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Por Luísa Monteiro

Da Serenidade

Luísa Monteiro

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Houve um momento no programa do seminário de setembro de 2021 que pontuou o espírito do encontro: a visita, a pé, à Fonte da Benémola. A par do curso da água da ribeira, uma profusão de plantas, de cheiros e sons de insetos, acabou por se instalar em cada caminhante, aumentando-lhe o peso nos passos e na lassidão das palavras; fazia calor, o almoço tinha sido talhado da tradição, pelo que só de vez em quando uma frase se ouvia de alguém, um verbo desprendido de um outro, e sempre um sorriso na suspensão da palavra e no direito ao espanto, que é da ordem do silêncio. Era aquela serenidade de que falava Séneca nas cartas a Lúcio e eu, que convenço os meus alunos a terem um caderno para as citações do filósofo, lembrava-me a par e passo: “Todo o tempo que passou até ao dia de ontem está extinto. Este mesmo dia que estamos s viver, dividimo-lo com a morte”. Por isso disse a Marinela Malveiro de como tudo estava a ser tão precioso naquele encontro, e repeti o mesmo a Luísa Martins. Esta serenidade tinha, de resto, sido instaurada já pela organização e pelos restantes participantes do encontro. E nisso, Heidegger também se abeirava do caminho, lembrando que “somos levados a refletir e a perguntarmos: não faz parte do êxito de uma obra de sucesso o enraizamento no solo de uma nova terra natal?” E isso devolveu-me o propósito da presença: Manuel Viegas Guerreiro, o filho pródigo de Querença. Mais de uma dezena de investigadores reuniram-se para dar conta de como decorriam os seus trabalhos em torno do legado do antropólogo. Disse-me a D. Rosa, proprietária do Café Central, mesmo ao lado da Igreja quinhentista da Aldeia, que o doutor ria muito, era de bom humor e que gostava de ouvir o seu pai, o único homem que sabia ler e escrever e que dali não tinha saído até morrer, pelo que o Estado Novo atribuiu-lhe a dura tarefa de regedor da freguesia. O doutor quando ali ia, vindo de Lisboa, não era um homem grave, mas um escutador na sua serenidade habitual. E sorria e prezava a felicidade como um valor que era devido a todos. Foram dois dias a ouvir os seus registos sonoros, a usufruir das pesquisas em torno dos Bochímanes de Angola, a saber dos livros existentes na sua biblioteca, a ouvir de viva voz a experiência de Lucinda Fonseca (a quem pedi humildemente um autógrafo, porque a si e a Marinela Malveiro devo o nascer do meu novo olhar sobre Viegas Guerreiro) e Francisco Melo Ferreira, alunos que calcorrearam o país com o seu Professor de Etnologia, a visitar o seu espólio – e sempre sob o signo da serenidade das mulheres extraordinariamente serenas e atentas que fazem da

* Universidade de Évora

MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA

Fundação Manuel Viegas Guerreiro uma potência de conhecimento; sem as garras ferozes da pressa, sem fúria de coisa alguma: guardiãs de um nome, com a capacidade de escuta das sábias de Alexandria e a serenidade das pitonisas de uma Grécia que já não volta, mas que aqui ressoa. Séneca considerava que “não existe o fim de coisa alguma” e que “tudo foi conectado num ciclo; as coisas vêm e vão”, tal como “a noite persegue o dia que persegue a noite, o verão desaparece no outono, o outono é pressionado pelo inverno, que é contido pela primavera. Assim, tudo passa para que possa voltar”. Em Querença sentimo-nos fazer parte de algo grandioso: “a serenidade em relação às coisas e a abertura ao mistério dão a perspetiva de um novo enraizamento”, assim confere Heidegger. Essa perspetiva é-nos sempre sugerida pela Fundação Manuel Viegas Guerreiro em cada encontro que faz. Chegada a hora de partir, é em serenidade que o abraço se dá, pois “tudo passa para que possa voltar”. E esta é a grande força das raízes. E parece até, este encanto, mais um exemplo da frase de Viegas, que em Tradição oral e identidade cultural regional, afirma ser a “vida penosa e difícil a do homem da beira-serra que não deixava espaço para os sonhos românticos, para a poetização da vida do campo, tão do agrado dos frustrados urbanos, saturados da civilização mecânica, em busca de refúgio puro e saudável”. Mas não. O que se trata, é dessa abertura ao mistério para que se possa alcançar um caminho que conduza a um novo chão, onde as obras imortais possam lançar novas raízes: e para que possam florescer e dar frutos novos. Por instantes fomos plantas no caminho para a Fonte da Benémola; se somos albardeiras, palmeiras-anãs ou aroeiras, não importa. Importa que caminhámos – e continuamos – ao encontro da fonte.

DA SERENIDADE

CAPÍTULO I

Manuel Viegas Guerreiro o erudito e o popular no homem e na obra

JEAN-LOUIS GEORGET é professor de civilização alemã e de história da antropologia na Universidade Sorbonne Nouvelle. Responsável pelo programa francês ANR/DFG Anthropos. Realiza documentários sobre a história da sua disciplina para a televisão francesa e alemã. Criador do mestrado franco-alemão em etnologia e antropologia social na EHESS e na Universidade Goethe em Frankfurt, onde ensina. É membro associado do Instituto Frobenius (investigação em antropologia cultural) na Universidade Goethe em Frankfurt am Main.

RICHARD KUBA é investigador, curador das coleções do Instituto Frobenius na Universidade Goethe em Frankfurt am Main. Responsável alemão pelo programa ANR/DFG Anthropos. Co-organiza o mestrado franco-alemão em etnologia e antropologia social na EHESS. Foi curador de numerosas exposições no Instituto Goethe em Paris, no Martin-Gropius-Bau em Berlim em 2016, no Musée Théodore Monod em Dakar em 2017, no Museo nacional di Antropologia na Cidade do México em 2017, no Museum Giersch em Frankfurt em 2019 e no Musée Rietberg de Zurick. Áreas científicas: história pré-colonial de África, história das explorações europeias e história da etnologia.

EGÍDIA SOUTO é professora associada de literatura africana e história da arte na Universidade Sorbonne Nouvelle. Doutorada em Arte, Literatura e Civilizações dos Países de Língua Portuguesa pela Universidade da Sorbonne Nouvelle. Investigadora associada no CREPAL Centro de Estudos dos Países de Língua Portuguesa, CEAUP -Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Instituto de Filosofia, Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal - UP. Membro associado do Instituto Frobenius, Goethe University Frankfurt am Main e membro do comité científico do programa ANR/DFG Anthropos.

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