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Por Francisco Melo Ferreira
Francisco Melo Ferreira
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It is not the kings and generals that make history, but the masses, the people. Nelson Mandela
Oconceito de povo marcou o século XX, a que alguns chamaram o “Século do Povo”. O conceito teve configurações muito marcadas pelas ideologias que, tanto o podiam entender como o motor das transformações revolucionárias, como a raiz dos valores tradicionais. Entre o “Bom Povo Português” e o “Povo Unido” estendia-se a distância que separava estas diferentes concepções. Para Manuel Viegas Guerreiro o povo não era apenas um conceito, mas um ambiente que lhe era por um lado familiar e, por outro, o seu objeto de estudo, de trabalho e de preocupação com o conhecimento, preservação e valorização da sua produção cultural. Essa preocupação está presente em grande parte da sua obra em múltiplas formas, quer na observação detalhada e na valorização das práticas culturais de povos africanos, quer nas reflexões sobre Literatura Popular. O foco para onde convergem estas reflexões é a ideia da importância das expressões culturais do “ povo”. Esta pluralidade de sentidos levou a que Fernando Mão de Ferro, responsável da editora Colibri, tenha escolhido para a coletânea de textos preparada ainda em vida de Manuel Viegas Guerreiro, o título Povo, Povos e Culturas integrando no mesmo espectro conceitos que representam diferentes vertentes do seu trabalho. Mas, antes de analisar a reflexão conceptual manifestada em textos do Mestre, parece-me importante referir algum do pensamento que tem vindo a ser produzido em áreas como a História dos Conceitos e a Antropologia Cognitiva. A preocupação com os contextos históricos, sociais e culturais que produzem determinados conceitos e o entendimento particular que lhes é dado está presente nestas correntes de pensamento. Esta necessidade de historicizar os conceitos e entender a sua alteridade, evitando anacronismos, tornou-se essencial uma vez que “As palavras são, pois, as mesmas,
MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
mas não os conteúdos e vivências a elas associados”1 sendo estes dependentes dos contextos históricos em que decorreram. Para Reinhardt Koselleck (1923 - 2006), historiador alemão considerado como um dos criadores da História dos Conceitos, “anthropologically speaking, every ‘history’ is formed by the oral and written communications of generations living together and conveying their respective experiences to each other”2 . Curiosamente, esta perspetiva aproxima-se das preocupações de Manuel Viegas Guerreiro com a importância da oralidade na produção cultural, entendida como uma permanente recriação. Também do ponto de vista da Antropologia a procura permanente dos significados dos pensamentos do Outro contribuiu decisivamente para uma abordagem situada de questões como a cognição, a forma de estruturar os conceitos que nos permitem entender o mundo que nos rodeia. Um dos autores que criou as bases do que designamos por Antropologia Cognitiva, Maurice Bloch, explica de forma muita clara a necessidade de estabelecer pontes entre o estudo da cognição e da Antropologia.
«The reason is that cognition is different because it is always central to what is at issue. This centrality is due to the fact that anthropologists are forced, by the very nature of their subject matter, to 'do cognitive anthropology' all the time. They, like many other social scientists, are 'doing cognitive anthropology' as soon as they claim to represent the knowledge of those they study, as soon as they try to explain the actions of people in terms of that knowledge, as soon as they warn the general public, or each other, of the dangers of ethnocentrism, as soon as they discuss the extent, or the limits, of cultural variability.»3
Uma das abordagens mais originais de Manuel Viegas Guerreiro ao conceito de povo surge no notável livro Para a história da literatura popular portuguesa, que teve a 1.ª edição em 1978. Na tentativa de clarificar a essência da cultura popular define-a como a que corre entre o povo, quer de sua autoria quer a que este integra, «E populares são quantos escritos de outros géneros passem pelo coração do povo.»4 Daqui decorre a definição de dois tipos de artífices, povo e não povo, que adiante procura caracterizar.
«Mas tornemos ao nosso tema que é o dos artífices da literatura popular. Nos que provêm do povo há que ter em conta os analfabetos, os de poucas letras e os semiletrados, os do campo e os da cidade, a maior ou menor distância a que aqueles se encontram dos centros urbanos;
1 Sebastián (2008), pág. 7 2 Koselleck (1998), pág. 28 3 Bloch (2004), pág.7 4 Guerreiro (1978), pág. 9
O CONCEITO DE POVO EM TRÊS TEXTOS DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO. UMA RELEITURA
e, em cada um deles, sua biografia, sua específica concepção da vida.»5
Partindo desta dicotomia entre povo e não povo, passa para uma extraordinária abordagem da oralidade e da escrita e das virtudes, tantas vezes esquecidas, da palavra falada. Mas a escrita traz consigo novas separações que agravam as desigualdades entre quem lhe tem ou não acesso.
«À riqueza e pobreza, já de si suficientes para criar esta discriminação, outro grande poder se junta e também privilégio de abastados, que é o da escrita. Vai esta igualmente constituir, por assim dizer, monopólio de poucos, aspiração distante de muitos. Ficam mais rudes os rudes e porventura mais soberbos os senhores iletrados de antes. Um poderoso instrumento cultural que agrava a distância entre o vulgo e o não vulgo, sobretudo depois da invenção da Imprensa, do século XV em diante.»6
E chegamos a um dos temas centrais do pensamento de Manuel Viegas Guerreiro, a valorização da produção cultural do povo. Eis o que afirma sob o título Povo ignorante.
«No que chamamos o mundo ocidental sempre as classes privilegiadas, económica, social e politicamente, têm manifestado desprezo pela plebe, pelo populus in populo ou «povo popular». Para além das constantes universais do comportamento gera a desigual repartição da riqueza grupos sociais bem individualizados, com casa, alimentação e vestuário próprios, específicas relações sociais e consequente ideal de vida ou visão do mundo»7
No resto do livro dedica-se a uma análise detalhada das diferentes visões do popular e da sua subalternização ao longo dos tempos, desde a Antiguidade até ao pensamento antropológico dos séculos XIX e XX. Para cada momento analisado são dados exemplos do desprezo do que vem do povo e argumentos a favor da sua valorização.
5 Ibidem, pág. 10 6 Ibidem, pág. 16 7 Ibidem
MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
«Tudo o que vem do povo há-de ser necessariamente tosco, imperfeito, irregular. Não produz ciência, mas sabedoria, porque não confronta, relaciona, generaliza. Acumula factos, empiricamente, não conhece a complexa causalidade que os explica. É espantoso que se erre tanto a respeito de uma entidade com a qual se vive ou de que se provém. Estranha alienação, esta! O povo compara, reflecte, conclui, organiza os seus conhecimentos do mesmo modo que o não povo.»8
A conclusão do livro está bem espelhada numa frase duma clareza e simplicidade lapidar em que reafirma a unidade do conceito de cultura e a necessidade de estudar todas as manifestações culturais.
«E, para distinguir o letrado do iletrado, do primeiro se diz que é culto e do segundo inculto. Iguala-se cultura a saber escolar, como se na prática quotidiana o homem comum se não instruísse, como se o seu saber fosse qualitativamente diferente do outro. Não há gente culta e gente inculta. A cultura é só uma, tudo o que aprendemos do nascer ao morrer, de nossa invenção ou alheia, sentados nos bancos da escola ou da vida. Não há uma alta cultura e uma baixa cultura, uma cultura superior e outra inferior ou popular, mas só cultura. Acabemos de vez com essa absurda e injusta discriminação.»9
O segundo texto que irei analisar foi escrito em 1987 e publicado no número 15 da Revista Lusitana Nova Série, em 1996 quando Manuel Viegas Guerreiro se encontrava já hospitalizado. Com o título Tradição Oral e Identidade Cultural Regional - Textos de camponeses de Querença constitui uma introdução a uma história de vida contada por seu pai e recolhida em 1962. Como se referia na apresentação feita na Revista Lusitana, «Esse texto mereceu ao Professor Viegas Guerreiro muitas dúvidas quanto à sua publicação, apesar de já ter decidido fazê-lo neste número da mesma publicação, ainda antes da sua doença. Para introduzir esse texto, utilizámos um extracto de uma comunicação apresentada ao Congresso «O Algarve na Perspectiva da Antropologia Ecológica», realizado pela Universidade do Algarve em 1987. Essa comunicação, que na altura da sua apresentação foi entrecortada pela extrema emoção do Professor Viegas Guerreiro, constitui um documento de grande interesse na análise da importância da História Oral na sua relação com o relato etnográfico. O texto começa por uma curiosa análise das relações sociais na Idade Média que enquadra uma primeira definição do conceito de povo, classe oprimida e silenciada
8 Ibidem, pág. 19 9 Ibidem, pág. 24
O CONCEITO DE POVO EM TRÊS TEXTOS DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO. UMA RELEITURA
por oposição a outros grupos que podiam fazer ouvir a sua voz.
«Concelhos ou classes populares, braço popular, povos, povo, mas entenda-se que na composição social dos concelhos predominavam os homens bons, ricos mercadores, abastados proprietários, um que outro mestre de ofícios endinheirado, e onde não faltavam a alta e baixa nobreza. O povo, a classe autenticamente popular, o comum povo, o povo miúdo, o populus in populo, a massa dos assalariados das cidades e dos campos, essa nenhuma voz tinha em assembleias consultivas ou deliberativas, e de tal maneira oprimido, silenciado, que quase não existe nos documentos oficiais.»10
Mas, para Manuel Viegas Guerreiro, é essa voz que devemos procurar ouvir quando pretendemos compreender a identidade cultural de uma região. Numa frase com uma brilhante clareza e acutilância caracteriza, por um lado as ferramentas de trabalho de campo que devemos utilizar para incorporar este conhecimento, ao mesmo tempo que alerta para os riscos duma análise demasiado superficial ainda que precedida de alguma fundamentação teórica, «um relance de olhos de feição etnológica, em geral precedido de falso juízo teórico».
«Para definir a identidade cultural de uma região, havemos de nos socorrer do discurso oral da sua gente, misturando-nos com ela, ouvindo-a na rua e em casa, participando se pudermos, em seu labor quotidiano. O trabalho de campo tem de ser contínuo, duradouro, abranger todos os períodos da vida rural, que para pouco serve num relance de olhos de feição etnológica, em geral precedido de falso juízo teórico.»11
O último texto aqui abordado data de 1995 e foi apresentado na abertura do Colóquio Retratos do País organizado pelo Centro de Estudos de Antropologia Social do ISCTE e pelo Centro de Tradições Populares Portuguesas, em 11 e 12 de outubro desse ano. Manuel Viegas Guerreiro começa por reconhecer a singularidade da iniciativa de acolher o povo na Faculdade, para depois voltar a uma definição extensiva de povo.
«Deu-se ao Colóquio o nome de Retratos do País, fico-me só com o de Retratos do Povo, que é principalmente dele que se há-de tratar. Iniciativa quase singular esta de trazer o povo para dentro da Faculdade, para o explicar, numa buscada tentativa de lhe
10 Guerreiro (1995), pág.9 11 Ibidem, pág. 24
MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
determinar as coordenadas da cultura, alguns traços específicos da identidade nacional.»12
E encontramos uma nova tentativa de definição extensiva do conceito de povo que, curiosamente, se conclui com a identificação com o Outro.
«Mas povo, que povo? O popular, é evidente, o comum povo, o menos favorecido economicamente, a gente da rua, de meia tigela por oposição à gente fina, de boas famílias, o Zé Povinho de Bordalo, os outros em relação a nós. O povo, em suma, que os políticos há pouco muito buscavam e de quem se irão alheando, o povo dos governos, que vive no aconchego verbal dos intelectuais e de artistas snobes.»13
E, de certa forma já num contra-ciclo, Viegas Guerreiro termina com um apelo para quebrar este alheamento e criar uma nova aproximação a este território longínquo do povo.
«E se nos organizássemos num novo Serviço Cívico, agora de estudantes, professores, investigadores, com sede no Centro de Tradições Populares Portuguesas, e fôssemos ao encontro do povo, como foram os brigadistas do Serviço Cívico Estudantil que o génio de Michel Giacometti concebeu e tomou realidade?»14
É um desafio que perdura e que nos interroga sobre qual o lugar do povo no nosso entendimento do mundo atual. Reler Manuel Viegas Guerreiro é um desafio que nos permite redescobrir tesouros escondidos num pensamento com uma abrangência muito maior do que a particularidade dos estudos de Antropologia ou de Literatura Popular poderia fazer supor. A permanente preocupação com a valorização da cultura popular, por exemplo, ajuda-nos a pensar a questão do valor através dos tempos.
12 Guerreiro (1996), pág. 13 13 Ibidem, pág.14 14 Ibidem, pág. 17
O CONCEITO DE POVO EM TRÊS TEXTOS DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO. UMA RELEITURA
BIBLIOGRAFIA
Bloch, Maurice, Anthropology and the Cognitive Challenge, Cambridge University Press, 2004.
Guerreiro, Manuel Viegas, Para a história da literatura popular portuguesa, Biblioteca Breve / Volume 2, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, 1978.
Guerreiro, Manuel Viegas, Algumas reflexões em torno do tema in Revista Lusitana (Nova Série), 13-14 , 1995, pp. 13-18.
Guerreiro, Manuel Viegas, Tradição Oral e Identidade Cultural Regional - Textos de camponeses de Querença in Revista Lusitana (Nova Série), 15 , 1996, pp. 9-12.
Koselleck, Reinhardt, “Social history and Begriffsgeschichte” in Hampscher-Monk et al, History of Concepts. Comparative Perspectives. Amesterdão, Amsterdam University Press, 1998, pp. 23-36.
Sebastián, Javier Fernández “Apresentação” in Ler história, nº 55 – História Conceptual no Mundo Luso-Brasileiro, 1750-1850, Lisboa, 2008.
MACIEL SANTOS é professor universitário e investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto
LUÍSA FERNANDA GUERREIRO MARTINS é doutorada em História (estudos da resistência das populações do norte de Moçambique à implantação do sistema colonial português na passagem do século XIX para o século XX). É investigadora no Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora e investigadora colaboradora no projeto Diaita – Património Alimentar da Lusofonia, da Universidade de Coimbra. Neste momento desenvolve o pós-doutoramento com um projeto de registo, divulgação e estudo do espólio que o antropólogo Manuel Viegas Guerreiro reuniu ao longo dos seus estudos sobre as populações africanas que estudou e visitou. Participa em colóquios internacionais e nacionais nas áreas da sua formação académica e profissional. Publica artigos em revistas e sites científicos. É técnica superior no Arquivo Municipal de Lisboa.