Anexo Vol.02 Port

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vol. 02 Furtar Outubro 2015


Este anexo não é parte fixa de Furtar. Aparece quando temos coisa mais além da fotografia para dizer e quis o destino que, nesta segunda edição, isso acontecesse outra vez. Aproveitando as visitas de Title Fight (EUA), 7Seconds (EUA) e Ovearseas (Costa Rica) ao cone sul da América Latina, batemos um papo com seus respectivos vocalistas e aqui apresentamos o resultado em forma de texto. Para completar, uma quarta entrevista, esta com Daigo Oliva que, ao lado de Mateus Mondini, foi um dos responsáveis por Fodido e Xerocado – fotozine sobre a cena hardcore punk que ultrapassou as fronteiras de São Paulo e conquistou reconhecimento internacional.

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Declaração de um saque inesgotável Por Pesimista Vital. La Serena, Chile.

Divagando na frente do computador, no meio de uma jornada de trabalho de oito horas diárias e longe de quem eu gosto, penso que ao longo da História sempre fomos saqueados, usurpados, ao quais a vida se ocupou de pisotear uma e outra vez, por meio de todas as formas possíveis: dinheiro, religião, capilaridade de poder e uma política fascista e faceira que nos ataca e combate uma e outra vez. Contudo, apesar de tais e bestiais cerceamentos, assombrosamente somos capazes de resistir, de lutar, de bater de volta e com um sorriso no rosto. Vingança e usurpação! As flores deixamos aos pacifistas. Isso aqui é uma guerra com a realidade. Mas... como sobrevivemos? O que estamos defendendo? Considero a resistência o caminho e os espaços autogestionados nossa arma. Muitos de nós, que por diferentes razões chegamos ao hardcore punk, aprendemos que o que se constrói ao lado de amigxs – seja as conversas, os zines, as bandas, o trampos de serigrafia e qualquer outra coisa que se enquadre no DIY – são maneiras de escapar do que é imposto pelo trabalho, pela competitividade e pela rotina. Por conta desses acasos da vida, atuo na área

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das ciências sociais. E me lembro que um desses autores mais antigos disseminava a ideia de que todxs somos atores e que o mundo é um grande palco, e que em nossos espaços de intimidade, quando acreditamos estar completamente sozinhxs, somos corpos que se mostram como realmente são. Assim, como se estivemos pulando e cantando juntxs, passamos por esse palco da vida e roubamos o que nos resta de realidade, esquivamos de sua estrutura rígida e fingimos que somos obeditenes, que os paradigmas da inovação empresarial moderna são nossos. O que o mundo não sabe que é que está ele está confiando nos piores, se entregando de bandeja a nós, os ladrões do cotidiano. A rotina pode nos roubar tempo, a forma de vestir... pode impor aparências “corretas”. Mas respondemos a esses golpes com diretos no queixo, já que nunca vão nos tirar o desprezo que sentimos pelo patrão e por sua vida estruturada e baseada no sonho americano adaptado ao século XXI: ter uma casa própria, um carro e uma família perfeita. Somos xs saqueadorxs inesgotáveis. Somos os ladrões do que a moral e os bons costumes querem derrubar. Somos a resistência.

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Por Philippe Arama & Furtar Crew. Santiago de Chile.

E aí, Ned, suave? Suavidade total, e você? De boa. Então, pra começar, conta pra gente: onde essa tour latinoamericana começou, o que rolou até agora e pra onde vocês vão depois? A gente começou na última sexta-feira (dia 18 de setembro), na Costa-Rica. Depois fomos para o Panamá, Colômbia –onde tivemos três dias livres– e aí voamos para o Peru; foi massa, pudemos ‘turistear’ um pouco, conhecemos Cuzco e Machu Picchu. E viemos para Santiago hoje. Daqui seguimos para Buenos Aires e São Paulo. Todos os shows têm sido muito bons, a gente fica muito contente de ver a galera realmente curtindo. E isso em todos os shows. Hoje foi especialmente fantástico, acho que o melhor da tour até agora. E pô, no Panamá, por exemplo, a gente tocou pra 100 pessoas e foi do caralho, porque todo mundo estava animado. É isso o que liga e faz a gente tocar sempre melhor.

Vocês estiveram em São Paulo há dois anos, certo? Vocês tinham alguma expectativa quanto a tocar em outros países por aqui? Foi meio louco. Porque daquela vez fizemos um único show e muita gente de outros países acabou colando. Foi enorme, maior até do que alguns shows que fazemos nos Estados Unidos. Por isso a gente não tinha muita ideia de como essas outras apresentações poderiam ser, saca? Nem mesmo se tocar em São Paulo de novo seria tão bom porque da primeira vez a coisa toda foi muito pontual. Antes de vir a gente recebeu muitos e-mails dizendo que a venda de ingressos estava indo bem e pensamos “ah, legal. Vão ser bons shows”. Mas aí a gente tocou na Costa Rica e foi um choque, todo mundo alucinado e feliz de ver a banda ali. É estranho ser uma banda por tanto tempo e saber que temos coisas novas pra descobrir, conhecer gente. Gosto de estar nisso. Hyperview, saiu exatamente quando? Foi no começo do ano, em fevereiro.

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Nunca pensamos que chegaria o dia de finalmente vermos o Title Fight ao vivo. Até porque, começaram a tocar em 2003 e só neste 2015 vieram ao Chile. É um tanto estranho gostar assim de uma banda, colecionar os discos, camisetas, e poder deixar os fones de ouvido de lado para vê-lo ali, a poucos metros. Descrever o que aconteceu lá é impossível, seria preciso estar lá para entender. O que podemos dizer é que foi um dos melhores shows a que já colamos e ainda nos pegamos pensando: “porra, foi do caralho”. Assim que saíram do palco – exaustos, como não poderia deixar de ser - paramos para conversar. Nos receberam muito bem, sem a mínima pinta de rockstars. Levaram algumas cópias de Furtar consigo e disseram que, para eles também, havia sido um dos melhores shows.

Já estão pensando em coisas novas? Gravar alguma coisa, talvez um 7”? Ainda não. Cada um de nós está vivendo uma coisa diferente em nossas vidas particulares. Eu acabei de mudar de casa... O que aconteceu foi que nos juntamos antes de viajar, ensaiamos e viemos. Quando voltarmos cada um meio que vai pro seu canto. Não temos nenhum plano concreto, e isso também é bom porque os últimos quatro, cinco anos foram muito metódicos: tocar, compor, gravar, tocar, compor, gravar... É bom se sentir como um ser humano normal às vezes, sentar-se e poder ficar despreocupado com o que vai acontecer amanhã. Mesmo amando o que eu faço, ter de me comportar de determinada maneira é um pouco assustador. E ao mesmo tempo é estranho, porque estamos nessa rotina há tanto tempo. Mas o bacana vai ser que poderemos fazer o que quisermos e da maneira que quisermos daqui em diante. E depois desta tour vocês vai viajar mais ou vão sair de férias mesmo? Vamos fazer uma tour bem pequena pelos Estados Unidos e Canadá, uma série de festivais em Toronto

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e tal... Vamos tocar no Tough Fest, em Gainsville, e vai ser nossa primeira vez lá. Vamos tocar num fest meio doido de Nova Orleans também e essa cidade é meio louca, sabe? E tem o Fun Fun Fun em Austin junto com o Dag Nasty e isso vai ser foda. Então tem uma apresentação na Cidade do México em novembro e depois um show na nossa cidade, onde a gente ainda não tocou desde que lançou o disco. Alguma mensagem final pro pessoal de Santiago? Antes de vir, eu estive conversando com um amigo que está para viajar para o Japão. Estávamos falando sobre diferentes culturas e lugares, e como, dentro de uma subcultura, tudo parece ser tão americanizado e as pessoas têm essa vontade, até mesmo nos Estados Unidos, de ser algo que os Estados Unidos foram há duas décadas atrás. Todo mundo no hardcore quer ser como as pessoas de Nova York dos anos 1990 ou de Wasington D.C dos anos 1980. E estar nessa tour me fez rever esses pensamentos e ver que tem muita coisa rolando, muita gente produzindo, muitas culturas novas. Isso é animal. Agradeço, de coração, por essa oportunidade.

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Por Ofe. Santiago de Chile.

Já fazia tempo que tínhamos a informação de que a banda vinha tocar por aqui, assim que passamos um tempo considerável escutando o material disponível. Mas acontece que foi mil vezes melhor vê-los ao vivo do que nos discos. Os caras do Overseas faziam o último show da gira sulamericana em Santiago e traziam consigo um bom número de histórias. Conversamos sobre a cena na Costa Rica e como sobre o hardcore punk pode dar demonstrações de fraternidade incomparáveis.

Talvez comecemos com vocês contanto como a banda nasceu, desde quando tocam e se algum de vocês tem outros projetos? Alejandro: Vamos completar quatro anos de formação em outubro e quatro anos que tocamos em maio de 2016. Todos tivemos projectos anteriores, mas nenhum existe mais. Em 2007 tentamos fazer alguma coisa, mas não rolou. Seguimos em contato, afinal, somos amigos há muito tempo. Foi aí que nasceu o Overseas, com algumas mudanças de formação até agora, mas nós três [Rick, Alejandro e Joe] somos os que sempre estiveram. Agora chegou o Luis, nosso novo guitarrista; ele é o terceiro e esperamos que seja o último he he he.

A gente conhece pouca coisa sobre a cena da Costa Rica. Temos informações sobre o que acontece no Brasil e na Argentina porque são países aqui do lado. Nos podem contar um pouco como é coisa por lá e recomendar algumas bandas? Ricardo: A cena vem crescendo muito. E isso para todos os gêneros musicais, desde o reggae, indie até o hardcore punk... A cena hardcore está bem grande, mas nós somos a primeira banda desse nosso gênero, que não sei muito bem o que é: uma mistura de emo com punk e hardcore; a outra banda do Joe [bateria] é bem similar, mas em espanhol. A coisa vai crescendo, os shows punk estão se misturando com os de melódico e isso faz bastante gente colar.

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Alejandro: além disso meio que le formou um coletivo [It’s Only Punk Rock] de bandas e amigos que não necessariamente fazem o mesmo tipo de música, mas de uma forma ou de outra somos ativos. As pessoas vão a um show e conhecem outras bandas, outras pessoas... A Costa Rica é um país muito pequeno, então se acontecem coisas, geral sabe; pode ser que a intensidade baixe ou suba, mas sempre rola. E tudo isso rola com a pegada DIY? Alejandro: Sim, sim, é claro. Nós fazemos tudo. Sejam shows pequenos ou graned, montamos tudo e muitas vezes até perdemos dinheiro porque não existe patrocinadores, né? Seria bom ter, mas não tem. Então é tudo muito punk, somos todos punks hahaha. Voltando ao assunto, nos podem recomendar alguma banda de lá? Ricardo: vejamos: Digger, Tickig Time Bomb [tickingtimebombcr.bandcamp.com], Ave Negra [avenegra.bandcamp.com], Malas Palabras [malaspalabras.bandcamp.com]... São bandas muito boas e que estão indo tocar em outros lugares, na América do Sul, no México, na Europa...

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E por que cantar em inglês se vocês são latino-americanos? Na Costa Rica existe isso de que se fala muito inglés, não é? Ricardo: O público é bilíngue e estamos muito perto dos Estados Unidos, temos um monte de empresas norte-americanas, assim que se você não fala inglês fica difícil mesmo de conseguir um trampo. E às vezes é mais fácil expressar minhas ideias em inglês; adoro o espanhol, mas para falar, para cantar o inglês é mais fácil. Até mesmo porque muitas de nossas referências sempre foram em inglês e é algo como a pintura: não se pode pintar só com vermelho, senão que com muitas outras cores. Eu curto muitas bandas gringas que não são dos Estados Unidos; Millencolin, por exemplo, que são da Suécia. Se eles cantassem em sueco eu nunca poderia ouvi-los. Os meninos do Überyou não cantam em nunhuma das quatro línguas que têm por lá e se cantassem em alemão talvez não tivessem chegado até aqui. Dizem que a matemática é a língua universal, mas acho que o inglês está se apoderando dessa posição. O esperanto não deu em nada, mas o inglês está conseguindo.

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O que aconteceu de fato no Brasil? Soubemos que vocês foram assaltados. Conta pra gente por que decidiram seguir com a tour. Alejandro: Sim, verdade. Já explicamos algumas vezes e as pessoas sempre vêm perguntar, mas isso porque se preocupam conosco. Resumindo: colocamos tudo dentro do carro e, quando íamos dar a partida, apareceu um cara e encostou uma .40 na nossa cabeça dizendo para descermos, nisso ele foi embora com tudo: malas, instrumentos, merch... Foi em Porto Alegre. O carro era alugado e tinha seguro, assim que nos deram outro, mas perdemos guitarras, baixo, pratos de bateria... Pensamos “bom, há duas opções: voltar ou seguir”, e no final decidimos seguir porque lutamos muito para estar onde estávamos. Foi bem complicado, porque perdemos ainda passaportes e essas coisas; na Argentina o Alejandro teve que ficar como que meia hora sentado ao lado dos policiais esperando que resolvessem a situação. Mas o mais bonito foi ver que as pessoas quiseram nos ajudar; na Costa Rica montaram eventos para levantar uma grana e no Brasil também, os promotores dos shows nos deram casa, comida e tudo, e foi com isso que nos alimentamos porque realmente não tínhamos nada. Foi incrível ver essa demonstração de amizade. Víamos os cartazes dos shows na Costa Rica e eram bandas que nunca tinham tocado juntas que se juntavam para nos ajudar. Foi duro, mas estamos vivos, sabe? Os bens materiais a gente recupera. Esperávamos contar com certa ajuda, mas não no nível que aconteceu, porque além de roupa, casa e comida nos deram muito carinho. Uma grande aprendizagem.

E sobre o que vocês tratam nas letras? Ricardo: sou eu quem escreve as letras [Ricardo] e a real é que falo de coisas muito cotidianas. Não gosto de metaforizar, sabe?, senão escrever sobre coisas com as quais as pessoas consigam estabelecer alguma relação. São coisas que acontecem comigo ou com amigos e até mesmo com conhecidos mais distantes. Nosso primeiro disco tem letras mais positivas, já o segundo reflete uma época mais turbulenta da minha vida. Eu gosto de escrever sobre coisas da vida real principalmente. Para terminar, podem dizer o que tiverem vontade: Todos: Seja no Brasil, Colômbia, Argentina ou aqui no Chile, queremos agradecer a todos os promotores porque cada um deles nos ajudou muito, conversando entre eles mesmos para poder fazer de tudo por nós. O hardcore punk se trata de amizade e solidariedade, assim que agrademos muito. Não vamos dar nomes porque tem uma galera, inclusive os que trabalham junto aos promotores e tudo isso. Sigam escutando hardcore punk, fortaleçam suas cenas locais. Uma vez mais, obrigado pelo tour!

VIII


Por Carol Mondin. SÃo Paulo, Brasil

Da

casa dos

desumanos

Entre a máquina e o afeto Ponte entre céu e concreto Amor escorre no aço Colete à prova de laço Subsolo da solidão Pavimentos de ingratidão Playground dos impensantes Jardim dos amantes Ergue muros, cria regra Humanidade, desintegra

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Por Furtar Crew. Santiago de Chile.

É sério que vimos o 7Seconds? Sim, é sério. E ainda não podemos acreditar. O lugar estava coalhado de gente de todas as partes e de diversas gerações. As caras de alegria e emoção eram um espetáculo à parte e garantimos nunca ter visto tantos stage dives em um só show – até mesmo Kevin se surpreendeu e disse “vocês deveriam ir aos EUA mostrar como se agita em um show, porque acho que eles esqueceram”. Conversamos com a banda inteira, fizemos fotos e fomos tratados com muito carinho. Era clara a felicidade e não podiam esconder os sorrisos. Fizemos uma pergunta crucial: “ainda são straight edge?”; a resposta ficou em off.

Sobre vir para a América do Sul, quais as suas expectativas? Por muito tempo a gente não teve contato com o que rolava aqui. Pessoas escreviam pra gente, a gente recebia alguns e-mails, mas nunca soubemos mesmo como as coisas eram por aqui. Até que alguns amigos próximos começaram a reforçar isso de que tínhamos muitos fãs por aqui e que tínhamos que vir tocar na América do Sul. Aí o Rafael [Rafael Madeira, 78Life] trouxe a banda pro Brasil no ano passado e dissemos que também gostaríamos de tocar aqui no Chile e na Argentina. E desta vez aconteceu, é fantástico. Parece que estamos em casa, o pessoal animadíssimo. É uma celebração. É ótimo. Depois de tanto tempo, como você se sente sobre viajar para tocar e sobre o hardcore em si? Eu ainda amo isso aqui. Se não fosse assim não estaria fazendo isso. Uma coisa que todos na banda concordamos é que se um dia a coisa não rolar mais, a gente para. Mas a gente ainda tem esse sentimento. Digo, tenho 54 anos, sou um senhor e tudo vai ficando mais difícil, não tenho mais a capacidade de ficar pulando que nem doido como antes, mas a energia ainda está lá. E a energia que vem do público é sempre boa. E o que você tem escutado ultimamente? Pô, eu ouço uma caralhada de coisas. Mas se falar sobre o hardcore punk, tem essa banda chamada War on Women que é excelente. Off With Their Heads é muito boa também. Você me pegou desprevenido, é complicado pensar assim em uma série de nomes de bandas. Mas olha, pra mim, muita coisa que o pessoal chama de hardcore hoje é, na verdade, metal. E eu não me sinto conectado com isso, sabe? Eu gosto quando a música tem certa melodia, não curto tanto aquele hardcore mais agressivo; digo, é bom, claro, mas o meu gosto é diferente.

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O que você acha sobre a mensagem que as bandas atuais passam para molecada? Vou te dizer que nem me ligo tanto nas letras. Tô há muito tempo nisso, e tô velho. Cheguei num ponto onde o que acaba sendo feito por gente muito nova não tem tanto apelo pra mim, porque é algo feito por jovens e para jovens. E não há problema nisso, é um processo de reciclagem. Mas a idade não muda como me sinto, vou sempre ser sincero e dizer o que está dentro do meu coração. E o que você continua ouvindo desde que era molequinho e que te influenciou a comerçar a tocar? Eu te diria que o punk anterior ao hardcore. The Clash, por exemplo, e as bandas dessa época. Foi isso o que motivou a gente, sabe? Bad Brains também, Black Flag... Já tocou com o Black Flag? Sim, alguns shows. E você tem contato com os caras? Sim, claro. O Chuck, o Keith [Morris]... a gente se fala, mesmo que por facebook. Quer deixar um recado final pra galera? Quero dizer que estamos felizes e honrados de poder tocar aqui. É lindo, e poder entregar algo de volta a vocês significa muito. É realmente fantástico. Muito obrigado por tudo, por todos os anos de apoio. XI

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Por Marcelo La Farina. São Paulo, Brasil.

Daigo Oliva e Mateus Mondini têm seus nomes gravados na história do hardcore/ punk. E não só na cena paulistana, uma vez que “Fodido e Xerocado”, zine fotográfico produzido e distribuído gratuitamente no começo dos anos 2000, extrapolou as fronteiras cinzas de São Paulo e chegou a lugares onde só o do it yourself pode te levar. Furtar conversou com Daigo – formado em História, hoje editor-assistente de “Ilustrada”, o suplemento cultural diário da Folha de S.Paulo – e vem te contar um pouco mais sobre o que ainda hoje é tido como referência dentro e fora do hardcore/punk.

XII


Para começar, como você, Daigo, começou a fotografar? E quando percebeu que isso era o que realmente te dava prazer? Junto ao ensino médio, fiz também um curso técnico em eletrônica, no saudoso Liceu de Artes e Ofícios, aqui em São Paulo. Mesmo que eu não tivesse interesse algum em continuar na área, era obrigado a fazer um estágio para receber o diploma. Assim, acabei caindo na matriz da FujiFilm no Brasil, empresa japonesa de equipamentos fotográficos. Ali aprendi as noções básicas da fotografia e me interessei pelo assunto de verdade. Não sei te dizer qual foi o momento exato em que percebi que aquilo era o que realmente me dava prazer. Foi acontecendo, e quando me dei conta, já estava imerso nesse mundo. Você e o Mateus se conheceram no rolê? Como foram as conversas até finalmente decidirem colocar a mão na massa e produzir um registro de maneira, digamos, mais “formal” – formal no sentido de editar as fotos e diagrama-las num zine? Sim, nos conhecemos de vários encontros em shows e na Galeria do Rock. A relação ficou mais próxima durante a turnê do Clorox Girls no Brasil, banda de Portland que ele trouxe para cá. Na época, antes de uma viagem para Florianópolis e Curitiba, a câmera dele teve algum problema, e eu emprestei a minha. Depois, a gente foi fazendo as fotos e, putz, difícil lembrar com clareza como as coisas aconteceram, mas tivemos a ideia de fazer algo juntos. Tudo aconteceu muito rápido, eram dois caras com 20 e pouquíssimos anos pilhados em produzir algo. A força de vontade do Mateus para criar e fazer as coisas acontecerem é inacreditável. Ele realmente é uma pessoa que sabe como viabilizar e concretizar uma ideia.

XIII

Por aqui não existia algo parecido e o Fodido e Xerocado exerceu um papel inédito no registro do hardcore/punk nacional. Assim, quais foram as influências de vocês para criar um zine fotográfico? Vocês tinham acesso a coisas da gringa? A referência maior sempre foi o Glen E. Friedman. Sempre. A gente pirava nas fotos dele e queria fazer algo assim. Mas também tinham outros que exerceram grande influência. Ed Colver, um puta fotógrafo dos anos 1980, que fez a capa do “Damage” do Black Flag e a base da ilustração na capa do “Group Sex”, do Circle Jerks. Esses caras são incríveis, mas também tiveram outros, como o Bob Gruen, embora ele não fosse um fotógrafo que tenha se dedicado 100% ao punk. De qualquer forma, os zines e livros punks em geral, não só de fotografia, eram uma grande influência. Quem sempre entendeu muito disso é o Mateus. Quando a gente começou a fazer o “Fodido e Xerocado”, ele já tinha muito material. O nome do nosso fotozine era uma referência direta e óbvia ao “Fucked Up and Photocopied”. O Fodido e Xerocado apareceu em uma época onde a digitalização de todo e qualquer processo estava em sua fase determinante. O que os motivou a fazer algo que, como vocês mesmo dizem, ia na contramão de toda essa maré digital? A ideia era fazer algo palpável, que as pessoas pudessem pegar. Algo que obrigasse você a passar algum tempo concentrado, diferente de quando a gente está em frente a uma tela de computador. A gente pensava em fazer algo colecionável, que fosse bacana esperar para ver ao vivo. Óbvio que a internet ajuda muito a conhecer coisas que demoram demais para chegar aqui, mas a nossa ideia era fazer algo para ter em mãos, guardar com você. insert vol. 2


Qual era o processo de confecção do zine? Onde e como se reuniam para pensar cada edição e como era o processo de feitura da revista propriamente dita? Eram vocês que diagramavam tudo? Imprimiam onde? Tudo acontecia na casa do Mateus ou na minha. Não tínhamos uma ideia formada sobre edição. O negócio era pegar as melhores fotos do mês e botar nas páginas. A sequência das imagens e como elas se conectavam eram feitas de uma maneira instintiva, os registros se conectavam porque faziam parte de um mesmo universo, então não tinha muito erro. Mateus diagramava de um jeito primitivo, com o que ele sabia de Photoshop na época. Isso acontecia porque fazíamos questão de que 100% do processo fosse nossa responsabilidade, sem depender de ninguém. E era divertido demais. A gente se encontrava, contava histórias, comia pizza, ouvia som, íamos pra gráfica, fazíamos os carimbos dos envelopes onde os zines eram embalados... Foi uma época muito legal, e fico feliz de ver que o Mateus é um amigo do rolê que eu ainda mantenho uma relação muito forte. De onde veio a decisão de distribuir o zine gratuitamente? O custo de produção era baixo e vocês acabavam não tendo prejuízo ou a ideia era realmente fazer a mensagem circular independente dos custos (tanto monetários quanto de tempo)? Sempre tinha prejuízo. Mesmo que, olhando em retrospecto, o valor baixo de produção fosse baixo, sempre dava prejuízo. A gente fazia por puro prazer, porque tinha tesão naquilo. Fazer o zine foi um grande alívio para a rotina do trabalho e todas as merdas da vida cotidiana. Durante um período, aquilo era o motor da minha vida. Vivíamos para fazer o zine, foi uma prioridade até mesmo quando o Mateus foi morar fora do país. A gente se “reunia” pela internet,

mandando os arquivos para lá e para cá. Era diversão. O dinheiro era a coisa mais besta nessa história toda. A gente não se importava com isso. Distribuir de graça foi outra ideia do Mateus, o cara é um visionário... As pessoas queriam muito o zine, rolava um interesse muito gratificante. Quando vocês começaram a fazer o zine circular, qual foi a resposta de quem estava no rolê? Foi demais. Até hoje tem gente que comenta que tem o zine. Tinha gente que odiava também, chamava de revista “Caras” do punk. Isso é legal também, prova de que rolou repercussão, que, gostando ou não, as pessoas olhavam para aquilo. Até mesmo o fato de responder a essa entrevista tanto tempo depois mostra como o zine foi algo legal não só para quem o fez. Estar presente sempre com uma câmera na mão mudou a forma como você percebia/percebe os shows? Como? Mudou, com certeza, e nem sempre foi uma coisa positiva. Teve um momento em que a coisa degringolou, e eu ia aos shows só pensando nas fotos que iria fazer. Às vezes tinha uma banda incrível, mas que era ruim de palco e não rendia imagens. Depois de um tempo, eu também já estava de saco cheio de levar equipamento para todo lado, ficar carregando, ficar lá na frente da banda enchendo o saco e sem curtir o som. Isso fez com que eu desse uma desencanada forte. Por outro lado, conseguir captar a energia de algumas bandas realmente performáticas era um absurdo. As fotos eram usadas pelas bandas como um resumo daquilo que elas eram, e você havia feito aquilo. Rolava uma vaidade pessoal muito forte também, era gostoso ver que a energia dispensada naquilo tinha retorno.

XIV


Consegue dizer como as bandas enxergavam sua presença nos shows? O pessoal chegava a te pedir pra tirar tal e tal foto (se sim, você atendia a esses pedidos?) ou você fazia o que te dava na telha? O que dava na telha. Se a coisa começasse a ficar ensaiada seria uma merda. Perderia a espontaneidade, que é uma das características do punk. Agora como as bandas enxergavam a nossa presença... Não sei te dizer, aí você teria que perguntar a elas. Olhando para trás, posso apenas imaginar que havia os dois casos: aqueles que achavam foda e outros que se sentiam incomodados com alguém tirando foto o tempo todo. Acho que, em algum momento, rolou um excesso no comportamento em frente ao palco. A sua relação com as pessoas envolvidas no rolê mudou por conta do zine? Tinha gente que te identificava como “o cara do Fodido e Xerocado”? Sim, rolava isso, chamavam-nos de Fodido e Xerocado. Cara, faz tanto tempo que qualquer coisa que eu te dissesse sobre relacionamentos com amigos seria meio fantasioso. Não sei te dizer se o zine influenciou minhas amizades. Como é a sua relação hoje com o hardcore/punk? Muito pequena. Ainda sou amigo de várias pessoas, com quem tenho uma ótima relação, mas dificilmente vou a um show, por exemplo. Até mesmo a Verdurada, que era algo sagrado, já não consigo mais comparecer. Ao mesmo tempo que fico frustrado comigo mesmo, a vida muda muito rápido, as coisas acontecem, e nem sempre a gente controla as mudanças que ocorrem na nossa rotina de forma consciente. Ainda tenho muitos discos, ouço muito som, mas é bem diferente da relação que eu tinha na época. Engraçado XV

que há uns três meses, eu tive de escrever uma crítica para o jornal em que trabalho sobre um documentário que fala das bandas punks de Washington, algo que gosto demais. Foi incrível, um retorno a tudo aquilo que eu havia deixado de lado. Ouvi o disco do Embrace inteiro e sabia todas as letras, todas as passagens. Outro dia, fui ver o Mateus discotecando numa festa. Só punk 77, muito hardcore também, me diverti demais, dancei muito, foi foda. Ainda amo o hardcore e o punk, embora de uma maneira diferente. Você publicou fotos na Rolling Stone, na extinta revista da MTV, em sites da Globo, na Folha (sendo editor-assistente de Ilustrada e tendo o Entretempos)... Como foi sua trajetória profissional na fotografia depois do Fodido e Xerocado e qual a importância do zine nisso tudo? Não relaciono minha experiência profissional com o zine diretamente. Acredito que o “Fodido e Xerocado” tenha sido algo que me influenciou por toda a vida num nível mais íntimo, não só na fotografia. A coisa da foto foi um detalhe. Você ainda acredita no DIY? Por quê? Se você quer fazer algo que te dê prazer sem concessões, não tenho dúvida de que o DIY é o melhor caminho. É a única forma de produzir da maneira como você pensou, da forma que você concebeu o seu projeto. Ao mesmo tempo, é um caminho de muito trabalho, com muitas dificuldades e que nem sempre se encaixa com contextos econômicos e da vida prática. Adoraria ter uma vida 100% DIY, e no entanto trabalho em uma empresa grande. Adoraria ter dinheiro para tocar meus projetos pessoais sem depender de ninguém, mas isso nem sempre é possível. Admiro muito aqueles que conseguem levar essa política ao extremo, sem se desvirtuar dos interesses de grandes corporações etc. No entanto, os exemplos de “sucesso” no DIY são poucos, justamente porque é difícil se manter assim. Foi mal aí, mas eu falhei. insert vol. 2


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