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O Romanceiro do Algarve de Estácio da Veiga Por J. J. Dias Marques

O Romanceiro do Algarve de Estácio da Veiga

Por J. J. DIAS MARQUES Professor Universitário

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Sebastião Filipes Martins Estácio da Veiga nasceu em Tavira, em 1828, e faleceu em Lisboa, em 1891. Homem de múltiplos interesses, começou por ser poeta, coletor de literatura oral, historiador e até botânico. Mas foi sobretudo enquanto arqueólogo que ficou conhecido. De facto, as escavações que levou a cabo em Mértola e sobretudo no Algarve e as obras que sobre elas escreveu [1] fazem dele um dos pioneiros da arqueologia científica em Portugal. Estácio da Veiga foi também muito importante como coletor de literatura oral, mais especificamente do cancioneiro e do romanceiro, de que fez recolhas no Algarve entre, ao que parece, 1856 e 1858. As versões de canções ficaram todas inéditas, mas o mesmo não aconteceu às de romances, pois, em 1870, publicou o Romanceiro do Algarve. Antes de avançarmos, talvez não seja demais lembrar que, nos estudos de literatura oral, o termo «romance» designa um tipo de poemas narrativos (isto é, que contam histórias, assim se distinguindo dos textos líricos –as canções–, em que o «eu» exprime os seus sentimentos ou ideias, mas não conta nada), formado por versos longos compostos por duas metades de 7 sílabas cada, versos esses que têm a mesma rima, do início ao fim do texto. [2] O termo «romanceiro», por seu lado, designa ou o género literário composto pelos romances ou uma coletânea de romances. O Romanceiro do Algarve, se tivesse sido publicado na época em que foram recolhidos os textos em que se baseia (1856-1858), teria sido o segundo romanceiro português, antecedido apenas pelo Romanceiro de Almeida Garrett (3 vols, 1843-1851). E, além disso, teria sido o primeiro romanceiro regional do nosso país, pois a obra de Garrett inclui versões recolhidas em várias províncias, enquanto a de Veiga foi pensada, desde o início, como dedicada apenas ao Algarve. Mesmo tendo em conta a data em que foi publicada (1870), a obra de Veiga continua a ser pioneira, pois, antes dela, apenas tinha havido outro romanceiro regional: os Cantos Populares do Arquipélago Açoriano, de Teófilo Braga, publicados em 1869. Nos trabalhos de campo que realizou em várias localidades do Algarve, Estácio da Veiga (ajudado por alguns amigos) conseguiu 100 versões de romances, [3] cujos manuscritos tive a sorte de descobrir no Museu Nacional de Arqueologia, em 1993. Tais manuscritos contêm as versões orais quer da maioria dos romances que Estácio da Veiga publicou no seu romanceiro, quer de muitos outros, não incluídos nessa obra. Em geral, tais versões orais são de boa qualidade, o seu texto foi anotado fielmente por Veiga e muitas delas têm mesmo a indicação do nome do informante e o local de recolha, dados que, por exemplo, Almeida Garrett raramente anotava. Foi com base em parte desse corpus que Veiga formou o Romanceiro do Algarve. Mas, se o trabalho de recolha foi, até segundo os critérios de hoje, bem feito, o mesmo está longe de se poder dizer da metodologia que presidiu ao estabelecimento do texto daquilo que Veiga publicou no Romanceiro do Algarve. De facto, dos 33 romances que ali se incluem, nada mais nada menos que 11 são falsos, tendo sido totalmente inventados por Veiga ou por ele traduzidos de versões espanholas. E mesmo os textos que não são falsos são, normalmente, versões factícias, ou seja, textos compostos por Veiga, com versos que ele retirou de duas ou mais versões que possuía de determinado romance. E, depois, tudo foi retocadíssimo, com inúmeras alterações da sua lavra,

incluindo o acrescento de versos que não existiam nas versões orais e que ele inventou. Na introdução que escrevi para a reedição fac-similada do Romanceiro do Algarve que há anos foi publicada, [4] abordei, com algum pormenor, a questão dos retoques introduzidos por Estácio da Veiga. Para cada um dos 33 textos que nessa obra se incluem, expliquei o modo como ele foi formado, enunciando os manuscritos (guardados no Museu Nacional de Arqueologia) em que ele se baseia. Analisei também um dos textos publicados na coletânea, mostrando concretamente como ele foi criado por Veiga, com versos extraídos de duas versões orais. E tentei compreender as razões que levaram Veiga a proceder do modo como procedeu, sem qualquer respeito pelo que recolhera da boca dos informantes. O curto espaço do presente estudo não permite entrar em pormenores, mas, em resumo, podemos dizer que as enormes alterações que Estácio da Veiga introduziu nos textos que publicou têm a ver com ideias nacionalistas e regionalistas correntes na época, que encaravam a poesia oral como a expressão mais genuína da alma de um país ou região. Assim, para não deixar ficar mal

Centro de Estudos Algarvios, FMVG

os habitantes desse país ou região, os textos recolhidos, no momento de serem publicados em livro, deveriam ser retocados, corrigindo a sua linguagem e versificação (segundo o modelo da poesia escrita), corrigindo a sua lógica e dando-lhes uma aparência o mais antiga possível. Portanto, a coletânea de Estácio da Veiga, não obstante a época recuada da sua recolha, não apresenta, de modo algum, uma imagem correta do que foi o romanceiro da tradição oral algarvia. Mas, para conhecer tal romanceiro (hoje infelizmente em grande decadência), o leitor interessado tem à sua disposição outras obras fidedignas: o Romanceiro e Cancioneiro do Algarve, de Ataíde Oliveira, [5] e, sobretudo, o Romanceiro Tradicional do Distrito de Faro, de Vanda Anastácio, [6] e os dois volumes do Património Oral do Concelho de Loulé em que há romances. [7] Estas obras devem, sem dúvida, ser preferidas ao Romanceiro do Algarve de Estácio da Veiga, que, hoje, quase só tem um valor histórico, ao permitir conhecer as ideias do Romantismo sobre a tradição oral e sobre o modo de a publicar.

[1] Memória das Antiguidades de Mértola Observadas em 1877, Lisboa, 1880. Antiguidades Monumentais do Algarve, Lisboa, 1886-1891, 4 vols.

[2] Os editores antigos (como Estácio da Veiga) costumavam transcrever os romances em versos curtos, de 7 sílabas, pelo que, nos textos publicados por eles, apenas os versos pares rimam.

[3] Neste número, incluo também algumas, poucas, canções narrativas, que, rigorosamente, não são romances, por serem compostas por estrofes, em que a rima muda, em vez de por versos de rima seguida do início ao fim do texto. [4] Faro, Universidade do Algarve, 2005. [5] Publicada inicialmente em 1905, esta obra pode ser mais acessivelmente consultada através da sua reedição fac-similada publicada pela Algarve em Foco (Faro, s. d.). Embora se trate de uma obra antiga (publicada apenas 35 anos depois da de Veiga), o respeito pelos textos orais, tal como terão sido recolhidos, é incomparavelmente maior que o da obra de Estácio da Veiga. [6] Romanceiro Tradicional do Distrito de Faro, vol. I, Madrid, Universidad Complutense de Madrid / Santiago do Cacém, Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 1998 (único volume publicado). [7] Idália Farinho Custódio, Maria Aliete Farinho Galhoz e Isabel Cardigos (orgs.), Património Oral do Concelho de Loulé, vol. II: Romances, e vol. V: Vária, [Loulé], Câmara Municipal de Loulé, 2006 e 2013.

J. J. DIAS MARQUES | Doutorado em Literatura, especialidade de Literatura Oral, pela Universidade do Algarve, onde é professor auxiliar. Desde 1980, tem-se dedicado à recolha e estudo da literatura oral portuguesa, nomeadamente do romanceiro. Sobre este género publicou numerosos artigos e a ele dedicou a sua tese de doutoramento. Nos últimos anos, tem-se dedicado também ao estudo de outros géneros orais, nomeadamente das lendas e do cancioneiro. É coautor do Catalogue of Portuguese Folktales (2006), de Romances Tradicionais do Distrito de Bragança (2019) e d e O C o n t o T r a d i c i o n a l P o r t u g u ê s n o s é c . X X I ( 2 0 1 9 ) . Coordena o Centro de Estudos Ataíde Oliveira, da Universidade do Algarve, dedicado ao estudo da literatura oral.

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