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Intervenção na abertura do seminário internacional de Etnografia Por Adriana Freire Nogueira O conceito de povo em três textos de Manuel Viegas Guerreiro. Uma releitura

Intervenção na abertura do seminário internacional de Etnografia

Adriana Freire Nogueira

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Éde Etnografia Manuel Viegas Guerreiro: o percurso e a filosofia de um humanista e antropólogo. Como Diretora Regional de Cultura do Algarve, apraz-me ver que há pessoas, lugares e instituições que não confundem «grandeza» com «tamanho» (espaço físico, espaço ocupado), mas a entendem e disseminam com o sentido de «excelência». É o caso desta fundação (que leva o nome do patrono, hoje homenageado), nesta aldeia de Querença, que prima pela excelência do trabalho das pessoas que aqui promovem a cultura, que aqui desenvolvem um trabalho para a comunidade e para além dela, demonstrando essa mesma grandeza. Como classicista, é com muito satisfação que vejo a repercussão do trabalho que um outro classicista fez. Sim, porque Manuel Viegas Guerreiro também era licenciado em Estudos Clássicos (no seu tempo, Filologia Clássica, no meu, Línguas e Literaturas Clássicas), e poderá ter sido num dos autores gregos que estudamos, talvez Heródoto, que descobriu o gosto pela etnografia. No séc. V a.C., quando Heródoto viveu, este ramo do saber ainda não se configurava como tal, nem como começou a ser tratado, ainda no séc. XVIII, como um corpo de conhecimento científico, com uma determinada metodologia, mas, sim, como um modo de descrever e representar o Outro. Mesmo nos estudos da antiguidade, tem havido desenvolvimentos: para além das questões da identidade grega que os documentos literários nos trazem, passou-se a olhar para outras fontes, como a pintura ou a escultura, para obter conhecimento de usos, costumes, modos de vida, etc. Bla, bla, bla, bla, dizemos nós, quando alguém fala e não percebemos. Bar-bar-bar-bar (βαρ, βαρ, βαρ, βαρ) era a forma de transcrever o som que os gregos diziam que ouviam dos que não falavam grego e, por isso, não percebiam. Os outros eram, pois, os bárbaros (βάρβαρος), isto é, os que não falavam a língua grega, porém, esquecemo-nos facilmente que, para os Outros, somos nós os Outros, somos nós os bárbaros: quando, na Bíblia, 2.º Macabeus 2.19, os judeus se referem aos gregos chamam-lhes, precisamente, «bárbaros»: têm outra língua, têm outros costumes, outra religião, e, para o povo judaico, são violentos, sentido que a palavra, entretanto, também adquiriu (após a guerra contra os Persas, naquele mesmo séc. V a.C., a palavra evoluiu semanticamente, acrescentando o significado

MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA

que lhe damos hoje, de «brutal», «rude»). Relativamente à etnografia, na sua etimologia, a palavra reúne os nomes éthnos (έθνος) e graphé (γραφή). Na origem, éthnos significava um grupo de pessoas que viviam em comunidade, uma tribo, por exemplo. Depois, o sentido estendeu-se para «nação», «povo». Também os gregos usavam esta palavra, no plural (éthnea), para designar as «nações estrangeiras», «bárbaros», por oposição a «Gregos» (Héllenes). Encontramo-la, em português, em «etnia», «étnico», ou como elemento de composição, «etno-», em palavras como etnologia ou, precisamente, etnografia. O nome graphé significa «escrita», «documento escrito», «tratado», «descrição», entre muitos outros sentidos daí derivados. Encontramos a raiz graph- em palavras portuguesas onde o sentido de «escrever» esteja presente, como em «caligrafia» (uma escrita bonita), ou grafologia (estudo da escrita), ou no final desta que nos ocupa, etnografia. Então, literalmente, etnografia poderá ser entendida como a descrição de outros povos. A esta se juntam outras ciências, como a etnologia, a antropologia e todas aquelas que nos ajudam a compreender o ser humano nas suas múltiplas dimensões. O historiador grego Heródoto, que mencionei acima, viajou muito, ouviu versões diferentes sobre tradições, e descreveu lugares, povos, costumes, estabelecendo correlações. Apresento alguns exemplos das suas observações: «Os Agatirsos são um tipo de gente particularmente sofisticada, muito dados ao gosto pelas joias. Praticam a comunidade de mulheres, para que se estabeleçam, entre uns e outros, laços de parentesco; e assim, constituindo todos uma família, acaba-se com invejas e rivalidades mútuas. Quanto aos restantes costumes, assemelham-se aos Trácios. Os Neuros partilham os hábitos citas. (…) Afirmam os Citas e os Gregos que habitam a Cítia que, uma vez por ano, cada um dos Neuros se transforma em lobo por uns dias, para depois retomar a forma primitiva. A mim, esta história que eles contam não me convence; mas nem por isso deixam de insistir nela, assumindo até compromisso de honra pelo que estão a dizer. Os Andrófagos são, de entre todos os povos, o que tem hábitos mais selvagens. Não respeitam a justiça, nem fazem uso de qualquer tipo de lei. São nómadas, usam um vestuário semelhante ao dos Citas, têm uma língua própria e são os únicos, de entre estas comunidades, que comem carne humana» (Hdt. 4.104-106)*. Mas Heródoto também descreve costumes gregos e as conexões que percebe com outros povos não gregos, nomeadamente os Persas, contra quem lutaram várias vezes. É o caso dos Lacedemónios (habitantes da Lacónia, região onde se situava a cidade grega de Esparta): «A tradição que os Lacedemónios observam aquando da morte dos seus soberanos é semelhante à dos Bárbaros da Ásia. De facto, a maior parte deles procede da mesma forma por altura do falecimento dos reis. Quando um rei lacedemónio morre é obrigatório que, de toda a Lacónia, além dos Espartanos, um número determinado de Periecos compareça também no funeral. E assim que estes, os

INTERVENÇÃO NA ABERTURA DO SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ETNOGRAFIA

Hilotas e os próprios Espartanos se reunirem aos milhares num mesmo sítio, batem, acompanhados pelas mulheres, no rosto, de forma violenta, e abandonam-se a prantos intermináveis, enquanto vão afirmando todo o tempo que o último rei falecido era verdadeiramente o melhor (…). Os Espartanos coincidem com os Persas noutro costume: assim que ao falecido sucede outro rei, este, ao entrar em funções, libera dos encargos qualquer Espartano que devesse alguma coisa ao rei ou ao Estado. Entre os Persas, o rei que toma posse desconta a todas as cidades o tributo que antes deviam. Os Lacedemónios concordam ainda com os Egípcios noutra tradição: entre eles, os arautos, tocadores de flauta e cozinheiros herdam a arte dos pais, e assim um flautista é filho de um flautista, um cozinheiro de um cozinheiro e um arauto de um arauto. E outros que possuam uma voz forte não poderão excluí-los dessa tarefa, antes serão os filhos dos arautos a continuar o mester paterno. É este, portanto, o estado das coisas». (Hdt. 6. 58.2-60.1)* Como se pode perceber, os clássicos e os estudos etnográficos tocam-se, e Manuel Viegas Guerreiro é um bom exemplo dessa compreensão. Esta é uma ciência que contribui para o humanismo e a tolerância, pois, ao observarmos e estudarmos os outros, percebemos, para além das diferenças, o quão somos semelhantes. Que todos os que aqui estão reunidos nestas jornadas contribuam para que Querença não seja apenas a «Aldeia Internacional da Etnografia e Antropologia por Dois Dias», mas a Aldeia Internacional da Etnografia e Antropologia, sem aspas e sem limites temporais.

Bom trabalho!

* Heródoto, Histórias (Livro 4.º), Lisboa, Edições 70, 2000. Introdução, versão do grego e notas de Maria de Fátima Silva e Cristina Abranches Guerreiro. *Heródoto, Histórias (Livro 6.º), Lisboa, Edições 70, 2000. Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira e Delfim Leão.

FRANCISCO MELO FERREIRA é professor do ensino secundário, licenciado em Geografia e com um Curso de Formação Avançada em Ciência Cognitiva. Amigo de Manuel Viegas Guerreiro desde que foi seu aluno até à sua morte, acompanhou diferentes iniciativas do Professor, cuja pessoa e ideias considera que iluminaram o mundo. Integrou os Estudos Gerais Livres e é investigador do CLEPUL/Grupo de Investigação de Tradições Populares Portuguesas Manuel Viegas Guerreiro, FLUL. Autor da Fotobiografia de Manuel Viegas Guerreiro (2006) e de Estudos Gerais Livres, a apologia do sonho ou a infinita liberdade de ensinar (2019), obras publicadas pela Fundação que leva o nome do Mestre.

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