Revista Gayachess Nº5 (2019)

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XADREZ, JOGO DE ESTRATÉGIA

Sempre adorei jogos de estratégia, táticos e que me fizessem calcular. Quando entrei no Estabelecimento Prisional, jogava diariamente alguns jogos com os meus parceiros de cela e colegas. Jogava para passar o tempo, para exercitar a mente e também abstrair-me um pouco do sítio em que me encontrava. Os jogos que jogava com mais frequência eram damas, dominó e cartas. Mais tarde, alguns destes jogos já me aborreciam, já não me cativavam, já os jogava unicamente para passar o tempo. Um dia, numa aula de TIC, quando já tinha concluído a tarefa e esperava

pelos outros colegas, resolvi explorar os jogos do Windows. Abri o jogo de xadrez. Embora não fizesse a mínima ideia de como se moviam as peças ou das regras do jogo, comecei, movendo um peão. Confesso que já tinha alguma curiosidade sobre este jogo, pois sabia que era muito antigo, jogado em todo o mundo e que assentava num cálculo complexo. Eu só não fazia ideia do quão complexo era. As suas peças faziam-me lembrar os exércitos das antigas batalhas da Antiguidade. O tabuleiro, todo montado e com as peças a postos é mesmo de uma beleza épica. Aquele jogo conquistou-me. Em todas as aulas de Informática só jogava xadrez e já nem queria saber dos trabalhos da disciplina (o professor que não me ouça!). Uma vez, numa saída precária, cheguei mesmo a comprar um tabuleiro. Foi então que larguei o Windows e comecei a jogar com os meus parceiros de cela. Na altura, pouco mais sabia para além do movimento das peças. Um dia fui transferido para o Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira. Foi então, que conheci o “grupo de xadrez”. O

XADREZ, VIDA E PRISÃO Frequentemente, o xadrez não vê reconhecido todo o seu mérito, sendo por muitos considerado como um mero jogo de tabuleiro, ainda que extremamente complexo. Na verdade, o xadrez apresenta um vasto leque de valências que superam essa designação. Existem muitos paralelismos entre o jogo e a vida que devem ser cautelosamente considerados. Num tabuleiro de 64 casas pretas e brancas, sequencialmente intercaladas, cada jogador dispõe de 8 peões, 2 torres, 2 cavalos, 2 bispos, uma rainha e um rei. A partir desse início igual 8

e justo, cada jogador procura a captura do rei inimigo. Cada peça tem o seu próprio movimento e função na estratégia global; não raras vezes, um simples peão pode ter mais valor que a poderosa rainha. Existe uma certa magia em sermos atacados em cada turno por uma incontrolável multiplicação de jogadas possíveis, em sabermos lidar com uma extrema disciplina mental para evitar lances tentadores que depressa nos podem conduzir ao desastre. Não será assim também na nossa vida? No decorrer dos nossos dias, deparamo-nos com momentos que NOTÍCIAS

nível dos jogadores era muito superior ao da cadeia anterior. Além de se jogar bem xadrez, também se estudava o jogo e isso fez-me evoluir. Passei a dominar as regras, a melhorar o meu nível de conhecimento, a minha maturidade como jogador. Fui muito bem recebido pelos elementos daquele grupo. As pessoas que faziam parte dele eram como a minha família na cadeia. Tenho um carinho especial por aquele grupo. Tudo o que sei e sou hoje, como jogador, devo-o ao grupo, um conjunto de pessoas com características especiais que fui encontrar no local mais improvável do planeta. Foi, de facto, o que melhor me aconteceu em todo o meu percurso prisional. Estou a poucas semanas de concluir o cumprimento da minha pena. Há muita coisa que quero esquecer e muita que quero mudar. Mas, de uma coisa tenho a certeza: o xadrez, que tanto me ajudou e fez crescer na cadeia, vai continuar a fazer parte da minha vida! Por: Carlos Silva


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