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Memórias para a história dos livros de Luís Guerreiro: Literatura e Imprensa Por Patrícia de Jesus Palma

Memórias para a história dos livros de Luís Guerreiro: Literatura e Imprensa

Por PATRÍCIA DE JESUS PALMA Historiadora do Livro

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Oafastamento do Eng.º Luís Guerreiro do nosso convívio deixou enlutados não só a família e os amigos, mas também os objectos da sua mais dilecta paixão: os livros. Desejados, procurados, lidos ou apenas folheados, uma e outra vez, os seus livros permanecem nas estantes sem o convívio de quem lhes prestou cuidados, os transformou e se transformou pelo seu uso, os inquiriu e desfrutou, de quem tinha, para cada um, a história e as estórias da sua identidade, dos caminhos percorridos até às prateleiras de sua casa ou da biblioteca da Fundação Manuel Viegas Guerreiro. De entre todos, ergue-se-me na memória o exemplar que terá tido mais protagonismo público nas suas mãos. Refiro-me à Monografia do Concelho de Loulé, de Francisco Xavier d’Ataíde Oliveira, uma espécie de chave de acesso à história da formação da colecção, que Luís Guerreiro apresentava aos frequentadores do Centro de Estudos Algarvios. Já separado da ordem interna da biblioteca, o volume cuidadosamente encadernado dava as boas vindas ao universo intelectual do coleccionador. Felizmente, o Amor aos Livros, em Luís Guerreiro, sendo força cultural, foi pretexto contínuo para aprender e repartir, para conversar e gerar afectos, habituando assim os seus livros e documentos a conhecer o afago de outros tactos. Não estranharão agora novas mãos, novos desejos. Permitir que os seus livros continuem a agir sobre diferentes leitores, será, certamente, das mais belas e justas homenagens a Luís Guerreiro. Conheci-o pessoalmente no ano de 2006, em Faro, a um sábado à tarde, no armazém do livreiro e alfarrabista, Sr. Carlos Simões. Por essa altura, eu frequentava a casa, procurando identificar e descrever os textos literários impressos no Algarve durante os séculos XIX e XX. O Sr. Simões, como é geralmente conhecido, destinou-me uma pequena mesa de trabalho e permitiu que descrevesse generosamente os espécimes que naquela época apenas localizei na sua livraria e cuja proveniência está devidamente assinalada no catálogo da minha dissertação de mestrado. Diz-se que as livrarias não são obras filantrópicas, mas Carlos Simões tem contrariado este princípio e, por isso, desejo também homenageá-lo, manifestando-lhe o meu sincero reconhecimento e apreço. E nesse dia, como ia dizendo, Carlos Simões tinha outro cliente a explorar as estantes, a quem me apresentou. O Eng.º Luís Guerreiro procurava livros, folhetos ou fotografias para a história do turismo no Algarve [1]. Nessa altura, não era o bibliófilo que eu procurava, era, sim, o bibliógrafo. Foi a Bibliografia do Concelho de Loulé, cuja co-autoria assinou com João Sabóia [2], que abriu as portas ao nosso diálogo. Interessava-me perceber que informações os autores poderiam ter recolhido sobre as tipografias algarvias. Esse elemento não fora colhido, mas ao mesmo tempo que despendeu alguns minutos da sua atenção querendo saber mais sobre a pesquisa, partilhou prontamente, com o seu entusiasmo característico, indicações bibliográficas e o conhecimento pessoal sobre as oficinas e tipógrafos de Loulé. A literatura e a imprensa marcaram desde então as nossas conversas, originando colaborações efectivas em publicações, tais como a Promontoria, n.º 10 [3], Promontoria Monográfica História do Algarve 3 [4], e em projetos colectivos, como a Hemeroteca Digital do Algarve (http:// hemeroteca.ualg.pt/) e o Festival Literário Internacional de Querença (FLIQ: https:// www.facebook.com/Festival-Liter%C3%A1rio -Internacional-de-Queren%C3%A7a1934487873437964). Celebro o tanto que este convívio

continuamente estimulante me proporcionou, tirando da estante o livro do capitão Vieira Branco: Subsídios para a história da imprensa algarvia: de 1833 aos nossos dias, impresso em Faro, na Tipografia Caetano, em 1938. Trata-se da primeira publicação sistemática sobre a imprensa periódica publicada no Algarve e, embora, com elementos hoje já desactualizados, é um livro de culto para quem se dedica à história do periodismo e das artes gráficas. Livro raro, pois. O seu autor, militar de carreira, ganhou o primeiro vencimento como aprendiz de tipógrafo aos sete anos, na oficina do jornal Progresso do Algarve, em Faro. Fascinado pelo mundo das letras, conheceu pessoalmente quase todos os escritores, jornalistas e tipógrafos algarvios do seu tempo, coligindo informações preciosas sobre este universo de letrados, só ao alcance de quem as testemunhou ou viveu. Destas, desejo destacar uma história em particular que suscitou o entusiasmo de Luís Guerreiro: refiro-me ao processo do sapateiro «Francisco Pereira Sales», causado pela publicação de um folheto de 20 páginas, intitulado Elementos de Geografia Astronómica, cerca de 1891/1893. No folheto, que o próprio Vieira Branco deu à estampa, o sapateiro declarava «não acreditar em Deus nem no diabo, em santos, bruxas ou labishomens, nos padres e eficácia das orações» (Subsídios, p. 62), acrescentando que, de acordo com a Carta Constitucional, ninguém poderia ser perseguido por razões de religião. Os folhetos, ao contrário das melhores expectativas do seu autor, foram apreendidos logo após a impressão, seguindo-se um processo no Tribunal Administrativo. Nunca mais foram vistos, mas a possibilidade de encontrar um destes exemplares enchia de vibrante e genuína alegria o bibliófilo e investigador algarvio, Luís Guerreiro. Retomemos, pois, os Subsídios para a história da imprensa algarvia e deixemo-nos invadir pela insubstituível alegria da descoberta de um Livro.

Patrícia de Jesus Palma, 29 de Setembro de 2020

Pág. 62 de Subsídios para a história da imprensa algarvia: de 1833 aos nossos dias [1] Dessa pesquisa resultou o artigo que José Gameiro apresentou neste ciclo de homenagem, que se lê em: http://www.fundacao-mvg.pt/ iniciativas/cea-tributo-a-luis-guerreiro/artigo-lgin-promontoria-monografica-por-jose-gameiro

[2] Livro apresentado por João Sabóia em: http:// www.fundacao-mvg.pt/iniciativas/cea-tributo-a-luis -guerreiro/a-bibliografia-do-concelho-de-loule-por -joao-saboia [3] PALMA, Patrícia de Jesus (2013) - «Restauração e imprensa no Algarve (1808-1811): um impressor, a independência de duas nações». Promontoria: Revista de História, Arqueologia e Património da Universidade do Algarve. Faro: Centro de Estudos de Património e História do Algarve – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade do Algarve, n.º 10, p. 231-255. [4] Promontoria Monográfica História do Algarve 03. Apontamentos para a História das Culturas de Escrita: da Idade do Ferro à Era Digital. Faro: Centro de Estudos em Património, Paisagem e Construção da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, Dez./2016.

PATRÍCIA DE JESUS PALMA | Investigadora integrada do CHAM – Centro de Humanidades da FCSH/UNL, onde desenvolve temas como a circulação cultural no espaço europeu e transatlântico, a história e o património da imprensa e da edição, ou as relações entre a cultura e o desenvolvimento territorial. É fundadora das marcas Lugar Comum e Moinho d'Ideias, projetos colaborativos que criou para fins de investigação, consultadoria, ação cultural e educativa, fomentando o acesso ao conhecimento e à fruição cultural.

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