momento,3 a 232
década de ouro do cinema underground norte-americano, cujo florescimento não pode ser narrado sem o seu protagonismo. Voltarei a esse protagonismo mais a frente, mas reforço desde já esse aspecto temporal porque é central que se saiba que quando Mekas edita Lost Lost Lost, ele o faz depois de uma batalha e uma travessia terminadas, contando, já de casa, as baixas e as conquistas do período findo (diferentemente, por exemplo, de Walden, filmado e editado durante o mesmo período). Composto por seis rolos, com duração total de 180 minutos, o filme tem sua narrativa estruturada em três partes e encena, como apontado por Scott MacDonald em sua clássica análise do filme,4 um padrão tríptico, familiar à literatura clássica: expulsão do Éden, a noite sombria da alma e o renascimento. Nessa divisão, os dois rolos iniciais concentram-se nos seus primeiros anos na periferia de Nova York, a difícil adaptação ao novo mundo, focando sobretudo a comunidade de lituanos com quem ele convive nesse período e sobre a qual tenta fazer um documentário; o terceiro e o quarto cobrem os anos seguintes à mudança de Jonas e seu irmão Adolfas do bairro dos imigrantes para
Manhattan, suas primeiras tentativas no cinema, o início da Film Culture, as novas amizades e a vida na metrópole; os últimos dois acompanham uma comunidade de cinema florescente em torno da Film Maker’s Cooperative e encerram o período de adaptação de Mekas à América com a conquista de uma nova casa e uma nova comunidade no cinema. Formalmente as imagens também “evoluem”, progredindo de uma relação mais documental com as imagens até um uso mais livre da câmera. Assim, nos dois primeiros rolos temos planos de maior duração, um cuidado maior no enquadramento, e maior estabilidade de câmera, motivados por um claro desejo de mostrar uma realidade social (dos lituanos na América); o terceiro e o quarto, como rolos de travessia, oscilam entre um polo e outro, e mesclam momentos de poesia visual com trechos de filmes que ele tentou fazer e que experimentavam mais em termos narrativos do que visuais. Quando chegamos aos dois últimos rolos, estamos já bem próximos das imagens impressionistas, quase abstratas, normalmente associadas ao seu estilo, e que o espectador já conhecia de Walden, lançado seis anos antes, em 1969, mas com imagens registradas entre
1966 e o ano de seu lançamento. São imagens sensórias, que não parecem responder ao domínio de um saber ou uma técnica, nem a uma gramática que separa o certo do errado. Imagens que se aproximam do olhar virgem do amador desejado por Maya Deren, e já praticado por Stan Brakhage, como discutiremos à frente. A conquista desse “estilo amador” acontece à medida que Mekas se distancia da comunidade lituana, sua última conexão com a Europa, e adquire novas memórias já nos Estados Unidos. Aqui seria importante reforçar que quando digo Europa não me refiro apenas a um lugar de origem, ou uma casa de infância, mas também, e sobretudo, a uma cultura, uma tradição e uma história que tem atrás de si o peso de todo o saber já produzido e a culpa por todas as injustiças que esse saber não evitou. Uma história que no pós guerra parece insustentável, asfixiante. Veremos adiante como o discurso da vanguarda artística no pós guerra afirma-se em oposição à arte canônica e a mentalidade europeia; algo semelhante se dará com o cinema underground, embora nesse caso sejam necessárias duas operações: primeiro, não pensar em 233
termos de embate ou oposição, respeitando o imperativo da liberdade reivindicado por aqueles que descem ao subterrâneo (underground) porque não desejam participar de um jogo que só aceita duas posições: o poder ou a luta por ele; segundo entender que o europeu, o “outro”, aquele de cujo peso se quer libertar, não é só o cinema industrial, mas também os cinemas que a ele se opõem e pretendem, utilizando-se das mesmas armas que o inimigo, degladear em seu território: cinemas novos, nouvelle vague, cinema vérité. Em outras palavras, Mekas liberta-se do peso do “já canônico”, futuro evidente para os cinemas novos e o cinema verdade e, particularmente, o Novo Cinema Americano, em cujo projeto ele esteve ativamente e entusiasmadamente envolvido até esse momento. Podemos dizer tudo isso de uma outra maneira, o que chamo de libertação também pode ser entendido como uma retirada voluntária, uma desejada descida ao subterrâneo. Com efeito, entre 1962 e 63 o termo underground é incorporado ao léxico de Mekas, em substituição à expressão “Novo Cinema Americano”, por ele cunhada dois anos antes. A inspiração para o termo vem de Duchamp, que em 1961, em uma confe234
rência na Filadélfia, profetizava que “o grande artista de amanhã será subterrâneo (underground)”. Na conferência o artista sugeria que uma reação à mediocridade que se disseminava nas artes visuais, consequência de sua mercantilização e da reconfiguração da relação do público com as obras, estava em gestação. Essa reação, segundo ele, se transformaria em uma revolução sobre a qual o grande público nem mesmo ficaria sabendo, desenvolvida por “alguns iniciados às margens de um mundo cegado pelos fogos de artifício econômicos”. À diferença dos cinemas novos, que desejavam ocupar o lugar do cinema industrial, transformando-o ou subvertendo-o, o underground entende a produção às margens da indústria como um desejo e um ponto de partida, não uma imposição. Subterrâneo, portanto, porque nunca aspirou à superfície.
Do Novo Cinema Americano ao Underground Até 1962-1963, o programa estético de Mekas ainda estava muito próximo ao de outros projetos de cinemas novos que também ganhavam força mundialmente. Se nos permitirmos um breve retrospecto, podemos dizer que o projeto de cinema de Mekas até então
pode ser dividido em dois momentos, todos eles muito distintos dos rumos que ele tomará a partir de 1963. O primeiro vai da fundação da Film Culture até aproximadamente 1959, quando uma primeira versão da “Primeira Declaração do Novo Cinema Americano”, com a qual colaborou na redação, é publicada no editorial da revista, e outro, entre 1959 e 1963, anos durante os quais ele se envolveu diretamente com o projeto do Novo Cinema Americano. Durante décadas uma das principais revistas de crítica de cinema independente norte-americana e central para a organização e fortalecimento do cinema experimental, a Film Culture é criada em 1955, por Jonas e seu irmão Adolfas. Com um corpo editorial bastante diverso, sob notada influência da crítica europeia de inspiração neorrealista e da teoria do autor, a revista não assume a defesa do cinema experimental americano desde o princípio. O modelo europeu de cinema e de crítica são evidentes nos números iniciais. O editorial do primeiro número da revista, assinado por Edouard de Laurot, “Toward a Theory of Dynamic Realism”, era severamente crítico ao cinema experimental de tendência abstrata americana, defendendo o amadurecimento
de uma visão social tal como encontrado no cinema de Buñuel e René Clair. A inclinação para o realismo como forma de engajamento social é patente no ataque de Mekas, publicado no terceiro número, “ao temperamento adolescente”, à “conspiração homossexual”, à “rudez técnica e a limitação temática”, e à “falta de inspiração criativa” do cinema experimental americano. “Seus protagonistas parecem viver enfeitiçados. Eles não parecem fazer parte de um mundo exterior (...) É impossível imaginá-los comprando comida, trabalhando em uma loja, criando filhos ou participando de qualquer atividade concreta.” Sua conclusão era de que: a imagem do filme-poema americano (...) é decididamente desencorajadora... Para melhorar a qualidade
do filme-poema, experimentos devem se dirigir não tanto para novas técnicas, mas em direção a temas mais
profundos, em direção a abordagens mais penetrantes da natureza e do drama do homem e de sua época.5
Mais tarde, Mekas, com o mesmo apreço por metáforas religiosas demonstrado na sequência Flaherty, dirá que esse texto é de “Santo Agostinho antes da conversão”. Na verdade, essa “conversão” deve-se menos 235
a uma iluminação agostiniana do que a um paulatino processo de aculturamento aos Estados Unidos, marcado, em larga medida, pelo acolhimento do ethos beat. Nesse processo categorias de espontaneidade, improviso, presente da experiência, caras ao jazz e à poesia beat, adquirem potência estética. De fato, essa tendência começa a mudar em 57, quando a revista dedica um número ao cinema experimental.6 Mas será só em 1959, muito em função do impacto causado por filmes como Shadows (John Cassavetes, 1959) e Pull My Daisy (Robert Frank, 1959), marcos do cinema beat e louvados por Mekas por seu “senso de imediatismo”, que a revista irá se transformar efetivamente na voz do jovem cinema e publicará em seu editorial um chamado a uma nova geração de realizadores, espécie de esboço do que virá a ser a “Primeira Declaração do Novo Cinema Americano”, publicada dois anos depois. “O cinema oficial em todo o mundo”, lê-se, “está perdendo o fôlego. Ele é moralmente corrupto, esteticamente obsoleto, tematicamente superficial, temperamentalmente entediante. Até os filmes que aparentemente valem a pena, aqueles que defendem e assim foram aceitos por críticos e o público revelam a decadência do produto filme”.7 Eles defendem um cinema de baixo orçamento, 236
com equipes pequenas, em oposição à profissionalização e à “perfeição” de Hollywood e ao cinema narrativo comercial; um cinema “off-Hollywood”, assim como havia um teatro off-Broadway. O substrato a um só tempo moral e estético dessas proposições é o realismo, garantia de comprometimento com seu tempo e abertura às misérias do homem no presente.8 Para desgosto de Mekas, a expressão Novo Cinema Americano foi rapidamente instrumentalizada pela crítica, que a relacionava a uma Nouvelle Vague Americana ou ao cinema direto. Essa apropriação não é, entretanto, totalmente infundada, pois o projeto do Novo Cinema Americano estava, ainda que com diferenças que mais tarde justificariam sua superação, de fato, próximo dos cinemas novos que eclodiam ao redor do mundo.9 A principal dessas diferenças estava colocada na forma como os signatários da declaração entendiam a circulação dos filmes. Para eles, esses filmes pessoais não podiam ser vistos pelos padrões do cinema de grande orçamento, nem deviam competir em termos de distribuição ou financiamento com eles. Para tanto, era necessário criar um circuito alternativo no qual esses filmes pudessem existir e a principal ação
nesse sentido, prevista na declaração, seria a criação de um centro de distribuição.
mais associadas a uma cultura europeia decadente, mas aberta ao novo e à indeterminação.
A Film Maker’s Cooperative é fundada em 1962, com Mekas à sua frente. Além de ser um centro de distribuição para filmes independentes, a “Coop”, como ficou conhecida, era não-exclusiva, não discriminatória, e dirigida pelos próprios cineastas. Ela aceitava todo e qualquer filme submetido para distribuição, e em nenhum momento critérios estéticos ou qualitativos eram admitidos na submissão dos filmes. As taxas de locação eram decididas pelos cineastas e toda a renda, exceto 25% destinados para pagar custos administrativos, retornava para eles.
A Coop acaba atraindo uma série de amadores e artistas que não produziam dentro do sistema de produção do cinema, mas tampouco em oposição a ele (como em geral acontecia com os cinemas novos), e que precisamente por isso acabava sendo muito mais radical que os cineastas independentes. Além disso, concretamente, entendeu-se com certa rapidez que a renda de distribuição, mesmo que 75%, não era suficiente para sustentar a produção, ainda que de baixo orçamento, de um cineasta independente, por outro lado, ela era uma contribuição efetiva para esse novo grupo, à margem do cinema e que nunca contou de fato com nenhuma renda de distribuição para fazer filmes. A partir de 1963, virá daí as principais obras do cinema de vanguarda americano.
“A política da não política também é uma política”, dizia Mekas rebatendo as acusações de que a Coop estaria sendo irresponsavelmente permissiva.10 Embora provocasse resistência na cultura crítica do cinema, essa postura ecoava a de outros movimentos artísticos (principalmente o Fluxus, de quem Mekas era especialmente próximo) que pretendiam abolir o espaço entre a arte e a vida. Visava-se com isso abrir o espaço de criação artística para uma produção não submetida a tradições, saberes e técnicas aprendidas, cada vez
Ano 0 Quando Mekas, Jacobs e Conrad partem para o Seminário Flaherty, eles têm dois filmes debaixo do braço: Blonde Cobra e Flaming Creatures. Os dois filmes são de 1963 e fazem parte disso que Mekas chamará de 237
“cinema baudeleriano”: “um cinema de flores do mal, iluminações, de carne torturada; uma poesia a um só tempo bonita e terrível, boa e má, delicada e suja”.10 São filmes de um hedonismo kitsch, autoconsumível, celebratório e destrutivo, perspicazmente descrito por Dominque Noguez como “Dionísio com Coca-Cola, Sade de blue-jeans”,11 o que, em outras palavras e para uma sensibilidade “não convertida”, poderia ser simplesmente um cinema de “temperamento adolescente”, “conspiração homossexual”, e “rudez técnica e limitação temática”. Um cinema que pode parecer “perverso”, e indicando o caminho do underground, ele conclui: “um cinema para poucos, terrível demais e decadente demais para o homem médio de qualquer cultura organizada. Mas, pensando bem, se todos gostassem de Baudelaire, de Sade ou de Burroughs, o que seria da humanidade, meu Deus”. Mas falta ainda um elemento para compreender a conversão profana de Mekas. Retomemos à sequência, em especial à sua dança com a câmera. Seria necessário pensar a dimensão performática do filmar de Mekas na sequência Flaherty e sua ruptura com uma estética anterior a partir da arte da performance e do happening 238
americanos dos anos 60. No seu modo ritualístico de filmar há o mesmo deslocamento do “ver” para o “experimentar”, da “visão” para o “corpo”, do “estar fora” para o “estar dentro”, encontrada em boa parte da arte nos anos 60 e 70. Em um texto visionário de 1958, escrito dois verões depois da morte prematura de Pollock, Allan Kaprow, figura central como artista e teórico nos anos 50 e 60, em especial para a vanguarda nova-iorquina, irá ligar a arte “de amanhã”, a do happening, termo por ele inventado, a uma tradição começada em Pollock. Para Kaprow, Pollock é a encarnação do desejo dos artistas americanos de libertarem-se da tradição europeia da arte da pintura, virando “as velhas mesas cobertas de quinquilharia e champanhe choco”. A sua maneira de pintar, a assim chamada “dança do dripping” - em que o pincel não encosta na tela mas passa sobre ela em gestos velozes, durante os quais a tinta escorre, cai e se fixa como rastro de uma passagem em telas gigantes, esticadas no chão - dá “um valor quase absoluto ao gesto habitual”.12 Não se trata mais da tela como o resultado de uma imagem planejada, composta, mas do rastro de um acontecimento – nas muitas fotos que
Hans Namuth fez de Pollock trabalhando, vemos o pouco recuo que o pintor tinha de suas telas, era-lhe impossível tomar distância para avaliar cada pincelada dada e planejar a seguinte. Kaprow conclui:
Passar a nos preocupar com o espaço e os objetos da
nossa vida cotidiana, e até mesmo ficar fascinados por eles, sejam nossos corpos, roupas e quartos, ou, se neces-
O que temos, então, é uma arte que tende a se perder
fora de seus limites, tende a preencher consigo mesma o nosso mundo; arte que, em significado, olhares, im-
pulso, parece romper categoricamente com a tradição de pintores que retrocede até pelo menos os gregos. O fato de Pollock se aproximar de destruir essa tradição pode muito bem ser um retorno ao ponto em que a arte
estava mais ativamente envolvida no ritual, na magia e
na vida do que temos conhecimento em nosso passado
recente. Se for assim, trata-se de um passo extraordina-
riamente importante que, em última instância, fornece uma solução para as queixas daqueles que exigem que coloquemos um pouco de vida na arte.
‘quase-pinturas’”, ou desistir completamente de fazer pinturas e:
13
Para Kaprow, o artista, depois de Pollock, tem duas possibilidades: continuar a fazer o que Pollock fazia, variando sua estética e contentando-se com “boas
sário, a vastidão da rua 42. (...) Esses corajosos criadores
não só vão nos mostrar, como que pela primeira vez, o
mundo que sempre tivemos em torno de nós mas ignoramos, como também vão descortinar acontecimentos e eventos inteiramente inauditos, encontrados em latas de lixo, arquivos policiais e saguões de hotel; vistos em
vitrines de lojas ou nas ruas; e percebidos em sonhos e
acidentes horríveis. Um odor de morangos amassados,
uma carta de um amigo ou um cartaz anunciando a venda de Drano; 3 batidas na porta da frente, um ar-
ranhão, um suspiro, ou uma voz lendo infinitamente, um flash ofuscante em staccato... tudo vai se tornar material para essa nova arte concreta. (...) Jovens artistas
de hoje não precisam mais dizer “sou pintor”, “poeta”,
“dançarino”. Eles são simplesmente artistas. Tudo na vida está aberto a eles. Descobrirão, a partir das coisas
ordinárias, o sentido de ser ordinário. Não tentarão
239
torná-las extraordinárias, mas vão somente exprimir o seu significado real.14
Para as artes da performance e do happening, nos anos 60, à tradição opõe-se o ritual e o mergulho no presente; ao cânone, o banal e ordinário. Não se trata de aproximar a arte da vida, trata-se, em última instância, de fazer com que não haja distinção entre um e outro. “O happening é concebido como arte”, dirá Kaprow em um texto de 1963, “mas por falta de uma palavra melhor. Eu, pessoalmente, não me incomodaria se ele fosse chamado de um esporte...”15 O texto é do mesmo ano do manifesto Fluxus, a comunidade que talvez melhor represente os ideais anárquicos das artes nos anos 60. Informalmente organizado por George Maciunas, o grupo que tinha artistas como George Maciunas, Yoko Ono, John Cage, Joseph Beuys, Paul Sharits, Nam June Paik entre seus membros defendia a “arte-diversão” (art-amusement) que, em si, deveria ser “simples, divertida, voltada para insignificâncias, e sem necessidade de qualquer habilidade ou ensaio”.16
Seria importante inserir a criação da Film Makers Cooperative e o texto de Stan Brakhage, “Metáforas da visão”, dentro dessa nova “tradição” americana e antieuropeia,17 defensora de uma prática artística que busca suas fontes, temas, e materiais em qualquer lugar ou período, menos nos regimes legitimados da arte. No cinema esse distanciamento de um saber e uma técnica rumo a uma aproximação maior com a vida, se realiza, sobretudo, na defesa do amadorismo. Maya Deren, cineasta e grande agitadora do cinema independente americano no pós-guerra,18 exortando os amadores a filmar, dirá “use sua liberdade para experimentar: seus erros não causarão sua demissão”.19 Brakhage, o mais antieuropeu dos cineastas americanos, celebra na liberdade do amador o caminho para a beleza verdadeira e genuína, oposta às mentiras e armadilhas da “cultura”: Um amador é aquele que realmente vive sua vida, e
não simplesmente performa uma tarefa. (...) Ao invés
de ir para a escola, aprender o seu trabalho para que possa passar o resto da vida fazendo-o obedientemente,
o amador está, portanto, eternamente aprendendo e crescendo através do seu trabalho numa desajeitada e contínua descoberta que é bonita de se ver.20
240
Para ele, a invenção do cinema depende do olhar puro e amoroso do amador. Em “Metáforas da visão”, escrito um ano depois da fundação da Coop, ele dirá: O filme, ainda embrião, não possui linguagem e fala
como um aborígene... retórica monótona. Abandone a estética...a imagem cinematográfica sem bases religiosas, sem catedral, sem forma artística, inicia sua busca de
Deus. (...) Negue a técnica, pois o cinema, tal como a
América, ainda não foi descoberto. (...) Deixe estar o cinema... Ele é algo que vem a ser.21
Conjugando coletividade, estilo amador e uma notável reverência pela natureza, a sequência Flaherty conclui um processo de adaptação pessoal, estético e cultural de Mekas aos Estados Unidos que vinha sendo apresentado desde o início de Lost Lost Lost. Ela também marca sua conversão: à ruptura com a velha igreja seguese a fundação da “Ordem”. Enquanto Mekas e seus companheiros respiram a “manhã Flaherty” e comungam com a manhã, o cinema “respeitável” fica “sem ar”, em sua “catedral”, protegida pelas paredes brancas que voltam insistentemente ao longo da sequência e simbolizam a separação.
Embora não exista nenhuma menção em LLL à data da viagem para o seminário Flaherty, não há dúvida de que estamos em 1963. Logo antes tínhamos acompanhado o lançamento de Twice a Man, de Markopolous e o filme, junto com Flaming Creatures e Blonde Cobra, são as grandes estrelas do ano de 1963. A censura em torno de Flaming Creatures, e a prisão de Mekas que tenta exibi-lo a despeito da censura, são acontecimentos que naquele ano extrapolaram os limites do pequeno mundo do cinema underground e ganharam visibilidade em colunas de jornais não especializadas em cinema, muito menos em cinema experimental.22 A ausência em lll de datação para essa sequência é um dado importante, pois os quatro primeiros rolos são pontuados com cartelas indicando o ano e a estação. Apenas os rolos 5 e 6 não possuem nenhuma informação nesse sentido. Essa ausência pode ser explicada da seguinte maneira: a partir daquele momento, o cinema underground existe como fato histórico, capaz de marcar o tempo. Frequentando um território semântico com a mesma grandeza bíblica que o de Mekas, Brakhage, Kaprow e Maciunas, seria possível dizer que o ano de 1963 marca o início de um “novo tempo” no cinema underground.
241
A ideia de coletividade está marcada na sequência de diferentes formas: na cartela que anuncia a autoria partilhada das imagens (Ken e Jonas), no fato de que eles levam filmes de outros cineastas (Jack Smith não está presente) para exibição, e na insistência com que os rostos dos presentes aparecem em close, reafirmando que eram muitos os “monges da ordem”. À essa coletividade responde uma nova estética, anárquica, aberta ao novo. O uso do termo não é sem problemas, pois enquanto o “velho” pode ser delimitado, descrito e identificado, o novo é simplesmente a abertura ao possível. Sem função dêitica, não sendo “isso” nem “aquilo” - se fosse, já seria velho – ele é o que pode ser inventado a cada instante e para o qual a experiência não tem modelo de comparação. Chamo uma citação de Mekas em defesa de Brakhage que pode iluminar um pouco a ideia de abertura atribuída à sequência Flaherty: Simplesmente por serem novos, Brakhage e Breer contribuem para a liberação do espírito humano da matéria
morta da cultura; abrem novos panoramas para a vida.
Nesse sentido, uma arte velha é imoral – ele mantém o espírito humano atado à cultura. A destrutividade do
artista moderno, sua anarquia, como nos happenings,
242
ou ainda, mesmo na action painting, é, portanto, a con-
firmação da vida e da liberdade.23
As imagens de Mekas na sequência Flaherty são como rastros de um corpo. Isso, e o caráter ritualístico de comunhão com um tempo e um lugar, é reforçado pela montagem. Assim como as fotografias de Hans Namuth com a obra de Pollock, a sequência Flaherty, ao contrapor na montagem as imagens de Jacobs filmando Mekas com as de fato produzidas por Mekas, abre toda a obra anterior do cineasta, em especial Walden, para o seu fora de campo. Mais que isso, ela cria, retrospectivamente, um momento originário, iluminatório; afinal, o espectador reconhece naquelas imagens imprecisas as imagens futuras que Mekas fará – e que o espectador já conhece. Apesar do que as datas de lançamento sugerem, Walden (1969) deve ser visto como a continuação de Lost Lost Lost (1975). Enquanto o último registro de LLL é de 1963, o primeiro de Walden é de 1966. Logo no início desse filme, durante imagens do primeiro de muitos casamentos que veremos, Mekas cantará em voz over: I make home films, therefore I live. Gostaria de pensar essa
sequência como a continuação da sequência Flaherty. O fato dela se passar em uma igreja, é só um dos motivos. Há outros: como os casamentos, ela marca o início e a promessa de uma nova vida, mas é principalmente o uso da palavra casa na voz over que chama a atenção. Casa: a palavra, enunciada por um refugiado que “nunca quis sair de sua casa. /Que era feliz. /E viveu entre as pessoas que conhecia e falavam sua língua”, tal como ele diz no inicio de Lost Lost Lost, merece atenção. Em Walden a casa não está mais em outro lugar, ela é Nova York, mais especificamente a comunidade das vanguardas artísticas com quem Mekas convive e cujos encontros registra livremente. Indo mais longe e lembrando-nos de que na apropriação da máxima cartesiana a palavra “casa” vem ao lado de “filme”, também poderíamos dizer: na Walden de Mekas a casa está no filme Walden.24 Quero dizer, ela é fundada na experiência de filmar. “Eu faço filmes de família, portanto vivo” pode ser lido como: não há mais diferença entre filmar e viver, entre ser e estar. Não há uma vida a ser vista ou mostrada, há um viver filmando... A travessia foi completa, e nessa chegada, nessa adaptação, o cinema de família é o lugar. Não o cinema de lá, enterrado nas
catedrais, sabendo “a champanhe choco”, para usar a caracterização de Kaprow para a cultura europeia, mas um cinema que inicia sua busca por Deus e inventa para si uma nova tradição: a do olhar amador. Nesse ponto de ruptura com uma tradição, uma história e um cânone, vale trazer a lembrança um pequeno filme de Brakhage feito em 1960 durante uma viagem à Paris, quando filmou em preto e branco o cemitério Père Lachaise, e em cor pessoas andando às margens do Senna. Apesar da diferença cromática, ambos os lugares são filmados da mesma maneira, em travelling lateral, o que permitia que a montagem pudesse ora criar continuidade entre um e outro ao intercalá-los, ora fundi-los em sobreposições. O título não deixa dúvidas sobre sua impressão da cultura europeia: The Dead.
243
Ateliê de Jackson Pollock, fotografia de Hans Namuth Notas 1. Com o uso de barras tento reproduzir as pausas e ênfases da narração de Mekas
Lost Lost Lost (1975) 244
2. “Displacement camp”, ou “D.P. camp”, criados no final da II Guerra Mundial pelas forças aliadas para acolher dois milhões de sobreviventes dos campos de trabalho forçado, prisioneiros de guerra e refugiados políticos (na sua maioria opositores do
regime soviético) que, embora libertados, não podiam ser repatriados. 3. Cf. Completamente perdido diante de Lost Lost Lost. Scott MacDonald. In: MOURÃO, Patrícia (org). Jonas Mekas. São Paulo: Pró Reitoria de Extensão Universitária da USP, 2013. p. 143-164. 4. Idem. 5. MEKAS, Jonas. The experimental film in America. In: SITNEY, Adams P. (org). Film Culture Reader. Nova York: Cooper Square Press, 2000. p. 25-26. 6. No editorial Mekas justifica a decisão enfatizando o desejo da Film Culture de “revitalizar o ‘movimento experimental’ dormente. (…) há sinais de que ele esteja começando a andar novamente. Há uma grande onda de atividades começando nas duas costas [americanas].” 7. Primeira Declaração do Novo Cinema Americano. O GRUPO. In: MOURÃO, Patrícia (org). Jonas Mekas. São Paulo: Pró Reitoria de Extensão Universitária da USP. 2013. p. 32 8. É a esse caldo de questões e inquietações que responde o primeiro filme de Mekas, e até hoje sua única ficção, The Guns of the trees, codirigido por seu irmão Adolfas e com a colaboração conflituosa de Edouard de Laurot. Exalando o clima beat, e com a participação direta Allen Ginsberg, o filme traça um retrato a um só tempo desesperado e visionário da juventude americana asfixiada pelo maquinário e ideologia da guerra e do consumo de massa. A partir da história cruzada de dois casais, um branco e um negro, e deixando espaço suficiente para a improvisação a ponto do filme quase perder-se, o filme aborda essa juventude em vias de uma explosão que poderia ter duas consequências distintas: o nascimento, possibilidade de recomeço; o suicídio, submissão total à impotência.
9. Os signatários da Primeira Declaração do Novo Cinema Americano a encerravam sinalizando uma aliança de interesses internacional: “Estamos nos unindo para construir o Novo Cinema Americano. E o faremos juntamente com o restante dos Estados Unidos e com o restante da nossa geração. Crenças comuns, conhecimento comum, raiva e impaciência comuns nos liga – e também nos liga aos movimentos de cinemas novos do resto do mundo. Nossos colegas na França, Itália, Rússia, Polônia ou Inglaterra podem contar com nossa determinação. Tal como eles, estamos fartos da Grande Mentira na vida e nas artes. Tal como eles, não somos apenas pelo Novo Cinema, somos também pelo Novo Homem”. 10. As críticas vinham em especial de Amos Vogel, crítico e fundador e programador do Cinema 16, o principal exibidor de filmes independentes americanos entre 1947 e 1963. De fato, parte da motivação da fundação para a Film Makers Coop veio da recusa de Vogel em exibir Antecipation of the night, de Brakhage, nessas sessões. 11. MEKAS, Jonas. Sobre o cinema baudeleriano. In: MOURÃO, Patrícia. Op cit. p.79. 12. NOGUEZ, Dominique. Une renaissance du cinéma: Le cinéma underground américain. Paris, Klincksieck, 1985. 13. KAPROW, Allan. O legado de Jackson Pollock. In: COTRIM, C. FERREIRA G. (orgs) Escritos de artistas, anos 60 /70. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006. p.40. 14. Ibid, p. 43. 15. Ibid, p. 44-45. 16. Kaprow, Allan. The arts and the mass media. In: Harrison, Charles (org). Art in theory, 1900-2000. EUA, Blackwell Publishing, 2004. p 718.
245
17. Manifesto Fluxus, Op cit. 18. O antieuropeísmo é uma marca da produção americana nesse momento declarada em vários manifestos. No manifesto Fluxus, por exemplo, George Maciunas clamará: “Purifiquem o mundo da doença burguesa, da cultura comercializada, intelectualizada e profissionalizada. Purifiquem o mundo da arte morta, artificial, abstrata, ilusionista, matemática, da imitação. Purifiquem o mundo do Europeísmo!”. 19. O foco em Jonas Mekas não deve obscurecer nem diminuir os esforços de pelo menos mais dois outros protagonistas no fortalecimento o campo do cinema experimental na costa leste americana: Amos Vogel (cf. nota 6) e Maya Deren. Entre 1946 e 1947, Deren alugou um teatro em Greenwich Village para promover sessões com os seus filmes, destinados à invisibilidade caso ela não os mostrasse dessa maneira. Em 1953, ela fundou a Film Artists Society, logo depois rebatizada como Independet Film Makers Association, e em 1955, a Creative Film Foudation, organização não lucrativa que visava angariar financiamento para cineastas independentes. 20. DEREN, Maya. Amateur versus Professional. In: McPHERSON, Bruce (org). Essential Deren. Nova York: McPherson & Company, 2004. p.17 21. BRAKHAGE, Stan. In defense of the amateur. In: McPHERSON, Bruce (org). Essential Brakhage. Nova York: McPherson & Company, 2004. p. 145. 22. BRAKHAGE, Stan. Metáforas da Visão. In: XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema. São Paulo: Graal, 2008. p. 344. 23. Cf. ARTHUR, Paul. Routines of emancipation. JAMES, David E. (org.) “Free the cinema: Jonas Mekas and the New York Underground”. Princenton University Press, 1992, pp. 17-49.
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24. MEKAS, Jonas. Notas sobre o Novo Cinema Americano. In: MOURÃO, P. Op cit. p.40. 25. Lembrando que a nova igreja de Mekas está situada na natureza - “estava silencioso, como uma igreja” - valeria chamar Henry David Thoreau, autor de “Walden, ou a vida nos bosques” para fazer a ponte entre a sequência Flaherty e Walden. Publicado em 1854, o livro é um elogio à vida simples em meio à natureza e uma defesa da retirada como estratégia legitima para o homem que não se adapta ou não concorda com as regras do bem viver social. A oposição de Thoreau era ao empobrecimento da vida e às concessões que o homem precisava fazer em prol do desenvolvimento e da modernização. Na base de toda sua argumentação está a defesa da liberdade incondicional do indivíduo, a qual ele tinha se dedicado em “Desobediência civil”. Para ele, qualquer autoridade que não respeite inteiramente o indivíduo deve ser rechaçada. Assim como se pode reconhecer no transcendentalismo de “Walden” as bases para uma utopia hippie e as comunidades alternativas nos anos1960, “Desobediência Civil” é um marco na filosofia política americana, particularmente influente na configuração da Nova Esquerda e a partir de onde se pode entender melhor o estranho cruzamento entre individualismo e esquerda americana. Que o livro tenha sido lançado em 1949, um ano, portanto, após a publicação, na Europa, do Manifesto Comunista, é só mais uma dessas coincidências que poderiam ser usadas para pensar os desdobramentos, um século depois, do projeto estético europeu e americano.
Jonas Me kas e o filme-diário* Paul Adams Sitney
Ele costuma dizer, com alguma ironia, que foi levado Americano, ele perdeu uma nação e com ela o Deus dos patriar- a seu modo diarístico de fazer cinema porque seu tracas. Ele perdeu Walden; chamem-lhe Paraíso; ele é tudo o que balho em prol de outros cineastas não permitia que ele há para ser perdido. O objeto da fé esconde-se dele. Ele sabe se dedicasse a preparar e filmar os longas de ficção que onde encontrá-lo, na verdadeira aceitação da perda, a recusa havia inicialmente sonhado em produzir. Ele tinha que de qualquer substituto para a recuperação da verdade.1 filmar nos tempos livres que dispunha, onde quer que estivesse, sem planejamento. Com frequência, o mateStanley Cavell rial filmado permanecia guardado por anos, sem edição. Pressionado por exigências de prazos e compromissos Jonas Mekas, o maior expoente do cinema de vanguarda públicos assumidos por ele, trabalhava na montagem americano e fundador de várias de suas instituições de um filme noite após noite, enquanto mantinha sua fundamentais, é o único cineasta que discuto neste agenda do dia na Filmmaker’s Cooperative, na revista livro que começou sua carreira cinematográfica com Film Culture, ou no Anthology Film Archives. um longa de ficção em 35mm: Guns of the Trees (1962). De fato, como crítico e editor ele chegou mesmo a Desde sua juventude, foi um poeta importante em sua revelar certa hostilidade a alguns aspectos do cine- língua nativa. Enquanto ajudava seu irmão, Adolfas, ma experimental nativo – aspectos que mais tarde ele na produção de seu primeiro filme, Hallelujah the Hills promoveria e defenderia a ferro e a fogo. (1962), em Vermont, usava seu tempo livre estudando a poesia de William Blake e explorando a possibilidade Como todo adulto, ele perdeu sua infância; como todo
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de adaptar a forma do haiku para o cinema, como sua amiga Maya Deren havia tentado (em um trabalho que deixou incompleto e inédito até sua morte, em 1961).
precisar isolar uma passagem legível. Indiretamente, esses momentos afirmam a centralidade e a privacidade da leitura, sua preservação refratária à invasão do cinema. Ele faria o mesmo com o texto de Thoreau em seu próprio Walden.
Foi durante as filmagens do que ele mais tarde chamou Rabbitshit Haikus, que Peter Beard deu a ele uma cópia de Walden, de Henry David Thoreau. Mekas conhecia Diaries, Notes and Sketches (1969), filme seguinte de a tradução alemã de Thoreau, a qual teve acesso no Mekas de muitas partes autônomas, seu trabalho de campo de displaced person, em Wiesbaden, cerca de toda vida no cinema, começou não como Walden, ou dezesseis anos antes, mas o original o arrebatou com como um volume de seus filmes-diário. Quando coa força de uma descoberta. Recém graduado em Yale, meçou a filmá-lo, ele tinha a ideia de representar Nova Beard estava prestes a publicar The End of the Game, Iorque pelos olhos de uma adolescente. Ele estudou um livro de fotografias sobre a vida selvagem africana. algumas cartas e diários de adolescentes e filmou alLogo depois de ser apresentado aos Mekas por seu tio gumas garotas – filhas de amigos e colegas, babás que Jerome Hill, Beard foi convidado por Adolfas para atuar trabalhavam para os produtores David e Barbara Stone como protagonista em Hallelujah the Hills. – no Central Park. Tinha também em mente filmes subsequentes de diários ficcionais de homens e mulheHá imagens de Mekas lendo Blake em Haikus, tal como res dez, vinte, trinta anos mais velhos que a primeira ele havia mostrado a si mesmo estudando Prometheus garota de quinze anos. Tudo o que restou deste projeto, Unbound, de Shelley, em Guns of the Trees. Na verdade, sua fantasia derradeira de um ventriloquismo cinemaele corria a câmera sobre uma página do livro, conscien- tográfico, são testes de filmagem de jovens mulheres te de que poucas palavras em diversas linhas verticais no parque, que foram incorporados depois em Walden. em foco não poderiam ser lidas em sequência pelo A garota adolescente cede seu lugar de protagonista espectador, para enfatizar a importância do texto sem do filme ao próprio cineasta, que é visto inicialmente 248
tocando seu acordeão, depois ouvido na trilha sonora. A diminuição de sua importância resulta, a princípio, da multiplicidade de figuras adolescentes: todos os testes foram usados, de modo que essas mulheres tornam-se objetos fugazes da atenção do cineasta, mais do que figuras através das quais ele vê Nova Iorque. Por não estarem identificadas por intertítulos, elas ganham menor relevância no filme que suas amigas e colegas nomeadas. Mesmo assim, assombram o filme como se fossem cargas elétricas pesadas, nódulos de investimento emocional que o diretor não explica.
o espectador de 1968, sem conhecer essa história, será confrontado com um filme inefável, paratáctico, desde seu argumento geral à sua própria forma de difícil precisão. O Walden de Thoreau é uma narrativa sobre uma experiência, uma nova vida; a descrição de um lugar distante como cenário para as ações do ser; as meditações de um obsessivo diarista num ensaio difuso, porém bem delineado. O filme de Mekas segue o livro que inspirou seu trabalho metaforicamente como uma crônica da vida cotidiana do autor, fazendo de Nova Iorque (e emblematicamente do Central Park) o foco de observação de um sujeito isolado confinado em um Uma situação similar de aparente criptografia hermé- quarto individual no Chelsea Hotel, e transformando tica pode ser facilmente explicada em retrospecto. No a forma do diário num ensaio sobre a vida como arte, clímax da passagem central “visita aos brakhages”, um identificando apenas o necessário dos acontecimentos intertítulo aparece “encontrei a bosta do coelho!”.2 e personagens para manter a superabundância daquilo O lançamento de Lost, Lost, Lost (1976) sete anos depois que permanece inominável. traz de novo este estranho clímax, revelando Rabbit shit Haikus e narrando a parábola da busca pelo fim Aqui, o diretor representa a si mesmo como intrépido da estrada. e alegre, com momentos melancólicos. Algumas vezes ele brinca, banca o tolo (mas nunca tão abertamente A alusão é, assim, o afloramento da narrativa autobio- quanto em Lost, Lost, Lost ou In Between, 1978). Pouco gráfica que Mekas excluiu de Walden a fim de compor antes, ele recita seu próprio cogito: “Vivo, logo faço o filme no ritmo e fluidez da vida cotidiana. Entretanto, filmes. Faço filmes, logo vivo. Luz. Movimento. Faço 249
home movies, logo vivo. Vivo, logo faço home movies,” Aqui e em outras passagens do filme, Mekas intere em seguida canta: rompe sua tristeza com voos de alegria: a visita a Yoko Ono e John Lennon em Montreal na cama pela paz,3 Eles me dizem que devo estar buscando algo. o aniversário de Blake Sitney – meu filho e afilhado de Mekas – e o final com uma garota no Central Mas apenas celebro o que vejo. Park examinando uma folha de capim. Seus modelos Não estou em busca de nada. formais são as mais significativas reflexões e cantos Sou feliz. autobiográficos americanos: Walden, Song of Myself, Que esta euforia é defensiva já foi sugerido por um os diários de Emerson. As dilatações e retrações do intertítulo, “dias mórbidos de nova iorque & me- espírito acontecem de repente, de maneira imprevisível, lancolia”, e numa conversa gravada com Barbara nestas extensas obras. Stone na qual ela lhe diz que havia sonhado que ele tinha morrido. Ele responde: “O que é isso? Eu não David James interpreta o final do filme como uma vou sequer pensar nisso. Nunca me senti tão bem em rejeição às convenções do cinema de vanguarda: minha vida!” Ao longo da extensa esfoliação do filme, as intervenções verbais de Mekas vão se tornando cada No último movimento do filme, após retornar da casa vez mais sombrias. Seu discurso final, dez minutos dos Brakhage, ele explica sua própria prática como uma antes do fim, retoma uma mórbida melancolia: “Quis percepção pessoal definida não contra Hollywood, mas tomar o metrô. Eles não aceitam mais notas de cinco contra a vanguarda, que agora se revela vil, comercialidólares. Caminhei até o Hector’s. Eles têm o mínimo. zada e sensacionalista. O argumento é dramatizado em Comi uma torta, uma torta terrível... O lugar estava uma longa sequência na qual Adolfas dirige cenas de tão desolado que meu corpo estremeceu. A torta ficou Hallelujah the Hills para uma equipe de TV alemã que presa em minha garganta”. está filmando um documentário sobre cinema underground... Ridicularizando e atacando ferozmente o que
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se tornou clichê do underground, ele retorna ao registro
de sua vida cotidiana, afirmando que filma apenas para si mesmo, e termina o filme com uma amiga num belo
dia de outono no Central Park.4
Embora tenha notado de modo preciso que a sequência final da equipe de TV alemã seja crucial para compreender a forma e o tom de Walden, James enfatizou sobremaneira a ironia de Mekas, distorcendo, assim, seu foco. Não se trata de qualquer produtor alemão, mas de Gideon Bachmann, colaborador de Mekas desde seus primeiros dias em Nova Iorque, que retornava à América, depois de passar os anos de 1960 trabalhando na Europa, a fim de documentar o movimento que ele havia perdido e que Mekas havia liderado. A viagem para as filmagens em Nova Jersey, na verdade, reproduz acontecimentos de meados dos anos de 1950, os quais Mekas dará relevância em Reminiscences of a Journey to Lithuania (1972) e mostrará brevemente em Lost, Lost, Lost.
e que estamos nos divertindo” – é uma metalepse para sua própria hostilidade ao cinema de vanguarda nativo quando ele era colaborador de Bachmann. Nessa época, ele chegou inclusive a trabalhar numa paródia abortada sobre filmes de vanguarda com Edouard de Laurot. Assim, estamos em mais de duas horas em Walden, quando o diretor indiretamente representa sua atitude crítica anterior à sua conversão ao cinema de vanguarda. Ao mesmo tempo, durante todo o filme, há retratos de seus mentores – Marie Menken, Stan Brakhage, Hans Richter – e dos diretores que admira: Ken Jacobs, Gregory Markopoulos, Andy Warhol, Naomi Levine, Shirley Clarke.
Se assistirmos a Walden como um filme sobre uma escolha artística, estes retratos desempenham um papel crítico na filiação do diretor, nada mais significativo que a visita à casa de Brackhage nas montanhas do Colorado, onde Mekas encontra o ícone de sua singularidade, sua musa inspiradora, a bosta do coelho,5 A sátira de Mekas sobre o “filme underground ” – muito embora seu significado estivesse oculto aos outros “Quem sabe na Alemanha!” ele diz, “Deixemos que naquele momento. Em sua viagem aos Brakhage ele acreditem que é assim que se faz um filme underground, “chega ao fim da estrada”, quando reconhece que seu 251
projeto autobiográfico é uma anedota sem fim. Como todas as anedotas, sua condição é o prolongamento de sua narrativa, não seu telos.
Mesmo que você diga que foi uma piada, não posso
Inicialmente, em Metaphors on Vision, publicada por Mekas, Brakhage escreveu sobre George Méliès:
de perdão pela insistência em relação ao apoio para o
Pode-se, com uma grande coragem, tornar-se Méliès,
este homem incrível que deu à “arte do filme” seu nascimento na mágica. No entanto, Méliès não era bruxo, mago, padre, ou mesmo feiticeiro. Ele era um ilusionista
do século XIX. Seus filmes são coelhos... Caso você não
saiba que a “mágica” está no domínio do “imaginável”,
este momento começa quando o que é imaginado morre, é invadido pelo pensamento e se conhece antes que se
acredite nele. Assim, a “realidade” estende suas cercas e
cada um é encorajado a aguçar seus sentidos. O artista é aquele que salta a cerca à noite, espalha suas sementes
entre os repolhos, sementes híbridas inspiradas tanto pelo jardim quanto pela floresta do juízo-final onde apenas os loucos e os tolos vagueiam.6
Entretanto, no último capítulo do mesmo livro, ele critica Mekas por usar a mesma metáfora senso-comum do artista como tolo: 252
deixar de me incomodar com o fato de você se referir à Cooperativa como um “monastério de tolos.” ... Acho
que chegou a hora de abandonar essa forma Neanderthal esforço criativo. Acho que chegou a hora de se livrar do “chapéu de burro”.7
Em muitas de suas auto-representações em Diaries, Notes and Sketches (não apenas em Walden), Mekas se faz de tolo. Apontar a bosta do coelho tão enfaticamente representa tal gesto. Fazer isso no clímax da “visita aos brakhages” é um gesto de autoafirmação e autonomia poética frente a seu maior precursor. O canto sobre home movies é um cogito de tolos. Casa é a palavra complexa desta equação; quando Mekas eleva a produção de filmes íntimos e amadores a um princípio existencial, ele está também declarando que fazer home movies é seu modo de vida. Mas o que significa casa neste filme? O segundo uso da palavra em Walden inicia um corte dramático: após a saudação de abertura da primavera que inclui um retrato dos diretores “tony conrad e beverly grant na sua casa da segunda avenida”, ele mostra a si mesmo
na cama, incapaz de dormir; a cartela “eu pensei em processo de educação idealista). Mas sobre o primeiro casa” introduz, de repente, uma cena idílica de bar- e mais acessível estágio, ele escreve: cos num lago (na verdade no Central Park), seguida imediatamente pela cartela “walden” e a primeira Neste casos, por meios mecânicos, é sugerida a diferença das adolescentes acariciando uma flor no parque. A entre o observador e o espetáculo, - entre homem e namontagem equivale casa a Walden, sugerindo que eles se tureza. Dessa maneira, irrompe um prazer misturado ao unem num lugar remoto, inacessível, perdido, irradiado espanto; posso dizer que um pequeno grau do sublime pela luz idealizada da memória (e, no entanto, mostra é sentido, provavelmente, pelo fato de que o homem que este lugar está a cerca de quarenta quarteirões de é por meio deste instruído que, enquanto o mundo é seu quarto no Chelsea Hotel). um espetáculo, algo dentro dele permanece estável.8 A passagem de Natureza, de Emerson, ao qual retorno várias vezes neste livro aparece no capítulo “Idealismo”. Em uma análise dos cinco estágios sobre “o maravilhoso despertar dos poderes superiores”, a natureza floresce no pensamento. O primeiro estágio, a conspiração da natureza e do espírito, envolve uma série de experiências cinéticas, acessíveis tanto ao artista quanto ao amador, que compreendo aqui como fundamental à nossa estética nativa: cenas vistas de um balão, de um carro em movimento, de um vagão de trem, na câmera escura, ou com a cabeça entre as pernas. (Poesia, filosofia, ciência e religião são os quatro estágios subsequentes propostos por Emerson neste
No fragmento da montagem que começa com “eu pensei em casa” Mekas alcança “um pequeno grau do sublime”, percebendo e demonstrando a flexibilidade das cartelas e imagens à mão propondo a transferência de um prazer imediato à reflexão. Muito mais tarde no filme, ele dirige ao espectador um aspecto dessa troca: E agora, caro espectador, enquanto você se senta e assiste
e enquanto a vida nas ruas continua apressada... As
imagens fluem, sem tragédia, sem drama, sem suspense. Apenas imagens, para mim e para alguns outros...
253
essas imagens, eu acho, como a vida vai continuar, não
brincando em um campo, com a cartela: “laukas, um campo, tão vasto quanto a infância”. Uma hora pela manhã, e talvez nem mesmo árvores, ou flores, depois, lemos “na fazenda tabor lituanos dançam pelo menos não em tal abundância. Isto é Walden, é até o amanhecer”, enquanto a voz over, que começa Walden o que você vê. a ganhar o tom melancólico que irá dominar o final do filme, comenta sua falta de sonhos e o medo de andar Se Walden é um nome para casa, e para o que você descalço: “Estou realmente perdendo lentamente tudo vê, ele é um estado de espírito, um investimento no o que trouxe comigo de fora?” O “fora” é uma perífrase momento presente ao mesmo tempo em que passa por marcante para sua juventude no Báltico e um princíuma revisão sob a ameaça da destruição. Nos volumes pio estruturante não revelado no filme. O diretor não posteriores dos diários em filme, ele irá por vezes cha- nos informa que a fazenda Tabor, próxima a Chicago, mar esta condição de paraíso. A filmagem em staccato abriga anualmente um festival lituano. Reminiscences orquestra mudanças abruptas no ritmo aparente das of a Journey to Lithuania e Lost, Lost, Lost vão revelar coisas, é o “meio mecânico” para sugerir “a diferença muitas dessas alusões encobertas. entre o observador e o espetáculo”, uma diferença que transforma o espetáculo do mundo em “imagens, para A ausência de informações autobiográficas explícitas mim e para alguns outros”. torna-se um tropo da intimidade. O primeiro dos muito estarão aqui por muito tempo... Não haverá mais barcos
Mas em nenhum lugar do filme casa está explicitamente associada à Lituânia de sua infância. De fato, não há nenhuma menção à Lituânia em si em Walden. A palavra lituana para campo aparece em um intertítulo no extenso episódio “uma viagem a millbrook”: no retiro rural de Timothy Leary, ele filma uma menina 254
casamentos, aos oito minutos de filme, é o único não completamente identificado, e no entanto, o mais importante para o filme. Seu irmão, Adolfas, casouse com Pola Chapelle em 1965. “al muda-se” segue-se ao casamento. Há uma imagem de um apartamento vazio, e então um corte abrupto para o diretor na França, “café da manhã em marseilles”. Dessa maneira,
de forma elíptica e anti-dramática ele representa a mudança em sua vida que sustenta todo o filme: pela primeira vez Mekas começa a viver sozinho.9 Assim, seu Walden começa com esta quase tácita, certamente estoica aceitação de uma forma de solidão. Adolfas compartilhou com ele o voo da Lituânia, o trabalho forçado e os campos para displaced person, e a migração para a América, onde eles ficaram separados brevemente pela passagem de Adolfas no exército e uma breve estadia no México. De acordo com a lógica associativa do filme, a vocação órfica de Jonas como realizador de home movies coincide com a dissolução da casa que ele e seu irmão construíram no exílio. A particularidade dessa solidão é que ela é apresentada como reflexo de uma vida social extraordinariamente ativa em meio a uma profusão de conhecidos e na companhia de algumas pessoas ilustres e glamurosas. Ele disse a Scott MacDonald que havia sido e continuava a ser extremamente tímido, e que tinha tido poucos contatos sociais e “nenhum amigo, ninguém” nos dois anos em que Adolfas esteve no exército e no México, mas que havia desenvolvido “técnicas para encobrir” sua timidez.10 Num certo sentido, a mais bem
sucedida e radical dessas técnicas foi filmar a sociedade que encontrou. Ele insinua em Walden que a câmera funciona como um escudo, protegendo sua timidez do ambiente em que filma. Além disso, destacando do meio social seus sons e conversas, substituindo a música e o ruído e, acima de tudo, valendo-se da disjunção entre som e imagem, ele instaura uma série de tropos para a solidão de um observador que raras vezes se sente em casa na sociedade. Embora Mekas nunca retrate a si mesmo deixando Nova Iorque, muitas vezes o vemos fora ou retornando. No que tange às duas aparições do substantivo casa como imagem mental na cartela “eu pensei em casa” no início e no final do filme, o advérbio de direção casa aparece duas vezes: na primeira podemos ler – “voltando para casa do st. vincent college” – no começo do filme – e na segunda escutamos muito tempo depois: “Outro dia, voltando para casa de Búfalo de manhã cedo, retornando de longe, retornando para Nova Iorque de trem, o trem voltava-se sempre para o amanhecer.” Nas duas vezes, ao filmar o amanhecer de um trem em movimento, ele confere à cidade o ar pictórico que Emerson havia profetizado. Ele repete 255
seu tropo algumas vezes mais no filme sem o reforço do advérbio casa; pela própria propulsão e consequente aceleração pictórica que transforma Nova Iorque em casa para o diretor. No entanto, a mais elaborada aplicação do programa de Emerson aparece muito mais tarde em Walden, quando ele retorna de sua visita a Ono e Lennon em Montreal. Como que expressando literalmente a mudança de perspectiva para a qual Emerson recomenda a viagem de balão, ele filma o tráfego em seu próprio ritmo de aceleração e pausa da janela do arranha-céu onde o cantor está hospedado; em seguida sobrepondo o amanhecer visto do trem em movimento, e dissolvendo para uma viagem de ônibus em Nova Iorque, ele mimetiza e exagera o ritmo do transporte público filmando sinlge frames11 da janela traseira enquanto o ônibus se move, e alterando para o tempo real por interrupções. Aqui ele revela seu estilo próprio com o uso do single frame como uma extensão da dinâmica do veículo em movimento. De modo alternativo, ele passa a residir num topos figurativo da herança transcendental americana. Seu Walden é o território onde ele está em casa fazendo filmes. O acúmulo de casamentos no filme sublinha repetidamente a solidão doméstica de Mekas e sua determinação em 256
celebrá-la e, ao fazê-lo, elevá-la, como se para tornar visível a metáfora de Thoreau no capítulo “Onde vivi e para que vivi”: Desconheço fato mais encorajador que a inquestionável habilidade do homem para elevar a vida através do
esforço consciente. É importante ser capaz de pintar
um determinado quadro, ou de esculpir uma estátua,
e desse modo produzir objetos belos; é, porém, mais
glorioso esculpir e pintar a própria atmosfera e o ambiente através do qual vemos e que podemos concluir
no plano moral. Modificar a natureza do dia, essa é a
maior das artes. Compete a todo homem a tarefa de
fazer a própria vida, mesmo em seus pormenores, digna
da contemplação de sua hora mais elevada e crítica.12
Na Universidade de Princeton, Mekas conta a seguinte anedota sobre a origem de seu estilo diarístico característico: Havia uma árvore no Central Park que eu queria [filmar]. Realmente gostei daquela árvore, e continuei a
filmá-la desde o princípio – quando comecei. E então a
vi através do visor e não era a mesma coisa. Era apenas
preender porque ele dirigiu seu olhar ao objeto original. Frequentemente, a justaposição aleatória de quadros tirados de diferentes momentos e diferentes pontos do Então comecei a filmar a árvore em pequenos fragmenrolo original de filme revela significados imprevistos: uma árvore fincada ali: era monótona.
tos: fragmentei, condensei... e então você pode ver o
vento nela; você pode perceber alguma vida nela. Ela
tornou-se diferente. Ah! Assim é mais interessante!
Essa é minha árvore! Essa é a árvore que gosto, não apenas uma árvore que é naturalista e monótona, não
apenas o que vi naquela árvore quando eu a observava. Estou tentando compreender por que estou olhando
para aquilo que estou filmando, por que estou filman-
do aquilo, e como filmo. O estilo reflete o que sinto...
Estou tentando entender a mim mesmo, o que faço... desconheço completamente o que estou fazendo.13
As três etapas da história da árvore – observação, fragmentação e revelação – vão ao cerne do projeto de Mekas. O esforço de moldar o material cinematográfico de acordo com a experiência inicia uma dialética da autoanálise. Partindo da ignorância de suas próprias intenções, ele transforma a imagem e seu contexto a fim de torná-los mais interessantes e mais singulares. Mas é a fase posterior da montagem que o leva a com-
Com [Jonh Cage] aprendi que o acaso é um dos grandes
editores. Você filma algo em um dia, e esquece, filma algo no dia seguinte e esquece seus detalhes... Quando você finalmente encadeia todo o material, descobre
toda forma de conexões. A princípio, eu pensava que
deveria montar mais e não confiar tanto no acaso. Mas compreendi que não há acaso: quando você filma, você
toma determinadas decisões, mesmo quando não sabe o
que está fazendo. A mais importante, a montagem mais
essencial, acontece durante a filmagem como resultado dessas decisões.14
Em novembro de 1970, atendendo ao pedido de Jacqueline Kennedy Onassis para ensinar os rudimentos do cinema para seus filhos, ele escreveu um livro emersoniano sem perceber o quão próximo estava do autor de Natureza. Sua primeira lição é, emblematicamente, a dinamização de uma árvore:
257
O Livro Didático do Filme Caseiro
Para Caroline & Jonh Capítulo Um
exercícios de tempo
1.
a. Filme uma árvore no vento, por dez segundos,
continuamente.
Filme uma árvore no vento, em breves intervalos
de quadros, a fim de condensar um minuto de tempo real em dez segundos de tempo filmado.
Veja o que acontece.
a. Filme o rosto de uma pessoa por dez segundos,
Filme o mesmo rosto, em breves intervalos, a fim
Veja o que acontece.
2.
Veja o que acontece.
5. Filme um breve intervalo (dois segundos) de
um rosto; então filme um breve intervalo de uma flor
colorida, de qualquer cor; filme novamente o rosto, brevemente; e mais uma vez a flor. Faça isso cerca de dez vezes.
Veja o que acontece.
Filme uma rua (você pode fazer isso de uma janela)
Filme a mesma rua e o tráfego em vários intervalos
Veja o que acontece.15
6.
engarrafada. Filme continuamente por dez segundos. de quadros. Faça dez segundos de imagem.
continuamente.
de obter dez segundos de tempo filmado.
3. Filme o fogo (ou uma vela) por dez segundos.
Mantenha a câmera focada no fogo, de maneira estável.
Veja o que acontece.
Aponte a câmera para o horizonte e gire
Aponte a câmera para o horizonte e gire lentamente.
4.
rapidamente.
258
Em 1969, quando ele finalizou e exibiu Walden, o estilo fragmentário havia se tornado característico de sua forma diarística. O filme incorporou as lições da árvore no Central Park. Mais tarde, em 1971, durante as filmagens de Reminiscences of the Journey to Lithuania, Mekas notou um defeito na câmera que estava usando. No começo de cada plano o terceiro ou quinto frame (às vezes alguns mais adiante) ficava superexposto com um flash de luz. Ele descobriu que poderia evitar isso
fazendo alguns single frames toda vez que começasse lituana ininterrupta sobre os primeiros seis lampejos a filmar. Após retornar para a América, ele descobriu enumerados enfatiza o contraste de estilos como um uma energia e força expressiva imprevistas próprias contraste de atmosferas. Ela culmina no sétimo lamdesses single frames; assim, ele incorporou a técnica ao pejo, com o retorno da voz quando Mekas reencontra filme mesmo usando câmeras sem defeitos. Entretanto, sua mãe pela primeira vez após um quarto de século. ele já vinha usando a montagem de single frame com uma frequência cada vez maior, ao poucos, desde o A combinação de estilos também sublinha a mudança começo de seu cinema. de gênero. Enquanto Walden é uma enciclopédia lírica, um dos herdeiros cinematográficos de Song of Myself, A primeira parte de Reminiscences derivou do material de Whitman, Reminiscences estrutura material similar produzido por Mekas nos anos 1950. O filme misturou numa autobiografia, a princípio por meio da diacronia livremente curtos planos fixos com pans manuais e mo- da primeira seção. Em Lost, Lost, Lost as filmagens mais vimentos rápidos, e incluiu breves sobreposições, mas antigas predominam nas duas horas e meia de filme. não fragmentou sucessivamente imagens de um único Transforma o modo autobiográfico numa reflexão sobre objeto ou pessoa. Este material parece ter antecipado a as origens poéticas em seis rolos. O primeiro apresenta revelação da árvore. Assim, a passagem para a segunda o diretor como um solitário, um andarilho deslocado, parte do filme, “100 lampejos da Lituânia”, onde a recém-chegado ao Brooklyn; o segundo narra seu estécnica do single frame aparece pela primeira vez no forço para se situar na comunidade de exilados lituanos. trabalho de Mekas, marca uma dramática introdução No terceiro, ele e Adolfas mudam-se para Manhattan de seu estilo maduro para corresponder à sua primeira e afastam-se do exílio político em direção ao cinema e visita à Lituânia, após vinte e cinco anos de exílio. Na a um novo grupo de amigos entre os quais (no quarto primeira parte, seu comentário contínuo em voz over rolo) ele testemunha outra forma de ativismo político. (assim como os intertítulos) confere ao material arqui- Neste momento, Mekas recupera a obra abandonada vado um tom melancólico. Na parte central, a música Rabbitshit Haikus que filmou em Vermont, no inverno 259
de 1962. O filme consiste em cinquenta e seis seções No haiku final, o quinquagésimo sexto, ele retoma a muito breves, com frequência um único plano acom- história como se dissesse dele mesmo: panhado por um som simples – música persa, sinos, ou uma palavra repetida três vezes. Por exemplo, a Ele costumava trabalhar, como todo mundo, e então passagem número 30 mostra uma árvore balançando parar e olhar para o horizonte. Quando as pessoas lhe ao vento com nuvens movendo-se ao fundo, provavelperguntavam: “o que há de errado com você? Por que mente filmadas em stop motion. Neste plano ouvimos continua olhando para o horizonte? ele costumava Mekas recitando: “As nuvens as nuvens as nuvens. O responder: “quero saber o que se encontra no fim da vento o vento o vento.” estrada.”... Não, ele não encontrou nada, nada no fim Ao longo dos haikus 38 a 41 (cada um composto por um ou dois planos, metade deles do próprio Mekas) ele narra uma parábola: Você conhece a história do homem que não podia mais
viver sem saber o que se encontrava no fim da estrada,
e o que encontraria quando chegasse lá? Ele encontrou uma pilha, uma pequena pilha de bosta de coelho no
fim da estrada. E voltou pra casa. Quando as pessoas
lhe perguntavam: “para onde leva esta estrada?” ele
costumava responder: “para lugar nenhum, a estrada
não leva a lugar algum, e no seu destino não há nada
além de um punhado de bosta de coelho.” Assim ele
disse. Mas ninguém acreditou nele.
260
da estrada, quando, mais tarde, muitos anos mais tar-
de, após muitos anos de viagem, ele chegou ao fim da estrada, não havia nada além de uma pilha de bosta de
coelho, nem mesmo o coelho se encontrava mais lá, e a estrada levava a lugar nenhum.
No mesmo rolo, treze Fool’s Haikus marcam a transição dos poemas em preto e branco filmados no set de Hallelujah the Hills para os haikus em cor feitos em Nova Iorque na companhia de Barbara Rubin, presença central no último e sexto rolo. Maya Daren havia tentado encontrar um equivalente fílmico para o haiku pouco antes de sua morte. Ela deixou o projeto incompleto. Brakhage também fez analogia ao haiku ao discutir Songs, filmado em 8mm. Ao incluir
as duas séries de haikus em Lost, Lost, Lost, Mekas os contextualiza como etapas para o desenvolvimento de sua encarnação poética como cineasta. Ali, eles se tornam documentos do período em que foram feitos e as parcerias que o diretor manteve. Eles aspiravam a criação de um novo gênero cinematográfico composto por uma série de iluminações autônomas do tempo, do espaço, da atmosfera de um momento efêmero. Apesar do fracasso de alcançar este objetivo, eles explicitam a temporalidade fundamental do projeto diarístico de Mekas. O estilo fragmentário, por aumento da velocidade através da fotografia de single frame ou da duplicação de referentes temporais com breves sobreposições, lembram o diretor e o espectador da superabundante, incompreensível desordem dos acontecimentos que nos rodeiam. Ao mesmo tempo em que constata a existência do mundo exterior, seu estilo postula um modo de tempo que escapa às categorias de passado, presente e futuro. Considerando que o tempo de um diário escrito é retrospectivo (uma série de ensaios sobre os acontecimentos dos últimos dias), a temporalidade do filme-diário, tal como Mekas a formulou,
pode realçar cada cena com o êxtase ou a inquietude do gesto de capturá-la num filme. Walden começa com um mundo em profusão: não há a construção de um ambiente imediato, ou a identificação de um personagem significativo, que raramente é nomeado. Quando o faz é quase sempre pelo primeiro nome, como na primeira cartela do filme, “O jardim de flores de Barbara”, que precede planos do produtor David Stone e sua mulher, Bárbara, no seu apartamento em Nova Iorque enquanto ela rega as plantas no parapeito na janela. Antes disso, há um plano de Mekas em seu quarto no Chelsea Hotel tocando seu acordeão. No decorrer dos diários, estes autorretratos do diretor, sozinho, tocando o acordeão, funcionam como ícones de sua encarnação órfica. O mundo que ele invoca e representa, entretanto, não é produto de sua imaginação. Ele está lá, completamente dado, quando os diários de Mekas têm início: ele está repleto de pessoas conhecidas e desconhecidas; ele está entre eles – prontamente passa a câmera a seus companheiros para que o filmem, ou insere planos que outros cineastas fizeram dele sem chamar atenção para marca autoral da pessoa atrás da câmera ou, como no 261
caso de imagens em que aparece tocando seu acordeão, o faz com a câmera num tripé e filma a si mesmo de longe. Mesmo o conjunto de imagens das jovens mulheres no parque devem esperar três minutos antes de aparecerem, como em uma imagem mental; como quando vemos o cineasta agitado em sua cama e lemos “Pensei em casa”, o som se interrompe abruptamente, e então vemos barcos a remo repleto de pessoas no lago do Central Park e lemos novamente “Walden” antes do aparecimento dessas mulheres. Mais uma vez retorno ao ensaio capital de David James sobre Walden, à sua descrição da dialética da filmagem e da montagem, quando Mekas articulou pela primeira vez um filme completo a partir de seu extenso material diarístico:
Há uma história que me contaram certa vez que quando
Adão e Eva estavam deixando o paraíso e Adão dormia
à sombra de uma pedra, Eva olhou para trás e viu o paraíso explodindo em milhares de minúsculos pedaços e
fragmentos. E choveram. Choveram sobre sua alma e a
A montagem substituiu a filmagem como o momento
de Adão adormecido: pequenos pedaços do paraíso. O
textura visual da vida cotidiana como objeto privilegiado
acho que Eva tenha contado isso a Adão.
crucial da percepção; fragmentos de filme substituíram a do olhar; a inscrição da subjetividade assumiu a forma, não do quadro individual somaticamente ajustado e
da manipulação da íris na visualização pela câmera, e sim nos cortes e no acréscimo de intertítulos e trilhas sonoras na sala de montagem.16 262
Em Paradise Not Yet Lost a/k/a Oona’s Third Year (1979), Mekas oferece um mito gnóstico da fragmentação. A cena é idílica. Ele havia feito uma segunda visita à sua mãe na Lituânia, dessa vez com a mulher e a filha. A sequência intitulada “No fim daquela tarde” começa com Hollis e Oona apoiadas numa janela; e segue para fora, com crianças brincando, mulheres tirando água de um poço (no momento em que a voz over usa a metáfora da chuva), e um grupo de homens, Mekas proeminente entre eles, cortando grãos com foices. Sobre essas imagens ouvimos:
restante se esvaiu. O paraíso tinha desaparecido. Não
Desde o início, o estilo diarístico que Mekas inventou sugeria que os planos do filme, desde frações a longos segundos de duração, eram vislumbres do mundo e catalizadores da memória. Aqui, a teologia secreta da
fragmentação sublima estes lampejos em “milhares de minúsculos pedaços e fragmentos” do paraíso perdido de uma outra maneira. Para não perdermos a associação, o diretor insere um intertítulo em meio à sequência: “Estes são fragmentos do Paraíso”.
radicais. (Seu proferido desdém por viagens é outra). Certamente, não há uma figuração direta de culpa, frustação erótica, ou arrependimento nas muitas e muitas horas de seus filmes-diário finalizados. Sua recusa da psicologia sustenta sua auto-representação como realista. Em “Just Like a Shadow”, ele escreveu A frequência e fluidez com que Mekas incorpora ima- sobre filmar seus amigos e sua família: gens de si mesmo, sem chamar atenção para como essas imagens foram feitas, contribui para a instância episPor que filmo tudo isso? Não tenho uma resposta. Acho que o fiz por ser muito tímido. Minha câmera permitia temológica única de sua obra. Mekas evita o sublime egocêntrico e sua ameaça constante de solipsismo que que eu participasse da vida que acontecia ao meu redor. marca o trabalho de Brakhage e que, em diferentes Meus filmes-diário não são como os diários de Anaïs graus, afeta aqueles que foram influenciados por ele. Nin ... [que] agonizou sobre suas aventuras psicológicas. Quase não há espaço para sonhos, fantasias, problemas O meu caso é o contrário, o que quer que isso possa de percepção e reconhecimento no trabalho de Mekas. significar. Minha Bolex me protegia ao mesmo tempo Ele transfere a questão central da memória para o uso que me permitia olhar de soslaio e focar naquilo que da voz over e intertítulos. Mesmo quando ele corta de acontecia ao meu redor. Ainda assim, mesmo agora, no “Pensei em casa” para um idílio de barcos a remo, não fim, não acho que meus filmes-diário sejam sobre os há dúvida de que ele está usando imagens de uma Nova outros ou sobre aquilo que vi: são sobre mim mesmo, Iorque contemporânea como tropo para a Lituânia conversações comigo mesmo.17 do passado. Através de todas as suas figurações de subjetividade, Mekas mantêm-se um realista. Apesar de seu proferido desdém por viagens, Mekas continuamente representa a si mesmo em lugares Curiosamente, a deliberada indiferença de Mekas à distantes ou no trajeto entre eles. A crítica literária psicologia é uma de suas muitas posições emersonianas antiga denominou o gênero de descrever o que alguém 263
encontra numa viagem de periegético ou, de maneira retórica, topografia e topotese. Da mesma maneira que Arabesque for Kenneth e Bagatelle for Willard Maas, de Meken, Ai-Ye, de Hugo e The Dead, de Brakhage podem ser exemplos de topografias, na medida em que cada um deles isola e examina um espaço em particular, Mekas integra o periegético aos seus diários. Para todos os cineastas neste estudo, o cinema topográfico ou versões da descrição periegética são formas cruciais de conversação consigo mesmo. Tradução: Ana Carvalho
Notas *Originalmente publicado como um dos capítulos do livro Eyes Upside Down: Visionary Filmmakers and the Heritage of Emerson de Paul Adams Sitney. Nova York: Oxford Press, 2008. 1. Stanley Cavell, The senses of Walden (New York: Vicking, 1974), p. 50. 2. No original, “I find rabbit shit”. (N.T.) 3. Aqui o autor faz referência ao protesto pacífico para promover a paz feito por Lennon e Yoko Ono: “Bed-in for Peace” (N.T.) 4. David E. James, To Free the Cinema: Jonas Mekas and the New York Underground (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1992), p.176.
264
5. No original, “I find rabbit shit”. (N.T.) 6. Stan Brakhage, Metaphors on Vision (New York: Film Culture no30, 1963) 7. Ibid. 8.Ralph Waldo Emerson, Essays and Lectures (New York: Library of America, 1983), p.34. 9. Ele passou dois meses sozinho numa visita a Los Angeles e viveu sozinho em Nova Iorque enquanto Adolfas servia no exército americano. Mas foi apenas quando Adolfas casou-se que sua vida solitária tornou-se definitiva. 10. Scott MacDonald, A Critical Cinema 2: Interviews with Independent Filmmakers (Berkeley: University of California Press, 1992), p.89. 11. Tomadas em um só fotograma, ou com velocidades variadas, de forma que o fotograma seja evidenciado durante a projeção (N. E.) 12. Henry David Thoreau, “Where I Lived What I Lived For”, Walden (New York: Penguin, 1983). 13. Jonas Mekas, untitled lecture, (John Sacret Young Lecture, Princeton University.) 18 de fevereiro de 2004. 14. MacDonald, A Critical Cinema 2, p.91. 15. Jonas Mekas, “This side of Paradise”: Fragments of an Unfineshed Biography (Paris: Galerie dujour Agnès B., 1999), páginas não numeradas. 16. David E. James, Power Misses: Essays across (Un)popular Culture (London: Verso, 1996), p.137. 17. Jonas Mekas, “Just Like a Shadow”, Logos (Primavera de 2004), www.logosjournal.com
Paraíso perdido e reencontrado*
1
Emeric de Lastens e Benjamin Léon
Uma história de flores subterrâneas que depositam estilhaços de beleza sobre a tela, fixando impressões fugazes do presente em rastros persistentes, condenAntologia de poemas, críticas de filmes e manifestos, imponentes filmes diary, ensaios videográficos, cáp- sação melancólica, mas sempre vibrando momentos sulas postadas na internet, exposição de fotogramas, marcantes. instalações... Apesar da longevidade e das metamorfoses de uma obra proteiforme cuja unidade é a própria Mekas foi, em primeiro lugar, um jovem poeta imigranvida, o nome de Jonas Mekas continua sendo associado te que, por conservar rastros de suas origens e fazer a primeiramente ao cinema underground americano dos ponte entre o Antigo e o Novo mundo, substituiu sua anos 1960, enquanto figura tutelar de um movimento pluma elegíaca por uma câmera voltada para o registro e que contribuiu como ninguém para criar e estruturar; a imprevisibilidade do mundo sensível. Reminiscências um incansável apologista e alegre adepto. Retrato re- da infância e milagres da vida cotidiana se envolvem trospectivo de uma comunidade unida em torno da mutuamente, essa é a tensão de uma poética em que mesma busca utópica de um renascimento do cinema, cada presença já é sua própria lembrança, cada “lam2 Birth of a Nation (1997)1 celebra essa história repleta de pejo de beleza” arrancado do tempo uma sensação personalidades singulares e práticas heterogêneas. O originária esquecida e reencontrada. Nesse sentido, trabalho de Mekas reflete a imagem dessa lenda: uma a profusão de uma obra com múltiplas ramificações busca no reino da arte, segunda pátria sublimada após aponta para um projeto essencialmente inatingível, o exílio, perpassada de fulgurâncias e reminiscências. pois avança em espiral no sentido de suas origens, seu
Fragmentos de beleza
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paraíso, perdido e depois reencontrado. Paradise Lost: o título de Milton poderia designar esse lugar secreto do tempo e do espaço, desvendado por esses estilhaços em cascata e essa multiplicação de fusões.3
qualquer cronologia. O capítulo Peter’s Wedding, de Walden, ilustra exemplarmente esse movimento orgânico de dilatação e de contração do espaço-tempo: os fogos de artifício visuais da festa fitzgeraldina, onde as garotas parecem levitar; a aceleração das brincadeiras Os filmes de Mekas formam um mundo tão familiar, multiplica os gestos; mas depois do plano geral da festa por suas recorrências visuais, quanto estrangeiro, pela filmado de um helicóptero, o tempo recai como os onipresença de um “eu” desdobrado, entre presença e corpos cansados dos convidados, impressão física que ausência, próprio do diário filmado. Esse mundo pro- Mekas traduz por meio de uma de suas raras câmeras cede por surgimentos intempestivos de pensamentos e lentas, a suspensão sendo a assombração daquele que sensações, de matérias e lembranças,4 excluindo toda sempre quer ressuscitar uma alegria passada. temporalidade linear: a vida é descontínua e espiralada, como a película, sequência de fotogramas fluidos Conservar de suas vivências os instantes mais triviais enrolados em bobinas. Desde Walden (1969), Mekas e as correspondências analógicas mais secretas é o não cessou de coagular passado e presente, de imbricar que dá a essa aventura de uma vida a característica presenças epifânicas e reminiscências longínquas. Esse de uma balada do impossível, em que se deslocam entrelaçamento desenha a figura do desenraizado, à constantemente as figuras que povoam as imagens, procura da comunidade ideal, a América celebrada em um vai-e-vem permanente entre o íntimo e o imetoma o caminho da imanência traçado por Emerson, morável. Monumental e modesta: assim é a obra de Thoreau e Whitman. O diário filmado atualiza a marca Mekas, mais dialética do que parece à primeira vista. memorial do passado pela redescoberta dos fragmentos Os intertítulos e as odes declamadas em voz off pelo acumulados, frequentemente ordenados anos depois, cineasta, com timbre cantante e sotaque inimitável, retomados em instante de utopia festiva e povoados ativam e aguçam o retorno das lembranças. Isso ocorre de ecos melancólicos da perda do presente, abolindo através de um movimento duplo: a litania dos nomes, 266
lugares e pessoas reencontrados, recolhe o que a câmera cambaleante captou da vida imediata, o humano e seus gestos cotidianos, o mundo e suas matérias sensíveis; e os choques entre fragmentos, que provocam sublimes composições de objetos e dão corpo à voz da memória.
Nova Iorque, Lituânia Entremos na espiral no momento sintomático em que a História apanhou o sonhador por uma malévola efração, em sua própria cidade adotiva, aquela onde tudo podia sempre renascer: o cinema, a utopia, a festa. 11 de setembro de 2001: por toda parte a imagem do World Trade Center ruindo em chamas de modo inelutável dentro de uma nuvem de “matéria” informe. A impotência da matéria em persistir tal qual reverbera a impotência das imagens em responder ao desastre. Uma estranha mistura de pavor e de banalidade, de tanto que o evento foi congelado e aniquilado pela hiper-mediatização parva, repetindo inconscientemente a mecânica do vazio redobrado provocada pela destruição que Bruce Conner analisou magistralmente em
Crossroads (1976), levando a imagem de uma explosão atômica ao esgotamento. Mekas estava em Nova Iorque quando as torres ruíram. O breve poema que ele realizou nesse momento, Ein Märchen aus alten Zeiten (2001),5 sugere o encontro intempestivo entre a extremidade absurda e catastrófica do evento da atualidade e um dos emblemas dessa nação de cineastas da qual ele foi o memorialista. A câmera apontada para o World Trade Center em decomposição alude, conscientemente ou não, àquela que Andy Warhol aponta para o Empire State Building no filme que realizara quase quarenta anos antes. Jonas Mekas, que operava a câmera para seu amigo, proferiu a seguinte profecia: “Creio que o Empire se tornará o equivalente do Nascimento de uma Nação para o Novo Cinema Americano”.6 A imobilidade do quadro, quando confrontada com a dificuldade de crer no acontecimento espetacular e na emoção que ele suscita, corresponde às tomadas fixas de Warhol. O deslocamento de um mesmo símbolo, o edifício, da noite transfigurada ao dia arruinado, remete seu gesto ao filmador-observador da metrópole moderna: milagre ou impotência? Glimpses of beauty ou cinzas do tempo? 267
Mekas fez de Nova Iorque o lar a partir do qual poderia desdobrar a arborescência de uma vida feita de infinitas entradas e saídas de campo: as lembranças do exilado que pisa pela primeira vez em solo americano, um olhar fascinado, rapidamente tomado pela melancolia, em uma geração de artistas boêmios que já foi dizimada pelo tempo. Em Walden, a metrópole evoca tanto a Lituânia natal perdida para sempre quanto a comunidade utópica. Consideremos o modo com que Mekas filma os lagos do Central Park:
sépia de uma menina pensativa, sobre a qual a voz de Jonas acrescenta um comentário cantante e lacônico, com um discreto acordeão de fundo: “Ouça minha garota, ouça minha garota, foi uma história horrível, foi uma história horrível que eu nunca esqueço.”8 Em seguida, por meio de um efeito transitório, Jonas encara brevemente a câmera antes de apontar para as torres gêmeas, associando o filme a uma estrutura cíclica ao lançar mão de uma fotografia como contraponto. Há nessa tumba de Nova Iorque os traços dos gestos do diarista: a voz do contador, o trabalho do tempo sobre o Eu achava que filmava Nova Iorque, essa imensa me- semblante do homem que se filma, a mão-câmera-plutrópole internacional de aço, de vidro e de poluição. ma do cineasta abarca em um mesmo gesto o íntimo e Mas tudo o que eu via eram árvores, neve e recantos o mundo, o afloramento, efetivo ou sonhado, de uma gramados (...). A Nova Iorque que saía das minhas no- imagem dentro de outra - Warhol, a Europa, a infância. tas fílmicas se assemelhava aos campos do vilarejo da
minha infância.7
Se em Ein Märchen aus alten Zeiten, uma massa sonora feita de gritos estridentes potencializada pelo zumbido lancinante de uma sirene de bombeiros restitui, na profundeza da imagem, a experiência do drama que ocorre, Mekas não se contenta apenas com esse plano tremido. Pouco antes, um plano se fixa em uma fotografia em 268
Uma arte da mão “O que distingue o sonho da realidade é que o homem que sonha não pode engendrar uma arte: suas mãos dormem (...) Ela [a mão] está na própria origem de toda criação” notava Henri Focillon.9 A mão é igualmente uma ferramenta corporal que permite a passagem natural da escrita ao visual, da metáfora poética à
realização10 cinematográfica. No seio do underground, Mekas retoma menos o gesto de distanciamento irônico do Pop11 do que aquele da linhagem do cinema subjetivo e corporal, fenomenológico e “tátil”, presente em outros diaristas, como Marie Menken ou Andrew Noren. Ou em Maya Deren, que a partir de seus filmes etnográficos, declarava que fazia a experiência última do prazer tátil com a matéria fílmica, da relação do corpo com o aparato cinematográfico, do olho com o gesto. E ainda em Stan Brakhage, para quem a câmera, e além dela a película, são extensões vivas de seu ser.
alegria.12 Se a técnica de filmagem intuitiva confere ao fotograma e ao raccord imediato uma primazia em detrimento do plano, a fase da montagem na moviola, reunindo metros de película acumulados ao longo dos anos, precisa o fluxo das impressões captadas, e esculpe as longas durações com a mesma agilidade com que o filmar-montar havia captado os instantes. A matéria é dessa forma manipulada e organizada segundo uma cronologia aproximativa, ou dispersa, ou ainda invertendo a lógica do tempo. Contrariamente à imagem do filmador perpétuo, Mekas seria primeiramente um homem da ilha de edição; aliás, ele afirma em entrevista: Se Mekas raramente opta por colar o olho no view- “nunca filmo muito”.13 finder de sua Bolex é porque a câmera é seu verdadeiro olho, vibrante e interior. Os vastos diários filmados A mão é uma figura recorrente nos filmes de Mekas, provêm, então, de constantes desenquadramentos, de- refletindo as relações de intimidade que ele mantém: sorientando o espaço através de imagens desfocadas repetidos planos das mãos de seus filhos em As I Was e deslocamentos imprecisos. A relação entre o artista Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of e esse olho, entre sentimento e técnica, é puramente Beauty, frequentes inserts da mão de anônimos na rua, simbólica: as rajadas de planos formam as piscadas dedos do cineasta datilografando em Lost Lost Lost, das pálpebras, as mudanças de diafragma e de velo- ou ainda sua mão que passa diante da objetiva em um cidade, o que provoca variações de luminosidade, e esconderijo subliminar. A mão, máquina prodigiosa restitui a densidade física das impressões, os giros que une a sensibilidade mais aguçada às forças mais desarticulados e as acelerações sincopadas figuram a diversas, é definitivamente o “órgão do possível” 269
segundo as palavras de Paul Valéry. In fine, a mão a outro, quase definitiva, exceto as montagens recentes figura a possibilidade de atravessar o tempo e de evocar do material bruto que ainda não havia sido incluso a imagem ausente. Ela se torna o elemento poético em sua empreitada diarística, gerou novos modos de que desorganiza mais do que organiza as imagens. expressão do fragmento. A substituição da Bolex por Em Walden, uma série de planos comove e transborda, uma câmera de vídeo é prolongada na prática da instapor sua força de evocação, o conteúdo representativo lação, recentemente concretizada em diversos projetos. da imagem para se abrir para o figural: as mãos da Mas antes de expor a imagem, há a questão do “fazerjovem loira no gramado do Central Park, que traz -imagem”, tão crucial para Mekas que ela determina a a cidade para um imaginário panteísta, são seguidas plasticidade temporal do diário filmado. Com o vídeo, das mãos de Dreyer filmadas em trechos sucessivos apesar da indiferença a respeito do suporte, o cineasta em que a distância focal vacila. O efeito espectral altera inegavelmente os temas filmados e os territórios resultante leva a corporeidade a um limite, e provoca explorados, ainda que o projeto mantenha seu norte: uma sobrecarga temporal que confunde presente e relatar e sublimar sua relação cotidiana com o mundo. passado. A mão se torna uma figura do tempo e gera Se Mob of Angels (1990),14 primeiro filme em vídeo, uma organização que condensa as temporalidades em articula-se em torno do batismo de uma criança em seu movimento: a recorrência do tema do interstício uma rua de Nova Iorque e desenha uma perspectiva figura o curto-circuito entre a percepção da memória antropológica, The Education of Sebastian or Egypt ree a percepção do movimento. Pela destreza das mãos, gained (1992) substituem o movimento sincopado dos a imagem condensa passado e presente em um todo fotogramas pela característica suspensa e prolongada contínuo, e resiste ao tempo. da imagem videográfica, que brinca com a espera, tingindo o todo com uma melancolia do vazio. Como Passagens de imagens nota Claudine Eizykman: Desde o princípio dos anos 1990, a prática de Mekas se ampliou até o vídeo. Essa passagem de um suporte 270
Jonas Mekas foi ao Egito em busca da presença indeterminável da História, que se estende ao que vem
antes, longe, e se estende depois, longe. “A fonte da História” sem origem, imemorial. Seria essa viagem “mental e psíquica” e cinematográfica (em suporte eletrônico) o rastro do exílio como distância do ilimitado, clarificando as distâncias e os exílios que aproximam e afastam Jonas Mekas da Lituânia, da Europa, de Nova Iorque, de seu próprio trabalho de cineasta?15
Em todo lugar e em lugar nenhum
A prática da instalação aparece como o último avatar, juntamente à internet, do trabalho de anamnese de Mekas: ultrapassar a projeção e propor o desdobramento das mesmas imagens – transferidas para um outro suporte – em outros espaços. Por que? Provavelmente para permiti-las (re)viver mais uma vez, para desvelar O filme é uma reflexão atemporal sobre seu passado os instantes esquecidos, correndo o risco de misturá-los lituano e sua vida em Nova Iorque, contemplada a através da multiplicação do número de telas. É nisso distância. Ao dedicá-las aos seus filhos, Mekas faz que aposta o cineasta atualmente. Já em 1966, Jonas dessas imagens uma elegia que poderia servir de guia, Mekas se entusiasmava com as projeções em duas teuma passagem por lembranças visuais, que evocam las do Chelsea Girls e com os espetáculos multimídia o círculo infinito de viagens passadas e futuras. As e estroboscópicos do Exploding Plastic Inevitable, de imagens nebulosas do Egito neutralizam a tendência Warhol: ele falou em cinema expandido em suas colunas narcísica do vídeo16 e acentuam, ao contrário, o en- do Village Voice antes mesmo que Gene Youngblood trelaçamento das temporalidades e dos possíveis. “Por forjasse a célebre expressão Expandend cinema, em 1970. aquilo que ela convida a conceber e por aquilo que ela torna possível figurar, a imagem videográfica é uma Mekas se interessa pela prática da instalação em 2005, das manifestações mais vivas do que é o pensamento, na Bienal de Veneza, com As I Was Moving Ahead, que com seus saltos e sua desordem.”17 reutiliza parcialmente o título de seu diário filmado. Em um mesmo espaço, o espectador-flâneur se depara com textos de Mekas e de outros reagrupados sob o título Letters, Notes, Msc. Pieces, um programa de projeções de seus principais filmes e uma instalação 271
com oito monitores mostra uma seleção de Home Videos realizados entre 1987 e 2005. Os monitores projetam o material videográfico sem seguir uma ordem específica, e o espectador é convidado a se deslocar de um monitor a outro, a fim de montar seu próprio filme. Em 2009, Mekas apresenta A Few Things I Want to Share, My Paris Friends,18 uma instalação com material denso, que reúne imagens oriundas de projetos distintos em um espaço comum. Seguem alguns exemplos aleatórios do conteúdo proposto: imagens de seu filme Cassis (1966), já integradas em Walden; o vasto 365 Day Project (durante um ano, Mekas adiciona diariamente uma breve nota visual ao seu site); a exposição de fotogramas To New York with Love; a instalação sonora 491 Broadway; e Quartets, que combina imagens de uma performance de Nam June Paik com trechos de vídeo de Martin Scorsese enquanto filmava The Departed (2006). O efeito de simultaneidade de elementos heterogêneos provoca uma circulação temporal complexa, uma deambulação sem eixo. A utilização de imagens de seu livro To Petrarca, assim como uma instalação sonora de seus filmes, logram a embaralhar um pouco mais as imagens presentes, e causam efeito de re-visitação retrospectiva de sua obra.
272
Com a passagem do tempo, as preocupações se tornam
cada vez mais visíveis. A minha, ao que me parece, é a preocupação de saber o que nos resta, nesta civilização autodestrutiva, do que é realmente essencial para os
aspectos mais sutis de nossa alma. É por isso que eu
me concentrei em aspectos pessoas e privados da vida,
da minha própria vida e daquela de meus amigos (...). Creio que seja a mesma preocupação que me conduziu à forma do “diário” no cinema, no vídeo, na literatura
e em tudo que eu faço.19
Se essas palavras confirmam uma continuidade autobiográfica e romântica, a hibridação e a saturação das fontes de imagens simultâneas (que abarcam diversos estilos de filmagem, sem ordenar o espaço em função de sua evolução ou de seus temas) produzem uma cativante “imagem totalizante”20 da obra, onde o artista é ao mesmo tempo presente e ausente, em todo lugar e em lugar nenhum. Assim, vê-se em uma sala uma mesa repleta de mantimentos, vinho e salame já encetados, como se o anfitrião tivesse se ausentado por um instante e convidasse quem observa a se sentar e a compartilhar com ele um momento de amizade e de lembranças ardorosas. A exposição convida a deixar de pensar as imagens instaladas como partículas iso-
ladas que conservaram o passado, para pensá-las como instantes de vida imediata, situações de partilha: as imagens são os ingredientes, os dispositivos relativos às várias mídias utilizadas. Nesse sentido, 365 Day Project é significativo a respeito do desnível constante engendrado pela disposição do material: doze monitores são dispostos lado a lado, cada um exibindo em loop e de forma independente um mês do ano em que o projeto foi realizado. Quanto ao dispositivo sonoro, uma série de iPods é posicionada diante de cada monitor, permitindo a escuta individualizada das imagens, enquanto que a primeira coisa que se escuta é a cacofonia emitida pela multiplicidade de monitores, formando uma bolha sonora indistinta e alheia às imagens. O minimalismo conceitual do todo possibilita uma deambulação temporalmente indefinida, dado o caráter cíclico das imagens, como se as condensações de instantes e fulgurâncias fotográficas do diário filmado se suspendessem infinitamente, como uma nuvem envolvente e imaterial. O “tempo exposto” é também uma lembrança de lembrança, o rastro indelével do cinema.21
Elogio ao fotograma Mekas concebe o cinema segundo a menor unidade sensível do filme, o fotograma, que é entretanto invisível. Sua técnica de filmagem-montagem (seu apreço pelo filmar de forma lampejada ou imagem por imagem) não está, entretanto, presente em todos seus diários filmados. É o caso de Lost Lost Lost, em que a maior parte das imagens filmadas entre 1949 e 1963 traduzem a descoberta e a compreensão da câmera. Os planos são mais longos e mais precisos em seu encadeamento, mesmo se a montagem já demonstra ser muito agitada. Muito embora, a partir de Walden a questão do fotograma se torna central. Quatorze anos mais tarde, Mekas expõe no Hara Museum de Tóquio uma dúzia de imagens tiradas de seus filmes. Em 2008, em Paris, To New York With Love, ele expõe nada menos do que quarenta fotogramas extraídos de seus filmes, impressos a partir do negativo 16mm. Nessas “exposições de fotogramas”, como as denomina Mekas, duas coisas chamam atenção: por um lado, o caráter serial desse desdobramento figurativo, por outro lado, a redefinição do fotograma em fotografia, que torna visível os detalhes imperceptíveis durante a 273
projeção do filme, e reencarna o instante irrisório do passado estancando a fuga do tempo. Ao desvelar as perfurações e alinhar sempre três fotogramas sucessivos, Mekas expõe a origem cinematográfica das imagens, bem como sua descontinuidade (algumas ampliações evidenciam os cortes secos onde se revela a variabilidade infinita do filme). O gesto de Mekas é menos fetichista do que especulativo e paradoxal, expondo tanto a impossível questão do movimento na fotografia, quanto a capacidade das imagens fixas de exprimir cristais de tempo. Mekas explica sua iniciativa da seguinte maneira: “Que relações entretêm essas imagens com a fotografia? São primas. Uma diferença é que nenhuma dessas imagens (ou fotogramas) isolada foi composta conscientemente”.22
Alegria do melancólico Toda reminiscência procede de um trabalho inconsciente, de um retorno à memória viva dos grãos esparsos do passado. É um trabalho ao mesmo tempo alegre e vertiginoso o de responder às solicitações de seu próprio passado. A nota escrita, o intertítulo, a fala viva e o encantamento solitário são essenciais para o 274
melancólico, por percorrer o tempo em todos os sentidos, por celebrar e ressuscitar o que foi, por fraternizar vida e criação. Ao retomar incessantemente os fragmentos de imagem acumulados ao longo de uma vida exemplar, ao adaptá-los a novas composições, Mekas não terá simplesmente vencido um pouco o tempo, mas terá sobrevivido a sua própria lenda, a uma obra imensa da qual ele é sempre o jovem guardião, a essa parte essencial da história do cinema da qual ele foi ator e memorialista. Este é seu segredo: retornar do paraíso empunhando flores que nunca morrerão. Tradução: Vitor Zan
Notas * Originalmente publicado em Jonas Mekas : films, videos, installations (1962-2012) : catalogue raisonné, Pip Chodorov (org.) com o título “Paradis perdu et retrouvé”. Benjamin Léon & Emeric de Lastens. Paris: Paris Expérimental, 2012. 1. O título é evidentemente uma homenagem ao filme fundador de Griffith, marcando a vontade simbólica de fundar novamente, e pelas bordas, tanto o cinema (depois de Hollywood, o Novo Cinema Americano) quanto a América.
2. Em inglês: Glimpses of beauty. Essa expressão frequentemente reaparece como uma temática dentre os intertítulos e as legendas que compõem seus diários filmados, fazendo parte, inclusive, do título de um de seus filmes: As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2000). 3. Pensemos em Notes on the circus, em Walden. Durante um episódio sobre o circo, o cineasta explora a dimensão “háptica” (Deleuze) da imagem cinematográfica pela multiplicação das camadas cromáticas e a elaboração de um espaço todo em curvaturas e dobras que desorientam a estrutura da ação. 4. Talvez Mekas compartilhe com Bergson quanto à ideia de um tempo levado a sua indivisibilidade (La pensée et le mouvement), a montagem estilhaçada permite paradoxalmente restituir a unidade ao mesmo tempo heterogênea e indivisível do tempo vivido, o tempo do filme não sendo ‘o tempo das coisas’. 5. Cuja tradução literal seria: “Um conto dos tempos antigos”. 6. “My guess is that ‘Empire’ will become the ‘Birth of a Nation’ of the New American Cinema”. Jonas Mekas, Movie Journal, In The Village Voice, NY, vol. IX, n. 41, 30 de junho de 1964. A expressão New American Cinema precede por pouco a nomenclatura Underground Cinema.
9. Henri Focillon, Vie des formes, seguido de Éloge de la main, Paris, PUF, (1943), 1981, p. 101-128. 10. Nota do tradutor: no texto original, foi utilizado o termo phore, aqui interpretado como um neologismo que remete ao sentido do sufixo homônimo, que designa o fazer ou aquele que faz. 11. Sem deixar por vezes de (por irônica empatia) compactuar com o olhar camp de Warhol, Jack Smith e conferir, assim, a Award Presentation to Andy Warhol contornos performativos e burlescos voluntariamente sobrecarregados. 12. Reza a lenda que essa “escrita” (que remete à caméra-stylo profetisada por Astruc) teria nascido quase que acidentalmente, de uma Bolex caprichosa que por conta de um defeito variava a abertura de diafragma. Entretanto, a rejeição ao tripé, à fixação, ao movimento geométrico e à desaceleração são frutos de uma relação corpórea com seu instrumento - fenomenologia da filmagem. A panorâmica “clássica” em que se vê a fazenda e sua mãe em Reminiscenceses of a Journey to Lithuania (1972) é comovente por causa da ruptura instaurada. 13. Jean-Michel Verret, Entretien avec Jonas Mekas, In Jeune Cinéma, Paris, Hors-série, déc. 1992, p. 12. 14. Mob os Angels é um grupo de mulheres que toca percussão seguindo a tradição de ritmos mediterrâneos sagrados da Antiguidade.
7. Jonas Mekas, Jonas Mekas discusses Diaries at Findlay College January 19, 1971, transcrição inédita e tradução de Pip Chodorov e Christian Lebrat In Le livre de Walden, organizado por Pip Chodorov e Christian Lebrat, Paris Expérimental & Re:Voir Vidéo, 2009, p. 49. O lago se torna uma verdadeira “heterotopia” (Michel Foucault) enquanto localização física da utopia naturalista de seu autor.
15. Claudine Eizykman, Mekas Film Memoire, In Jonas Mekas, org. Francoise Bonnefoy e Danièle Hibon, Paris, Jeu de Paume, 1992, p. 37.
8. “Listen my child, listen my child, it was a horrible story, it was a horrible story which I never forget.”
16. Rosalind Krauss, Video: The Aesthetics of Narcissism, In October, Nova Iorque, n. 1, primavera de 1978.
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17. Raymond Bellour, Autoportraits, In Communications, Paris, n° 48, 1988, p. 327. 18. Exposição na Galerie du jour, Agnès b., Paris, de 16 de maio a 20 de junho de 2009. 19. Jonas Mekas, Artists Statement, a note on the exhibition, catálogo da exposição A Few Things I Want to Share, My Paris Friends. 20. Philippe Dubois, La Question Vidéo, entre cinéma et art contemporain, Yellow Now, Crisnée, 2012. Esse conceito concerne o duplo estatuto do vídeo nas práticas da instalação, ao mesmo tempo imagem e dispositivo. 21. Dominique Païni, Le temps exposé, le cinéma de la salle de musée, Cahiers du cinéma, Paris, 2002. O autor lembra que “a duração fílmica é doravante potencialmente infinita. Ela é indiferente, graças às técnicas digitais, ao esgotamento do filme, seja ele em película ou em fita magnética”. 22. Jérome Sans, Morgan Boedec, Léa Gauthier, Entretiens avec Jonas Mekas, In Les cahiers de Paris Expérimental. Paris Expérimental, n° 24, nov. 2006, p. 21.
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"Filmar o inimigo é fazê-lo entrar em um filme junto comigo" entrevista com Jean-Louis Comolli (por Cláudia Mesquita e Ruben Caixeta de Queiroz)
Em 1997, Jean-Louis Comolli publicava na revista Traffic o texto “Como filmar o inimigo?”. A partir de sua própria experiência, filmando durante quase dez anos o avanço da Frente Nacional, partido de extremadireita francês, em Marselha, Comolli refletia sobre algumas “obstinadas e talvez vãs questões”: para combatê-lo, é preciso filmar o inimigo? Como, a que preço, sob quais riscos? Afinal, para que haja filme, “mesmo sendo o inimigo aquilo que é”, é necessário negociar, pactuar, colocar-se em acordo, compartilhar uma cena, atar com ele alguma relação. Mas como conduzir uma relação com o inimigo? Mesmo com esses desafios e dificuldades incontornáveis, Comolli reafirmava, valendo-se de vivos exemplos, a necessidade de filmar o inimigo, de modo a “acrescentar corpo à ideologia do outro”, “encarnar os motivos do pensamento”, trazendo a política de volta, da esfera da propaganda e do espetáculo, para o lugar do embate e do debate entre homens. Desse modo, “filmar para melhor conhecer”, “filmar
para melhor combater”. Publicado em 2001, no catálogo da quinta edição do forumdoc.bh, o texto “Como filmar o inimigo?” tornou-se, ao lado de “Sob o risco do real” e “Carta de Marselha sobre a auto-mise-en-scène”, uma importante referência no debate sobre o documentário entre nós. Nesta entrevista, realizada por email e motivada pela realização da mostra-seminário “O inimigo e a câmera”, propusemos a Jean-Louis Comolli uma atualização do debate. O inimigo: “uma ameaça que deve ser levada a sério”. Há, no seu entendimento, uma ética que rege os combates fílmicos com o inimigo? Valeria para o “inimigo” a mesma ética que vale para o “amigo”? 1 Entre o inimigo e eu, há uma câmera e um gravador, portanto o espectador. O espectador não está necessariamente de um lado ou de outro. Ele está ali para descobrir um filme, que pode ou não corresponder às
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suas ideias. Trata-se portanto de lhe dar o que pensar (a questão política é sempre uma questão de pensamento, de análise, de construção teórica; e apenas em segundo lugar uma questão afetiva). O que é útil à luta que penso conduzir utilizando o cinema dito “documentário”? A única resposta, na minha opinião, é filmar para ver, para ver melhor, para melhor compreender o que há nos comportamentos e mesmo na cabeça do inimigo: em qual história isso se inscreve? Quais são as formas postas em jogo? Se eu filmo o inimigo, é para perscrutá-lo. Descrevê-lo, desmontá-lo historicamente (De onde ele vem? Em qual história ele se inscreve?). O cinema ativista tem o dever de colocar em foco, de tornar claro. Trata-se de combater as falsas ideias, as confusões, as misturas, para fazer aparecer o inimigo tal qual ele é de verdade, na realidade. O cinema é uma ferramenta de conhecimento. Isso significa que a exigência é sempre de alcançar o espectador pela via da razão e não somente da paixão. É preciso odiar o inimigo, sem dúvida, e combatê-lo sem piedade, mas para isso é preciso compreendê-lo e contar a história que é dele e que ele não conta. Aconselho ver e rever o filme de José Berzosa, Os bombeiros de Santiago.
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Você dizia, no final dos anos 1990: “ descrever e denunciar não é mais suficiente”. Quais são, hoje, as principais tarefas e desafios que se colocam para um cinema político? Descrever e denunciar, sim, é sempre indispensável. Mas não é suficiente: é preciso tentar compreender como o inimigo ganha, em parte, o apoio do povo, é preciso colocar a questão das alianças declaradas ou escondidas, dos conluios. Filmar o inimigo é também filmar o que há em torno dele e que o fortalece. As redes, os clãs, as solidariedades que se percebe e aquelas que não se vê. É isso que eu queria dizer. É claro que minha resposta só tem sentido quando se coloca a questão do filmar. Se pensamos que filmar não é mais suficiente, então convém passar a uma outra forma de luta, organizar-se, ir para a luta armada. Mas o cinema militante não tem que “matar” aqueles que filma. Filmar não é matar. É exatamente o contrário: é supor que o inimigo (o outro) pertence a um segmento da humanidade que reconhece a necessidade da mediação do cinema. Filmar o inimigo é fazê-lo entrar em um filme junto comigo. É portanto familiarizá-lo, domesticá-lo. Isso não tem sentido se não for para melhor conhecê-lo e melhor combatê-lo. O combate
não tem lugar no filme, mas no entorno. No filme, há necessariamente um mínimo de “partilha” objetiva com o outro: nós partilhamos um filme. Nos anos 1980 e 1990, você realizou alguns filmes (notadamente em Marselha), acompanhando as ações e disputas da Frente Nacional, naquele momento em ascensão. Filmar para combater o inimigo. Mas “como”? “A que preço, sob que riscos?” – você se perguntava. Passados cerca de 20 anos, quais são hoje, no cenário francês e europeu, os principais inimigos? Em momento de exacerbação das esferas da propaganda, da informação-mercadoria e do espetáculo, ainda é possível/preciso filmá-los, de maneira a tratar a cena política segundo uma estética realista? Para nós, cineastas documentaristas engajados numa luta contra os fascismos (globalmente), é essencial compreender que essa luta passa pelas imagens e pelos sons. Aí está a batalha real, para nós. O Espetáculo generalizado é o inimigo. Não se pode portanto fazer um filme contra o Espetáculo utilizando seus meios, suas técnicas, suas lógicas – que trabalham para a destruição do vínculo social e para a redução do livre pensamento. A questão do como torna-se mais vital que a questão
do porquê. Eu critico os filmes de Michael Moore porque eles combatem a publicidade com os meios da publicidade. O inimigo sempre começa por dominar a linguagem, por controlá-la, por fazer com que nós falemos a mesma língua que ele. Reler Viktor Klemperer. Compreender que a potência do inimigo reside no fato de que ele impõe modos de pensamento através de certas palavras. O cinema de combate também lida com palavras, com raciocínio, com lógicas. É por isso que é vital forçar o inimigo a mudar de terreno, a entrar em uma outra forma de discurso. Filmar, por exemplo, as ligações, as redes, as lógicas, as alianças, é não se contentar com slogans, é ir mais longe que os chavões da mídia, que esse gosto pela velocidade, essa brutalidade midiática que bloqueia as percepções e o pensamento. O espectador é manipulado pelas montagens curtas que tomam a brevidade dos slogans como modelos! A guerra está no tempo. Filmar e montar em longa duração já é combater as formas dominantes. Para que o fascismo latente se denunciasse a si mesmo, não bastava filmar sem intervir, em 1968, uma reunião do partido gaullista (você refletia, a propósito de 'Les Deux Marseillaises', feito com André Labarthe). Era preciso ir 279
além: encontrar o bom dispositivo, a mise-en-scène ade- uma dessacralização da representação de temas ou de quada. Questões de cinema, questões de um cinema político. sujeitos políticos. Você poderia mencionar alguns exemplos recentes de filmes que conseguiram – a partir de escolhas de mise-en-scène e Alguns filmes brasileiros recentes armam “tocaias” e “armadilhas”, os cineastas disfarçados para se infiltrarem em recursos expressivos – “capturar” o inimigo? território inimigo.2 Nesses trabalhos, que se voltam sobretudo Sim, não basta mostrar a coisa. É preciso mostrar o contra as classes dominantes, empenhados em criticar o seu enquadramento no qual a coisa está inserida. Toda a modo de vida, os cineastas não expõem, na abordagem dos potência do cinema está na possibilidade de colocar sujeitos filmados, os seus verdadeiros “motivos” (retomando imagens em relação umas com as outras pela monta- a postura crítica e combativa na montagem). Você considera gem! Mostrar o enquadramento é também permitir ao legítimas estratégias como essas? espectador sair da fascinação, mergulhá-lo no interior da imagem, e assim permanecer em parte do lado de Não sei. Tudo depende das circunstâncias. No filme fora (= ver o quadro), podendo portanto fazer funcionar de José Berzosa, Os bombeiros de Santiago, é claro que seu pensamento. Os exemplos recentes mais claros no Berzosa “mente” a respeito daquilo que está em jogo cinema dito “documentário” são, em minha opinião, em seu filme, que é filmar o fascismo triunfante dos os filmes de Avi Mograbi, e notadamente z 32 . Mas bombeiros e o ordinário dos empregados. Ele não diz também em Agosto, antes da explosão, que é mais antigo. o que procura. Ele deixa o inimigo vir até ele. Isto é Mograbi desloca o inimigo em um enquadramento que claramente armar uma cilada. Mas os personagens filé o seu, que é o do filme, que inventa portanto uma mados não parecem se arrepender. Eles são enganados, topografia e uma coreografia que não são aquelas do mas isso não os perturba. Eles estão tão orgulhosos de inimigo. Confrontado ao pequeno mundo singular de si mesmos que a hipótese de que haja um outro que Mograbi, o inimigo se torna mais legível, uma dimen- os desaprove não lhes faz nem cócegas. De um ponto são de estranheza aparece, por vezes até cômica. Há de vista ético, não há críticas a apontar contra essa 280
maneira de fazer, visto que ela de algum modo filma as mises-en-scènes tal como as concebe e as organiza o inimigo. Não há nenhuma necessidade de destacar, o destaque é dado pelo próprio inimigo, em sua potência e em sua inocência. É certo que esse método não é fácil. Via de regra, o inimigo que aceitou ser filmado está seguro de si e de seu mundo, e não tem medo de mostrá-los tais quais eles são. Ele supõe que está do lado certo e não tem por que esconder aquilo de que se orgulha. É assim que José Berzosa filma Pinochet, e também que eu filmo Le Pen, deixando-os organizar as coisas. Claro que essas “cenas-armadilhas” entram na construção de um todo significante que ultrapassa a mise-en-scène do outro e permite vê-la justamente como uma mise-en-scène, o que a decompõe. É portanto o conjunto do filme que responde à tomada de poder parcial do inimigo que mostra “sua” mise-en-scène, “seu” jogo. “Como incitar o espectador em direção a um sentimento de horror e de revolta lógica diante das monstruosidades cotidianas da Frente Nacional, sem fazê-lo deleitar-se nem com o horror, nem com a sua denúncia espetacular?”, você se perguntava no texto “Como filmar o inimigo?”. É grande
a tentação de retomar o poder e a crítica na montagem, alvejando o inimigo de maneira mais segura, tendo dele se distanciado. Para filmar o inimigo é necessário, no seu entendimento, dividir com ele a mesma cena? Qual seria, hoje, o papel da montagem? Creio que respondi à questão em minha resposta anterior. O horror eventualmente experimentado por um espectador não é, não pode, não deve ser a façanha do realizador. É fácil chocar um espectador, é fácil brutalizá-lo, e isso remete a um mundo de canalhas e brutos. Convém pensar que aquilo que o inimigo nos faz padecer, o horror de que ele é culpado, nós não temos que infligi-lo ao espectador, pois isso seria nos colocar do lado do horror! Filmar é propor ao espectador uma viagem, não em direção ao horror ou à degradação, mas, ao contrário, rumo à consciência, à dignidade, à clarificação. Nós queremos sair da representação da violência que seja também violência da representação. Para isso, trata-se de considerar que o espectador é um alter ego, um outro eu, que ele é adulto, digno, corajoso e honesto. Se não é assim, quer dizer que desprezamos nosso espectador, portanto que o tratamos como os fascistas tratam o povo. Fora 281
isso, sim, nós temos o poder na montagem. Este poder é, na minha opinião, o de deixar o espectador numa posição da qual ele mesmo possa criticar. Nós devemos certamente dispor aqui e ali sistemas de alerta, para que o “naturalismo” da representação possa ser posto em dúvida pelo espectador. Mas é em uma montagem sutil que eu acredito, e não na montagem dos filmes de propaganda, onde tudo se baseia em slogans escritos em cartolinas. Hoje, a questão política na era do Espetáculo é fazer de tudo para deixar uma posição de liberdade ao espectador, mesmo que ele venha a se aproveitar dela para nos contestar! O combate real é entre lógicas de representação: duração ou não, extracampo ou não, complexidade ou não etc.
não se acredita nisso, melhor não fazer cinema e sim outra coisa, música ou dança. Uma vez que se coloca a representação do corpo do outro (cinema), entra em jogo a questão da alteridade, de seus limites. O cinema demonstrou que a monstruosidade em si mesma era filmável e portanto não era tão monstruosa assim (Freaks). O cinema é uma máquina de domar, de domesticar, de familiarizar, de aproximar, de estreitar laços. Se não for assim, melhor entrar para o exército!
Assistimos no Brasil, a exemplo de outras partes do mundo, a uma intensa mobilização de rua, com a presença às vezes de um milhão de pessoas. Elas se mobilizam pelos assuntos mais diversos: contra a corrupção, a favor do transporte público gratuito, por melhoria na educação e aumento sala“Como escapar dessa inclinação fatal do cinema que impõe – rial dos professores. Os governos, contra essas manifestações, obsessão baziniana – que filmar juntos os adversários seja, têm se beneficiado da grande imprensa, que criminaliza consequentemente, aproximá-los um do outro (e ambos de tais movimentos tachando-os de vândalos, baderneiros, mim)?” (recolocamos a indagação que você se coloca em seu agressores da democracia e do bem público. Por outro lado, texto de 1995, “Filmar o inimigo”). os mesmos movimentos construíram uma grande rede de informação e circulação na internet, uma arma a favor Mas não há como “escapar” disso. O cinema inteiro é das manifestações e contra a mídia tradicional. Diante testemunha de que o amigo e o inimigo podem estar disso, lhe perguntamos: Os inimigos mudaram. Ainda é no mesmo filme e, muitas vezes, no mesmo plano. Se preciso filmá-los? 282
O que mudou foi a aliança do capitalismo dito “neoliberal” com as formas de governo ditas “democráticas”, muito embora sejam, na realidade, cada vez mais autoritárias. É assim em todos os lugares do mundo, na França, no Brasil. O capital precisa usar a máscara da democracia porque compreendeu que a máscara da ditadura (nazistas, militares etc) era um obstáculo à mundialização do próprio capital, e escolheu paralelamente confiar a essas pretensas “democracias” a manutenção da ordem. É de fato pela imprensa – ela própria estando nas mãos do capital – que se dá essa influência: todos os que não jogam o jogo da submissão são “inimigos”. Como lutar contra este jogo duplo, esta grande mentira? Da maneira como se faz por todo lado, como vocês mesmos dizem: constituindo redes, estruturas alternativas, difundindo novidades, revelando segredos de Estado. O lugar do cinema neste combate é muito secundário, muito minoritário. O cinema é hoje massacrado pelas propagandas inimigas, porém paralelas e cúmplices, e o “presentismo” ganhou o jogo. Ora, o cinema se vê no presente mas funciona no porvir. Nós saímos da possibilidade mesma de estar em um porvir. Tudo deve ser consumido muito rápido, imediatamente: mercadorias mas também ideias, ima-
gens, palavras, modos etc. Contra isso o cinema é em grande parte impotente. É preciso considerá-lo hoje como um ato de resistência, que fornece testemunho do momento atual e transmite às gerações vindouras a ideia de que ainda pode haver algo de humano em um mundo dominado pela economia técnica. Eu nos considero, eu me considero testemunha de uma história do homem em vias de destruição. Deve-se ler Gunther Anders: ele disse tudo isso há sessenta anos. Você filmou de dentro os partidos de extrema-direita na França, seus militantes, seus congressos. Mas como filmar internamente a batalha, quando o inimigo dos manifestantes é a polícia, que se apresenta com suas armas e toda a parafernália de repressão (cassetetes, bombas, gás lacrimogênio, cavalos, balas de borracha)? As imagens da repressão fazem parte da repressão. Novamente, ver os filmes de Avi Mograbi. Filmada, a violência sempre se torna fotogênica; em todo caso, ela satisfaz às sujas zonas de sombra da pulsão escópica em cada espectador. Filmar fuzis, armas, bombas, sempre se chega perto de fazê-los desejáveis.
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Como você vê esse tipo de registro feito pela mídia livre, através de pequenos celulares, sons e imagens enviados diretamente para a internet, sem montagem, o continuum de registro chegando a mais de 24 horas? Sim, pegar essas imagens, mostrá-las, fazê-las circular, isso tem um sentido em termos de informação. Mas vocês sabem que a lógica do cinema e a do mundo da informação estão em total oposição. No cinema, elide-se uma parte das informações, não se diz tudo imediatamente, não se mostra tudo etc. O cinema sempre se afirmou como parcial, particular (não generalizante), singular (tecendo uma relação de sujeito a sujeito). A frustração é a lei do cinema. A satisfação é a lei do Espetáculo, bem como da mercadoria. Não confundir cinema e informação já é sair da dominação do Espetáculo e da mercadoria, que se encontram um e outro do lado da publicidade, da propaganda etc.
se encontra a polícia e a necessidade de fugir (ou de resistir no local de filmagem)? Nós todos sabemos que aqueles que filmam, assim como os espectadores, são irresistivelmente atraídos pelo barulho e o furor deste mundo. O que seria preciso fazer? Ter a força (moral) de se virar, de filmar outra coisa, as árvores, os rios, as nuvens, registrando o alvoroço dos combates no som. Dissociar as imagens e os sons é um início de desalienação do espectador. Qual é o impacto (se é que há impacto) deste tipo de registro e de relação com o espectador no cinema em geral e na mudança social?
Acredito que respondi a esta questão nas respostas anteriores. Pois são micro-impactos, mini-gestos, traços ínfimos, infra-signos que respondem o melhor possível às mobilizações massivas de violência, de dinheiro, de Como vê o espectador destes registros ao vivo das mani- luz etc, que nossos adversários sabem fazer. O “quase festações, um espectador que envia mensagens diretas (por nada” é aquilo que lhes escapa. Nós estamos vivos, escrito) para aquele pequeno grupo de pessoas (por vezes ativos e criadores no “quase nada”. uma só pessoa) que está filmando, alertando-o sobre o que é melhor filmar, sobre o perigo de estar em cena, sobre onde 284
Nas recentes manifestações, muitos participam mascarados, os Kanaks) que a fala é perigosa, quase mortal, que para escapar da repressão policial, entre outros motivos. é preciso proteger-se, fechar os olhos, virar as costas. Filmá-los e exibi-los sem máscaras poderia significar pro- Nada impede aquele que hoje filma os manifestantes duzir “provas do crime” para a polícia. Quando se filmam de deslocar o nível das representações indo em busca tais manifestações, qual seria o lugar da invisibilidade, do de mais artifícios. limite entre mostrar e não mostrar? Se os manifestantes filmam, a polícia também filma, e, por Filmar combates é uma coisa. A pintura (Goya) o fez meio destes filmes, analisa e persegue os manifestantes. A de modo muito potente. Não é necessário nem útil ver câmera do inimigo é mais potente e eficaz do que a câmera o rosto dos combatentes. Inclusive, na Idade Média, as do manifestante ? armaduras escondiam os rostos. Por outro lado, filmar os homens com seus rostos me parece um dos aspec- Não é uma questão de câmera, mas de olhar. O olhar tos mais importantes da operação cinematográfica. policial só pode suspeitar, denunciar, aprisionar etc. Nós filmamos homens “à altura do peito”, com seu O olhar do homem livre – que ele se sirva da mesma rosto, com sua face, como diria Lévinas. Quando Avi câmera ou não – terá uma maneira de filmar, de enMograbi decidiu filmar, a despeito de tudo, a confissão quadrar, de se mover, que irá revelar que ele está do de um jovem soldado israelense a relatar a cena de um lado da liberdade. O enquadramento pode ser uma crime atroz, ele escondeu o rosto da testemunha, pri- prisão, e pode também ser uma maneira de convocar meiro por trás de um truque de tipo desfoque, depois o extracampo, o não-visível, para “abrir” a imagem. fabricando uma “máscara” eletrônica que se molda As câmeras de vigilância não fabricam extracampo sobre o rosto da testemunha; ele a esconde, mas, ao (senão, para que serviriam?). As câmeras que servem mesmo tempo, a revela como personagem de tragédia para fazer filmes solicitam permanentemente os limites (lembremo-nos das tragédias antigas em que os atores do quadro e do extracampo. É da lógica do enquadraeram mascarados). É uma outra maneira de dizer (como mento enquadrar, isto é, limitar, fechar, comprimir etc. 285
Globalmente, o cinema é um sistema disciplinar que se choca com a liberdade dos corpos filmados. Está portanto nas mãos do cineasta contrariar a dimensão carcerária dos enquadramentos para fazer circular significados entre eles, entre a tela e o espectador. Quando estão gravando, os câmeras do midialivrismo estão ao mesmo tempo questionando a polícia, dizendo que não podem agredir ou prender os manifestantes, que tudo está sendo mostrado ao vivo para centenas ou milhares de pessoas. Filmar aqui é, portanto, um ato de resistência instantâneo, que pode inclusive evitar que manifestantes sejam agredidos e levados para a prisão. Isso produz impacto sobre a forma de telejornalismo vigente hoje no mundo, dominado pelos grandes meios de comunicação?
parte de nossos mecanismos mentais. A ideia de viver ou de fazer (não importa o quê, incluindo horrores) fotografando ou filmando tornou-se uma atitude massiva. Você conhece o movimento Black Blocs? Poderia fazer um comentário sobre eles? Eu conheço, certamente, mas de muito longe para fazer um comentário pertinente. Eu os vejo atuar na televisão e não posso não ver uma arte de se mostrar bem como de se esconder. Finalmente, enviamos um pequeno filme, circulado no You Tube, que vamos mostrar no forumdoc. Se puder, comente este filme, e também a circulação de filmes em plataformas como o Youtube.
Sim e não. Por vezes a polícia tem medo das câmeras. Outras vezes, não. Em nosso tempo do Espetáculo http://www.youtube.com/watch?v=p4t-vX9Aa0Y generalizado, os próprios policiais filmam as violências que infligem aos manifestantes ou aos prisioneiros. Não tive tempo de ver o filme. Eu o verei e vos direi Lembremo-nos de Abu Ghraib. Todo o mundo (no alguma coisa. Mas sou muito favorável à difusão de sentido mais forte) ficou assombrado com as imagens. todo tipo de objeto fílmico pelo Youtube, por exemplo. A sociedade do espetáculo descrita por Guy Debord A razão principal é que isso concede um pouco mais é doravante ativa em cada um de nós, o espetáculo faz 286
de autonomia ao espectador, que pode efetuar escolhas paradoxais que o sistema do mercado não permite. Tradução: Débora Braun Notas 1. Essa e outras questões se beneficiaram do debate acerca dos “enfrentamentos do inimigo” no cinema brasileiro, que se seguiu às duas primeiras mesas do Seminário Cinema Estética e Política, no 17o Encontro da Socine (Unisul/Florianópolis, 2013). Agradecemos aos participantes do seminário, em especial a Mariana Souto, cuja apresentação na primeira mesa suscitou este debate. 2. Ver, neste catálogo, o ensaio de Mariana Souto, “Documentários terroristas? Inimigos de classe no cinema brasileiro contemporâneo”.
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Vandalismo Jimmie Durham* Nas américas, o genocídio é tão celebrável. Claro que é negado, justificado, explicado. Mas ao mesmo tempo é celebrado. Os matadores corajosos que abriram as matas. Os assassinos, como foram tão recentemente e apropriadamente chamados pelos indígenas que picharam a enorme escultura dos Bandeirantes de Victor Brecheret, no parque do Ibirapuera em São Paulo, em outubro de 2013.
pécie; como se os cidadãos precisassem de lembretes constantes de sua história, sua culpa. Por meio deste ensaio, ofereço minha mais sincera gratidão às pessoas que desfiguraram a feia e dura edificação de Brecheret. Em Nova Iorque, há uma estátua de Theodore Roosevelt triunfante, montado num cavalo. Atrás dele estão um afro-americano e um índio americano andando humildemente, não tanto seguindo-o para onde ele poderia levá-los, quanto significando ser de sua propriedade. Esse monumento recebe o público em frente ao Museu de História Natural.
Quando ouvi essa notícia, meu coração, minha mente, meu espírito se animaram. Em 2010, participei da Bienal de São Paulo e todos os dias tinha que passar diante desta que é para mim, para nós, uma horrível monstruosidade. Eu frequentemente pensava como seria bom se um trem de carga bem longo acidentalmente Nos anos 1960, índios Americanos, amigos meus, jodescarrilhasse e se chocasse contra esse monumento garam baldes de tinta vermelha nele mais de uma vez; ao assassinato. Ele é um de muitos outros de sua es- um gesto simbólico que em nada mudou a atitude dos brancos, mas nos deu coragem. 288
Alguns anos mais tarde, nos anos setenta, me mudei para Nova Iorque para trabalhar nas Nações Unidas, para o Conselho Internacional dos Tratados Indígenas. Uma grande prioridade era organizar uma conferência dos povos indígenas das Américas na sede da onu em Genebra. Era necessário falar com líderes indígenas no Canadá, México, Guatemala, Nicarágua, Panamá, Colômbia, Venezuela, Equador, Chile, Peru, Bolívia, Argentina. Provou-se impossível falar com qualquer pessoa no Brasil. Os povos indígenas no Brasil não eram livres para participar de conferências internacionais… nem para formar organizações nacionais. Agências do governo, antropólogos e missionários cristãos falavam por eles, agiam por eles. Mesmo no novo século, os indígenas no Brasil não tiveram sua humanidade plenamente reconhecida pela constituição. A situação, que deveria ser vista como intolerável, é na melhor das hipóteses justificada como sendo para o bem dos índios, protegendo-os do sistema jurídico. Quem justifica parece nunca se dar conta que isso simplesmente não tem funcionado; os indígenas são perseguidos, tirados de suas terras, mortos constantemente. Muito mais importante, e nunca encarado,
(exceto, talvez, com um certo orgulho perverso do tipo que se encontra também entre os texanos.) é o subtexto óbvio, que é o texto de fato: é dito que o Brasil não consegue proteger os povos indígenas do próprio Brasil. O Brasil não pode proteger os povos indígenas do Brasil. Nesse caso, o que? Se os povos indígenas pegassem em armas sofisticadas e reagissem de maneira metódica, certamente o Brasil retaliaria com vingança. Em outras palavras, o Brasil iria se proteger dos Índios. Se as Américas fossem o lar de ex-colonizadores europeus normais e racionais como fingem ser, a terrível situação poderia ser assumida por algum conselho das nações americanas. Mesmo com a espantosa melhora em alguns países sul-americanos, tal organização não agiria em nome dos direitos dos povos indígenas. No século xxi, ainda vivemos em nações não-racionais, primitivas e triunfalistas, que são o espólio do genocídio. Eu imagino rapazes brasileiros presunçosos, sentados com suas cervejas: um deles nos diz, “Você não pode chamar isso de genocídio porque o genocídio, como crime, é um ato deliberado. O que acontece no Brasil 289
é apenas acidental. Ninguém jamais saiu a cometer Aposto que se os índios trouxessem um caso para a genocídio contra os povos indígenas.” Só que eu acho onu muitos brasileiros se sentiriam insultados. Muitos que ele realmente falaria usando o verbo no passado. se sentiriam traídos. E aposto que, tendo ou não raAcho que ele diria que o que aconteceu, aconteceu. tificado, se indígenas levassem uma denúncia à onu, Muito triste, mas precisamos todos seguir em frente. muitos brasileiros se sentiriam insultados. Muitos se sentiriam traídos. Por vários muitos anos eu venho contando às pessoas que nós não estamos no passado, nossos problemas Nas Américas existem dois países gigantes que criaram com os países americanos nos quais estamos não es- narrativas nacionais sobre seus “primeiros dias”; Os eua tão no passado. O genocídio dos povos indígenas das e o Brasil. Os mitos que fazem dos bandeirantes, pioneiros, cowboys, são os motores que, em funcionamento, Américas não está no passado. impulsionam suas culturas. Por essa razão, qualquer As Nações Unidas elaboraram uma convenção contra contestação de qualquer parte do mito é respondida o genocídio, depois da Segunda Guerra Mundial. Essa com uma raiva infantil. Ainda assim, as histórias dos convenção é explícita e detalhada. Uma vez que as pioneiros e bandeirantes estão destrutivamente erradas. convenções da onu são elaboradas, elas são enviadas às nações-membro para ratificação. Naquela época, os eua Os bandeirantes escravizaram, estupraram, mataram não ratificaram a convenção da onu contra o genocídio. índios, roubaram suas terras e transformaram sua própria prole em monstros. Se fizeram isso com uma alegre Em 1977, tínhamos um documento com fatos e evi- cordialidade, ainda pior. Ainda mais horrível. Se eles, dencias concretas do contínuo genocídio contra povos em seu tempo, consideravam-se inocentes – é ainda indígenas nos eua, pronto para ser apresentado à onu. mais horrível. Mas seus admiradores de hoje não são Nós não exageramos nem deturpamos a questão. inocentes. A estupidez nunca é inocente.
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Durham e Alves estiveram na Bienal de São Paulo em Os bandeirantes não são os fundadores de São Paulo, 2010, e passaram cinco meses no Brasil naquele ano. nem do Brasil. Eles são os fundadores de uma situação Durham já havia estado no Brasil antes, para falar no ruim que os negros brasileiros precisam contornar. E Fórum Social Mundial em Porto Alegre. mais tarde, os europeus pobres, como os ucranianos e poloneses, precisam contornar. E certamente os indígenas precisam tentar contornar; viver miseravelmente Tradução: Fábio Menezes num país que celebra seu genocídio. Notas
O prefeito de São Paulo deveria dar um prêmio – e mais tinta spray – para os artistas que interviram no estúpido monumento de Victor Brecheret.
* Escultor, ensaísta e poeta nascido em 1940 na América e que hoje vive na Europa.
Jimmie Durham, Sila, Calábria, 11 de Outubro de 2013. Durham fez parte do movimento indígena americano
nos eua nos anos 1970 e no início dos 1980, e foi diretor
do Conselho Internacional dos Tratados Indígenas com sede nas Nações Unidas, em Nova Iorque. Durham foi o organizador da Conferência de Indígenas das
Américas em 1977.
Desde o início dos 1980, vem trabalhando como artista, vivendo no México e em vários países da Europa com
sua companheira, a artista Maria Thereza Alves.
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Foto Gabriela Batista
Documentários terroristas? inimigos de classe no cinema brasileiro contemporâneo Mariana Souto* No contexto cinematográfico brasileiro em que a maioria dos documentários se dedica à escuta atenta do outro, aproximando-se de personagens admiráveis, fazendo da relação respeitosa premissa dos filmes, algumas obras parecem nadar na contramão. Um lugar ao sol (Gabriel Mascaro, 2009), Vista Mar (Rubia Mércia, Pedro Diógenes, Rodrigo Capistrano, Victor Furtado, Claugeane Costa, Henrique Leão, 2009) e Câmara escura (Marcelo Pedroso, 2012) forjam-se não no encontro, mas no confronto com a alteridade – engajados numa relação de crítica, conflito ou franco ataque, dedicam-se a tentar filmar o inimigo. São eles dos raros documentários feitos no Brasil que abordam as fatias aquinhoadas da população. É interessante observar que, de um lado, as relações de classe têm ressurgido em certo cinema de ficção temperadas por elementos do horror, assimilando criaturas fantásticas, monstros e pesadelos, como em Trabalhar cansa
(Marco Dutra e Juliana Rojas, 2011) e O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012). De outro, alguns documentários adquirem formas terroristas. Não por acaso ficções de terror e documentários terroristas aparecem numa época em que as classes média e alta parecem sobressaltadas diante de transformações na composição social brasileira. Um lugar ao sol tem como personagens moradores de valorizadas coberturas de algumas capitais do país. O filme procede ao exame da situação de habitar uma cobertura não apenas como um sintoma da verticalização por que passam grandes cidades, mas também como metáfora de uma posição na hierarquia social. Parte da estratégia de aproximação de Mascaro era se apresentar como um diretor famoso internacionalmente, ter assistentes agendando as entrevistas e chegar deliberadamente atrasado alegando compromissos importantes. Com isso, parecia querer forjar sua participação naquele 293
universo, aproveitando-se da valorização do status, do exibicionismo, da necessidade de autoafirmação dos entrevistados, que pensavam estar conversando com um mesmo de classe, ficando assim mais à vontade para tecer determinados comentários. O cineasta atua como um espião travestido, criando uma armadilha, preparando um cenário favorável para a livre manifestação de um discurso reprimido fora daquele nicho. Falseia, assim, uma cena de ricos falando entre si, uma situação eticamente problemática, mas a que provavelmente ele não pudesse ter acesso de outra maneira. Durante as entrevistas, o diretor assume uma postura de interesse e conivência; nunca confronta, discorda ou contradiz seus personagens. A crítica está menos nos proferimentos do que na contraposição que resulta de sua associação com outras imagens filmadas por Mascaro (pescadores, transeuntes diminuídos em acentuados zooms e plongées, emulando a visão distorcida daqueles que estão acima, tão distantes). Em outras palavras, o dissenso vem do contracampo, que contradiz, reverbera e desconfia daquelas afirmações. As entrevistas dão a conhecer, de maneira bastante manifesta, franca e inequívoca, pensamentos e opini294
ões de uma certa elite – uma valiosa contribuição de Mascaro, que não encontra muitos precedentes em nosso cinema. No entanto, as falas, atravessadas por uma forte homogeneidade, permitem pouca problematização e nuance. Apesar de assustadores e desconcertantes em alguns momentos, os depoimentos de Um lugar ao sol são montados de maneira a se tornarem ridículos, patéticos, afetados, alienados. Há pouca abertura para a desidentificação: os entrevistados são reduzidos a pequenos porta-vozes de uma ideologia, todos em uníssono. Embora o contraponto surja na montagem, o resultado ainda é uma lógica binária e maniqueísta. Vista Mar é um curta de 12 minutos realizado por seis jovens cearenses que se apresentavam a imobiliárias como uma equipe de filmagem contratada por um cliente de São Paulo. Seu suposto objetivo era filmar apartamentos luxuosos de Fortaleza para que o cliente pudesse, à distância, escolher o lugar para o qual se mudaria. Os diretores filmam as enormes residências com vista para o mar, ouvindo os corretores proferindo informações sobre o imóvel, a metragem, as supostas maravilhas de se instalar naquele local tão privilegiado: a segurança armada, as portas blindadas, o fato de que “ninguém encontra com ninguém, todo mundo é
muito ocupado, sai pra garagem, vai embora. Não tem circulação de gente pelo prédio” ou que “o bairro é muito bem frequentado”. Anúncios, outdoors e propagandas televisivas são adicionados à montagem, revelando dizeres como “Você merece sua própria cidade”, “Vivenda Meireles. A maior prova de que viver em harmonia com a natureza não é um sonho. É uma escolha”. Na mise-en-scène do curta, temos uma câmera distanciada, que filma os espaços vazios com profundidade de campo, ressaltando a impressão de não ocupação, de desperdício, de latifúndio improdutivo. A presença humana raramente acontece – a equipe pouco se revela, o filme apresenta apenas os corretores, mas ainda assim recortados – os rostos são ocultos, muitas vezes a imagem os intercepta na altura do pescoço. Em determinada sequência, vemos uma série de planos em que eles saem rapidamente do enquadramento, em contraluz, deixando o espaço num completo vazio. Estamos aqui no terreno do documentário, mas o plano é uma recorrência do gênero do filme de horror: a visão fugaz de um fantasma; o vulto que abandona o cômodo em um instante, deixando o espectador em dúvida se viu, de fato, uma presença.
Apesar da desavença dos realizadores ser com a elite – o mercado imobiliário, as poderosas empresas construtoras daqueles imóveis e seus compradores endinheirados –, o diálogo do filme se estabelece apenas com os corretores, ou trabalhadores, a ponta frágil de toda aquela dinâmica. São eles que sofrem uma exposição controversa, uma possível ridicularização. Contudo, um off do corretor, situado num majestoso apartamento vista mar, irrompe cortante: “Sabe quantos anos eu tinha quando conheci o mar? 17 anos”. Assim, é a elite (o real inimigo) a presença fantasmagórica do filme, o vulto que ronda aqueles espaços. E com ela não há embate frontal. Sabe-se que lá ela esteve, que no futuro também estará, mas com ela não se compartilha o mesmo espaço/tempo, apenas sentimos seus rastros, os vultos, como que indícios de sua presença furtiva. Em Câmara escura, Marcelo Pedroso interfona moradores de casas de classes altas e, ao deixar na porta uma “encomenda”, foge apressadamente. O artefato misterioso é uma caixa que contém uma filmadora ligada. As pessoas, confusas, apavoram-se com o experimento, julgando ser parte de uma estratégia de ladrões para ter visão do interior da casa. Mais tarde, Pedroso entra em 295
contato com os moradores para recolher as imagens da câmera oculta. Em um sagaz movimento de câmera, ressalta a hipocrisia dos moradores que criticam seu ato de gravá-los inadvertidamente, ao filmar a câmera instalada no portão da residência, direcionada para sua equipe. No filme, a câmera se torna artefato bélico, confundida com uma arma – um aparato de vigilância, um rastreador de localização, uma bomba. Depois de apavorar alguns moradores com sua caixa misteriosa, Pedroso é convocado a se explicar na polícia. As imagens deixam a qualidade de registros cinematográficos para se tornarem evidência, prova de um possível crime ou argumento de sua defesa. O diretor utiliza a lógica dos próprios elementos que critica – a paranóia e a vigilância – para desafiar modos de vida das camadas ricas, lançar luz sobre o que considera ser um distorcido estado de coisas. Nomeamos aqui, com certa liberdade, de “documentários terroristas” filmes cuja abordagem é pautada pelo medo e pela armadilha, pela estratégia de “guerrilha”, pela arquitetura de um dispositivo de infiltração, 296
pela ultrapassagem de convencionais limites éticos. J. Angelo Corlett faz uma análise filosófica do terrorismo, conceito de difícil definição, dada a impossibilidade de se chegar a uma concepção que abarque toda a variedade de formas de terrorismo ocorridas na história. O autor traz uma interessante fala de Trotsky, para quem o terrorismo é uma “forma de violência justificada quando é uma questão de autodefesa”, um ato de forças revolucionárias contra um estado opressivo: “Para tornar o indivíduo sagrado devemos destruir a ordem social que o crucifica. E esse problema só pode ser resolvido com sangue e ferro” (trotsky, p. 62-3 apud corlett, 2002, p. 112-3). O terrorismo seria, então, uma violência justificada pela opressão, ancorado numa moralidade um tanto quanto anticristã, em que não há perdão, mas revide. Walter Laqueur enfatiza o caráter inesperado, ultrajante e chocante do terror, em oposição a outros conflitos mais previsíveis: a guerra “acontece na luz do dia e não há mistério sobre a identidade de seus participantes. Até na guerra civil há certas regras, enquanto as características do terrorismo são o anonimato e a violação de regras estabelecidas” (laqueur, 2012, p. 3). Veremos
que o anonimato ou a falsa identidade estão presentes nos três filmes.
Desde a origem, o território nasce com uma dupla co-
O terrorismo não se configura como uma ideologia, mas “uma estratégia insurrecional que pode ser usada por pessoas de convicções políticas muito diferentes” (laqueur, 2012, p. 4). No caso de nossos filmes, os gestos terroristas parecem compartilhar o amparo numa ideologia de cunho marxista (ou ao menos em ecos dela), mobilizados pela desigualdade. Não se trata de patriotismo, etnia ou religião; são filmes que se posicionam de maneira combativa em relação às classes dominantes ou elites, empenhados na crítica do acúmulo, do consumo exacerbado, do isolamento, revelando o outro lado da desigualdade social – o polo oposto ao que se costuma ver com mais frequência no cinema brasileiro. Ao mesmo tempo, desafiam as próprias bases do capitalismo contemporâneo, creditado como o responsável pela má distribuição de renda.
reoterritor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com
Desperta a atenção o fato de que território e terror possuam raízes lingüísticas compartilhadas:
notação, material e simbólica, pois etimologicamente
aparece tão próximo de terra-territorium quanto de terdominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no
“territorium” são impedidos de entrar. (...) (haesbaert, 2007, p. 20-21).
A instigante relação apresentada por Haesbaert entre território (seria este o resultado da junção entre espaço e posse?) e terror nos leva a pensar que a ameaça à integridade e à estabilidade do território são tanto ameaça ao abrigo do sujeito e à sua sobrevivência quanto à ideia de propriedade privada em si – uma das fundações do sistema capitalista e ideologia cara às classes altas e médias da população. Câmara escura, Um lugar ao sol e Vista Mar parecem erigir um dispositivo de infiltração.1 Mas ao contrário do que acontece em títulos como Pacific (Marcelo Pedroso, 2009) ou Doméstica (Gabriel Mascaro, 2013), filmes em que a infiltração tem como objetivo observar uma 297
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intimidade protegida, com baixo impacto do aparato cinematográfico profissional, os três filmes aqui abordados fazem do desejo de infiltrar quase um fim em si mesmo, pois equivale à vitória de transpassar território inimigo. Ainda que haja também curiosidade, vontade de observação e de conhecimento (“filmar para melhor conhecer”, diz Comolli), sua intenção é bélica. Destaca-se o fato de que a luta que os cineastas querem travar não pode se dar em praça pública; eles precisam ir até onde o inimigo está – seja porque esse inimigo se esconde numa fortaleza e de lá não sai, logo, não haveria escolha, seja pela própria aventura da invasão. O lar do inimigo é tanto seu território mais fortificado, quanto o mais vulnerável – e talvez por isso seja tão atraente.
E no caso de Vista Mar e Um lugar ao sol, são filmes de resultado terrorista, mas que não são assim sentidos nas filmagens, já que apenas o espectador conhece as condições escusas e traiçoeiras da abordagem, informação que nunca é revelada para os participantes.
É evidente que aqui não se configura terrorismo stricto sensu, mas um dispositivo terrorista ou terrorismo lúdico; um jogo que se apropria mais da estratégia do terror do que de seus efeitos ou resultados finais. Embora haja instauração do medo, criação de um clima de insegurança que evoca uma ameaça difusa (a dona da casa em Câmara escura relata um “apavoramento”), nunca passam ao ato, nunca recorrem à violência física. Tudo permanece no nível do simbólico, das imagens.
sistema de temores’, como escreveu Paul Valéry, são
Em Câmara escura, o medo instaurado não tem origem exata. A câmera que adentra a casa no interior de uma caixa não pode ser traduzida por uma ameaça declarada, definida. Adauto Novaes discorre sobre o medo: ...‘inquietude sem objeto’, muitas vezes sem nome, o
medo alimenta-se de si mesmo, alimenta todas as outras
paixões tristes, nasce e renasce de si mesmo. Assim, os homens, esse ‘sistema de desejos temperados por um
conduzidos de forma permanente por suas paixões e, no medo, tornam-se inimigos uns dos outros. (novaes, 2007, p. 12)
Maria Rita Kehl fala sobre os contornos do medo em tempos contemporâneos: “o homem, que só sobrevive física e psiquicamente em aliança com seus semelhantes, vê hoje no outro, qualquer que ele seja – estrangei-
ro ou vizinho, familiar ou desconhecido –, a ameaça mais temida” (kehl, 2007, p. 89). Assim como o medo em O som ao redor e Trabalhar cansa, aquele produzido por Câmara escura soa, fundamentalmente, como um medo do outro – o temor da alteridade. No caso do curta-metragem, um medo em relação ao humano, mas mediado por um objeto tecnológico. Uma câmera ultra compacta, que consiste num retângulo fino, com uma circunferência negra ao centro – um olho. ‘Eu te vejo, mas você não me vê’ – a condição da paranoia. Parece desejo do filme resgatar a câmera do registro da vigilância e do monitoramento em direção à dimensão da percepção.2 Para isso, contudo, o curta incorre na mesma lógica, vingando a vigilância com mais vigilância, mudando só o alvo. “Veja o que é bom pra tosse”, parece dizer. É interessante pensar que os realizadores, brancos, filhos da classe média (não fosse a barba abundante de Pedroso e Diógenes, que remete aos árabes e muçulmanos, tão atrelados ao terrorismo contemporâneo, assim como às figuras comunistas de outrora), provavelmente conseguiriam acesso aos seus “alvos” pelas
vias comuns: apresentando-se, esclarecendo a proposta. Mas o que interessa não é simplesmente entrar, não é sacar imagens, mas inventar e fabricar um dispositivo, isto é, criar as regras de um jogo e convidar alguém ignorante delas para brincar, testar suas reações, fazê-la ir da entrada do labirinto ao queijo. Mas até que ponto são Câmara escura, Um lugar ao sol e Vista Mar de fato documentários terroristas? Muitas vezes seus dispositivos e montagem soam terroristas, mas na mise-en-scène há paz. Comolli faz uma importante reflexão sobre filmar o inimigo: Como conduzir essa relação? Aí está o que incita o
cineasta e molda o filme. Os riscos são, evidentemente,
menos de hostilidade (a filmagem cessaria) do que de
conivência ou complacência. (...) No documentário, a pessoa filmada pode, a cada momento, pôr fim ao filme. (...) Eu rejeito aquilo que me repulsa, mas devo
atar e não romper. Dependência do documentarista –
mas ao mesmo tempo potência da relação (comolli,
2008, p. 129).
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Seriam estes filmes uma forma de terrorismo comedido, que diante da face no inimigo se aplaca e se acovarda, para retomar a crítica na proteção da ilha de edição? Ou a conivência presencial é justamente parte de uma ardilosa e dissimulada estratégia, já que sem ela, correse o risco de não haver filme? Tanto os diretores pernambucanos quanto os cearenses reacendem e reconfiguram, no campo das imagens contemporâneas, uma velha luta de classes. Com métodos questionáveis e subversivos, valem-se de armas e fraquezas do próprio inimigo: a vigilância, no caso de Câmara escura, a vaidade, em Um lugar ao sol, e a ganância, em Vista Mar. Olho por olho, dente por dente.
Referências COMOLLI, Jean-Louis. Como filmar o inimigo? In: Ver e poder: a inocência perdida : cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 123-134. CORLETT, J. Angelo. Terrorism – a Philosophical Analysis. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 2003. 300
HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. Revista GEOgraphia. Ano 9, No 17, 2007, p. 19-46. JUNIOR, Luiz Soares. Aqueles que chegam com a noite. In Revista Cinética. http://revistacinetica.com.br/ home/camara-escura-de-marcelo-pedroso-brasil-2012/. Acesso em agosto de 2013. KEHL, Maria Rita. Elogio do medo. In: NOVAES, Adauto. Ensaios sobre o medo. São Paulo: Ed. SENAC São Paulo: Edições SESC SP, 2007. p. 89-110. LAQUEUR, Walter. A history of terrorism. New Jersey: Transaction publishers, 2012. NOVAES, Adauto. Ensaios sobre o medo. São Paulo: Ed. SENAC São Paulo: Edições SESC SP, 2007. Notas * Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. 1. Ideia desenvolvida no artigo: SOUTO, Mariana. O direto interno, o dispositivo de infiltração e a mise-en-scéne do amador – Notas sobre Pacific e Doméstica. In: Devires – Cinema e Humanidade, Belo Horizonte, v.9, n.1, 2012. 2. Na crítica da Revista Cinética: “Para empreender este caminho `regressivo`, esta retomada das origens onto-fenomenológicas
do cinema, é preciso um ato terrorista (e é este clima de thrillercomplô que o filme sugere, com os protagonistas fugindo no carro tão logo entregam a “bomba”; com o preparo minucioso do pacote) (...) o documentário ou dispositivo na verdade é uma ação terrorista que consiste em seqüestrar a câmera dos poderes constituídos que hoje a subjugam e controlam (a Lei, a Ordem, a paranóia dos condomínios) e restituí-la às funções demiúrgicas e encantatórias que os primórdios do cinema descobriram para ela” (JUNIOR, 2013).
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A câmera de combate e o animal paranóide* Ivana Bentes
Trata-se de um impacto cognitivo-afetivo produzido pela transmissão ao vivo (streamming) durante centenas de horas ininterruptas.1 Essa “radiação” política potencializa e cria acontecimentos, como vimos se repetir pelo mundo na Praça Tahrir, 15m espanhol, Occupy Wall Street, Praça Taksim na Turquia e nas manifestações pós-Jornadas de Junho no Brasil, acontecimentos O confronto com o poder e as instituições produzem singulares e em contextos políticos distintos, mas cujas “pontos de existência”, enunciados políticos, gritos de características, pós-internet e redes sociais, emergem dor e euforia e politizam as sensações deixando ima- no bojo de uma tecnopolítica em que as linguagens e gens-rastros, criando rotas e signos que delimitam e estéticas são parte constituintes.2 dissolvem territórios. As emissões ao vivo têm sido associadas a posts, hashEstamos diante de uma mobilização global político- tags, tweets e memesonline, para criar ondas de intensa -afetiva nas ruas e nas redes. Os ciclos de lutas globais participação em que a experiência de tempo e de estornaram-se referência e laboratório global das novas paço, a partilha do sensível, a intensidade da comoção lutas e nessas experiências as imagens em tempo real e do engajamento constroem um complexo sistema produzem outra qualidade de relação com o presente, de espelhamento, potencialização entre redes e ruas. na constituição dos novos sujeitos políticos. Os processos de subjetivação nas emissões ao vivo que explodiram no Brasil desde as Jornadas de Junho apontam para operações de embate, confrontos e fugas que inscrevem o corpo e deixam os rastros de centenas de “cinegrafistas” ativistas nas imagens, constituindo um filme-fluxo ou uma mídia-multidão em processo.
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No Brasil, a emergência de uma mídia-multidão aponta para um novo momento do midiativismo e de um cinema-mundo encarnado, nos protestos de 2013, pela experiência da Mídia ninja (Narrativas Independentes Jornalismo e Ação) e de centenas de coletivos (Rio na Rua, Carranca, Voz das Ruas ou os vídeos do Projetação, 12pm, para citar alguns) que cobrem colaborativamente as manifestações em todo o Brasil, streamando e produzindo uma experiência catártica de “estar na rua”, obtendo (no caso da Mídia ninja) picos de milhares de pessoas online. A Mídia ninja (tomada aqui como a expressão mais visível de uma série de outras iniciativas) fez emergir e deu visibilidade ao “pós-telespectador” de uma “pós tv” nas redes, com manifestantes virtuais que participam ativamente dos protestos/emissões discutindo, criticando, estimulando, observando e intervindo nas transmissões em tempo real, tornando-se assim uma referência por potencializar a emergência de “ninjas” e midialivristas em todo o Brasil.
a mídia corporativa e os telejornais, ao filmar e obter as imagens do enfrentamento dos manifestantes com a polícia, da brutalidade e do regime de exceção (policiais infiltrados jogando coquetéis molotov, polícia a paisana se fazendo passar por manifestantes violentos, apagamento e adulteração de provas, criminalização e prisão de midiativistas, estratégias violentas de repressão, gás lacrimogêneo e balas de borracha, etc.). O que está em jogo, afinal? O midialivrismo e o midiativismo engendram uma linguagem e uma experimentação que criam outra partilha do sensível, experiência no fluxo e em fluxo, que inventa tempo e espaço, poética do descontrole e do acontecimento.
Exprimir o “grito”, como escreveu Jacques Rancière, tanto quanto tomar posse da palavra, é o modo de desestabilizar a partilha do sensível e produzir um deslocamento dos desejos, constituindo o sujeito político multidão. Trata-se de política como comoção, catarse, mas também negociação e mediação. A importância das mídias online, mídias livres e midiativistas nesse Indo além do “hackeamento” (apropriar-se para sub- grito desestabilizador nos parece decisiva para constituir verter) das narrativas, a Mídia ninja passou a pautar outras estéticas, marcadas pelo fluxo e pelo ao vivo, 303
que se apropriam das figuras de linguagem do próprio cinema, da televisão e das redes sociais. Estamos vendo surgir nas ruas uma multidão capaz de se autogovernar a partir de ações e proposições policêntricas, distribuídas, atravessadas por poderes e potências muitas vezes em violento conflito, mas que constituem uma esfera pública em rede, autônoma em relação aos sistemas midiáticos e políticos tradicionais. Ela emergiu e se espalhou num processo de contaminação virótica e afetiva, instituindo e constituindo uma experiência inaugural daquilo que poderíamos chamar de revoluções p2p ou revoluções distribuídas, em que a heterogeneidade da multidão emerge em sinergia com os processos de auto-organização (autopoiesis) das redes. Processos disruptivos, capazes de passar, de forma inesperada, de um medo ou euforia difusos, a uma manifestação massiva, produzida por contágio, e processos distribuídos do que Félix Guattari chamou de heterogêneses.
tica do contato, da contaminação, da experiência da insurgência em fluxo. Enquanto os poderes se reorganizam para um contra-ataque e guerra em rede, a multidão surfa nesse “devir mundo do ocupar”, através de narrativas colaborativas que, mais do que difundir as lutas, são a própria luta. Mas como se constituem as relações de poder e potência através e pelas imagens nessas emissões e vídeos? O que torna um sujeito em um inimigo ou aliado? São pontos iniciais para pensarmos alguns dos aspectos dessas emissões, que passam por estágios e durações muito distintos: pelo contemplativo, pela deriva, pelo confronto e pela fuga, ou por momentos extremamente lúdicos e distendidos.
Mídia-multidão ou cinema insurgente
Viralizados e ressignificados pelas redes, esse cinema de rua, cinema-mundo, cinema-fluxo, de deriva, mídia-multidão, cinema insurgente se espalha. As emissões ao vivo (streamming ou posteriormente editadas) Chama atenção nessa produção audiovisual alguns são produzidas em regime de urgência e precariedade. processos emergentes, como a política, poética e eró- Dramaturgia singular que atravessa, mas excede, a
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própria história do documentário ou dos registros e emissões ao vivo da tv.
o que sobra, o que sobrevive de uma intensa intercomunicabilidade expressiva.
São imagens que carregam a marca de quem afeta e é afetado de forma violenta, colocando o corpo/câmera em cena e em ato. A sobrevivência das imagens e sua captação está diretamente colada à sobrevivência de um corpo, de um animal-cinético, que filma enquanto combate e foge, enfrenta inimigos (a polícia e suas Tomados na sua urgência e função (informar, mobilizar, armas, bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta, comover, disputar sentidos) essas imagens atravessam choque elétrico, bombas de som, armas de dissuasão, diferentes fronteiras e tiram sua força do dorso do pre- cassetetes, etc.) e também condições adversas, barulho, sente, mas trazem no seu interior potências e estéticas tumulto, corre-corre, a euforia e o pânico da multidão. virtuais, nessas dramaturgias do grito. Podemos falar também da constituição de mundos As emissões são singulares como o próprio imprevisível próprios através e com a câmera, experiência de cinema dos acontecimentos nas ruas, mas ao mesmo tempo e produção audiovisual de um “ponto de vista interno” fazem emergir figuras de linguagem, gestos e atos (Anita Leandro), pregnante, desde dentro de processos cinematográficos recorrentes: uma instável câmera de devires e derivas. Os “tempos mortos” também passubjetiva, câmera cega, o oscilante dispositivo de câ- sam a fazer parte da narrativa/emissão, numa estética mera/celular anômala, narração em direto imprevisível, em fluxo que acolhe os intervalos, cansaços, derivas, autoperformance, planos sequências extensos, edição câmeras cegas ou silenciosas que captam a experiência na própria câmera. Arriscaríamos dizer que nessas de estar ali. imagens a estética pode ser pensada como um “resto”, Esse cinema insurgente, que emerge dentre revoltas, revoluções, embates, surge fora de lugar, como uma experiência de cinema/audiovisual no limite, quando pensamos numa intencionalidade estética ou no próprio circuito em que essas imagens se inserem.
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É notável a maior cumplicidade do espectador perante esses não-acontecimentos, ou ainda acontecimentos de outra natureza, câmera ofegante, câmera cega, câmera respiração, essas imagens-corpo que duram, tracejam e se posicionam no território. O gesto político se confunde com esse deixar-se, aberto aos acontecimentos e a uma construção partilhada do olhar. As dimensões ética, política e estética se tornam indissociáveis nesse tipo de imagem.
do espaço e dos territórios, uma câmera “sem olhar”, acoplada no alto do corpo. Na palma da mão, no alto da cabeça, ou dependuradas em dispositivos (varas) se inventam pontos de existência, mais que pontos de vista, lugares para se estar, para se percorrer e tomar posse do território. Essa prática, de vigiar a polícia com câmeras e fotos, conhecida como copwatch,3 é uma estratégia midiativista de usar transmissões online para expor e monitorar a polícia. Essa é a diferença do midiativismo para o jornalismo de relato que dá a noticia e vai embora, alheio às suas consequências. Além de “sofrer” todas as violências, a câmera de combate usa o poder/potência de exposição online contra as autoridades policias, com o monitoramento dos muitos e a multidão em tempo real.
As câmeras (smatphones, celulares) têm também uma função de vigilância. Durante as transmissões vimos surgir e tomar consciência uma outra função da imagem, a imagem utilizada não apenas para “informar” ou relatar, mas uma câmera de combate e intrusiva (que responde aos movimentos mais sutis e ágeis, flexíveis, da palma da mão). Essa câmera intrusiva, por vezes imperceptível, serve como ferramenta/arma para “ferir” Comoção e contágio: subjetivação coletiva o inimigo, para vigiá-lo. Tanto as imagens dos midiativistas quanto as imagens de registro, documentação, A subjetivação midiativista, dessa mídia-multidão, “fichamento” visual, feitas pelas câmeras da polícia. funciona como um ser de absorção, de captação, de assimilação, ou seja, funciona como uma esponja do Os capacetes midialivristas ou policiais com câmeras mundo e/ou como uma transcodificadora de mundos. Go Pro apontam para esse momento de uma varredura Com momentos de epifania e de revelação nessa preg306
nância, nesses corpos, nessa deriva, que constituem um discurso político comovente.
O estado de atenção e urgência. Estar na rua menos como um observador que contempla, mas em estado de espreita, como um animal com os sentidos aguçados Nessa captação do mundo, essa animal-câmera em com- e a orelha em pé. Nas emissões temos alguns desses bate com o inimigo ou em fuga descobre uma multidão momentos em que os enunciadores e seus dispositivos que o constitui, pré-individualidades e singularidades, funcionam como animais paranóides, uma câmeraanterior a toda a forma constituída como “indivíduo” ou dispositivo-corpo em fuga, em devir e deriva. “sujeito”. A imagem do enunciador desaparece, ouvimos sua voz entre outras vozes, numa balburdia de sons e A importância das vozes e dos ruídos. Uma grande ruídos ambientes em que a narrativa enfática pode ser parte das imagens que vemos nas transmissões midiaabandonada até o seu desaparecimento. Quem narra? tivistas está “ancorada” em uma narrativa ou conversa Esse enunciador se dissolve, desaparece, emerge, de infinita de alguém de quem não sabemos o nome e/ forma oscilante.4 ou não vemos o rosto. Ou só vamos descobrir muitas horas depois e acidentalmente. Em emissões como as Podemos falar de um estado a-subjetivo, a existência do “Peixe Ninja”,5 de São Paulo, ouvimos uma voz sem acontece entre a singularidade e a multidão: enquan- rosto, absolutamente perdida nas ruas da cidade, com to ser único e singular, essa câmera em devir existe dificuldades de localização. Voz urgente, angustiada, como uma multidão ou em processo de individuação. de tateamento no escuro, cuja percepção do território e Ativação de forças singulares dentro e por meio do construção da sua posição se dá muitas vezes em intecinema e do audiovisual. ração com a audiência e pela própria projeção de outras vozes que chegam ou passam no espaço-ambiente. De uma forma geral, chama atenção nas emissões midiativistas as seguintes características: Vozes que conversam no extracampo e que nunca sabemos de quem são, vozes-máscaras, que liberam as 307
falas das suas identidades. São falas e conversas livres do Peixe Ninja com transeuntes, passantes, desconhecidos, em meio a outros momentos sonoros: acessos de tosse, relatos, trocas de impressões em estado bruto, declarações de medo, confusão, ansiedade. “Não me deixem sozinho, estou com medo”, fala o narrador perdido em uma rua vazia e escura, dentro do breu da imagem. Sozinho no território e simultaneamente acompanhado por uma comunidade virtual no chat da transmissão. “Para onde devo ir? Onde está minha equipe, preciso localizar”, em um processo alternado de reconhecimento e estranhamento do espaço, que constitui um outro espaço-tempo nessa interação/interface entre ruas e redes.
No meio da transmissão, buscando os manifestantes dispersos pela repressão policial, passa a perguntar insistentemente dentro da cena e fora da cena (para os espectadores online): “Onde fica a Pizzaria Guanabara?” (um dos pontos mais conhecidos da boemia carioca). Onde fica a rua tal, por onde devo ir, qual o melhor caminho a tomar? Ou, em outras emissões, onde fica a 9o dp do Catete? Onde está a polícia?
As informações da audiência e das redes (cruzadas com as informações colhidas nas ruas) funcionam como um gps humano, rede-rua, e mais do que isso, parte de uma experiência de subjetivação coletiva singular, uma audiência que interage, comenta, informa, analisa, dialoga com o cinegrafista/performer nas ruas, orienta Essa relação com o território, o “ponto de existência” espacialmente e subjetivamente (inclusive debochando, e a audiência conectada, marcou também as transmis- criticando, trazendo repertórios outros). sões ao vivo do ninja Carioca (Filipe Peçanha) que, apesar do apelido, estava chegando ao Rio pós-junho, Esse pós-telespectador faz parte do ao vivo de forma sem conhecer a cidade o suficiente, e escalado para as distinta da audiência televisiva tradicional, apontando transmissões da Mídia Ninja do Ocupa Cabral, no para uma televisão reversa, em que o chat de comenbairro do Leblon. tários, mas poderia ser uma outra câmera em diálogo, se constitui como parte de uma intensa demanda por
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sentido e montagem que ativa o “ex-pectador” tornado interator. As transmissões ao vivo funcionam como um “material bruto” que vai sendo editado, montado, coletivamente e ao vivo. As imagens parciais, numa correria pelas ruas, mostram muitas vezes apenas o escuro e os traços de luzes. Imagens quase abstratas, estética que resta não como esteticismo, mas como traço e rastro de uma câmera em combate e embate, à espreita, em estado de urgência ou apenas relaxada, à espera de um acontecimento.
extracampo radical que é essa audiência em situações muito próprias: em casa, no escritório, nas ruas, com acesso a outros dispositivos de informação e acesso às imagens.
Trata-se ainda de ressignificar os fatos e imagens diante da própria televisão corporativa que cobre os mesmos acontecimentos com tomadas aéreas, vindas de helicópteros, com comentários feitos por âncoras e especialistas, sentados nos estúdios. Estes (seria uma das formas de distinguir o jornalista profissional do midiativista) lutam menos por uma intervenção ou ação sobre os fatos e mais pela captação e monetização da Esse corpo em deriva, fuga, à espreita, produz e consti- atenção e do desejo do espectador. tui territórios e se desterritorializa, através das imagens. A percepção do território e mesmo a sua construção Essas transmissões de centenas de midiativistas ao (coordenadas espaço-temporais) se dão a partir de uma vivo constituem assim um outro espectador mobilizado, interação imagens-audiência. capaz de ir ao encontro da multidão, em estado de atenção, espreita e comoção, o que cria uma experiência de O dispositivo-multidão cria orientação e desorienta- “transmissão” que se assemelha nos momentos fortes a ção espacial, contribui para a decifração de situações um “transe e missão”. de risco e entendimentos políticos, a identificação de policiais infiltrados, indicação de lugares, partilha de O que se demanda é o olhar do espectador/audiência vivências do território. Informações que vêm de um que monta, edita, completa a precariedade das imagens 309
e se dispõe a intervir no território. Ao fluxo dos manifestantes e das transmissões ao vivo se incorpora esse fluxo da multidão virtualizada nas redes. O percurso e a deriva da câmera/dispositivo se tornam a cena que mobiliza o pensamento político, indissociável dessa forma que pensa e sente.
o seu celular, antes que seja detido e embarcado em um camburão.
Temos ainda as muitas falas, frases a qualquer instante interrompidas por um fato mais urgente, atropeladas. Fluxo interrompido pela bateria que acaba e que pode ser recarregada com a ajuda de um morador/espectador/ manifestante localizado na cena ou nas imediações. Vimos isso acontecer no vídeo “Prisão do Repórter da Mídia ninja”,6 quando ele grita desesperadamente: “Eu preciso de um smarthfone, minha bateria está acabando”, e imediatamente um desconhecido lhe passa
Todas as interações são enunciadas em voz alta, num meta-discurso de explicitação da situação, com perguntas e questionamentos em série, até a detenção dramática em que o ninja narra/grita angustiado, sem cessar e num só fluxo: “Qual o motivo, cara? Qual o motivo? Estou sendo preso aqui, sem motivo! Vamos pra onde cara, eu estou sendo preso por quê? Mas por quê, mas por quê? Mas por quê? Você pode me revistar aqui cara! Eu não estou fazendo nada, eu sou cobertura independente, mano! Os cara tão usando
Nesta transmissão, que funciona como autoperformance e “direção de realidade” (conceito da prática Ninja, quando somos parte indissociável do acontecimento e precipitamos sua ocorrência), acompanhamos o tenso Estamos falando também de um presente do ao vivo momento de abordagem do ninja por um p2 (policial que se estende por outras temporalidades. O fluxo, o infiltrado), que enfia a mão no seu bolso, enquanto continuum espaço-temporal é o tempo todo inter- parece fingir falar ou escutar algo no celular. O mirompido por uma câmera instável, deslocada do rosto, diativista ninja o denuncia e imediatamente também é momentaneamente cega, câmera-corpo atingida ou abordado por um policial fardado, mas não identificado, ferida ou que precisa se deslocar, correr, enquanto filma. que pede para revistar sua mochila.
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a força para me colocar, estão me colocando a força neste camburão aqui!”.
se confundem e são operações de ordem subjetiva. Expressam o posicionamento do corpo que precisa parar para respirar, correr ou parar momentaneamente As imagens que vemos são sempre do rosto dos poli- desnorteado, cego, surdo pelos ataques recebidos ou ciais revistando o ninja, extremamente próximos, seus pelo ambiente hostil que tem que percorrer. Animal corpos ameaçadores e os gritos da multidão pedindo paranóide que combate e foge. pra soltarem o cinegrafista. As imagens que se seguem, filmadas enquanto é empurrado para o camburão, são Na impossibilidade de fazer uma análise extensiva de dos gritos do ativista sobre planos totalmente tremidos milhares de horas de transmissão, muito desse matee desfocados, inclinados, do seu corpo detido. rial passa por um processo de visionamento e edição pelos próprios coletivos e mídas independentes. Chama A câmera usada como arma de combate, ostensiva ou atenção o trabalho do coletivo 12pm Photographic, de escondida, é um dos principais alvos dos inimigos. São Paulo, com o video 7 de Setembro, São Paulo 2013, Câmera que é atacada diretamente ou tapada, quando disponível no You Tube.7 usada ostensivamente como salvo-conduto para testemunho de uma ação arbitrária ou violenta da polícia. As Todo em preto e branco e com música de Jonny imagens provocam situações de segurança/insegurança. Grenwood em cima dos gritos, sons e ruídos das maSão o salvo-conduto para que um manifestante ou o nifestações e embates com a polícia, esse vídeo dramapróprio cinegrafista não seja atacado ou detido, mas as tiza o confronto entre Black Blocs empunhando uma imagens são também o “inimigo” a neutralizar. bandeira negra com o símbolo anarquista e a polícia de São Paulo. O vídeo começa com as imagens dos Essa materializada das imagens se imprime em ras- manifestantes protegidos pelo equipamento urbano tros, testemunhos, operações poéticas, fluxo informe, tornado arma e escudos. Com planos curtos e “chicotes”, pixelado, ruídos, rastros de luzes, telas pretas, que a câmera oscila na altura dos pés e corre. Os planos 311
curtos causam certa desorientação espacial, alternados com trechos de planos sequências. Logo vemos um homem de camiseta branca ajoelhado em meio ao asfalto e de frente para a formação policial que atira bombas de gás lacrimogêneo. Ele recebe as bombas de braços abertos como um mártir, chamando para si o ataque. Ao mesmo tempo, não suporta o barulho e tapa os ouvidos.
de fala, aos gritos: “Saia todo mundo com a mão para cima!” O cinegrafista apanha ou é empurrado, “tira as mãos das costas”, se ouve. As imagens estão no acontecimento e são o acontecimento.
A polícia e os manifestantes se encaram em fileiras próximas, impedindo uns aos outros de avançar. “Direito de ir e vir” gritam os manifestantes de um lado e o ataque da polícia começa brutal, com a câmera no meio. Em outra cena, os manifestantes são acuados dentro de uma lanchonete. Um policial dá uma ordem, ato
A câmera, o inimigo e a deriva
As emissões feitas no meio das ruas podem ser pensadas nesse processo de territorialização e desterritorialização próprio dos animais e da arte, segundo Deleuze. As qualidades expressivas são auto-objetivas, ou seja, A câmera está colada com o grupo de Black Blocs, elas encontram uma objetividade no território que no meio da batalha com pedras, estilingues e escu- elas traçam, diz o autor em Mil Platôs. O gesto pridos precários. O som é estridente e tenso, sincopado. mordial da arte seria esse: recortar, talhar, delimitar Câmera que testemunha e participa das ações: latas de um território, para nele fazer surgir as sensações. “A lixo chutadas, as telas dos caixas 24 horas dos Bancos arte começa com o animal, pelo menos com o animal marteladas e estilhaçadas, moradores de rua que fogem que talha um território e faz uma casa”. Esses vídeos/ do tumulto. Câmera que confronta, corre, foge, e é emissões nascem desse momento em que as ruas são atingida, no meio da batalha campal. ocupadas e se tornam territórios e casas.
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Nesse sentido, enfatizamos aqui a relação da câmera com seus inimigos potenciais nos confrontos (existem muita outras relações), mais especificamente a polícia que, em estado de perseguição e ataque, também co-
loca o “cinegrafista”, o corpo-dispositivo, nesse devir paranóide. Mas as imagens passam por muitos devires e derivas outros: momentos de enunciação, vozes dissonantes, silêncios eloquentes, discursos interrompidos, experiências e narrativas do vivido que trazem à tona a questão de quem pode adquirir visibilidade e ser considerado um interlocutor nos espaços comuns de interação e enunciação da cidade.
ver “aquilo que não encontrava um lugar para ser visto e que permite escutar como discurso aquilo que só era percebido como ruído” (rancière, 1995, p. 53). Trata-se de narrativas factuais, mas de onde pode emergir novas poéticas, que permitem uma reconfiguração da experiência comum, por meio de novas figuras de linguagem.
A estética como base da política, a batalha entre o perceptível e o sensível e sua partilha surgem nesse Essas linguagens emergentes e instáveis do ao vivo e embate e limite das relações entre fazer, dizer e tornar das ruas colocam em xeque a linguagem do controle e visível o que não era. Essas transmissões ao vivo criam da estabilidade televisivas e as formas autorizadas de uma comunidade política disruptiva que torna visível o discurso. São vistas como imagens anômalas, instáveis, desacordo constituinte na partilha de tempos, espaços “sem estética”, fora de foco, de baixa qualidade técnica, e vozes, disputa do sensível. próximas do material bruto. São imagens que tem como base um corpo exposto, que sofre os acontecimento A força afirmativa e combativa dessas emissões e nas ruas sem o aparato e o repertório do jornalista imagens incide na partilha do sensível, disputando o tradicional ou mesmo do cineasta/documentarista que sentido das narrativas, lançando enunciados de uma criou um código de segurança (inclusive estético) na contra-comunicação, destituídos de sentido prévio ou realização de documentários seja de rua, de guerra, de enunciação editorializada. catástrofes ou emissões ao vivo da tv. A câmera funciona como um animal-cinético em ação, Ao partir do pressuposto de uma auto-exposição máxi- que arfa, que corre, que tem seu corpo atingido como ma e imersão nas ruas, os cinegrafistas/ativistas dão a numa caça, que se esconde para dar o bote, que mostra 313
os dentes, que tem “garras” e ameaça os inimigos, politizando suas sensações, indo do paranóide ao político. Os cinegrafistas ativistas podem a qualquer momento serem feridos de forma brutal, detidos, interrompidos, tal sua exposição e vulnerabilidade. E enquanto combatem e/ou fogem, produzem um resto, uma estética que deixa traços. A construção do medo, as figuras da desordem, dos “vândalos”, “mascarados”, depredadores do patrimônio público e privado, a figura do inimigo da ordem, encarnada pelos Black Bloc pós manifestações de Junho no Brasil, criam esse sujeito monstruoso ou anômalo que é o “inimigo do poder”. Tudo que for considerado destituído de projeto e representação política, mas também de estabilidade estética, cria um estado de ameaça constante que legitima o Estado a adotar uma postura bélica em nome da “segurança” e da proteção, respondendo a demandas políticas com ações militares e policiais.
possíveis e alianças entre sujeitos políticos distintos nos movimentos e lutas. Estado, mídia corporativa, partidos generalizam o medo e a repressão/criminalização em nome do combate à “desordem” e a outros inimigos abstratos, as próprias manifestações passam a ser lugar de ameaça. Mesma lógica da “guerra contra o terrorismo”, inimigo abstrato que se universalizou para além das fronteiras, e que ganha rostos locais de acordo com os dispositivos do biopoder. “Mas e quem são os inimigos? Os inimigos são todos aqueles sujeitos que põem em risco a autoridade do Estado, ou melhor, toda força que resista ao regime da guerra. Ironicamente, o inimigo do Estado passa a ser, na maioria das vezes, o próprio povo.”8 (villanova, 2012, p. 104)
Na filosofia política de Hobbes, deixados em estado de natureza, os homens se relacionariam como se fossem verdadeiros inimigos, guerra de todos contra todos, “o inimigo é o que traz o risco de morte para o corpo O Estado e a mídia (assim como os partidos) criam político”, ou seja, a guerra constante. Em estado de inimigos abstratos, “os mascarados”, “os vândalos”, in- natureza, nos comportamos como inimigos uns dos capazes de entender a complexidade de alinhamentos outros, obedecendo cada um a seu próprio juízo. O que
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o autor condena é a autonomia e a liberdade, ou como diria Nietzsche, a possibilidade de criarmos e agirmos a partir de nossos próprios valores (poder constituinte em Antonio Negri). Na guerra de todos contra todos, cada indivíduo se torna uma espécie de “inimigo potencial”. A criação de um estado de insegurança é traduzida nas imagens e posturas de quem filma com todos os sentidos em alerta, pois “o inimigo” parece nos espreitar de cada canto do território que nos abriga. Ao mesmo tempo, o “animal paranóide” (polícia ou ativistas) pode se desarmar, até por cansaço ou esgotamento físico. São experiências lúdicas em meio à tensão, como nas emissões ao vivo de uma partida de futebol de rua entre os manifestantes do Ocupa Cabral e o time de Black Blocs, que mostra essa deriva e invenção10. Em plena orla do Leblon, a rua transformada em quintal de casa, campinho de pelada, deslocam-se mais uma vez os signos mais visíveis da partilha do sensível.
sembleias de rua, manifestações, escrachos, por toda a cidade disputando o reordenamento do espaço e do tempo a partir das novas formas de visibilidade. A estética começa a se constituir nessas impressões territoriais, uma arte (jogo lúdico e política de rua e na rua) pensada a partir das demarcações de territórios, de ocupações/ moradas, de marcas expressivas, de assinaturas.
LINKS Mídia Ninja (seleção) São Paulo • Protesto na Paulista com Painel da Coca pegando fogo 18.06 http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/14323928 http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/14324487 • Desocupação unesp 17.07 http://twitcasting.tv/midianinja/movie/15638889 • Ocupa Camburão / Ocupa DP 17.07 http://twitcasting.tv/midianinja/movie/15643551 • Ocupa Alckmin - resumo http://www.youtube.com/watch?v=CF2UMOivRjA&feature=youtu.be
O puro jogo da convivência, da deriva do corpo e das • Protesto contra a Veja falas. Corpos e sujeitos que estão pelas ocupações, as-
http://twitcasting.tv/peixeninjasp/movie/18169788 * 315
• BB vs Bancos http://twitcasting.tv/peixeninjasp/movie/18169148
• Ocupa Globo http://twitcasting.tv/midianinja/movie/14981939
• Camara de SP http://twitcasting.tv/midianinjaspbza/movie/17473972
• Policial deixa mulher nua em manifestação http://www.youtube.com/watch?v=YKc2tNGZgvc&feature=c4-overview&list=UUgFe1PSajbVVWSyKx_SLaWQ
Rio de Janeiro • Invasão Câmara Rio com BB http://youtu.be/CSv2Zahtu8E (inicia nos 50 minutos de video) • Futebol de Rua - Ocupa Cabral vs Black Bloc 1/08 http://twitcasting.tv/midianinja/movie/16504951 ou http://youtu.be/itTgFAgXTcA
• EMMA http://www.youtube.com/watc v=jsg_VkE9Zmo&feature=c4-\ overview&list=UUgFe1PSajbVVWSyKx_SLaWQ
• Policia Civil prende Choque
http://www.youtube.com/watch?v=9wm0MYz6Tl0&list=UUgFe1PSajbVVWSyKx_SLaWQ
• Conflitos Após Chegada do Papa • Prisão Carioca http://youtu.be/xNI3Q 5Rog4o http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/15939190 (já na DP) http://www.youtube.com/watch?v=aDO6tr6kgAk&list=UUgFe1PSajbVVWSyKx_SLaWQ (resumo) Fortaleza http://youtu.be/VSKAJVmVhSU (bruto) • Ocupa Cocó • Black Bus http://twitcasting.tv/rapaduraninja/movie/17112358 • Rocinha > Ocupa Cabral 01.08 http://twitcasting.tv/rapaduraninja/movie/17112673 http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/16556708 • Ocupa Aldeia Maracanã http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/16818662 http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/16818957 http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/16819321 http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/16820371 316
Belo Horizonte • Camara de BH Ocupada
• Reunião Prefeito Marcio Lacerda
Ocupação da Câmara Municipal de BH
https://www.youtube.com/watch?feature=player_embed-
ded&v=ZkmYUlWyhq0
• Semi final Copa das Confederações
http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/14663775
• Reunião Prefeito Marcio Lacerda
com Movimento de Ocupações Urbanas
Negociação Ocupação da Prefeitura
http://twitcasting.tv/midianinja_mg/movie/16419352
• Assembléia Popular Horizontal BH
http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/15881746
• Quarto Grande Ato - Praça 7 tomada pela polícia http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/14497824
• Quinto Grande Ato - Bh em Chamas - Ação Policial http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/14663775
Porto Alegre • Ocupa Camara Poa
http://twitcasting.tv/midianinja/movie/15334549 * Egito http://twitcasting.tv/midianinja/movie/15183117 *
Referências BENTES, Ivana. Deslocamentos Subjetivos e Reservas de Mundo. In: MIGLIORIN, Cezar (org.), Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, Brasil, 2010. DELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. A de Animal. http://www.oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-de-gilles-deleuze. Acesso em 29/03/2013. GOMES, Juliano. A Hipótese de uma Fissura. Revista Cinética. http://revistacinetica.com.br/home/a-hipotese-de-uma-fissura/. Acesso em: 2/10/2013. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. 317
LIPPIT,Akira Mizuta. Electric Animal: Toward a Rhetoric of Wildlife. University of Minnesota Press, 2000. MAIA, Paulo. O Animal e a Câmera. In: VALE, Glaura; MAIA, Carla; TORRES, Junia (org). In: forumdoc.bh.2011. 15o Festival do Filme Documentário e Etnográfico/Fórum de Antropologia e Cinema. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2011.
* Agradeço a Midia NINJA pela seleção de links usadas neste texto e aos midiativistas de todo o Brasil pelo compartilhamento diário das emissões que estão constituindo esse cinema-mundo. 1. No 15M espanhol, além da TV Porta do Sol, com milhões de views, vimos a emergência dos acampados virtuais, utilizando ferramentas de geo-referenciamento para fincar bandeiras e cartografar acampamentos em praças reais e virtuais (utilizando o Google Maps) por toda a Espanha.
RANCIÈRE, Jacques. Política da Arte, transcrição da apresentação de Jacques Rancière no seminário São Paulo S.A, práticas estéticas, sociais e políticas em debate (São Paulo, Sesc Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005)
2. Além de movimentos e questões tradicionais ligados ao mundo do trabalho e da melhoria das condições de vida: moradia, transporte, monetização dos bens comuns, as revoluções pós-internet surgem inventando espaços de co-working, moedas sociais, mapeamento de commons urbanos/rurais, pensamento e redes P2P, questionamento da propriedade intelectual e flexibilização do direito autoral, entre outras questões.
Revista Faat Morgana no. 15 Animalita.
3. Foi com essa estratégia que a Mídia Ninja foi para a porta da 9a. DP do Catete no Rio e depois seguiu para a porta do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, depois da prisão de dois dos seus integrantes e manifestantes. A Mídia Ninja transmitiu online a prisão de um de seus integrantes e fez plantão até que 11 deles fossem liberados, e ainda permanece numa vigília midiativista em frente ao TJ do Rio, até o habeas corpus do último deles, levado para Bangu.
http://fatamorgana.unical.it/FATA_eng.htm Acesso em 29/03/2013 VILLANOVA, Felipe Luiz. A Nova Guerra: uma introdução. In: Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 03; n. 02, 2012. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Métaphysiques cannibales. Paris: PUF, 2009.
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Notas
Na madrugada com uma multidão ao vivo e outra online colocaram nos TTs mundiais a hashtag #BrunoResiste e pela manhã #BrunoLivre, referindo-se ao jovem acusado sem provas de portar explosivos, e que passou a ser acompanhado pelos ativistas e manifestantes e pela OAB.
As manifestações pós-Junho no Brasil reinventaram a prática do Copwatch (também Cop Watch), que já existe como uma rede de organizações ativistas nos Estados Unidos e no Canadá e Europa, com objetivo de observar e documentar a atividade policial, enquanto procura sinais de má conduta, brutalidade e arbitrariedade policial.
http://www.abavaresco.com.br/revista/index.php/opiniaofilosofica/article/viewFile/123/128 9. Futebol de Rua - Ocupa Cabral vs Black Bloc 1/08 http://twitcasting.tv/midianinja/movie/16504951 ou http://youtu.be/itTgFAgXTcA
A OAB, por meio das dezenas de advogados que prestam auxilio jurídico aos manifestantes e nos embates com a polícia, vem adotando essa prática e solicitando que manifestantes filmem e subam nas redes os vídeos e fotos, num inédito dossiê público audiovisual que servirá como documentação e prova das arbitrariedades cometidas pela polícia. Trata-se de usar o efeito-mídia não simplesmente de forma sensacionalista, mas ativista e consequente. O monitoramento da atividade policial nas ruas é uma forma de expor, desconstruir e acabar com a brutalidade da polícia que, no Brasil, ainda adota o símbolo da “caveira”, da guerra brutal contra “inimigos”, oposto da polícia cidadã. O Copwatch foi iniciado em Berkeley, Califórnia, em 1990, e está sendo reinventado no Brasil neste junhojulho de 2013 e depois. 4. São Paulo http://twitcasting.tv/peixeninjasp/movie/18169148 5. São Paulo http://twitcasting.tv/peixeninjasp/movie/18169148 6. Prisão Carioca http://twitcasting.tv/pos_tv/movie/15939190 (já na DP) e Prisão do Repórter da Mídia Ninja http://www.youtube.com/watch?v=aDO6tr6kgAk&list=UUgFe1PSajbVVWSyKx_SLaWQ (resumo) 7. 7 de Setembro, São Paulo 2013 http://www.youtube.com/ watch?v=r6y0b42wzC8 8. VILLANOVA, Felipe Luiz. A Nova Guerra: uma introdução Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 03; no. 02, 2012 pg. 104
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Os inimigos de Adrian Cowell Felipe Milanez*
A regra geral de Adrian Cowell é: “primeiro, filmar o inimigo”. Depois de filmar o lado amigo, as portas podem se fechar, e o risco aumentar. Mas qual inimigo?
violência é apresentada pelos discursos, torna-se visível pela apresentação das cenas e a narração envolvente. Os inimigos construídos são, invariavelmente, o lado mais forte das disputas. Adrian Cowell sempre esteve do lado dos oprimidos, da população mais vulnerável, principalmente aquelas que dependiam do acesso direto ao ambiente para sobreviver. Os índios, os camponeses pobres, os seringueiros. Mas também os tibetanos ou os povos da Birmânia que queriam ser independentes.
Nos filmes de Adrian Cowell, nunca havia um inimigo declarado, mas sempre sugerido. O diretor, personagem oculto em quase todos os filmes (ele aparece em cena apenas nos primeiros filmes feitos no Brasil), mostrava os diferentes lados dos conflitos. Lados que não são necessariamente dois opostos antagônicos, mas múltiplos agentes em situação de oposições. O inimigo em Matando por terras é um pistoleiro que treina tiros no Maranhão, depois de fugir do Pará, e é Em todos seus filmes há conflitos que constroem a também um fazendeiro, que vive longe da área cuidada trama através da qual a história discorre. Seus filmes por pistoleiros, e são os policiais, que trabalham como são filmes sobre conflitos. Conflitos políticos de ten- pistoleiros. É o governo federal, no final da Ditadura, sões sociais. E os clímax ocorrem nos confrontos mais que incentiva a ida de migrantes para essas regiões expostos desses conflitos. Por vezes, tiros, embosca- de fronteira, para desmatar, iludidos com o sonho de das, mortes. Em outras, a construção intelectual do acesso a terra. O inimigo é, também, o então candidato problema leva a compreender a disputa de ideias, e a a presidente da República, Ronaldo Caiado, enquanto
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presidente da União Democrática Ruralista, fazendo um gesto ameaçador com as mãos e prometendo unir os fazendeiros “como em uma caixa de marimbondo”. O inimigo são múltiplos na ampla abordagem do conflito social que Cowell retratou. O garimpeiro que dá um tiro para o alto comemorando que encontrou diamantes, em A Tribo que se esconde do homem, é o inimigo dos Ikpeng, um povo da região do Xingu que estava sendo morto pelos garimpeiros. Mas o garimpeiro em Montanhas de ouro – exibido na presente mostra “O inimigo e a câmera” na 17a edição do forumdoc.bh.2013, é o oprimido, parte da grande massa de pobres que sonha em melhorar de vida, e cujo acesso às riquezas dos subsolos fica restrito ao monopólio da grande mineradora Vale. O Estado, tantas vezes retratado como inimigo, é o destemido funcionário do Ibama que sofre ameaças de morte de madeireiros em Rondônia, em Batida na floresta. Mas o grande Estado é o inimigo dos tibetanos, quando um comboio do exército chinês sofre emboscada no Tibet, em Raid into Tibet, o único filme jamais feito sobre uma guerrilha tibetana.
Empresas, estado, o grande capital frente a uma população da floresta. Adrian Cowell retratava esse desequilíbrio de forças, como o gigante frigorífico Bordon, em São Paulo, que vendia carne produzida nas terras dos seringueiros no Acre. Assim como quem assumia o papel local dessa indústria, da violenta pecuária, como o próprio fazendeiro que mandou matar Chico Mendes, na fria entrevista que Cowell conseguiu realizar com Darly Alves. Os lados dos conflitos sempre estiveram presentes em seus filmes. Nem sempre, no entanto, limitados a dois. Há o fraco, há o forte, e existem as alianças que se constituem nesses processos. Em Matando por terras, o narrador anuncia, após a primeira parte em que a câmera acompanhava a organização dos posseiros, que iriam, então, acompanhar a polícia, o “outro lado”, uma vez que os policiais serviam como pistoleiros do fazendeiro da disputa apresentada. Na magistral série A década da destruição, o próprio título expõe o problema: algo está sendo destruído. Logo, há os destruidores. E as vítimas desse processo de destruição. 321
Algo que aparentemente mostra-se maniqueísta, um realizado importantes filmes sobre o Xingu. Mas ele lado mal, e um lado do bem, revela-se, no entanto, se aproximou do movimento ambientalista da mesma muito mais complexo. O garimpeiro que mata os índios forma que Chico Mendes. Viam nele pautas em comum, é também a vítima da Vale. O pobre migrante em busca inimigos em comum, e alianças importantes. “Cowell de terras que mata os índios em Na trilha dos Uru-Eu- não estava preocupado com o desmatamento apenas Wau-Wau, é o que morre pela mão de pistoleiros a pelo impacto que poderia causar aos animais ou só à mando de grande proprietários em Matando por terras. natureza, mas ao que isso representava às pessoas, as Os conflitos são dinâmicos. É impossível ter-se em populações que dependiam dessa natureza para sobreantemão uma opinião das vítimas: a vitimização é um viver”, disse Barbara Bramble, sua companheira que processo, mas as vítimas, no trabalho de Cowell, não ele conheceu durante as filmagens da Década. Barbara são agentes inertes. Reagem, lutam, enfrentam. São é advogada e ambientalista, hoje diretora da Wildlife os Uru-Eu-Wau-Wau que raptam e matam os filhos Conservation Society. E é nesse sentido da interação daqueles que os atacam, ou os posseiros que matam entre ser humano e natureza que Cowell, como nare emboscam os pistoleiros e até a polícia pistoleira. rador, apresenta a destruição de Rondônia como “o Não há guerras vencidas, mas guerrilhas em batalhas maior holocausto ecológico da história da humanidade”. constantes para sobrevivência, e tentar impor a sua sobrevivência pela resistência. Na primeira vez em que estive com Adrian Cowell, eu queria aprender com ele como ele fazia para filmar A Década foi uma série com imensa repercussão logo os “inimigos” em situações de conflito. Eu estava imantes da grande conferência da onu Eco92, no Rio de pressionado após fazer uma reportagem sobre Colniza, Janeiro. Foi vista pelo Príncipe Charles, que passou um dos lugares mais violentos da Amazônia. Havia a se interessar pela Amazônia. No entanto, Cowell recebido ameaças, intimidações, passado momentos de não era um ambientalista. O ambientalismo surgiu tensão e medo. Coisas que sempre acontecem nessas como expressão política depois que Cowell já havia 322
situações. Conversar com Adrian era aprender um pouco da sua experiência.
com os filmes. Logicamente, não com ele, mas com um portador.
Os inimigos são constantes. O inimigo sempre está lá. Sempre há um inimigo, que pode derivar para um inimigo maior. O lado forte que oprime. Essa mutabilidade dos inimigos apresentados ao longo dos filmes de Adrian Cowell mostra que a preocupação do diretor eram as lutas sociais, o ambiente surgindo a partir daí como necessidade para a sobrevivência dessas populações. “Meu pai defendia os mais fracos. A questão ambiental surgiu depois na vida dele”, me disse Boogie Cowell, sua filha. A preocupação fundamental de Adrian era com as populações atingidas pela ideologia do progresso, que não aceitava modos de vida diferente. O progresso, como ideologia, era o inimigo. E essas formas de exclusão assumiam papéis Cowell, metodicamente, sempre traçava rotas de fuga. diferentes de acordo com os conflitos e os embates de “Ele planejava não só como entrar nos locais, nas re- forças que eram constituídos. Seja na Amazônia, seja giões onde iria trabalhar, mas também como sair de no sudeste asiático. lá, e como tirar os filmes”, me contou Barbara. Foi de uma forma sofisticada, como nos filmes de espiões Nesse sentido, produtores de heroína poderiam ser da época, que ele utilizou para poder sair do Nepal vistos, pelas lentes de Adrian Cowell, como populações locais buscando uma forma de defender a sua existência, O assunto mais delicado para Adrian Cowell era o tempo em que passou com a guerrilha na Birmânia para a série The Heroin Wars. Ali, não havia uma estratégia de saída. A rota de fuga que tinham planejado havia sido fechada. Estavam cercados pelo exército que combatia a guerrilha que filmavam. Não havia como sair. Viveu assim por mais de dois anos. Fazia anotações em um diário, mas, como conta Barbara Bramble, não eram muitas anotações, pois ele não sabia quanto tempo iria passar lá, e não havia papel caso os blocos acabassem. Letra miúda, informações precisas, o necessário. “Esse diário nunca foi lido por ninguém”, me disse Barbara. Até hoje.
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de viver de forma livre e independente. Até a atividade ilegal se justifica como uma forma de financiar a guerrilha. O conflito é exposto sem que a guerrilha, ou o governo opressor dessa população, sejam colocados como lados antagônicos de uma disputa fechada entre estes dois polos. Esse é um conflito, mas por trás dele está o mercado que causa esse impacto. A série sobre o ópio, filmada ao longo de 30 anos que culmina com The Heroin Wars, concluída nos anos 1990, foi apresentada no Congresso americano. Por trás dessa disputa sangrenta, estava o rico mercado de drogas, e a brutal guerra às drogas perpetrada pelo governo americano. Esse sim era verdadeiro inimigo daquela disputa local na Birmânia: a política internacional dos Estados Unidos. Como a política de financiamento de estradas do Banco Interamericano de Desenvolvimento era o inimigo por trás do conflito entre Chico Mendes e fazendeiros do sul do Brasil no Acre. “Ele contava das suas experiências na Ásia, que foram coisas pesadas, e usávamos isso na Amazônia”, me contou Vicente Rios, o câmera, co-produtor dos filmes no Brasil após A Década da Destruição, e amigo até o último dia de sua vida. Foi o caso quando filmaram o 324
corajoso documentário Matando por terras, no violento Sul do Pará, acompanhando, inclusive, emboscadas armadas pelos posseiros, e situações de tensão com trocas de tiros. Entre as técnicas para gravar os inimigos, Cowell mudava constantemente de hotel. Era costume sair de um hotel, sem avisar, no meio da noite, não fazer reservas. Extrema discrição. Nunca comentava um filme em andamento. Evitava rotinas, mudava caminhos, trajetos, sempre imaginava a possibilidade de uma emboscada, tinha consciência dos riscos, de que uma emboscada era possível. Por isso, tinha medo. Via no medo um aliado. “O medo da prudência, não o medo do pânico”, explica Bárbara. Ao final, uma grande lealdade aos amigos. Sejam os índios, os posseiros, os sertanistas, como Apoena Meireles, Orlando e Cláudio Vilas Bôas, e Chico Mendes. Quando eu estava preparando um documentário sobre o assassinato do casal de ambientalistas José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, em Nova Ipixuna, no Pará, pedi a Cowell imagens que ele havia filmado de Chico Mendes, para estabelecer um nexo
entre as mortes, separadas por duas décadas no tempo, mas com padrões de execução muito semelhantes. Ele me respondeu o e-mail no dia seguinte: “Será um prazer ajudar você a fazer seu primeiro filme. Chico, se ele estivesse vivo, sem dúvida, iria querer ajuda a causa de Zé Claudio e Maria”, escreveu. Para Adrian, “Sem dúvida estes assassinatos, tinham alguma influência um sobre o outro.” Ele contou que antes da proposta de filmar Chico, tinha decidido que era “essencial mostrar o motivo porque tantos colonos estavam invadindo as florestas amazônicas. Resolvi fazer um filme sobre as brigas para terra em Pará.” Ele foi com Vicente ao Sul do Pará, para encontrar com Padre Josimo. “Combinamos de filmar o trabalho e vida dele, mas antes que desse tempo para iniciar a filmagem, ele foi assassinado. Logo depois, encontramos Chico e combinamos filmar ele”, contou. Chico foi morto durante as filmagens de Chico Mendes, eu quero viver. “Padre Josimo foi um caso famoso naquele tempo e tenho ainda um foto do Chico fazendo um comício num seringal em baixo d’um foto do Josimo”, havia dito Cowell.
Como seu amigo Darcy Ribeiro, em quase todos os casos, os amigos de Adrian Cowell perderam para seus inimigos. Mas certamente, como Darcy, Adrian iria odiar estar ao lado dos que venceram. Notas * Investigador do Centro de Estudos Sociais (CES), integra o projeto European Network of Political Ecology para o doutorado em Ecologia Política, e é pesquisador visitante na Universidade de Manchester. Trabalhou como jornalista especializado na Amazônia, editor da National Geographic Brasil e Brasil Indígena, da Funai. Foi indicado a Herói da Floresta pelas Nações Unidas, em 2012.
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A terra treme no país de desigualdades e paradoxos* Luiz Eduardo Soares A noite de domingo, 30 de junho de 2013, termina em tom épico para os brasileiros: a seleção de futebol conquistou a copa das confederações, vencendo a Espanha por 3 x 0, e a aprovação da presidente da República caiu 27 pontos em duas semanas, de 57% para 30%, tornando imprevisíveis as eleições de 2014. Tudo o que era sólido está se desmanchando no ar: por um lado, a invencibilidade da seleção espanhola e da presidente Dilma Rousseff, e, por outro, o êxito econômico e social do país e a apatia política nacional. A análise do inesperado resultado no futebol está acima de minha competência, mas acredito poder sugerir algumas ref lexões sobre o declínio meteórico da popularidade da presidente e de todas as autoridades públicas, descrevendo o que ocorreu nos últimos 15 dias.
vínculos partidários ou mesmo de uma agenda uniforme. A população tem ido às ruas protestar, nos grandes centros urbanos e nas pequenas cidades do interior. E isso acontece, paradoxalmente, no momento em que a opinião pública global contempla com curiosidade este país 85% urbano, de quase 200 milhões de habitantes, que se tornou a sexta economia do mundo, atravessou a crise financeira internacional mantendo indicadores de pleno emprego, crescimento (ainda que modesto), redução de desigualdades e aprovação recorde dos presidentes Lula da Silva (ex-líder sindical) e, até 15 dias atrás, Dilma Rousseff, sua sucessora (ex-presa política, torturada pela ditadura militar nos anos 1960 e 1970), ambos do Partido dos Trabalhadores (pt), uma agremiação de origem esquerdista, hoje social-democrata.
A sociedade brasileira está vivendo a maior mobilização Progresso como condição da revolta de sua história. A primeira convocada por meio de redes sociais virtuais, inteiramente espontânea, isto A série de eventos surpreendentes começou com o é, desprovida de lideranças, organização centralizada, movimento pela redução do preço do transporte público, 326
em São Paulo. Até aí, tudo parecia relativamente extraordinário, entretanto, não é propriamente a escala, rotineiro, sob a crítica da mídia conservadora, ao som ainda que seja assombrosa, mas sua rápida difusão por de declarações arrogantes do governador direitista e todas as regiões. do prefeito esquerdista, que se recusavam a sequer negociar a redução das tarifas. O cenário era típico e O ponto de partida justifica-se: no Rio e em São Paulo, os desdobramentos, previsíveis. A conjuntura apontava trabalhadores gastam até quatro horas por dia deslopara o declínio das manifestações, que provavelmente cando-se em espaços urbanos entupidos de automóveis, permaneceriam locais. Contudo, no segundo dia cujo número multiplicou-se em razão do ingresso de de manifestações, a polícia militar paulista deu sua 40 milhões de brasileiros na classe média, ao longo da inestimável contribuição à história do país, agindo com última década. O efeito não-antecipado e contraditóbrutalidade criminosa, inclusive contra jornalistas. Era rio da combinação entre redução das desigualdades e o bastante para incendiar a alma dos brasileiros. Em desenvolvimento acelerado –um de cujos focos tendo poucos dias os aumentos nas tarifas foram revogados, sido a indústria automobilística – foi a crise na mobimas a massa inflamada não recuou. lidade urbana. Além disso, mais consumidores, mais acesso à educação e a valorização cultural da cidadania As primeiras respostas da população jogaram por ter- produziram um contexto novo, na esfera dos sentimenra tudo o que se supunha saber sobre a relação do tos e da disposição participativa. Ou seja, melhorias país consigo mesmo: centenas de milhares de pessoas, combinaram-se para tornar inaceitáveis situações que, principalmente (mas não exclusivamente) jovens, de em condições anteriores, caso existissem, seriam todiferentes classes sociais, aderiram a passeatas, em leradas, passivamente. Esse aparente paradoxo não é todo o país. No Rio, a maior manifestação, entre tantas novo: Alexis de Tocqueville, no século xix, nos ensinou que se sucederam, reuniu, segundo a polícia, 300 mil que os grupos sociais mais dispostos a agir e reagir pessoas. Outros, entre os quais me incluo, avaliam que não são os mais pobres e impotentes, mas aqueles que havia ali pelo menos um milhão de pessoas. O mais têm o que perder. Isso significa que os avanços sociais 327
das últimas duas décadas (sobretudo da última) no Brasil ampliaram a faixa da população potencialmente disposta a resistir ante o risco de perda. Aqueles que ascenderam não entregarão sem luta suas conquistas. A que conquistas, exatamente, me refiro?
Conquistas recentes da sociedade brasileira Aplicando-se o índice de Gini para medir a desigualdade de renda, conclui-se que em 2011 o Brasil alcançou o nível mais baixo desde 1960, ano em que pela primeira vez realizou-se o cálculo. Entre 1960 e 1990, a desigualdade cresceu de 0,5367 para 0,6091. Desde então decresceu até 2010, quando atingiu 0,5304 (neri, 2011, p. 26), e continuou caindo: o índice de 0,527, em 2011 (segundo a pnad –Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, do ibge, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), foi o menor da série histórica. Mesmo sendo o patamar mais baixo desde quando aplicamos esse método para identificar a desigualdade, o Brasil continua sendo um dos 12 países mais desiguais do mundo. A boa nova é a afirmação de uma tendência
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que começa a reverter esse quadro e que se realiza em uma escala considerável. Na primeira década do século xxi, a taxa acumulada de crescimento da renda para os 10% mais ricos foi de 10,03%, enquanto para os 50% mais pobres foi de 67,93%. Conforme destaca Ricardo Paes de Barros, os 10% mais pobres obtiveram uma elevação de renda per capita em torno de 7% ao ano, entre 2001 e 2009, só um pouco mais baixa que a celebrada média anual de crescimento da renda per capita na China (barros apud cariello, 2012, p. 30). Paes de Barros avalia que dificilmente algum país terá obtido resultado comparável ao que o Brasil alcançou, em matéria de redução de desigualdade de renda, entre 1999 e 2009, ainda que essas mudanças sejam insuficientes: os 10% mais ricos detinham 47% da renda nacional e passaram a controlar 43%, enquanto os 50% mais pobres, que possuíam 12,65% da renda total, no começo da série histórica, passaram a receber 15% no final do período China (barros, 2012).
O dado mais ostensivo e impactante é o seguinte: em ano de 2011. Por outro lado, os brasileiros cuja renda 1993, ano anterior à implantação do Plano Real (bem domiciliar se situava entre R$ 1.200,00 e R$ 5.174,00 sucedido no controle da inflação), 23% da população eram 45 milhões (45.646.118), no ano de 1993. Em 2011, brasileira vivia em situação de pobreza extrema, ou seja, o segmento mais do que dobrou, chegando a 105 minão tinham acesso a renda que lhes proporcionasse lhões (105.468.908). consumir o número mínimo de calorias indispensável à sobrevivência saudável. O Plano Real transformou esse Registre-se que nesse período de 18 anos a população cenário devastador em um ano: em 1995 –primeiro ano brasileira cresceu a um ritmo mais lento. O crescimento do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique acelerado verificado nas décadas de 1940 (quando a Cardoso – o percentual da população submetido a taxa média foi 2,39) e de 1950 (quando alcançou 2,99), essas condições desumanas decrescera para 17%. Em reduziu-se nos anos 1990 (para 1,64) e ainda mais (para 2003, o contingente populacional em pobreza extrema 1,17) na primeira década do século xxi. (cf. berquó, ainda era o mesmo. Em 2009, caíra para 8,4%. Uma 2001, p. 17). quantidade ainda excessivamente elevada, inaceitável, mas muito menor do que no começo da última década O processo virtuoso de declínio de desigualdades revela do século xx. melhor sua significação quando se leva em conta a dinâmica demográfica. São esses dados que conduzirão Em 1993, os brasileiros cuja renda domiciliar ficava Marcelo Neri a afirmar que “39,6 milhões de brasileiros abaixo de R$ 752,00 (valor de 2011) eram 51 milhões ingressaram nas fileiras da chamada nova classe média (51.613.412). Em 2001, eram 46 milhões (46. 896.647). (classe C) entre 2003 e 2011 (59,8 milhões desde 1993)” Em 2011, passaram a ser 24 milhões (24,684.517). (neri, 2011, p. 27). Aqueles cuja renda domiciliar ficava entre R$ 751,00 e R$ 1.200,00, eram, em 1993, 41 milhões (41.255.368). Esse grupo diminuiu para 38 milhões (38.907.544), no 329
III. A agenda plural do movimento e o colapso da representação política
O eixo comum, sob a diversidade de reivindicações, é a proclamação indignada do colapso da representação política. Em poucas palavras, os manifestantes não acreditam em partidos e políticos que renovam seus mandatos no mercado de votos, sem perceber que o mero respeito às regras do jogo não é suficiente para manter a democracia de pé. Há no Brasil o Estado democrático de direito, desde a promulgação da Constituição, em 1988, depois de 21 anos de ditadura militar, seguidos por três anos híbridos. Mas a institucionalidade democrática passou a ser vista pela maior parte da sociedade como um carcaça oca, uma forma sem conteúdo, tomada por agentes políticos inescrupulosos. O endosso formal a parlamentares e governantes pelo voto, em um país onde é obrigatório votar, não garante legitimidade, do ponto de vista da percepção social. A ruína da representação vinha ocorrendo sem que as lideranças dessem mostras de compreender a magnitude do abismo que se abrira – e aprofundava-se, celeremente – entre a institucionalidade política e o sentimento da maioria. O que farão, agora?
A agenda do movimento não é uniforme e cada participante ergue seu pequeno cartaz com uma proposta, uma crítica, uma exigência, em linguagem formal ou bem humorada, seja contra a homofobia ou o autoritarismo tecnocrático dos governos. Entretanto, a despeito da imensa dispersão temática, alguns tópicos são constantes: transportes públicos, mobilidade urbana, corrupção, brutalidade policial, desigualdade no acesso à Justiça, mais recursos para educação e saúde, e menos para a construção de estádios suntuosos para a Copa do Mundo de futebol, em 2014, e para os jogos Olímpicos, que ocorrerão no Rio, em 2016. Portanto, o valor do transporte apenas pôs em circulação uma cadeia metonímica no imaginário individual e coletivo, conectando os mais diferentes problemas nacionais contemporâneos. E cada indivíduo sentiu-se estimulado a incluir, nessa longa narrativa épica, sua própria descrição do que lhe parece ser o drama fundamental e urgente. Registre-se que a legitimidade do governo federal nunca foi seriamente questionada. A marca do movimento é a intensidade. Os protestos se realizam na linguagem dos excessos: muita gente, todo 330
dia, todos os temas – e sempre há a minoria exaltada e violenta que depreda prédios públicos. Nesta franja do fenômeno pegam carona alguns profissionais do furto e do roubo, e os que se divertem destruindo sem propósito. Por que a paixão e a intensidade? Ouso uma hipótese: os elos de contiguidade simbólica e política conectam problemas entre si, conforme expliquei, acentuando sua característica permanente: a desigualdade. E o fazem em um contexto normativo e institucional, o Estado democrático de direito, no qual o princípio enunciado e reiterado é a equidade. Por isso, os significados negativos se agravam, acentuando a intensidade emocional em que são apreendidos e comunicados: eles se destacam porque remetem à desigualdade, a qual contrasta fortemente com as expectativas geradas pelo pacto constitucional. Afinal, a conversa sobre cidadania é ou não para valer?
como persiste a violência e a brutalidade policial letal contra os pobres e os negros.
IV. As persistentes iniquidades históricas
A ultrajante desigualdade entre negros e brancos vem diminuindo, mas persiste, exibindo o racismo estrutural brasileiro. Entre 1950 e 1980, os brancos viveram 7,5 anos a mais que os pretos e pardos – classificação usada à época (wood; webster apud berquó, 2001, p. 27). Em 1980, a expectativa de vida dos negros ainda não passava de 59 anos. Em 1987, a população branca vivia, em média, 72 anos, enquanto os negros viviam 64,5 anos (wood; webster apud berquó, 2001). Outro dado escabroso confirma os precedentes: em 1980, a taxa de mortalidade infantil de pretos e pardos era igual à taxa de mortalidade de crianças brancas menores de um ano, em 1960: 105 a cada mil nascidas vivas (tamburo, 1987). A cor da pele, que nada significa segundo os que crêem no mito da democracia racial brasileira, separava em 20 anos os pretos e pardos dos avanços sociais alcançados pela população branca, avanços que seriam impossíveis sem o trabalho dos não-brancos.
Apesar de tão significativa redução de desigualdades, elas persistem, sob as mais diferentes formas. Assim
Marcelo Neri oferece dados esclarecedores sobre três fenômenos cujos significados históricos, a meu ver, são
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profundos. Em primeiro lugar, o efeito demográfico da construção cidadã da identidade social: a parcela da sociedade que se declara negra vem crescendo expressivamente. Comparando-se os dois últimos Censos do ibge, 2000 e 2010, aumentou em 22,6% a participação de negros na população brasileira (neri, 2011, p. 226). A meu juízo, o principal motivo é a expansão da consciência política dos afro-descendentes, que cada vez mais assumem com orgulho sua cor e o que ela significa.
sistema de Justiça penal. O “Mapa da Violência”, publicado em 20111, revela que, de 2002 a 2008, o número de negros assassinados elevou-se em 20,2%, enquanto diminuiu, em 22,3%, o número de brancos vítimas do mesmo tipo de crime. Não há dúvida de que negros e pobres são as principais vítimas do crime mais grave, o homicídio doloso. Assim como são as principais vítimas da brutalidade policial letal e das abordagens ilegais (ramos; musumeci, 2005).
O segundo fenômeno estudado por Marcelo Neri são as ostensivas e chocantes desigualdades: “A probabilidade de uma pessoa que se diz branca ser pobre é 49% menor que de um negro e 56% menor que de um pardo. (…) Mesmo quando comparamos pessoas com os mesmos atributos, exceto raça, digamos, analfabeta de meia idade, que mora numa favela de Salvador, a probabilidade de uma branca ser pobre é 29,4% menor do que uma não branca” (2011, p. 227). Antes de Neri, o Censo de 2010 deixara evidente a cor da desigualdade econômica, indicando que 70% dos brasileiros extremamente pobres são negros.
Em terceiro lugar, a boa notícia: “Entre 2001 e 2009 o crescimento de renda foi 44,6% dos pretos, 48,2% dos pardos contra 21,6% dos brancos” (neri, 2011, p. 226). Esse dado combinado ao aumento da participação de negros na população e à importantíssima chegada de negros em grande número à universidade, graças a políticas afirmativas e distributivas, como o Programa Universidade para Todos (Pro-Uni) e as cotas para negros, cria um novo cenário que justifica expectativas positivas relativamente ao futuro da democratização substantiva da sociedade brasileira. De acordo com dados divulgados pelo ipea, em seu Boletim Políticas Públicas: acompanhamento e análise, número 19, a taxa líquida de matrícula de estudantes na faixa etária entre 18 e 24 anos2 cresceu mais de cinco vezes de 1992 a 2009.
Posso acrescentar outros dados alarmantes relativos a violência, às instituições de segurança pública e ao 332
Enquanto em 1992 somente 1,5% dos jovens negros ingressaram na universidade, em 2009, 8,3% lograram cursar o ensino superior. Nesse período, a taxa líquida de matrículas dos jovens brancos saltou de 7,2% para 21,3%, mas o contingente de estudantes negros que não era mais que 20,8% do segmento branco, em 1992, passou a representar 38,9%, em 2009 (cf. www.ipea. gov.br/igualdaderacial).
como tipo ideal, sem cumpri-lo inteiramente, uma vez que as mediações nunca deixam de atuar, conectando diferentes procedimentos institucionalizados à energia da massa nas praças. O que conta, neste cenário dramatúrgico, são a memória idealizada e a linguagem comum, como se os eventos se citassem mutuamente, construindo uma constelação virtual de hipertextos. Neste cenário, tornam-se possíveis: incluir-se na narrativa transnacional sobre a nova democracia; o orgulho V. Protagonistas da narrativa global: de quem era invisível para o poder público e sentia-se da invisibilidade à luta por reconhecimento desrespeitado; a identificação com a persona do heroi cívico; a política vivida em grupo como entretenimento Outro aspecto decisivo é o acesso à internet: em 2011, cult antipolítico (ainda que envolva risco de morte); a 115 milhões e 433 mil brasileiros, com 10 anos de idade experiência gregária fraterna (ante um inimigo tão ou mais, possuíam telefone celular (eram 56 milhões, abstrato e fantasmático quanto óbvio e imediato, com 104 mil e 605, em 2005) e 77 milhões 672 mil navega- o rosto policial e o sentido da tragédia); a vivência que vam na internet. A participação em redes ampliou-se enche o coração de júbilo, exaltando os sentimentos e e viabilizou as manifestações, que passou a dispor de os elevando a uma escala quase espiritual. mídia própria. Ademais, permitiu aos brasileiros identificar-se e colocar em prática o modelo globalizado O povo assiste, atualmente, à Copa das Confederações de tomada dos espaços públicos como método de de- de futebol, em várias cidades brasileiras, competição mocracia direta, ou de ação política não mediada por internacional que antecede em um ano a Copa do muninstituições, partidos e representantes. Evidentemente, do. Este esporte é a paixão nacional. Gastos bilionários o modelo remete à ideia clássica da democracia direta foram decididos pelos governos sem consulta popular. 333
Os estádios, construídos com verbas governamentais, foram inaugurados e apresentam qualidade admirável. Mas a saúde pública e a educação continuam relegadas pelas políticas públicas. Além disso, os altos preços dos ingressos excluem a grande maioria dos torcedores. Em síntese, o esporte popular, depois de custos bilionários assumidos autocraticamente pelos governos, expressaram a adoção de prioridades incompatíveis com as necessidades sociais e implicaram o veto à participação popular. Agora, por meio das manifestações, a massa inscreveu-se na grande narrativa nacional, deslocou o campo em que ocorrem os eventos significativos, converteu-se em protagonista central e mudou o jogo.
334
começa a dar sinais de que está claudicando, a corrosão contamina a legitimidade (a credibilidade) de todas as áreas do Estado.
VI. Efeitos produzidos pela cooptação do PT (o grande partido popular) e dos movimentos sociais
Se a economia vai razoavelmente bem, apesar dos problemas – como a taxa diminuta de crescimento (esperase no máximo 2,6% em 2013), o repique inflacionário e deficiências crônicas na infra-estrutura –, porque a desaceleração ainda não afetou o emprego e as políticas sociais compensatórias e distributivas evitam a degradação das condições de vida dos mais vulneráveis, por que rompeu-se o laço Estado e sociedade? A resposta é simples: porque o partido do governo, o PT, antes cercado por uma aura de pureza e sempre disposto a enfrentar o poder, mostrou-se igual aos demais, isto é, cooptável e suscetível à corrupção. Explico, retornando às manifestações.
Por que a explosão de protestos nesse momento? O executivo prestigiado, em contexto de dinamismo econômico, pleno emprego e redução de desigualdades, sob a aura carismática do presidente Lula, entre 2003 e 2010, freou o desgaste do Estado, já avançado em sua face parlamentar. Quando o modelo econômico
A maioria dos manifestantes é jovem e estudante. No entanto, é surpreendente e sintomática a ausência da União Nacional dos Estudantes, entidade que participou com destaque de todos os momentos importantes da história política brasileira das últimas décadas. A une foi cooptada pelo governo federal desde que o
pt chegou ao poder –com dois mandatos de Lula da Silva e um, em curso, de Dilma Rousseff. O novo personagem coletivo, a massa de jovens nas ruas, nasceu sobre os despojos da entidade. Tampouco têm estado presentes tantos outros personagens coletivos de nossa dramaturgia política popular e democrática. Muitos deles trocaram a autonomia pelas benesses do poder, sem perceber que a cooptação esteriliza. O preço dos privilégios é a impotência. Receberam verbas e apoio oficial, mas perderam a confiança das bases e os vínculos com a sociedade civil. Do mesmo modo, o maior partido popular brasileiro perdeu as ruas. Ao pt que venceu, o país deve muito. Os governos Lula, e mesmo Dilma, ficarão na história como marcos fundamentais na redução das desigualdades. Contudo, quais têm sido suas contribuições para o aprimoramento da democracia e para a mudança das relações entre Estado e sociedade, governos e movimentos sociais?
tistas do pragmatismo ilimitado não se deram conta de que os meios são os fins, quando a perspectiva adotada é a confiança da sociedade no Estado, em especial a credibilidade do instituto da representação. Hoje, tantos que acreditaram na dignidade da política vagam sem norte como zumbis da desilusão. E a juventude procura um caminho para chamar de seu. São dez anos de pt no poder: uma geração não o conheceu na oposição e não sabe o que é um grande partido de massas, não cooptado, comprometido com as causas populares e democráticas. Por mais que se façam críticas pertinentes à forma partido, é indiscutível sua importância na transmissão de experiências acumuladas e na formação da militância. Até a linguagem das massas nas ruas tem sua gramática. A espontaneidade é a energia, mas a organização a potencializa e canaliza.
No momento em que emerge o novo protagonismo, com compreensível mas perigosa repulsa por tudo o que de longe soe a partido, deparamo-nos com o vácuo Pode-se, como têm feito os governantes petistas, osten- oceânico produzido pelo esvaziamento do pt como tar a arrogância tecnocrática e abraçar os adversários, agente político independente, esvaziamento por sua antes hostilizados e acusados de corrupção, porque os vez provocado pela sobreposição entre Estado, governo fins sempre justificariam os meios? Os apologistas pe- e partido. 335
VII. Especulações sobre o futuro e o conflito de interpretações
dos velhos modelos analíticos. Aplicando-os sobre o novo objeto, eles só permitem identificar o que falta ao movimento, aquilo que ele não é: não organizado, sem E o futuro? O movimento omnibus tem diante de si os liderança, sem metas definidas, sem agenda unificada, mais variados cenários, e outros a inventar. Seu destino sem conexões institucionais, sem vínculos políticos, provavelmente dependerá de sua capacidade de dife- sem plano de ação. O que, entretanto, ele é? Como renciar a crítica política da crítica à política, e de não descrever sua positividade? Esse é o maior desafio. confundir a rejeição ao atual sistema político-eleitoral, e partidário, com uma recusa da própria democracia, Nas próximas semanas, é possível que a energia inicial em qualquer formato. Essas distinções provocarão não seja sustentada, as massas se cansem, o movimento divisões internas profundas e inconciliáveis, que já se divida em inúmeros segmentos, em torno de muitas estão aflorando. Toda essa magnífica energia fluirá demandas distintas. Nesse caso, a disputa se deslocará para o ralo do ceticismo, abrindo mais um ciclo de para o campo das interpretações. O fenômeno terá apatia? A indignação encontrará traduções autoritárias sido o que dissermos que ele foi. São os intérpretes e ultraconservadoras? Múltiplos afluentes seguirão que se tornarão protagonistas do conflito em torno das cursos inauditos, nos surpreendendo com sua criati- atribuições de sentido. Mesmo porque todo esforço de vidade e mudando o país, no âmbito da democracia? entendimento, toda interpretação é também intervenAs respostas não dependem só do movimento, mas ção, é também ação social e política. também dos que não têm participado e das lideranças governamentais e parlamentares. Eu me preparava para enviar este artigo quando a presidente Dilma Rousseff reuniu todos os 27 goverAnte o fenômeno massivo e inusitado, jornalistas, polí- nadores e os prefeitos das capitais para, ao vivo pela tv, ticos e intelectuais estão perplexos. Nos primeiros dias, anunciar uma proposta de repactuação nacional, em buscaram explicações, mas constataram a insuficiência torno dos grandes temas, suscitados pelas demandas 336
populares: educação pública, mobilidade urbana, controle de gastos públicos e da corrupção, e um plebiscito para a reforma política. Quanto à reforma das polícias e a desmilitarização das polícias militares, nenhuma palavra. De todo modo, um novo capítulo abre-se. O horizonte permanece imprevisível e conturbado. Nada do que eu disse acima foi revogado pela intervenção presidencial. Entretanto, um dado novo incorporou-se à cena: a presidente pretende disputar o protagonismo com as ruas ou, pelo menos, reconectar-se à sociedade, deixando os ônus com o Parlamento e os partidos. Ano que vem ela disputa a reeleição à presidência.
contra 23% de Marina Silva, líder dos ambientalistas (que tinha 7%). Outros candidatos também cresceram e entraram no páreo, ainda que em posições inferiores. Poucos duvidam de que uma nova hipótese esteja sendo cogitada pelo pT: “Rousseff desiste de concorrer à reeleição, em 2014, e o ex-presidente Lula da Silva, que já cumpriu dois mandatos e mantém 46% de intenções de voto, volta a concorrer, o que é legalmente possível no Brasil”. Mas não nos iludamos: hipóteses criativas serão concebidas a cada dia, enquanto as ruas ferverem, derretendo certezas e trazendo de volta ao palco da história a liberdade criativa da agência humana coletiva.
O movimento da presidenta talvez tenha sido tardio. Sua vitória, até duas semanas atrás, parecia assegurada. Hoje, quem fala sobre o futuro com mais certezas do que dúvidas não merece ser ouvido. A prova concreta de que o tsunami político está exercendo um impacto profundo com consequências que ninguém consegue, hoje, antecipar, foi o resultado, já mencionado, das últimas pesquisas sobre avaliação do governo, e a nova distribuição das intenções de voto na eleição presidencial de 2014. Segundo o instituto DataFolha, a presidente teria, hoje, 30% dos votos (tinha 51% há três semanas),
Referências Gini coefficiente NERI, Marcelo. A nova classe média. São Paulo: Saraiva, 2011. (PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar, by IBGE, Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística). Income growth CARIELLO, Rafael. O liberal contra a miséria. In: Revista Piauí, n. 74, nov. 2012, p. 30. 337
Population BERQUÓ, Elza. Evolução demográfica. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Paulo Sérgio (ed.). Brasil, um século de transformações. São Paulo: Cia das Letras, 2001. Racial Inequality WOOD, C. H.; WEBSTER, P. L. Racial inequality and child mortality in Brazil. Mimeo: 1987. TAMBURO, Estela Maria Garcia. Mortalidade infantil da população negra brasileira. In: Texto NEPO 11, Campinas, NEPO/UNICAMP, 1987. Violence: RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. COLLEGE attendance: www.ipea.gov.br/igualdaderacial.
Notas * Publicado originalmente no Los Angeles Review of Books, 01 de julho de 2013. [1] Pesquisa coordenada por Julio Jacobo Waiselfisz, realizada com apoio do Ministério da Justiça. [2] A taxa líquida de matrícula obtém-se contrastando o número de matriculados com aquele que seria adequado caso se verificasse uma distribuição normal do acesso à universidade entre todos os segmentos da população no grupo de idade pertinente.
programaテァテグ
Endereços CINE HUMBERTO MAURO Avenida Afonso Pena | 1.537 | Centro Cine104 | CentoeQuatro Praça Ruy Barbosa | 104 | Centro CAMPUS UFMG Avenida Antônio Carlos | 6627 | Pampulha
CINE HUMBERTO MAURO
23 NOV | SÁBADO 15h Competitiva nacional
21 NOV | QUINTA-FEIRA
O filme de Têta, Raquel do Monte, 62’ A que deve a honra da ilustre visita este simples marquês?, Rafael Urban e Terence Keller, 25’
19h Sessão de abertura
17h Competitiva nacional
Retrospectiva Aloysio Raulino Lacrimosa 12’ Teremos infância 13’ Arrasta a bandeira colorida 11’ O tigre e a gazela 14’ Sessão homenagem comentada por Jean-Claude Bernardet Com a presença de Gustavo Raulino, Otávio Savietto, Andréa Scansani
22 NOV | SEXTA-FEIRA 15h O inimigo e a câmera
O mestre e o Divino, Tiago Campos Tôrres, 84’
19h Retrospectiva Aloysio Raulino
Lançamento do DVD Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado, com os extras: O Inimigo e Mito-Motim, 16'24 Noites paraguayas 90’
21h Mostra Jonas Mekas Walden 180’
Sessão apresentada por Patrícia Mourão
Sessão O cinema contra o Estado I
24 NOV | DOMINGO
17h Competitiva nacional
15h Sessão Filmes de Quintal
Mauro em Caiena, Leonardo Mouramateus, 18’ Avanti Popolo, Michael Wahrmann 72’
Matéria de composição, Pedro Aspahan, 82´
19h Retrospectiva Aloysio Raulino
17h Competitiva nacional
Jardim Nova Bahia 15’ Porto de Santos 19’ Inventário da rapina 29’
Filme para poeta cego, Gustavo Vinagre, 26’ A onda traz, o vento leva, Gabriel Mascaro, 28’ Retrato de uma paisagem, Pedro Diógenes, 34
Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet
19h Competitiva nacional
21h Mostra Jonas Mekas Lost, Lost, Lost 180’
Sessão comentada pelo diretor
Espíritos batizam crianças, Ismail Maxakali, 22’ A batalha do passinho, Emílio Domingos, 75’
21h Retrospectiva Aloysio Raulino São Paulo cinemacidade 30´
341
Credo 4´ Como dança São Paulo 45´ Celeste, 5´ Sessão especial Syntagma, Gustavo Raulino, 6´ Maracatu, Gustavo Raulino / André Szilágyi, 16´ Sessão comentada pelo diretor
25 NOV | SEGUNDA-FEIRA 14h Curso com Deborah Stratman Moralidade e poder através do som
17h Competitiva nacional
21h Mostra Jonas Mekas
Mesa: Jonas Mekas e o filme-diário Yann Beauvais, Mateus Araújo Silva Mediação: Carla Maia e Carla Italiano
27 NOV | QUARTA-FEIRA 14h Curso com Deborah Stratman Moralidade e poder através do som
17h Mostra Jonas Mekas
Memória de rio, Roney Freitas, 14’ Esse amor que nos consome, Allan Ribeiro, 80’
The brig (A prisão), 68’ Zefiro Torna, or scenes from the life of George Maciunas (Zefiro Torna, ou cenas da vida de George Maciuna) 34’s
19h Competitiva nacional
19h Competitiva internacional
Os dias com ele, Maria Clara Escobar, 107’
21h O inimigo e a câmera
Mesa: Zonas de enfrentamento no cinema contemporâneo Vincent Carelli, Marcelo Pedroso Mediação: César Guimarães
26 NOV | TERÇA-FEIRA 14h Curso com Deborah Stratman Moralidade e poder através do som 17h Competitiva internacional
Une été avec Anton (O verão de Anton), Jasna Krajinovic, 60´ 31-й рейс (31 st Haul), Denis Klebleev, 60´
19h Mostra Jonas Mekas
Notes for Jerome (Notas para Jerome), 45’
342
Out-Takes from the life of a happy man (Restos da vida de um homem feliz), 68’
Ricardo Bär, Gerardo Naumann e Nele Wohlatz, 92’
21h Aloysio Raulino
Ensino vocacional, 14´ Mesa: Aloysio Raulino, autor Ismail Xavier, Paulo Sacramento Mediação: Ewerton Belico
28 NOV | QUINTA-FEIRA 14h Curso com Deborah Stratman Moralidade e poder através do som
17h Competitiva internacional
La chica del Sur (A garota do Sul), Jose Luis Garcia, 94’
19h Sessão especial Sobre o abismo, André Brasil, 30’
30 NOV | SÁBADO
19h30 Mostra Jonas Mekas
Sans image (Sem imagens), Fanny Douarche e Franck Rosier, 76’ Les Chebabs de Yarmouk, Axel Salvatori-Sinz, 78’
Reminiscences of a journey to Lithuania (Reminiscências de uma viagem para a Lituânia), 82’
21h Sessão especial lançamento Riocorrente, Paulo Sacramento, 79´
15h Competitiva internacional
17h O inimigo e a câmera
A batalha do Chile III – o poder popular, Patrício Guzmán, 100’
Sessão comentada pelo diretor
19h30 Competitiva internacional
29 NOV | SEXTA-FEIRA
21h Competitiva internacional
14h Curso com Deborah Stratman Moralidade e poder através do som
17h O inimigo e a câmera
Duch, o mestre das forjas do inferno, Rithy Pahn, 110’
La chasse au Snark (A caça impossível), François-Xavier Drouet, 95’ Der kapitän und sein pirat (O capitão e seu pirata), Andy Wolff, 76’
01 dez | DOMINGO 15h Competitiva internacional
Sessão comentada por Anita Leandro
Sieniawka, Marcin Malaszczak, 126´
19h30 Competitiva internacional
17h Sessão especial
Alone (Sozinha), Wang Bing, 89’
21h Sessão especial lançamento
Revista Devires Já visto jamais visto, Andrea Tonacci, 54´ Sessão comentada pelo diretor
23h Sessão especial
Carta para Francisca, Glaura Cardoso Vale, 13’ Semana santa, Samuel Marotta, Leonardo Amaral, 72’
O boi foi beber água até chegar no São Francisco, Gercino Alves Batista, Carolina Canguçu, Bernard Machado, 25´ Esperando o Putuxop / Cantos do Putuxop, Toninho Maxakali, Manuel Damásio Maxakali, Guigui Maxakali, 66´ Sessão comentada pelos realizadores
19h Mostra Jonas Mekas
Paradise not yet lost (Paraíso ainda não perdido), 96´
21h Sessão de encerramento
Retrospectiva Aloysio Raulino Nos muros recortados 15’ Puberdade III 45’ Puberdade II, 48’
343
CINE 104
28 NOV | QUINTA-FEIRA 18h30 Sessão especial
African independence, Tukufu Zuberi, 117´ Sessão comentada pelo diretor
24 NOV | DOMINGO 14h O inimigo e a câmera Oficina: O inimigo e a câmera Ministrada por Bruno Figueiredo
18h30 Sessão especial
18h Mostra Jonas Mekas
As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty (Ao caminhar, entrevi breves lampejos de beleza), 288’
Jean-Louis Comolli, filmer pour voir!, Ginette Lavigne, 110´
23h Festa forumdoc.bh.2013
20h30 Mostra Jonas Mekas
CentoeQuatro
He stands in a desert counting the seconds of his life (Do deserto ele conta os segundos de sua vida) 150’
21h O inimigo e a câmera Projeções de vídeos e fotografias selecionados via convocatória + intervenções do coletivo Projetação, sob o viaduto de Santa Tereza
26 NOV | TERÇA-FEIRA 18h30 O inimigo e a câmera
O Terceiro milênio, Jorge Bodanzky, 90’ Sessão comentada por Cláudia Mesquita
27 NOV | QUARTA-FEIRA 18h30 O inimigo e a câmera
Theodorico, imperador do sertão, Eduardo Coutinho, 49’ Sessão O cinema contra o Estado I
344
30 NOV | SÁBADO
CAMPUS UFMG Auditório Luiz Pompeu | Fae
28 NOV | QUINTA-FEIRA 9h30 O inimigo e a câmera
Como aprendi a superar meu medo e amar Ariel Sharon, Avi Mograbi, 1997, 62’
11h O inimigo e a câmera
25 NOV | SEGUNDA-FEIRA
Sessão O cinema contra o Estado III
9h30 O inimigo e a câmera
29 NOV | SEXTA-FEIRA
11h O inimigo e a câmera
11h O inimigo e a câmera
Sessão O cinema contra o Estado II Mesa: Filmando o inimigo na rua Kamikia Ksedje, Júlia Mariano (Mídia Ninja RJ), Ivana Bentes, Felipe Altenfelder (Mídia Ninja SP), Marcela Leite (Coletivo Projetação)
Mesa: Filmando o inimigo na rua Paulo Junior (Coletivo Mariachi), Tiago Barnabé (Maria Objetiva), Raissa Galvão (Mídia Ninja BH), Marcos Abílio (UFMG)
27 NOV | QUARTA-FEIRA
26 NOV | TERÇA-FEIRA
9h30 O inimigo e a câmera
11h O inimigo e a câmera
Um lugar ao sol, Gabriel Mascaro, 71´
11h O inimigo e a câmera
Vista mar, Claugeane Costa, Henrique Leão, Pedro Diógenes, Rodrigo Capistrano, Rubia Mercia, Victor Furtado, 12´ Câmara escura, Marcelo Pedroso, 24´ Em trânsito, Marcelo Pedroso, 19´
Auditório Sônia Viegas | Fafich
Mato eles? Sérgio Bianchi, 33´ Montanhas de ouro, Adrian Cowell, 52´ Sessão comentada por Vincent Carelli
Sessão comentada por Mariana Souto
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Ă?ndices
Índice de Filmes 31, 70 A Batalha do Chile III – O poder popular, 86 A Batalha do passinho, 47 A onda traz, o vento leva, 47 A que deve a honra da ilustre visita esse simples marquês?, 48 African Independence, 96 Alone, 70 Arrasta a bandeira colorida (Carnaval de Rua em São Paulo), 16 As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (Ao caminhar entrevi breves lampejos de beleza), 36 Avanti Popolo, 48 Câmara Escura, 90 Carta para Francisca, 99 Celeste, 22 Como Dança São Paulo, 19 Credo, 20 Der Kapitän und sein Pirat, 71 348
Duch, le maître des forges de l’enfer, 85 Em trânsito, 89 Ensino Vocacional, 15 Esperando o Putuxop - Cantos do Putuxop, 100 Espíritos Batizam crianças, 49 Esse amor que nos consome, 49 Filme para Poeta Cego, 50 He Stands in a Desert Counting the Seconds of His Life (Do deserto ele conta os segundos de sua vida), 35 How I learned to overcome my fear and love Ariel Sharom, 85 Inventário da Rapina, 19 Já visto jamais visto, 104 Jardim Nova Bahia, 16 Jean-Louis Comolli, filmer pour voir!, 96 La Chasse au Snark, 71 La chica del Sur, 72 Lacrimosa, 15 Les Chebabs de Yarmouk , 72
Lost, Lost, Lost, 33 Maracatu, 98 Matéria de Composição, 101 Mato eles?, 87 Mauro em Caiena, 50 Memória de rio, 51 Montanhas de Ouro, 86 Noites Paraguayas, 18 Nos muros recortados, 20 Notes for Jerome (Notas para Jerome), 34 O Boi foi beber água até chegar no São Francisco, 100 O filme de Têta, 51 O mestre e o Divino , 52 O Terceiro Milênio, 88 O Tigre e a Gazela, 17 Os dias com ele, 52 Out-takes from the Life of a Happy Man (Restos da vida de um homem feliz), 36 Paradise Not Yet Lost (Paraíso ainda não perdido), 34 Porto de Santos, 18 Puberdade 2, 21 Puberdade 3, 22 Reminiscences of a Journey to Lithuania (Reminis cências de uma viagem para a Lituânia), 33
Retrato de uma paisagem, 53 Ricardo Bär, 73 Riocorrente, 97 Sans image, 73 São Paulo Cinemacidade, 21 Semana santa, 99 Sieniawka, 74 Sobre o Abismo, 97 Syntagma, 98 Teremos Infância, 17 The Brig (A prisão), 32 Theodorico, Imperador do Sertão, 87 Um lugar ao sol, 88 Une Été avec Anton, 74 Vista Mar, 89 Walden ‒ Diaries, Notes and Sketches (Walden ‒ diários, notas e esboços), 180 Zefiro Torna or Scenes From the Life of George Maciumas (Zefiro Torna ou cenas da vida de George Maciunas), 35
349
Índice de Diretores
Adrian Cowell, 86 Allan Ribeiro, 49 Aloysio Raulino, 15-22 André Brasil, 97 André Szilágyi, 98 Andrea Tonacci, 104 Andy Wolff, 71 Avi Mograbi, 85 Axel Salvatori-Sinz, 72 Bernard Machado, 100 Carolina Canguçu, 100 Claugeane Costa, 89 Denis Klebleev, 70 Eduardo Coutinho, 87 Emílio Domingos, 47 Fanny Douarche, 73 Franck Rosier, 73 François-Xavier Drouet, 71 Gabriel Mascaro, 88 350
Gerardo Naumann, 73 Gercino Alves Batista, 100 Ginette Lavigne, 96 Glaura Cardoso Vale, 99 Guigui Maxakali, 100 Gustavo Raulino, 98 Gustavo Vinagre, 50 Henrique Leão, 89 Ismail Maxakali, 49 Jasna Krajinovic, 74 Jonas Mekas, 32-36 Jorge Bodanzky, 88 Jose Luis Garcia, 72 Leonardo Amaral, 99 Leonardo Mouramateus, 50 Manuel Damásio Maxakali, 100 Marcelo Pedroso, 89-90 Marcin Malaszczak, 74 Maria Clara Escobar, 52
Michael Wahrmann, 48 Nele Wohlatz, 73 Patrício Guzmán, 86 Paulo Sacramento, 97 Pedro Aspahan, 101 Pedro Diogenes, 53, 89 Rafael Urban, 48 Raquel do Monte, 51 Rity Panh, 85 Rodrigo Capistrano, 89 Roney Freitas, 51 Rubia Mercia, 89 Samuel Marotta, 99 Sérgio Bianchi, 87 Terence Keller, 48 Tiago Campos Tôrres, 52 Toninho Maxakali, 100 Tukufu Zuberi, 96 Victor Furtado, 89 Wang Bing, 70
351
forumdoc.bh.2013 organização/produção associação filmes de quintal Júnia Torres Diana Gebrim Carla Italiano Carolina Canguçu Pedro Leal Dayane Martins programa de extensão forumdoc.ufmg.2013 coordenador Paulo Maia coordenadores de projetos Cláudia Mesquita Ruben Caixeta César Guimarães bolsistas Camila Gomes Cordeiro Gabriel Pinheiro Guilherme Abujamra Colaboração Daniela Paoliello retrospectiva de autor Aloysio Raulino Ewerton Belico Junia Torres
mostra Jonas Mekas Carla Italiano Carla Maia colaboração: Patrícia Mourão mostra o inimigo e a câmera Ruben Caixeta (coordenação) Paulo Maia Cláudia Mesquita Pedro Leal (produção) mostra competitiva internacional Pedro Portella Raquel Junqueira Tiago Mata Machado mostra competitiva nacional Carolina Canguçu Ewerton Belico Victor Guimarães curso moralidade e poder através do som Deborah Stratman tradução e assistência Ana Siqueira 353
forumdoc.bh.2013 tradução e legendagem Alessandra Carvalho Ana Carvalho Ana Siqueira Carla Italiano Carolina Canguçu Débora Braun Fábio Menezes Henrique Cosenza Laura Torres Luis Felipe Duarte Manuela Tenreiro Matéria-prima Sanzio Magno Vitor Zan arte Paulo Nazareth
che cherera kaiowa: eu me chamo kaiowa
“O tekoha é o lugar onde nós somos como somos, como nossos ancestrais foram e nós seguimos sendo”. Paulo Nazareth chegou à tekoha Guaiviry numa quinta-feira de chuva em dezembro de 2012. Desde então, tem vivido parte de seu tempo entre os Guarani Kaiowa e estabelecido com eles uma relação de proximidade e reciprocidade. A difusão do trabalho realizado por Paulo Nazareth durante suas estadias na tekoha Guaiviry tem-se somado à resistência dos Guarani em Mato Grosso e a de todos os povos indígenas.
354
catálogo Glaura Cardoso Vale (Organização) Júnia Torres projeto gráfico | diagramação Ana C. Bahia
fonte tipográfica (1Rial) Fátima Finizola vinheta Raquel Junqueira
música Valmir Cabrera site Pedro Aspahan (Coordenação e Administração) Gustavo Teodoro (Webdesign e Programação) cabine de projeção Bernard Machado (Coordenação) Warley Desali Samuel Marotta Bruno Vasconcelos assessoria de imprensa Sinal de Fumaça Comunicação Sérgio Stockler Aline Ferreira
forumdoc.bh.2013 festival online e cobertura Pedro Aspahan Daniel Ribeiro Pedro Marra Milene Migliano assessoria jurídica e financeira Diversidade Consultoria Diana Gebrim momentos festivos Rafa Barros Pedro Leal Abu Camila Gomes Gabriel Pinheiro legendagem eletrônica 4estações Filme homenagem abertura: Bruno Vasconcelos motorista Luciano Ribeiro
Fundação Clóvis Salgado presidente Fernanda Medeiros Azevedo Machado vice-presidente Bernardo Rocha Correia chefe de gabinete Renata Bernardo diretora artística Edilane Carneiro diretora de ensino e extensão Patrícia Avellar Zol diretora de marketing, intercâmbio e projetos institucionais Cláudia Garcia Elias diretor de planejamento, gestão e finanças Luiz Guilherme Melo Brandão diretora de programação Fabíola Moulin Mendonça Gerência de Cinema da Fundação Clóvis Salgado gerente Rafael Ciccarini assessora Ursula Rösele
355
forumdoc.bh.2013 assistente Clarissa Vieira assistentes de produção Bruno Hilário Gabriel Pinheiro suporte administrativo Roseli Pessoa Miranda equipe técnica Mercídio Alvinho Scarpelli Milton Célio Rodrigues Rufino Gomes Araújo agradecimentos Diretoria fae-ufmg, Cenex-fae-ufmg, Daniel Castanheira Pitta Costa, Ismail Xavier, Roberta Veiga, Renata Otto, Oswaldo Teixeira, Inês Teixeira, Daniel Queiroz, Anna Jamilly - Coordenadora Intérprete de libras, Marcelo Souza - Presidente apilsemg, interlibras / Setor Social – feneis mg, Amanda Guimarães, mis/sp, André Sturm, Patrícia Lira, Patrícia Moran, Olga Futemma, Cinemateca Brasileira, Lisandro Nogueira, Kiko Goifman, Roberto Romero, , Isabel Casemira, Ricardo, Belinha, Guidinha, Toninho, Frederico Sabino, Irmandade dos Atores da Pândega, Gercino Alves, Amandine Goisbault, Mateus Araújo, 356
Yann Beauvais, Pip Chodorov, Paul Adams Sitney, Benjamin Léon, Emeric de Lastens, Rafael Ciccarini, Anita Leandro, Rachel Ellis, Roberto Rocha, César Alarcon, Rithy Panh, Marine Réchard, Eduardo Coutinho, Avi Mograbi, Jorge Bodanzky, André Brasil, Madalena Godoy, Patricio Guzman, Marcelo Pedroso, Pedro Diógenes, Fernanda Bigaton, Lis Kogan, Cinédoc Paris Films Coop, Arsenal Films – Institute for Film and Video Art, The Film-makers Cooperative, Light Cone, Re:voir, Paris Expérimental, Bruno Hilário, Raquel Amaral, Bruno Vasconcelos, Fernanda Oliveira, Eduardo Viana Vargas, Rosângela Tugny, Leonardo Pires Rossi, Corre Coletivo.
associação filmes de quintal Avenida Brasil | 75/sala 06 | Santa Efigênia CEP 30140-000 | Belo Horizonte/MG | Brasil Telefone: +55 31 3889-1997 | 31 2512-1987 filmes@filmesdequintal.org.br www.forumdoc.org.br
quando em 18 de novembro do ano de 2011 o cacique Nisio Gomes
zona há retomadas de terras por indígenas, sei que ahi se contratam
do grupo étnico Guarani Kaiowa eh morto com tiros a queima roupa
pistoleiros por preços irrisórios, sei que ahi após a corrida para o oeste
por não aceitar subornos e permanecer nas terras de seus ancestrais,
dos anos de 1940, guaranis-kaiowas vivem confinanos em reservavas
---eu ignorando a existência da Tekoha* Guaiviry permaneço em
superpovoadas servindo de mão de obra barata a colheita de cana de
MIAMI [ mi an mi ] , cidade cujo nome vem de palavra pertencente a
azúcar...__ no desejo de aprender a rezar guarani-kaiowa, caminho
um grupo indígena já extinto de seu lugar de origem _ península da
pela rodovia fronteiriça _numa quinta-feira dia reza_ ,por um desvio
Florida sul dos Estados Unidos da America.Eu Paulo da Silva, ao andar
no milho sou levado a terra onde mataram Nisio, ---de Genito Gomes
por América buscando marcas indígenas em meu rosto, carrego em
ouço detalhes da morte de seu pai...ahi me permitem o pouso em
meu nome Nazareth de Jesus, indígena krenac desplassada com nome
oga pysy** e as primeiras palavras de NHANDERU, o dono da reza.
cristão que após viver e ter filhos com Pedro da Silva, em setembro
Ahi tenho a promessa de escutar meu nome y o cargo de escrever as
do ano de 1944 eh internada no Hospital Psiquiátrico de Barbacena
palavras que escuto no acontecer da tekoha .....
de onde jamais regressa. Eu fussando a memória coletiva, sei que o desplassamento krenac a partir das invasões que se sucederam desde o princípio do século XVI e fins do século XIX aproximam Krenaques , Guaranis e os extintos povos de MIAMI [ mi an mi ]. Escutei que yanomâmis não revelam seu nome a brancos [krais]; aos missionários
**lugar onde se existe de acordo com os costumes ancestrais **casa de reza
sempre lhes apresentaram nomes cristãos _ Pedro, Paulo, João _ o nome carrega a alma, deixar que um “não-indio” escute este nome, eh permitir que o mesmo lhe levem a alma...__seguindo a Buenos Aires, por terra desde Belém do Pará [Amazonia] chego a fronteira BRASIL/PARAGUAY – mato grosso do sul/amambay...., sei que ahi nessa
Paulo Nazareth
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