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Poesia e comunicação num poema de Pasolini e em três ensaios de António Ramos Rosa Por Ana Isabel Soares

Poesia e comunicação num poema de Pasolini e em três ensaios de António Ramos Rosa

Por ANA ISABEL SOARES Professora Universitária CIAC – Universidade do Algarve

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Um dos manuscritos de Pier Paolo Pasolini, achados depois da morte do poeta às mãos trágicas de um assassino, tem por título «Who is me.» Assim mesmo, numa estranha locução em língua inglesa. Terá sido escrito aquando de uma passagem do poeta italiano por Nova Iorque, no Verão de 1966. «Who is me» tem a forma de uma entrevista de Pasolini a si mesmo: é um relato da sua vida, Nele se pormenorizam episódios concretos e se põe em perspectiva a relação que manteve com os pais, com o irmão assassinado e com um dos seus atores fetiche – Ninetto Davoli (com quem, pouco tempo antes, gravara o filme Passarões e Passarinhos). Tudo, ao longo deste longo poema, são palavras carregadas de sentidos, de informação sobre acontecimentos concretos de uma vida, de mensagens políticas, mensagens que o poeta pretendeu comunicar. Em momentos chave do poema, repete-se o verso «Contei-vos estas coisas / num estilo não poético / para que me não lêsseis como se lê um poeta.» [1] Pasolini parece dizer ao leitor que o estilo poético não serve a comunicação de factos. O poeta narra, ao invés de fazer poesia (coisas que sejam lidas como tendo sido escritas por poetas), para que não desvie o leitor a atenção em direção ao como se narra e se fixe no que é narrado – o certo é que, mesmo abdicando do estilo da poesia para contar «estas coisas,» Pasolini escreveu um poema e nele sentiu a necessidade de incorporar aquele aviso, aquele comentário sobre a linguagem com que narrou. Mas poderá alguma narrativa, que a si mesma se pense e se diga, deixar de ser poesia, produto de labor inventivo, jogo de disposição de forma sonora e visual, e de sentidos? A consciência do verbo sempre deu espaço ao poético, naquilo em que este parece ser mais autocentrado, autotélico, ensimesmado no jogo formal, assumidamente lúdico. Sabem os grandes poetas que poética e coisa narrada, forma e mensagem são faces de uma moeda só. António Ramos Rosa soube pensar de maneira profunda no valor desta equação quando, no mesmo ano em que Pasolini escrevia aquela autoentrevista, refletiu sobre «o complexo tema da comunicação poética.» «O poeta que não queira comunicar,» diz o escritor português, é o poeta «ilegível,» condenado à «incomunicabilidade» por sua decisão ou por sentença dos leitores que nele não acham o sentido de uma mensagem (p. 17). Mas Ramos Rosa identifica a comunicação como sendo, por natureza, «característica indesmentível da palavra poética» (p. 17) –logo, entende na constituição da palavra poética a presença inelutável da comunicabilidade; e descobre a complexidade do problema quando afirma que «a poesia ... é talvez um ser, ou, pelo menos, um modo de ser» (p. 18). Invocando pensadores como Kenneth Burke, Roland Barthes e, por detrás deles, toda uma tradição teórica que se ocupou do nó em que se emaranham comunicação e poesia, Ramos Rosa – crítico, poeta, mas antes de tudo o mais pensador livre dos conceitos que interroga, desestabilizador de crenças –propõe para a poesia a mesma liberdade, a mesma pluralidade que se subentende nas interrogações dos seus ensaios: «Exigir [à poesia] a clareza conceptual, a univocidade, o primado da denotação sobre a conotação, é, sem dúvida, matá-la porque é arrancá-la à própria complexidade do real que não comporta essa traição esquemática e mortal» (p. 19). Mais afirma: a antinatural exigência significaria «liquidar a comunicação, congelar a vida do acto comunicativo que todo o acto poético

efectivamente é» (id.). Mas, se «a palavra poética é uma palavra extremamente comunicativa,» o que comunica ela? A pergunta enuncia-a o próprio Ramos Rosa, e a resposta pode o leitor encontrá-la dispersa, jamais como via de sentido único, em momentos também eles dispersos pelos textos, à medida do tempo e do espaço da reflexão: as palavras do poeta-crítico são a deambulação do seu pensar. Aquilo que a poesia não comunica é «a afirmação fácil, porque se ela é uma afirmação do que o poeta logra arrancar à confusão e ao caos, não poderá [...] satisfazer-se com o mero enunciado das certezas superficiais» (p. 15). O que a poesia comunica, então, para Ramos Rosa, é a si mesma, porque, estando liberta do peso das coisas – porque não é coisa, mas palavra –, é livre de o fazer – de comunicar. «Não são as coisas [...] que o poeta nos dá, mas a apresentação delas em novas relações que a palavra poética descobre» (p. 16) – o que a poesia revela, nessa descoberta, é o seu mecanismo, «um processo de equivalências livres que nos vão dando o próprio movimento das relações com esse real redescoberto» (p. 16). Ramos Rosa discorre sobre este carácter livre da poesia, vista a partir do tempo em que o pensa: «A liberdade da linguagem poética moderna» só pode ser entendida «como uma queda na própria realidade da linguagem, como o reconhecimento do vazio da linguagem.» (p. 21). Não preocupa a um poeta com esta consciência a ligação que se estabeleça entre os versos e o que estiver antes ou para lá deles. A poesia surge, precisamente, da quebra dessa ligação, e está nessa quebra não apenas a hipótese do dizer poético, mas o desvelamento do real (ou do que possa pretender ser comunicado): «A ruptura que o acto poético implica é, efectivamente, um descondicionamento do convencionalismo social, uma desancilose, e daí que, ao distender-se, o real surja ao poeta não como já definitivamente dado, mas como campo total de indefinidas (por definir) possibilidades» (p. 15). O real, a mensagem, o sentido, para Ramos Rosa como para Pasolini, são indícios contingentes da linguagem – na poesia, é esta que funda a existência verbal, é a linguagem que institui a comunicação ela mesma, que existe desprendida do que se quer dizer e que, se diferentemente poderia ser dito, é naquela forma, trabalhada, escolhida, poeticamente disposta, que se diz.

António Ramos Rosa, «a palavra poética e o real,» «o complexo tema da comunicação poética» e «a palavra poética ou a palavra no poema,» in a poesia moderna e a interrogação do real – I, Arcádia, Lisboa, 1979, pp. 15-16, pp. 17-20 e pp. 21-23.

Pier Paolo Pasolini, Poeta de las cenizas, ed. bilingue, tradução de Marcelo Tombetta, DVD ediciones, Barcelona, 2002.

Agosto de 2020

[1] No original, «Vi ho raccontato queste cose / in uno stile non poetico / perche tu non mi leggessi come si legge um poeta.» (p. 58)

ANA ISABEL SOARES | Doutorada em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa e Professora Auxiliar na Universidade do Algarve, onde tem tido a cargo aulas nas áreas de Literatura Inglesa, Teoria da Literatura, Literatura e Cinema, História do Cinema, Teoria da Imagem, e Estudos Culturais. Fez pós-doutoramento sobre Poesia e Cinema Documental Português (Faculdade de Letras de Lisboa, 2009-2010). Foi uma das pessoas que fundaram, e a primeira presidente da AIM - Associação dos Investigadores da Imagem em Movimento. É membro integrado do CIAC - Centro de Investigação em Artes e Comunicação. Tem publicado artigos e orientado seminários em várias universidades sobre literatura portuguesa (especialmente, poesia contemporânea) e sobre cinema português.

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