Revista Global Brasil 02

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Com o lançamento desse número 2, o projeto GLOBAL se consolida como um instrumento de debate e de participação que assume a globalização como uma dinâmica aberta aos movimentos sociais, propondo uma crítica ao neo-liberalismo que não fique presa a falsas alternativas. A pior dessas falsas alternativas é a de uma esquerda que não chega a outra conclusão senão a de apontar, como saída para a crise atual, uma volta ao passado. Um passado de compromissos inter-classistas inspirados, principalmente, no nacional-desenvolvimentismo. Esta tentação é alimentada pelas polêmicas – animadas também por figuras que nem são de "esquerda" – sobre a política econômica do governo Lula, vide a ênfase emblemática do vice-presidente ao atacar, ao mesmo tempo, o Movimento dos Sem Terra e a taxa de juros. Trata-se de uma alternativa falsa porque a questão não está apenas nos obstáculos externos ao crescimento do Brasil (o FMI), mas na capacidade interna de enfrentar as forças que, no Brasil, se opõem a mudanças essenciais na distribuição de renda e na materialização da cidadania que seriam as condições de uma mobilização produtiva da sociedade brasileira, inclusive diante do FMI. É no enfrentamento dessas forças que podem ou não se dar as condições para se redefinir e se renegociar a inserção do Brasil nos fluxos globais. O governo Lula – governo de coalizão – avançou nesse sentido. O Brasil de Lula e a Argentina de Kirchner (e vice-versa) estão em condições completamente novas para negociar com o FMI. A política global, muito próxima dos movimentos pela paz e contra o unilateralismo da administração Bush, tornou o governo Lula uma referência, inclusive para o novo primeiro ministro espanhol. Esse é o único modo de encarar a questão da ética e a irresponsável hipocrisia mobilizada em torno do "caso Waldomiro". Irresponsável porque visa desestabilizar o resultado de um ano de esforços em termos de política econômica. Hipócrita porque, tentando afirmar que "o PT também" não é ético, tenta acabar com toda perspectiva de constituição de um governo virtuoso. Nem o moralismo no qual parte dos militantes do próprio PT tende a cair nem a tentativa de dizer que é um caso herdado do passado podem explicar o acontecido. O único modo de se governar de modo ético é opondo a virtude à fortuna: o governo de todos ao de poucos. A ética precisa dos movimentos que lutam pela universalização dos direitos diante dos blocos que defendem o passado – inglório – de um poder construído sobre a escravidão e o escravagismo. Essa clivagem não poderá nunca ser ofuscada pelo moralismo eleitoreiro do poder constituído. A ética do governo Lula não se confunde com a moral de sua gestão da representação, mas encontra-se nas formas de participação dos movimentos populares das quais ele é, mais do que um símbolo, uma concretização. Nessa direção, as questões essenciais que estão em pauta são as que se relacionam com a produção e a difusão do conhecimento. A nova relação que pode ser estabelecida, por exemplo, entre os movimentos culturais e artísticos de resistência e os movimentos de universalização do acesso ao ensino superior (que reivindicam ações de redução afirmativa das desigualdades sociais e de suas bases racistas), relação que pode encontrar na reforma universitária um terreno de abertura. Esses movimentos materializam uma nova relação entre arte e trabalho que precisa de uma nova plataforma de políticas públicas, por exemplo, a da renda universal. Seção 1 GLOBAL


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Capa Banquete Antropofágico de Lygia Pape, 2000. Coleção Ronald Duarte. Foto Paulo Innocêncio Jornalista responsável Fábio Luiz Malini de Lima Comitê Editorial e Coordenação Executiva Alexandre do Nascimento Barbara Szaniecki Caio Márcio Silveira Ecio de Salles Ericson Pires Fábio Malini Francisco Guimarães Gerardo Silva Giuseppe Cocco Graciela Hopstein Ivana Bentes Leonora Corsini Maria José Barbosa Patricia Fagundes Daros Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Peter Pál Pelbart Ronald Duarte Tatiana Roque Conexões Globais Antonio Negri (Itália), F. Ingrassia (Argentina), Javier Toret (Espanha), Luca Casarini (Itália), Marco Bascetta (Itália), Michael Hardt (Estados Unidos), Nicolás Sguiglia (Espanha), Raul Sanchez (Espanha). Conselho Editorial Adriano Pilatti Alexandre Vogler Ana Monteiro André Basseres André Urani Charles Feitosa Emanuele Landi Eugênio Fonseca Fernando Santoro Hermano Viana João Almeida Sobrinho Joel Birman Jô Gondar Jorge Davidson Kiko Neto Leonardo Palma Liane Freire Lorenzo Macagno Luis Andrade Luiz Camillo Osório Márcio Calvão Marta Porto Mauro Sá Rego Costa Simone Sampaio Suely Rolnik Revisão dos Textos Fábio Goveia Fábio Malini Leonora Corsini

Participaram deste número / Textos Alexandre do Nascimento Angela Detanico e Julia Rodrigues Écio de Salles Ericson Pires e Daniel Castanheira (Hapax) Fabiane Borges Francis Sodré Giuseppe Cocco Gilmar Graciela Hopstein Hermano Viana Horacio Tarcus Inés Fernández Ivana Bentes Jailson de Souza e Silva Jairo Nicolau Jô Gondar Joel Birman Leonora Corsini e Patricia F. Daros Marisa Nogueira Greeb Mauro Sá Rego Costa Maurício Rocha Pedro Claudio Cunca Bocayuva Peter Pál Pelbart Silvio Mieli Tatiana Roque Participaram deste número / Imagens Alexandre Vogler Bel Pedrosa Cristina Pape Edouard Fraipont Edson Barrus Eduardo Morais Grupo Recolectivo Lygia Pape Paulo Innocêncio Maurício Dias Maurício J. Marchevsky Mirela Luz Rafael Adaime Ronald Duarte Romano Salgueiro Dias Sandra Moraes Walter Riedweg Wilton Montenegro Yann Beauvais

Acontecimento Negri

Conexões Globais

Quadrinhos

Trabalho/Arte

Quadrinhos Carlos Contente GLOB(AL) é uma publicação da Rede Universidade Nômade. CIEC/UFRJ - Avenida Pasteur, 250 - 3o Andar Prédio Anexo ao CFCH - 22290-240 - Urca RJ Tel 55 21 3873 5216/17/18/19 global.al@terra.com.br

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GLOB(AL) é a edição brasileira associada ao GLOBAL PROJECT ao qual pertencem também GLOBAL en espanhol enespanol@yahoo.com.ar e GLOBAL magazine/Itália www.globalmagazine.org

Pesquisa de Imagem Ronald Duarte

Distribuição Conrad Editora Tel (011) 33466007 / 33466088

GLOBAL. 2 Sumário

Trânsitos

Universidade Nômade

Maquinações Os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.


brasil

(01) Editorial

G L O BA L

(04) Toma lá, dá cá Jairo Nicolau (06) A queda da Parmalat e os “bond people” Giuseppe Cocco (08) Direitos dos estrangeiros no Mercosul Leonora Corsini e Patricia Fagundes Daros

(10) Quando há um só mundo, aonde vão as viagens? Maurício Rocha (12) Campo de luta Jailson de Souza e Silva (14) “Não creio que exista algo como o inconsciente”Jô Gondar (16) Negri e os Estados Gerais da Psicanálise Joel Birman (17) Comunismo da imanência Peter Pál Pelbart (18) Negri, Stédile, uma conversa Silvio Mieli (20) Negriana Ericson Pires e Daniel Castanheira (Grupo Hapax)

(22) Olhos noutra Europa Tatiana Roque (24) O poder constituinte na Bolívia Pedro Cláudio Cunca Bocayuva (26) Entre a velha e a nova esquerda Horacio Tarcus (28) O mercado de Bonpland – Ocupação e reconstrução do espaço público Inés Fernández

(30) Paraíba Ninja Carlos Contente

(34) Intermitentes Tatiana Roque (36) Software livre ou morte! Hermano Viana (38) Ocupação de espaços, almas e sentidos Fabiane Borges (42) Participarás Angela Detanico e Julia Rodrigues (44) Imaginário Periférico Mauro Sá Rego Costa (46) Rio-Buenos Aires, zonas de turbulência e invenção Ivana Bentes

(48)( A universidade estatal é pública? Alexandre do Nascimento (49) Loucos pela universidade Francis Sodré

(50)( A realidade da imagem argentina Graciela Hopstein (52) Inquietação e fúria Écio de Salles (54) Nasce uma política de grupos Marisa Nogueira Greeb (56)(( Pirataria Gilmar Rodrigues ((

Sumário 3 GLOBAL


Toma lá, dá cá Jairo Nicolau

Após o caso Waldomiro Diniz, a opção de financiamento público das campanhas políticas ganha força. Resta saber quem vai pagar a conta. O presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, anunciou que a proposta de reforma política elaborada pela Comissão Especial, cujo relator é o deputado Ronaldo Caiado, deverá ser votada ainda neste semestre. Pelo cronograma do governo a votação ficaria para 2005, mas as denúncias envolvendo Waldomiro Diniz precipitaram os fatos, como gostam de dizer os políticos. Como vários outros escândalos que abalaram a política brasileira nos últimos anos, o caso Waldomiro tem origem no financiamento ilícito das campanhas. Por isso, entre os diversos tópicos da proposta de reforma, destaca-se a adoção do financiamento público das campanhas eleitorais, vista como antídoto contra a corrupção eleitoral. Três características do sistema de financiamento de campanhas em vigor no Brasil chamam a atenção. A primeira é o alto custo das campanhas eleitorais. Na última eleição, os quatro candidatos mais importantes na disputa presidencial declararam ter gastado cerca de 60 milhões de reais. A comparação com outros países é difícil, por conta de uma série de fatores: o sistema eleitoral, o número de eleitores, o valor da moeda e a renda da população. Mas, só para se ter uma idéia, na França um candidato a presidente pode gastar, no máximo, 22 milhões de reais no primeiro turno e 30 milhões no segundo (valores de 2000). Nos Estados Unidos, os dois principais candidatos das eleições presidenciais de 2000 receberam do fundo público cerca de 134 milhões de dólares – grande parte desses recursos foi gasto na compra de tempo na televisão, já que lá não existe horário eleitoral gratuito. As campanhas brasileiras são caras por uma série de razões. Nas disputas para o Executivo, a modernização das técnicas de campanha (com o uso intensivo GLOBAL. 4 Trânsitos

de pesquisas, produção de sofisticados programas de rádio e televisão, contratação de profissionais de marketing, produção de elaborado material de publicidade) encareceu em demasia os custos. Nas eleições proporcionais, o grande número de candidatos e de partidos e o tempo reduzido no horário eleitoral incentivam que os candidatos gastem cada vez mais, para garantir uma votação que os torne competitivos. Um segundo fator a destacar é que as campanhas brasileiras são fortemente dependentes das doações de empresários. Dados compilados pelo cientista político David Samuels revelam que 80% dos recursos declarados pelos candidatos a presidente em 2002 vieram de doações das empresas. Estas não são feitas de maneira neutra: partidos pequenos e de esquerda recebem muito menos do que outros. Nas eleições de 1998, a candidatura de Luis Inácio Lula da Silva declarou ter gasto 2,2 milhões; só o Banco Itaú doou mais do que isso (2,6 milhões) para a campanha de Fernando Henrique Cardoso. Em 2002, o PT recebeu expressivas doações de empresas, mas outros partidos tiveram dificuldades de arrecadar recursos. É dando que se recebe A dependência de recursos das empresas para as campanhas levanta a suspeita (algumas vezes comprovada) de que determinadas políticas públicas são implementadas para favorecer alguns doadores, ou de que certas doações são retribuições a políticas de favorecimento às empresas realizadas no passado. Por isso, na maioria dos países, as doações diretas das empresas para os políticos são proibidas ou muito limitadas. Um último aspecto a chamar a atenção é que, embora o país tenha melhorado muito o sistema de prestação de contas dos gastos de campanha, a arreca-

dação ilícita é uma prática corriqueira. É impossível saber quanto é arrecadado ilicitamente, mas as diversas denúncias revelam que o fenômeno é generalizado. Um agravante neste caso é o fato de que os recursos não vêm somente do caixa “dois” de empresas tradicionais, mas de redes conectadas ao crime organizado e à informalidade (bicheiros, empresários de bingo, igrejas, narcotráfico). Ou seja, agentes que, em muitos casos, sequer têm o caixa “um”. Sair da situação atual não é tarefa das mais simples. A opção proposta pela comissão de reforma política é proibir que os candidatos recebam recursos privados e passem a fazer campanhas exclusivamente com os recursos públicos. Nos últimos anos, diversos países têm adotado alguma forma de subsídio para financiamento dos partidos e das campanhas. Esses recursos podem ser indiretos (impressão de material, locação de imóveis, horário nos meios de comunicação), ou, o que é mais raro, diretos (dinheiro para cobertura de gastos realizados). Publicidade inimiga O Brasil já oferece um subsídio de campanha indireto, o horário eleitoral gratuito, que custa aos cofres públicos cerca de 1 bilhão, pois as redes de rádio e televisão recebem isenção fiscal pelo tempo ocupado pelos candidatos. O projeto que será votado propõe que seja criado um fundo para financiar também os gastos de campanha. Os recursos do fundo viriam do tesouro, e seriam da ordem de 7 reais por eleitor inscrito para votar. Se tomarmos o número de eleitores de 2002 como base, os recursos para o financiamento estariam na casa de 810 milhões. É justamente a publicidade deste valor o pior inimigo do financiamento público. Convenhamos, tirar dinheiro do orçamento para financiar as campanhas eleitorais não é uma causa das mais populares. O projeto estabelece um complexo sistema de distribuição dos recursos levando em conta a representatividade dos partidos. Calculei os recursos que cada partido receberia para as eleições de 2006, segundo a votação obtida em 2002. O resultado para os principais partidos é o seguinte: PT (132 milhões), PSDB (104 milhões), PFL (98 milhões), PMDB (98 milhões), PP (60 milhões),


PSB (42 milhões), PDT (41 milhões), PTB (38 milhões) e PL (35 milhões). Parte desses recursos seria administrada pelos diretórios nacionais dos partidos (30% se tiver candidato à presidência e 20% se não tiver), e parte seria transferida para os diretórios estaduais. Por exemplo, o diretório nacional do PT administraria 41,7 milhões, a serem utilizados na campanha presidencial. Os valores são significativos para a campanha nacional. É preciso observar com mais cuidado se os diretórios receberão recursos suficientes para a campanha nos estados. Um dos riscos desse sistema é que alguns diretórios recebam poucos recursos e que candidatos sejam estimulados a buscar “complementos” no mercado paralelo de financiamento. Também faz parte da proposta um rol de punições para os candidatos e doadores que violarem a lei. Uma empresa, além de pagar multa, pode ficar proibida de participar de licitações e de celebrar contratos com o poder público. Os candidatos podem ter o

registro ou diploma (se eleito) cassado e os partidos poderão ter seus votos anulados. O maior problema é que hoje os Tribunais Regionais Eleitorais não têm como fiscalizar detalhadamente se os candidatos realmente gastaram o que declararam, pois falta pessoal e muitos processos se acumulam sem serem julgados. O financiamento público deve ser acompanhado por medidas que capacitem os tribunais eleitorais com pessoal e recursos para fiscalizar os gastos. O relator Ronaldo Caiado tem insistido que a aprovação do financiamento público deve estar associada à introdução da lista fechada nas eleições para o Legislativo. Pelo novo sistema, os partidos ordenariam a lista de candidatos antes da eleição, cabendo ao eleitor só votar na legenda. Ele tem razão ao dizer que o financiamento público dificilmente daria certo com o atual sistema eleitoral, no qual milhares de candidatos competem a uma vaga no legislativo. Seria impossível garantir recursos suficientes e fiscalizar os gastos de campanha a contento.

Querubins de Maurício J. Marchevsky para o evento Imaginário Periférico. Foto de Sandra Moraes

Caixa dois continua A opção pela lista fechada encontra resistências no meio político, sobretudo entre algumas lideranças que temem ficar reféns das burocracias partidárias. Por isso, a associação de dois tópicos diferentes em sua natureza (o sistema eleitoral estabelece como os votos serão dados e contados, enquanto o financiamento como os competidores podem gastar os recursos) pode dificultar a aprovação do financiamento público. Um aspecto que deve ficar claro é que nenhuma proposta tem como garantir o fim do caixa dois. Não há como inventar um sistema que não seja vulnerável à corrupção eleitoral, sobretudo em economias com o grau de informalidade da brasileira. Mas, o financiamento público, acompanhado por rigoroso sistema de fiscalização e de severas punições, é a melhor opção que temos para sair do péssimo sistema de financiamento em vigor no país. Os benefícios para a democracia brasileira (competição mais equilibrada, fim de doações desiguais das empresas, mais legitimidade dos representantes, declínio da corrupção eleitoral) compensam em muito as possíveis imperfeições. Até mesmo a pior delas, a continuidade residual do caixa dois.

Trânsitos 5 GLOBAL


A queda da

Ovo no asfalto, pintura de Alexandre Vogler, Rradial.

PARMALAT GLOBAL. 6 Tr창nsitos


O impacto social da falência da multinacional se mede muito pouco pela perda de empregos assalariados tradicionais e muito mais pelos prejuízos à rede de produtores que alimentavam os negócios.

O escândalo da quebra da multinacional italiana Parmalat junta-se, com seus números estrondosos, ao da americana Enron e a muitos outros. Em face de caixas completamente vazios, a dívida acumulada pela Parmalat – sem que nenhum órgão de controle bancário e financeiro a detectasse – é de cerca de R$ 50 bilhões, do tamanho dos pacotes de ajuda financeira que países como o Brasil negociam com o FMI. O escândalo apenas mostra o que já sabíamos: contrariamente ao que se diz, o interesse privado não representa nenhuma garantia de eficiência e ainda menos de rigor e ética. Na obscena transparência dos casos Enron, WorldCom, Crédit Lyonnais, Vivendi e agora da Parmalat, a corrupção aparece pelo que ela é: um elemento funcional e sistêmico da própria lógica privada dos mercados e não o desvio da norma. Mas, por trás do que já sabíamos (e não faz mal lembrar), as condições da quebra da empresa italiana mostram elementos inovadores. Um primeiro tem a ver com o fato de que, desta vez, não se trata de uma forma tradicional de empresa, mas de uma rede, ou seja, da federação de uma vasta rede de produtores independentes na base do controle, pela firma central, das variáveis estratégicas de tecnologia e, sobretudo, de distribuição e comunicação.

Impacto nos pequenos investidores Um segundo elemento importante é que a quebra da empresa italiana acabou prejudicando também uma nova figura, emblemática do período neoliberal: os pequenos investidores, de vários países, que compraram bonds (títulos) da Parmalat (bem como bonds da dívida argentina). Só na Itália, algumas estimativas apontam cerca de 800 mil "poupadores" envolvidos nas quebras da Argentina e da multinacional. Essa percepção do fenômeno tornou-se possível pelo caráter público que os próprios pequenos investidores deram aos seus receios com relação ao dinheiro investido: como nas manifestações argentinas contra o “corralito”, na Itália também foram organizadas assembléias, manifestações e outras formas de protesto. O conteúdo completamente privado e sigiloso do dinheiro no mercado tornou-se de domínio público. Em entrevistas a jornalistas, são abertamente declarados os valores investidos, os detalhes das vidas pessoais que permitiram essas pequenas acumulações de poupança: uma herança, o FGTS, o salário no país de imigração etc. Queriam comprar uma casa ou ter uma renda complementar. Os detalhes de vida tornam-se a marca do pertencimento a esse movimento. Quanto mais reinava o silêncio e a mesa do consultor financeiro do banco funcionava como o confessionário de onde se formulavam esperanças de vida e cálculos de rendas, mais barulhenta tornou-se a exposição do prejuízo atual. Se os anos 70 legaram ao mundo os “boat people” que, fugindo o Vietnã em embarcações precárias, enfrentavam o risco do mar para alcançar a providência dos Estados Unidos – os anos 90 nos legam os “bond people” (pequenos investidores do mercado de ações). Só que esses últimos nunca gostaram muito de correr riscos e, à medida que seus rendimentos financeiros vão para o brejo, invocam a providência do Estado.

Impacto nos distritos A quebra de uma grande empresarede mostra que o chamado “modelo dos distritos industriais” ou dos chamados arranjos produtivos locais (APLs) não representa nenhuma forma harmoniosa de valorização de um capital que, dessa vez, seria social. De maneira muito mais concreta temos, ao contrário, o contexto de um novo conflito entre as dimensões públicas (e cooperativas) do trabalho que está nas redes e as formas de captação privada dos fluxos desenhados por essas redes. A mobilização produtiva tende a acontecer independentemente da relação salarial, da relação de emprego, e os lucros se consolidam na captura, já dentro da circulação, do valor agregado. Em negativo, como num baixo relevo, a quebra da Parmalat confirma essa mudança: seu impacto social se mede muito pouco pela perda de empregos assalariados tradicionais e muito mais pelos prejuízos aos fornecedores, à rede de produtores que alimentavam os negócios da multinacional. No Brasil, o governo é chamado a articular planos para as empresas da rede, muito mais do que para os empregados da firma quebrada (mesmo sabendo que se trata da segunda marca de leite do país). Mais do que "salvar o emprego", a questão que se coloca é a de como os produtores da rede poderiam usar a quebra para cooperar entre eles e integrar de maneira horizontal as funções imateriais – de marketing, logística e comunicação – que permitiram à Parmalat construir uma posição dominante, cuja ilegitimidade é explicitada pelo tamanho da quebradeira.

Giuseppe Cocco

e os “bond people” Trânsitos 7 GLOBAL


Di r ei to s dos es t ra nge i r os n o

Mercosul Leonora Corsini e Patricia Fagundes Daros

As migrações são tradicionalmente vistas como meros mecanismos de ajuste dos mercados de trabalho nacionais, objetivamente determinadas pelas necessidades de mão-deobra barata dos países e/ou das regiões mais dinâmicas. Na realidade, a migração pode constituir um dos mais importantes movimentos de resistência, onde a mobilidade do trabalho poderia ser vista como um vetor da luta pela liberdade. É por isso que o capital recorre ao Estado para tentar manter o controle da mobilidade migrante através de um arsenal de instrumentos jurídicos e legislativos. Agora com a globalização, as migrações não se limitam mais aos trabalhadores de baixa qualificação, mas abarcam também o trabalho mais intelectualizado e capacitado para desenvolver tarefas complexas. No caso do Brasil e do Mercosul, o que prevalece é um espaço territorial cujas fronteiras internas são percebidas como espaços de conflito, na contramão da idéia de que a livre circulação de pessoas é fator de desenvolvimento social e econômico. Caberia então perguntar: por que argentinos, uruguaios e paraguaios ainda recebem no Brasil tratamento equivalente ao de estrangeiros provenientes de outros países de fora do Mercosul? Por que se pretende consolidar e fortalecer as trocas e a circulação de bens (com a diminuição/remoção de barreiras tarifárias, alfandegárias, fiscais etc.) sem ver que isso implica maior cooperação econômica e a livre circulação das pessoas ? O Estatuto do Estrangeiro em vigor desde 1980/1981 tem sido mantido, em linhas gerais, dentro dos princípios dos acordos bilaterais e da reciprocidade entre países. Mas, nossa legislação coexiste com práticas restriGLOBAL. 8 Trânsitos

tivas e oscilantes com relação à concessão de autorização de trabalho a estrangeiros. Essas práticas restritivas que entravam a livre circulação de trabalhadores poderiam estar relacionadas à idéia de que o estrangeiro é potencialmente alguém que vem roubar o emprego e tirar o “arroz com feijão” dos brasileiros. Esta visão um tanto estreita do Estatuto do Estrangeiro, entretanto, começa a mudar com o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento Brasil-Argentina de 1988, convalidado no Protocolo de Ouro Preto – marco institucional do Mercosul, assinado em dezembro de 1994. Desde então, vários outros documentos, envolvendo questões comerciais, jurídicas, de circulação de bens e de segurança, temas de interesse comum aos quatro países membros – além de Chile e Bolívia – e também tópicos que inclusive ultrapassam a pauta econômica e comercial do processo de integração, com viés bem mais político, têm estado presentes nas agendas de discussão dos países do bloco. Neste âmbito político sobressaem questões relativas a uma “cláusula democrática”, que defende, entre outras coisas, a idéia da “plena vigência das instituições democráticas como condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados participantes” (cf. Protocolo de Ushuaia sobre o Compromisso Democrático no Mercosul de 1998). De certa maneira, o tópico da mobilidade laboral vem ganhando cada vez mais destaque, tendo inclusive como

desdobramento a formação de um Subgrupo de Trabalho (SGT) cujo tema específico é o trabalho e a circulação de trabalhadores. Mas, lamentavelmente, os resultados até agora alcançados indicam que continuam a ser valorizados os fluxos de bens e capital em detrimento da circulação de pessoas, quando esta última constitui justamente uma dinâmica potente dentro da globalização. Recentemente, os presidentes Néstor Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva – por ocasião da visita de Lula a Argentina em outubro de 2003 –, firmaram uma série de documentos que expressam a disposição de coordenar e promover ações e políticas conjuntas que visem o desenvolvimento sustentável, a distribuição mais igualitária dos frutos do crescimento, a ampliação do acesso ao conhecimento, à informação, à tecnologia, à educação e ao trabalho decente, enfim, a construção de um espaço comum que seja mais do que um bloco comercial e constitua “uma opção estratégica para fortalecer a inserção dos países signatários no mundo, aumentando sua capacidade de negociação” (artigo 15, Consenso de Buenos Aires). Enfim, apesar dos avanços, permanece um impasse, fruto de uma incompreensível tensão existente por trás dos interesses políticos e econômicos que estão em jogo: os interesses corporativos, o conservadorismo sindical, a desconfiança das elites locais dos países envolvidos acabam por comprometer a percepção de que, no contexto da globalização, o movimento autônomo e livre do trabalho acaba por produzir uma dinâmica de desenvolvimento que vai além de qualquer modelo fechado de integração nacional.


Tr창nsitos 9 GLOBAL


EGR

O acontecimento

GLOBAL 10 Acontecimento Negri


Quando há um só mundo, aonde vão as viagens? Maurício Rocha

“Os lugares do pensamento são as zonas tropicais, freqüentadas pelo homem tropical. Não as zonas temperadas, nem o homem moral, metódico ou moderado” Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia (1962).

Foto Bel Pedrosa

Melhor ainda do que viajar é poder residir no lugar para onde se vai, declarou Negri em entrevista. Viajar é residir deslocando-se, toda viagem sendo despaisamento — jangada no mar, plano de imanência que se constrói habitando nele. Já se disse que a atividade filosófica está mais ligada à geografia do que à história, e que se há filosofia política, seu objeto só pode ser o capitalismo. No momento em que o sistema se estende até os confins da terra, tornado mercado mundial, Antonio Negri desloca-se rumo ao horizonte aberto das Américas (nome herdado de um peninsular florentino, um dos primeiros a se extasiar com o litoral tropical exuberante da hinterlândia que tudo dá e tudo digere). Se for verdade que encontramos as armas para resistir quando fugimos, o pensamento de Negri não deixa de ser orientado por uma saída para fora ou fuga imanente — pela constituição de um espaço-tempo insurrecional que foge à institucionalização, inseparável de uma crise e de antagonismos que liberam agenciamentos sociais e jurídicos inéditos. A matriz conflituosa é maquiaveliana e intempestiva — pois só existe o que resiste; espinosana — é preciso fazer existir o que se conserva e produz liberdade; marxista — afinal, trata-se de destruir o capitalismo, que nada mais tem a oferecer. Sua primeira vinda à Quarta Parte da Terra pode ser vista como mais um momento da longa travessia póssocialista. Ele veio a trabalho, e foi posto a trabalhar, quase sem descanso: entrevistas nos principais diários (Folha, O Globo), conferências (no Palácio Gustavo Capanema), um seminário informal (no Departamento de Direito da PUC), uma visita ao Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), lançamento de livros (Kayrós, Alma Vênus, Multitudo e Cinco Lições sobre o Império) seguido de palestra (na Escola de Serviço Social da UFRJ), e encerrou-se — após idas a São Paulo, Brasília, Buenos Aires, e outras tantas entrevistas — nos Estados Gerais da Psicanálise (no Hotel Glória) para a coletividade “psi” de vários quadrantes. Quis a fortuna que a visita coincidisse com os primeiros meses do governo Lula — que para muitos, Negri incluído, parece experimentar travessia similar,

com altíssimos custos. Os locais visitados por Negri no Rio são mesmo marcos históricos da República onde o passado não passa — e são marcos geográficos que entram em ressonância com a trajetória do filósofo e com as cartas de navegação do êxodo, espécie de guia dos perplexos. Um exemplo é a primeira conferência, numa tarde fria de outubro no Palácio Capanema. Inaugurada em 1945, a construção leva o nome de seu idealizador, o ministro da biopolítica getuliana Gustavo Capanema. Discípulo do constitucionalista do Estado Novo (Chico Campos), ex-camisa parda nos anos 30, ousado a ponto de reunir Lucio Costa (responsável pelo projeto), Oscar Niemeyer, Candido Portinari (autor dos painéis de azulejos) e muitos outros para construir o que pretendia ser “a catedral da moderna arquitetura mundial” — o astuto político mineiro seria o exemplo local da estatolatria, e de como nossa modernidade pode ser conservadora. Os pilotis do prédio testemunharam passeatas, manifestações e muitos confrontos entre estudantes e a as forças da repressão, sobretudo durante a ditadura militar — que fez da construção um depósito de burocratas e repartições públicas, esvaziando-a culturalmente. Negri estar ali — tendo ao fundo o slogan “Brasil, um país de todos” — era o sinal de outros tempos, para todos. A audiência o recebeu com hospitalidade carioca, misto de respeito amigável, sem transcendência ou cerimônia, plena de expectativa bem humorada. Sentada, em pé, assistindo pelo telão instalado no térreo, amontoada entre câmeras, gravadores e microfones, gente de toda a parte — pelo menos três gerações, desde a mais recente — o brindaria com perguntas atrevidas, provocadoras, enfrentadas com alguma paciência e serenidade setuagenária, sem prejuízo do sarcasmo e do sentido de urgência. Nessa atmosfera, o professor exercitou os sortilégios de sua lírica paduana (que atinge as alturas do conceito, temperando-o com entusiasmo desencantado), evidenciando que o tempo do intelectual guia das massas acabou, levando junto palavras de ordem e a fé supersticiosa (no Estado, no Partido, na Classe, na História etc.). Boa parte dos jovens preAcontecimento Negri 11 GLOBAL


sentes verberava o professor, variando do antiamericanismo inconseqüente, por adolescente, à compreensível preocupação de quem se sabe ocupado — que a proximidade agrava e um guevarismo metafísico renitente só reforça. Em contraponto, assistíamos a transição do filósofo em não-filósofo, em favor de um povo por vir (a multitudo). A palestra resumiu argumentos dos livros editados aqui (Cinco lições e Kayrós), que desdobram os temas já presentes no livro Império: não há globalização sem regulamentação; que a soberania dos Estados-Nação está em crise — fronteiras e nexos hierárquicos são produzidos de modo funcional e contínuo — sendo o mundo global um espaço sulcado, dividido horizontal e verticalmente por estrias dinâmicas, móveis. Insistiu no fato de que as dinâmicas da globalização precisariam ser pensadas como essencialmente determinadas pelos conflitos no desenvolvimento capitalista — enfim, é a luta, o antagonismo social presente na relação capitalista, que constitui qualquer realidade política. Negri costuma dizer que os juízes que o condenaram sabiam, melhor que muitos historiadores, o significado do comunismo. Quando as novas formas de autoritarismo político se baseiam no controle do trabalho intelectual é preciso perceber que a globalização é econômica, mas segue a lógica cultural da comunicação, da coordenação cognitiva das condutas pela mídia eletrônica, fazendo a representação política moderna colapsar e dando lugar a uma zona cinzenta onde se confunde direita e esquerda. O segundo encontro foi uma espécie de antídoto a um certo bom-mocismo iluminista das letras jurídicas cariocas. A visita de Negri ao Departamento de Direito da PUC permitiu que um punhado de privilegiados pudesse argüir o filósofo com uma saraivada de perguntas, comentários e variações sobre suas teses e proposições. O clima ia da assembléia política ao seminário acadêmico e a platéia — composta por veteranos que resistiram à ditadura, integrantes dos pré-vestibulares comunitários, pensadores das redes digitais, espinosistas dispersos e estudantes de direito constitucional — terçou vozes durante horas com o otimismo heterodoxo de Negri. GLOBAL 12 Acontecimento Negri

À fadiga inevitável dessas duas jornadas somou-se o sentimento de espanto diante do tamanho continental de nossa miséria, após a visita ao CEASM (associação criada em 1997 por um grupo de moradores das favelas do Complexo da Maré, a maioria com curso superior e experiência de militância, cuja primeira ação foi um curso pré-vestibular comunitário). Ocorre aos europeus essa sensibilidade aguda ao intolerável — que por aqui estamos a reconquistar e cultivar. Lá se foi a serenidade em quarenta minutos de palestra no Campus da Praia Vermelha da UFRJ (cenário de um levante comunista, e da Escola Superior de Guerra, a Sorbonne dos militares que forjaram nossa mais longa ditadura). Negri vê na tradição comunista um certo despeito com os pobres (“como poderiam ser explorados, visto que não trabalham?”). Para o filósofo, os pobres seriam os que não conseguem dar valor à atividade, mas que possuem uma potência a ser expressa — bloqueada pelo sufoco, pela limitação à mobilidade e à cooperação que cria valor. Sujeitos exemplares da exploração, não estão fora da história, e seriam uma força positiva que confronta os limites da vida — enlaçada pelo capital. No mundo sem fora, a periferia é um limite interior. Vista de perto, ela é marco na carta de navegação. No Hotel Glória (garçonnière de tantos presidentes, povoado por fantasmas da República), a intervenção de Negri encontraria a belle indifference analítica diante da provocação do filósofo que afirmava desconhecer a “existência” do inconsciente (mas essa é outra história).

Campo de

Luta Em visita ao Complexo da Maré, no Rio, Negri ouviu o relato da guerra urbana em que convivem os moradores da maior favela carioca Jailson de Souza e Silva


No dia 15 de outubro de 2003, o filósofo italiano Antônio Negri foi à Favela da Maré. E esse tipo de encontro sempre suscita questões. Negri tem dedicado sua vida à crítica dos mecanismos de ordenamento político, econômico e cultural da sociedade capitalista, às formas de dominação nela existente e na defesa da necessidade de que os sujeitos se façam donos de sua própria história, de forma coletiva. Perdeu, em função de seu posicionamento e compromisso, sua liberdade de ir e vir, sofreu violências de diversas ordens e manteve sua coerência com os oprimidos. Tornouse, assim, uma demonstração exemplar da possibilidade de colocar o presente em questão e lutar pela construção de um novo mundo. Centrado no reconhecimento da força social da multidão. Uma multidão com identidade, com capacidade de intervenção, com capacidade de materializar, de forma integrada, as três dimensões do humano: a singular, a particular e a humano-genérica. A Maré, por seu turno, é a maior favela do Rio de Janeiro. Seus 132 mil habitantes se distribuem por 16 comunidades, ao largo das principais vias de circulação da cidade - Av. Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. Ela expressa a capacidade dos setores populares em enfrentar a lógica do capital de transformar o espaço urbano em mercadoria. Os moradores da Maré construíram e constróem, por sua conta e luta, o seu habitar; com suas regras, suas lutas e na busca

cotidiana por uma melhor qualidade de vida. A Maré é, portanto, marcada por um rico processo de conquistas, mas também por muitas dores. A principal delas é a violência de quatro grupos armados que se confrontam no território local, sendo um deles as forças policiais. A luta pelo domínio do território adversário faz com que os grupos se enfrentem com armas poderosas, sendo a tônica de todos, em particular os representantes do Estado, o desprezo à preservação da vida da população civil. A violência impede que o morador local exerça seu direito de ir e vir e tenha sobre si a permanente ameaça de uma bala qualquer lhe tirar a vida. Assim, além da violência estrutural que caracteriza o cotidiano do morador da Maré e de tantas comunidades populares do Rio de Janeiro, a "guerra" gera um sentimento constante de temor e angústia. Não há nada, no momento atual, pior do que esta "guerra" para o morador local. E as forças que controlam o Estado, dominadas pela lógica do combate a qualquer custo (para a população local), nada fazem para que esta realidade seja superada. Negri viu as marcas desse conflito na Maré. Mas viu mais do que isso. Viu também os diversos projetos do Centro de Estudos e Ações Sociais da Maré -

CEASM, voltados para ampliar, através de variadas linguagens, o tempo e o espaço sociais dos adolescentes e jovens locais: no Centro, formado por moradores e ex-moradores locais, trabalham 280 colaboradores, em geral estudantes universitários moradores da Maré. Eles desenvolvem 17 projetos, das mais variadas ordens. Negri viu também a alegria, a solidariedade das pessoas, a comida e a cerveja gelada do bar da Galega, as ruas cheias de vida e intensidade e a irreverência do povo. Negri, italiano, europeu, cidadão que vive da esperança, foi admirado na Maré, admirouse da Maré, sofreu pela existência da Maré, alegrou-se pela existência do povo da Maré, entrou na Maré e nela fez-se. A imensa maioria do povo da Maré não viu Negri, não conhece Negri, não leu nem lerá Negri. Mesmo assim, os que o viram se sentiram orgulhosos de recebê-lo em seu lugar, com ele brindaram, com ele beberam, em nome de todos, com fé que é possível uma humanidade fraterna, alegre e intensa, independente do lugar, do tempo, da idade e da experiência. Nesse encontro, Negri e Maré, celebrou-se a vitória da humanidade real e concreta, que sabe o valor da liberdade, da solidariedade e da esperança, pois tudo isso aprenderam na vida, na luta e na busca.

Obrigado Negri, pela visita; obrigado, companheiro, pela esperança e solidariedade, obrigado, irmão, por nos levar com você, por continuar conosco. Sinta-se

sempre em casa, na Maré, no mundo, pois este é o nosso lugar.

Acontecimento Negri 13 GLOBAL


“Não creio que exista algo como o Os psicanalistas deveriam desconsiderar a fala de Negri na polêmica palestra do Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise?

Jô Gondar

A vinda de Toni Negri ao Brasil em outubro de 2003 contou com a parceria de diversos movimentos, instituições e eventos. Um deles foi o II Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, no qual Negri foi um dos principais palestrantes. Mesmo que se leve em conta a importância cultural do movimento psicanalítico no Brasil e na Argentina – e não é para menos que o Rio de Janeiro tenha sido escolhido como sede do encontro – a presença de Negri entre os psicanalistas é, no mínimo, curiosa. GLOBAL 14 Acontecimento Negri


inconsciente” É verdade que a América Latina tornou-se hoje, no cenário da psicanálise mundial, um nicho de vitalidade, que certas instituições internacionais mostram-se muito interessadas em gerir e controlar. Há uma forte disponibilidade criativa entre os analistas brasileiros e argentinos, e muitos deles participam ativamente da vida cultural de seus países, demonstrando uma abertura para temas que extravasam o campo psi. É justamente este tipo de abertura que é proposta pelos Estados Gerais: uma rede que pretende interrogar a psicanálise em sua inserção no mundo, na política e na economia da vida. Mas, ainda que se leve em conta todos esses fatores, o encontro entre Negri e os psicanalistas não deixa de ser curioso, como foi dito e, de fato, produziu-se uma polêmica, tanto durante a sua palestra – “Subjetividade e política na atualidade” – quanto nas plenárias que se seguiram. Crítica à psicanálise? Negri jamais criticou a psicanálise, como Foucault, Deleuze e Guattari o fizeram: ele simplesmente não pensou nem escreveu sobre ela. O sujeito que lhe interessa, a multidão, passa ao largo dos problemas relativos ao inconsciente, tanto sob a forma proposta por Freud como aquela repensada por Deleuze e Guattari. “Não creio que exista algo como o inconsciente”, disse Negri aos psicanalistas e, mais provocativamente, “penso que nem mesmo tenho um”. Deveriam então os psicanalistas, por este motivo, desconsiderar a sua fala? Em primeiro lugar – mas não o mais importante – as poucas afirmações de Negri sobre a psicanálise, tanto nesta palestra como em seu Abecedário Biopolítico (no qual a letra “I” corresponde a Inconsciente) são conceitualmente bastante precisas. Pois o inconsciente de fato não existe, e ninguém é portador de um. Numa das entrevistas que compõem o seu Abecedário, Negri diz, com muita propriedade: “É preciso descobri-lo, e o problema é que quando o descobrimos ele não está mais lá (...) Ele está sempre em movimento, e não se pode defini-lo, a não ser agindo e falando; portanto, ele não existe (...). O problema é que haja necessidade de substancializá-lo”, aponta Negri em um dos seus livros. Poucos psicanalistas discordariam dessas afirmações. Poucos também se oporiam ao modo pelo qual Negri pensa a pulsão de morte: não se trata de um impulso para trás, na direção do

inorgânico; não se trata de um princípio, mas de um limite. Ao buscar expressar-se, o desejo encontra limites que permitem, paradoxalmente, a sua construção, limites que ele procura ultrapassar, constituindo um processo que pulsa sempre para frente. Em Negri, a leitura espinosista do desejo traz beleza e vigor conceitual à sua idéia de pulsão de morte. Nela, uma concepção arriscadamente biológica é transmutada em concepção política: para o desejo, nenhum retorno possível; os limites impulsionam a criação de mundos. Mas este não é o ponto principal. Independentemente do que possa pensar Negri a respeito do inconsciente ou das pulsões, o que importa são as contribuições que ele é capaz de trazer para a psicanálise na esfera da política, para além de qualquer soberania, de qualquer Estado, de qualquer transcendência. Seriam contribuições externas ao campo da clínica? Não, se consideramos que o trabalho com o desejo é, inevitavelmente, um trabalho político: trata-se sempre do quanto e de como o desejo é capaz de se manifestar diante de imperativos pretensamente universais, totalizantes. As contribuições de Negri à psicanálise concernem ao modo de balizar o desejo. São contribuições de método. Os psicanalistas podem aprender com Negri que é possível se pensar, e pensar com rigor, sem fazer apelo a instâncias universais, falocêntricas, transcendentes. Em tempos nos quais as subjetividades se organizam para além do eixo Édipo-castração, são contribuições oportunas. Como pode plasmar-se um sujeito singular, exercendo sua potência de ser, amar, transformar e criar? Estaríamos destinados a lutar pelo poder – pelo falo – e a ser, deste modo, escravizados por aquilo que se encontra para além de nós mesmos ou de nosso próprio mundo? A proposta de Negri segue na contramão de La Boétie: os homens não lutam pela sua servidão como se fosse pela sua liberdade; é sempre pela liberdade – e não pelo poder ou pelo falo – que se luta, por mais estranhos que pareçam os seus caminhos. A liberdade, a potência de singularização, é imanente e primeira em toda constituição subjetiva. Podemos pensar que os sintomas psíquicos também são formas de exercê-la. Com sofrimento e de maneira insuficiente, sem dúvida. Mas são pistas que podem ser seguidas, na própria via tortuosa onde se exercem, para que um sujeito possa expandir seus modos de ser. Acontecimento Negri 15 GLOBAL


Negri e os Estados Gerais da

Psi canálise

Presença do filósofo italiano estimulou na psicanálise o repensar sobre a relação

o de multidão, em contrapartida, enfatizava de maneira eloqüente a dimensão de singularidade que caracterizava as novas modalidades de agrupamento hoje existentes.

entre vida e política na formação do homem Joel Birman P A intenção de convidar Antonio Negri para participar, como conferencista, do “II Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise” que se realizou no Rio de Janeiro no ano passado, foi estabelecida com muita antecedência. O desejo de tê-lo entre nós tomou corpo desde 2001, apesar da impossibilidade inicial de realizá-lo imediatamente, em decorrência do seu impedimento legal em deixar a Itália. Por que Negri? Porque enunciava uma filosofia política original e instigante, fundada nos horizontes entreabertos pelo mundo pós-moderno, na qual analisava rigorosamente as contradições e paradoxos presentes no processo de globalização. Empreendeu para isso uma crítica vigorosa à tradição marxista e leninista, instrumentando-se com os filosofemas de Spinoza, Deleuze e Foucault. Incorporou novos conceitos para pensar a atualidade, tais como biopoder e formas de subjetivação (Foucault), assim como passou a caracterizar a sociedade contemporânea como sendo marcada pelo controle (Deleuze) e não mais pela disciplina (Foucault). O resultado disso tudo foi a construção do conceito de império para a caracterização do poder na atualidade – indicando então os limites teóricos do conceito leninista de imperialismo – assim como a positivação do conceito de multidão em oposição ao de massa, que entreabria outras perspectivas para que se pudesse melhor interpretar os novos movimentos sociais que se disseminaram com a mundialização. Isso porque, se o conceito de massa, desde o século XIX, supunha sempre um conjunto homogêneo de individualidades, GLOBAL 16 Acontecimento Negri

Exigência à psicanálise Estas novas proposições teóricas estavam já presentes, para mim, desde a leitura dos livros Exílio, O poder constituinte e Império, que me deslumbraram. Foi justamente baseado nessas leituras que pensei em convidá-lo para os “Estados Gerais da Psicanálise”, que tinha como problemática central as relações da psicanálise com a política, apesar da ausência, no trabalho teórico de Negri, de referência à psicanálise. Isso não me parecia importante, já que acreditava que Negri certamente nos traria contribuições valiosas para repensar as relações entre subjetividade e política na contemporaneidade. Caberia então aos psicanalistas tecer as ligações entre o que Negri poderia nos trazer e o que o arquivo psicanalítico tinha já forjado na sua tradição. Nesta perspectiva, o discurso teórico de Negri poderia funcionar como um pensamento do fora (Foucault) que fizesse trabalhar o discurso psicanalítico. Contudo, o convite não pôde ser concretizado logo de início, dada a prisão domiciliar de Negri, embora o seu pensamento tenha sido considerado uma referência emblemática para o movimento que já se organizava. Apenas em maio de 2003 foi possível viabilizar o convite e dar forma definitiva ao nosso desejo, com a suspensão da prisão domiciliar. A mediação de Giuseppe Cocco – decorrência de uma longa relação de amizade com Negri – foi fundamental; sem ela, não teria sido possível a vinda deste ao Brasil, naquele momento. Estabeleceu-se então um protocolo mínimo de objetivos entre os “Estados Gerais da Psicanálise” e a “Universidade Nômade”, para podermos organizar a vinda de Negri. O acordo firmado foi proveitoso para ambas as partes, pois permitiu, por um lado, que a “Universidade Nômade” se disseminasse bastante com as suas propostas política

e cultural – não apenas no Brasil como também na Argentina – e, por outro, que os “Estados Gerais da Psicanálise” pudessem contar com a participação decisiva de Negri para pensar nas relações entre subjetividade e política hoje. Escuta A conferência de Negri foi a mais concorrida dos “Estados Gerais da Psicanálise”, sem qualquer dúvida. Foi assistida por quase 800 pessoas, muitas das quais vieram apenas para escutá-lo e que não participaram das demais atividades do encontro. O que, para nós, organizadores, foi também importante, já que possibilitou a abertura de nosso seminário à participação de outros profissionais não psicanalistas, que era um de nossos objetivos. Com isso, Negri trouxe-nos na sua conferência uma palavra pujante e uma reflexão rica sobre como superou teoricamente os impasses que estavam colocados na cena política dos anos 70, constituindo então as bases para as suas invenções conceituais. Enunciou um efetivo discurso do fora, para que a comunidade psicanalítica pudesse pensar nas intrincadas relações da subjetividade com a política na atualidade. No que concerne a esse último tópico, a marca genealógica do seu discurso foi o que mais se destacou: Negri foi além de apenas indicar alguns modelos anteriores que pensaram essas relações e os obstáculos com que se chocaram. Também a tradição em que se inscreviam teve que ser revirada de pontacabeça, para que conceitos como o da multidão permeada por singularidades, pudessem ser concebidos. O que se espera agora é a continuidade desta fecunda colaboração que se estabeleceu entre os “Estados Gerais da Psicanálise” e a “Universidade Nômade”, pois nossos propósitos estratégicos são similares e não podem ser reduzidos a um simples encontro pontual.


comunismo da imanência Apresentação da conferência de Toni Negri no TUCA de São Paulo, em outubro de 2003 Peter Pál Pelbart Temos a imensa alegria de receber entre nós o filósofo e militante italiano Antonio Negri. Essa é a sua primeira viagem transcontinental, depois de décadas de reclusão política, passadas ora no cárcere, ora no exílio. Estamos muito honrados que ele tenha escolhido o Brasil como um ponto de partida nessa nova condição de cidadão livre. É verdade que Negri não esperou as vicissitudes da justiça italiana para tornar-se um homem livre. Não está ao alcance dos magistrados, nem da polícia, nem dos Estados, outorgar ou seqüestrar a liberdade, no sentido fortíssimo do termo. Mesmo por trás das grades, ou nas agruras do desterro, esse pensador exerceu a extrema liberdade de enfrentar o seu tempo com as armas que se estão gestando no cotidiano dos homens em luta, nos seus corpos cansados e nas suas almas combalidas, no seu trabalho vivo e na sua riqueza multitudinária. Negri não se cansa de repetir que é preciso repensar nossas categorias políticas a partir deste mundo novo que vem vindo, da desmedida que lhe é própria, do vazio que nele se abre. Nesta dolorosa passagem para o pós-moderno, é preciso reinventar os conceitos e as lutas. Desfeitas as promessas utópicas e a ilusão das margens que nos poderiam salvar,

um novo trabalho de escavação recomeça, a partir de um comum já presente, mas sempre por construir, de uma comunidade já dada, mas sempre por vir. É sob o signo de uma tal paixão pelo comum que foi proposto o tema desta mesa: o comunismo da imanência. Eu queria agradecer imensamente a presença aqui da professora Marilena Chauí, que desde o primeiro instante acolheu com entusiasmo a idéia de um encontro público com Toni Negri. Dada uma viagem a Cuba já agendada por ela em datas contíguas, tivemos que competir com Fidel Castro para tê-la entre nós. Pela sua trajetória de resistência e engajamento na história política deste país, por sua produção filosófica ímpar, além de uma interlocução e amizade já antigas com Negri, que passa também pela freqüentação em Espinosa, não hesitamos em momento algum que era ela a pessoa certa para esta conversa aberta. Eu quero apresentar também o responsável maior

pela vinda de Negri ao Brasil, o professor ítalo-carioca Giuseppe Cocco que, como todo italiano remanescente da extrema esquerda, tem um codinome meio beckettiano, o dele é Beppo. O Beppo é uma espécie de embaixador dessa movência negriana no Brasil, amigo pessoal e interlocutor ativo do próprio, e que anima uma rede sobre a qual logo mais ele nos dirá algumas palavras. Ele também é um dos responsáveis pela edição brasileira da revista Global, saída dos movimentos mundiais de antiglobalização. Para finalizar, em nome dos organizadores deste evento, a Universidade Nômade, o Núcleo de Estudos da Subjetividade do Programa de Estudos PósGraduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, o Programa de Estudos PósGraduados em Filosofia da PUC-SP, quero agradecer aos vários amigos e também aos alunos da pós-graduação, que se empenharam na viabilização e na divulgação deste encontro, que contou com o apoio generoso do recémfundado e bem-vindo Instituto de Políticas Relacionais, com a parceria dos Estados Gerais da Psicanálise, com a eficiente logística da Assessoria de Relações Internacionais, bem como com o respaldo da Reitoria da PUC e do TUCA. Somos gratos à presença de todos os presentes, e damos início a esta sessão. Acontecimento Negri 17 GLOBAL


Negri, Stédile, uma conversa Silvio Mieli

O encontro entre o filósofo Toni Negri e o economista João Pedro Stédile, membro da Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – o MST – colocou frente a frente dois "desobedientes", cada um a seu modo. Para além das origens vênetas – Negri nasceu em Pádua e Stédile é um gaúcho descendente de pequenos agricultores do vêneto e do trentino – ambos têm em comum o fato de acompanharem de perto os movimentos sociais globais e de serem demonizados pelas altas esferas políticas e midiáticas de seus países de origem. Negri e Stédile encontraram-se pela primeira vez para trocar experiências e iluminar temas que vão desde o futuro das lutas sociais, passando pela questão do trabalho imaterial, até a pertinência de um projeto de soberania nacional. O que segue abaixo são os trechos mais importantes desse diálogo, que ocorreu na sede da Secretaria Nacional do MST, em São Paulo, na manhã de 17 de outubro de 2003. STÉDILE – Nós do MST gostaríamos muito de saber a opinião do professor sobre os dilemas da esquerda e como o senhor vê os movimentos sociais em nível internacional. Mas também gostaríamos da sua opinião sobre a situação brasileira. NEGRI – Conheci Lula muitos anos atrás. O que me parecia fundamental no movimento de Lula era a capacidade de recolher e de mediar a esquerda. Era a primeira vez que se via, dentro de sistemas complexos, a possibilidade de fazer caminhar os movimentos no interior de uma luta política constitucionalmente legal. O grande interesse que o movimento de Lula suscitou era a manutenção de duas frentes: o PT era um partido que conseguia ser governo e ao mesmo tempo era um partido de luta. E isso é uma coisa muito difícil. Nos países europeus, os partidos comunistas tinham praticamente perdido esta característica. Eu não sei se ainda podemos dizer de Lula a mesma coisa. Isso vocês é que deveriam me dizer…

GLOBAL 18 Acontecimento Negri

STÉDILE – Não nos provoque, porque não gostamos de falar mal de primos… (Risos). NEGRI – Lula representava uma nova forma de partido. Era um tema muito importante para nós europeus. Porque se existe um problema fundamental na Europa é aquele de conseguir articular as formas de pressão, no interior das estruturas de governo, com os movimentos. E essa ligação não pode mais se dar entre o sindicato e o partido. E aqui emerge algo novo. Os movimentos começam a entrar nos municípios mantendo uma característica independente nas suas ações. Em Roma, por exemplo, trava-se uma luta pela moradia, que é sustentada pelas 18 sub-prefeituras, sendo que três delas estão nas mãos do movimento anti-globalização. Portanto, dentro da máquina administrativa, os movimentos não se confundem com o poder, mas utilizam-se de sua potência. STÉDILE – E o movimento operário, parece meio isolado… NEGRI – O movimento operário, pelo menos na Itália, está aceitando as privatizações. Na Europa, há dois problemas importantes para os movimentos. O primeiro é a relação entre movimentos e estruturas de governo, ou seja, a construção de um "forte reformismo por baixo". O segundo tem a ver com a "temática do comum" – que emerge a partir da grande luta do inverno de 1995 sobre as questões da previdência, da gestão dos transportes públicos em Paris – que se tornou estratégica para a nova força de trabalho. É preciso considerar as transformações do trabalho, que se torna cada vez mais imaterial. Mesmo no setor agrícola encontramos cada vez mais a informatização de uma série de serviços. O problema é o de mostrar como a transformação do trabalho, à medida que se desmaterializa, não se torna abstrato, mas capaz de apreender a qualidade. Costumamos dizer que o trabalho se torna feminino, torna-se "mulher", porque


precisa da união entre a esfera intelectual e a afetiva. Precisa do cuidado, no sentido de cuidar, mesmo nos serviços informáticos. Não se trata apenas de serviços quantitativos, já que você deve entender o que pensa o interlocutor, que coopera com você. Há um elemento afetivo, fino, sutil, que intervém na constituição do trabalho intelectual. A mesma coisa vale no trabalho agrícola, que é uma qualificação da relação com a natureza e da transformação da natureza. Trata-se de um devir agrícola, campesino, do trabalho intelectual. STÉDILE – Mas essas áreas de serviços e essa área intelectual casamse necessariamente como uma base de trabalho produtivo. O que acho polêmica é a questão da retomada do movimento de massas e a relação entre o projeto político-ideológico e a esfera do trabalho. NEGRI – No caso europeu, estamos diante de uma política capitalista de destruição do welfare apoiada pela esquerda. É uma política de maciça mobilidade da força de trabalho, que se torna móvel no tempo e flexível no espaço. Aqui o problema que se coloca para o movimento é o de partir da força de trabalho imigrada e intelectual e recolocá-la no centro das lutas pelo trabalho. Desde os anos 1970, começaram a destruir as fábricas e, veja bem, ou a imigração chega ou as produções são levadas para fora. Na nossa região do Vêneto, o último congresso da Associação dos Industriais de Treviso aconteceu em Timisoara, na Romênia, porque há mais fábricas na Romênia inscritas na Câmara de Comércio de Treviso do que na própria cidade de Treviso, sede da Benetton, dentre outras empresas. Em Timisoara, o custo do trabalho é um quinto do de Treviso. O problema é como se faz para juntar essas singularidades. Como organizar os imigrantes, como organizar os trabalhadores precários? Hoje em dia, mesmo do ponto de vista quantitativo, a força de trabalho móvel e precária ultrapassa a força de trabalho empregada com contrato formal (a tempo indeterminado ou determinado).

STÉDILE – Hoje o movimento operário está fragilizado numérica e ideologicamente. Então, qual o marco ideológico que vai dar sustentação a essa unidade, a essa pluralidade, que acumule para um projeto político revolucionário? NEGRI – Essa é a questão! Se todos raciocinassem nesses termos… Só podemos avançar por meio de uma nova concepção do trabalho. Não existe mais uma classe operária que tenha a capacidade de dirigir o movimento. Isso está comprovado. Temos que parar de fazer de conta que ela existe. Hoje em dia, você tem um novo proletariado. Não sei como chamá-lo! Nós utilizamos o termo "multidão". Uma multidão de singularidades, de coisas diferentes que trabalham com a cabeça e com as mãos, com o afeto, que trabalham em movimento, imigrando, que trabalham de todas essas maneiras. Esse é o único marco ideológico que temos que colocar para a reconstrução de um movimento de esquerda. Só que, ao fazer isso, você tem diante de si o sindicato que te chama de fascista, se você não concorda com a reivindicação corporativa mais nojenta. STÉDILE – O senhor considera um atraso defendermos a soberania nacional? NEGRI – O Estado soberano que conhecemos no início do século vinte não existe mais. Falar em restabelecer as condições de um Estado-Nação significa que queremos estar presentes na ONU, no FMI e ter uma correlação de forças diante desses organismos. É claro que a Europa está fazendo isto. O Brasil pode conquistar isso na América Latina e no Cone Sul. Sem o que a soberania nacional corre o risco de desencadear elementos nacionalistas. E eu não gosto nada disso. Os movimentos contra a guerra no Iraque, por exemplo, superaram as soberanias nacionais. Foi exercida uma pressão também sobre os Estados, mas a pressão foi feita em nível global, como força global. STEDILE – Atualmente o professor participa de alguma corrente política? NEGRI – Lembre-se que só desde 25 de abril de 2003 estou livre da prisão domiciliar, portanto não tive muito tempo. Mas estou ligado aos chamados "desobedientes", companheiros do movimento oriundos de Pádua e Veneza, para os quais escrevo artigos, como os da revista Global. No passado fui muito ligado a partidos e a grupos. Tenho 70 anos, acho que mereço umas férias.

Acontecimento Negri 19 GLOBAL


Ericson

Pires,

Daniel

Castanheira

(Grupo

Hapax)

A segunda série é sobre o Definamos três séries de conceitos: A primeira se desenvolve a partir do conceito de multidão: multidão, biopolítica, potência e singularidade. A segunda série desenvolve o conceito de trabalho: trabalho, afeto, cérebro e lutas. A terceira é aquela da pobreza: pobreza, amor, eternidade e evento.

com

To n i

Negri

na

trabalho

O trabalho é sempre produção mas é também atividade social total. O trabalho ocupa uma sociedade, faz esses buracos na montanha, acrescenta as luzes e os carros para atravessá-los. O trabalho é o fato que consigamos colocar-nos em relação uns com os outros, é linguagem e capacidade de expressão. É a música e a dignidade que temos.

multidão

É a chuva que chove por toda parte.

NEGR A primeira série diz respeito à ou seja, a este grande enxame, esse grande movimento de

As atividades são átomos que caem sobre o mundo, o trabalho é a produção, o enriquecimento do mundo.

singularidades.

A multidão não é fechada em si mesma, é um abrir-se, um enxame de abelhas, um coletivo de formigas, de cupins, uma coisa que possui em si um movimento unívoco mas não único, que ataca e se difunde.

É a coisa que tem dificuldade para viver e para morrer. Nascer, viver, morrer, é isso (ecco)!

Depois do trabalho, temos o

Então, multidão e singularidade: tudo isso se refere à

biopolítica

,

ou seja, à vida, ao conjunto de todas as coisas, coisas que compõem as redes da vida e das relações…

éa

potência

que atravessa,

é o fundamento filosófico, ontológico, é o ser que está por trás, que transforma tudo, é a potência que se aproxima e desloca tudo. (Sobre esse assunto, leiam Spinoza)

cérebro,

forma de trabalho cada vez mais importante, pois cada vez mais com o cérebro trabalhamos, embora continuemos a trabalhar com as mãos, é sobretudo com o cérebro que construímos linguagens…

Este é um bom ambiente musical, porque aqui tem trabalho, os átomos que caem e, em seguida, temos o clinamen, o evento que acontece, que corta, que constrói a grande luz … Falamos muito, estou sem voz.

Falamos do trabalho, do cérebro, dos

afetos

da capacidade das relações se estabelecerem, do devir mulher do trabalho, do devir afetuoso nos serviços do trabalho.

GLOBAL 20 Acontecimento Negri

,


ida

ao

aeroporto,

sob

chuva

forte,

1°.

O

Podemos então começar a falar das

lutas.

São as lutas que movem a história. Somente as lutas constroem os sujeitos, as instituições e o desenvolvimento em geral. As lutas dão o tempo da história que atravessam. As lutas não devem ser declaradas por uma autoridade, seja ela partido, sindicato ou Estado.

de

novembro

amor

de

2003

às

20hs

é como a pobreza.

Enquanto a pobreza tende a subir ao alto, a fazer conquistas, o amor é extensivo e se estende, é transversal, começa por juntar duas pessoas, depois quatro, oito, para, em seguida, multiplicar as relações de afeto e de alegria. O amor constrói o mundo, o constrói como sociedade de homens pobres que possuem o desejo de conquistar a

IANA Elas se movem dentro do crescimento e da constituição das classes sociais e se movem dentro dos cérebros dos homens, a partir da indignação, do sofrimento e da exploração.

As lutas são, a um só tempo, reação e construção, que caminham adiante e juntam o mundo, tornando-o sempre mais difícil e, ao mesmo tempo, mais belo.

O amor e a

pobreza

são elementos absolutamente fundamentais. É através da pobreza que nasce o desejo. É quando nos falta algo que desejamos algo. Mas esta é a definição platônica e nós não somos platônicos, somos materialistas.

eternidade

,

de conquistar o prazer e a alegria e a unicidade deste momento de sua existência. A eternidade não tem nada a ver com a imortalidade.

É a intensidade da alegria, do amor.

A eternidade é um momento absoluto que não pode ser repetido. Não devemos repetir, mas multiplicar os momentos de alegria e absoluto.

O

evento

, o acontecimento e a eternidade

são a mesma coisa, são o encontro com o mundo que o derruba e o transforma. Espero que vocês possam cantar tudo isso!

Não se trata de perguntar o que nos falta, mas, de construir o que não temos. A pobreza é simplesmente uma falta, é uma tensão positiva, um dispositivo e, quando não anula a possibilidade de construir tudo, menos se tem e mais se é livre e mais se tem a capacidade de inventar o mundo.

Acontecimento Negri 21 GLOBAL


Seção 1 GLOB(A.L.)


Olhos noutra Europa Tatiana Roque

Data:Tue, 10 Feb 2004 01:09:43 Assunto: bon dia/ bon noite amor meu Para voce e noite, pra meu, dia, con sol frio pero bello ho commenco da filmar, fato un tour con el metro del centro de tokyo e vado filmar de piu para la installatione a week or abit more I send you some cd's did you get them yet. maybe when you will be back from amazonia. come muito asai para me, acqui avevo bon sushi, e la cominda e sempre bon aqui. vedo muitos cineastes e vado veder un novo espaco para arte contemporaneo (?) el meu adorabile mulato ti amo et di da milionnes beijos para la noite. Data: Wed, 11 Feb 2004 13:16:27 Assunto: tokyo amazonia Amor meu, come va voce en amazonia, aqui un po frio pero bella luce, sole prepara la conferneza para osaka sabado e retorna la seconda feira para tokyo e paris. pensa muitos da voce que adoro ti amo Data: Fri, 13 Feb 2004 01:53:42 Assunto: amor em amazonia que bon de saber que voce e contento oba, oba, vamos en amazonia en luglio o augusta, caramba te amo, vo amanaha para osaka, en retorno en paris la seconda feira. pero no mulato em paris saudade, vodrai esser en el tue bracio dormando e sensa fare nada, la cabezza sul corpo teu oba ti amo beijos eu sou imoral/je suis immoral/I`m immoral/soy inmoral/ich bin unmoralisch/sono immorale de Edson Barrus e Yann Beauvais GLOBAL. 22 Conex천es Globais


Fórum Social Europeu deixa de discutir os novos rumos do Velho samos corrigir urgentemente – que, à enorme capacidade de mobilização do Continente, movimento, não corresponde uma igual capacidade de articular uma plataforcomo as ma que consiga propor novas reivindirelações afetivas, cações, em nível continental ou global; e será impossível encontrar saídas para os problemas que todos conhepara manter cemos partindo de um discurso reatio discurso ligado vo de tipo identitário ou nacionalista. Como afirma Bifo em um artigo publicaa interesses do no número 14 da revista Multitudes (www.multitudes.samizdat.net), a imeconômicos possibilidade de se afirmar uma iden-

Escolhi apresentar alguns argumentos que circularam à margem do Fórum Social Europeu, pois nas discussões oficiais não havia grande espaço para a concepção que considero a mais interessante e que enxerga a Europa como horizonte positivo capaz de afirmar, não uma soberania de segunda ordem dentro da globalização, mas uma outra globalização possível. Surpreendeu-me perceber, no “movimento altermondialista”, a mesma incapacidade dos dirigentes nacionais europeus: pensar politicamente a Europa como um espaço pós-nacionalista e pós-estatal. Esta deficiência acaba dando espaço demais aos interesses puramente econômicos e à reprodução de clichês como os que constam no documento de conclusão do Fórum: “Não ao neoliberalismo”! Acaba parecendo – e este é um problema que preci-

tidade cultural européia deve-se ao esgotamento do paradigma conceitual sobre o qual esta identidade se constitui: o paradigma do humanismo e do iluminismo. Estes argumentos são uma resposta ao texto assinado por Habermas e Derrida que, mesmo bemintencionado, propõe, como alternativa ao neoliberalismo, uma idéia de Europa que já nasce fracassada, pois se baseia por demais em uma identidade cultural que já faz parte do passado. De nada adianta opor um nacionalismo europeu ao liberalismo nacionalista que dita a face da hegemonia americana no processo de “globalização”. Sobretudo porque a vocação de algo como uma “Europa”, de verdade, depende de uma premissa fortemente pós-nacionalista, que possui, portanto, todas as condições para servir como experiência de uma real globalização, por baixo, que não precise de aspas. Citando novamente Bifo: “a Europa não é uma identidade, mas um devir no qual estão em jogo enormes forças sociais e econômicas às quais falta um horizonte positivo”. O que permitiria então a construção de uma nova plataforma para o movimento altermondialista na Europa? Talvez encarar o horizonte europeu como espaço de onde se deve partir em direção a lutas globais, uma Europa política experimentada como um terreno fértil para se construir novas reivindicações de caráter global ou, pelo menos, continental. Para dar um exemplo, citamos uma proposta que poderia se contrapor à visão secu-

ritária e nacionalista de muitos governos de países europeus. Esta tendência, que testemunha a incapacidade de todos eles em regular em seu proveito o fluxo de capitais, traduz-se em uma regulação reativa do fluxo de pessoas. Como alternativa a esta onda securitária, no mesmo número de Multitudes, Rosi Braidotti menciona uma proposta radical: os cidadãos europeus são aqueles que vivem ou trabalham na Europa, e se alguém vive ou trabalha na Europa apenas por um certo período de tempo, que tenha uma cidadania temporária. Deste modo, a nacionalidade não seria uma questão de espaço – ligada ao território em que nascemos –, mas uma questão de tempo – ligada ao lugar no qual, neste momento, produzimos, trocamos e estabelecemos relações afetivas. Esta proposta, eu diria, teria o interessante efeito colateral de reconhecer que as “relações afetivas” (como amizade, sexo, companheirismo, cooperação) são tão importantes quanto o casamento, e podem ter o mesmo valor social. Isso mostra o potencial de uma luta constituinte para substituir clichês mortos por necessidades vivas. Quanto ao Brasil, poderíamos dizer que enfrentamos, em relação ao governo Lula, dilemas que possuem a mesma natureza destes observados no Fórum Europeu: relutamos em nos convencer que o único espaço a ser investido, de forma positiva e política, é o espaço global. E global não apenas em termos geopolíticos, mas também em termos subjetivos e teóricos. Só para dar um exemplo de formulação necessariamente global, citamos o problema dos transgênicos, que foi, durante o Fórum, um dos mais questionados na avaliação do governo brasileiro. Como pensar o nosso dilema com os transgênicos sem falar da proteção européia (e estávamos na França!) à agricultura, proteção reivindicada por grande parte dos próprios altermondialistas? Colocar a questão já é um problema global. Conexões Globais 23 GLOBAL


O poder constituinte na Pedro Cláudio Cunca Bocayuva As manifestações e os enfrentamentos contra o governo, por parte de indígenas e camponeses – maioria da população –, somados aos movimentos de mineiros e trabalhadores informais, de professores e estudantes e com as adesões de setores da polícia e da classe média, são, no seu conjunto, mais uma manifestação do caráter ininterrupto e do estado de crise permanente que vem derrubando os governos sulamericanos. Desde o Brasil de Collor até o Peru de Fujimori, ou na Argentina, com a sucessiva queda de governos, a América Latina se coloca numa crise orgânica permanente da forma do Estado periférico. O estado permanente de revolta da multidão demonstra a impossibilidade de manter o binômio governabilidade e reformas liberalizantes. Não existe uma esfera pública abstrata que possa sobreviver à crise constitucional que sacode os capitalismos periféricos, quando estes já fazem parte de um mecanismo de homogeneização global insustentável.

A revolta popular na Bolívia no fim de 2003 mostra que não é possível a manutenção de formas autoritárias e oligárquicas, sem repensar as bases materiais e imateriais da produção de riqueza.

Do que sou feito de Salgueiro Dias. Bambú, terra adubada e sementes orgânicas, 2003. GLOBAL. 24 Conexões Globais

O povo boliviano realizou uma rebelião cívico-política em outubro de 2003 que derrubou o governo entreguista e sanguinário de Gonzalo Sánchez de Lozada. Os enfrentamentos que ocorreram em todas as cidades paralisaram as atividades no país mais pobre da América do Sul, onde, através de uma greve geral, vimos a força social ativa de novos e velhos sujeitos políticos que representam as multidões mobilizadas contra as políticas da via única do capitalismo global.

Esgotamento A Bolívia indica os limites de um modelo que se apoiava em padrões de submetimento geopolítico, destruição do capitalismo de Estado e perdão da dívida, modelo que insiste em manter formas autoritárias e oligárquicas liberais sem repensar as bases materiais e imateriais da produção da riqueza. A lógica imperial e a base material do fluxo e das redes da economia global destroem o Estado dependente periférico. O conflito social multitudinário tornase expressão antagônica imediata. Contudo, o poder constituinte liberado e a expressão democrática de manifestação das multidões não alcançam uma forma política material capaz de produzir um quadro político que possa varrer de vez a contra-revolução liberal permanente, questão que exige um marco mais continental e federativo, que se projeta como um desafio para o conjunto do subcontinente sul-americano. Como desdobramento de uma luta de longo prazo contra o modelo neoliberal estabelecido desde 1985 na Bolívia, as


BOLÍVIA lutas de 2003 tiveram, na explosão social de 12 e 13 de fevereiro, o seu ensaio geral. No início do ano a revolta popular explodiu em El Alto; a luta em torno da água em Cochabamba; e a greve dos militares, em vários pontos do país, mobilizaram o conjunto das forças sociais do trabalho, como uma classe-multidão descontente com as imposições do pacote tributário, o impuestazo, aplicado por pressão do Fundo Monetário Internacional para fazer frente ao déficit público. O imposto sobre os salários conjugouse com o desemprego, com a precarização do trabalho, com a redução do gasto público. A corrupção e o resultado perverso das privatizações combinaram-se com os resultados nefastos e os desmandos na luta contra o cultivo da folha de coca. Os esforços no sentido de criminalizar a luta da multidão, os assassinatos realizados pelas forças repressivas e o uso de francoatiradores não conseguiram bloquear o movimento que produziu a primeira derrota de Lozada no início de 2003. A mobilização de outubro se deu quando o governo boliviano lançou mão de um subterfúgio na questão do favorecimento das companhias transnacionais do complexo petrolífero, por um caminho simbolicamente problemático: o do gasoduto via Chile, para exportação em direção à área do Nafta. A revolta ampliou suas bases, uma vez que a desnacionalização, a redução dos tributos e a sonegação fiscal já faziam parte de uma política espoliativa. Esta política se agravou com a paradoxal entrada de capitais especulativos e estava relacionada com a formação de uma nova dívida pública. Mais do que uma revolta nacional popular, tivemos um movimento complexo de jovens da cidade e do campo, de trabalhadores, de mulheres, de indígenas, de professores e mesmo de policiais. Movimento que se ampliou num país onde as velhas elites políticas precisam ceder espaço para um novo poder constituinte que nasce para estabelecer, e mesmo restabelecer as condições para um Estado Social de Direitos, e para repensar os termos da inserção internacional da Bolívia. As ameaças de recurso aos boinas verdes bolivianos e uma eventual intervenção dos seus assessores mili-

tares norte-americanos – atitude pensada pela direita política mas não realizada por estar fora do cálculo dos custos sistêmicos e por força das dificuldades da administração Bush – só teria tornado mais sangrenta a revolta legítima do povo. A Bolívia não lhes parecia valer o preço da Colômbia. Preferiram deixar o processo correr seu curso como no Peru, quando da queda de Fujimori. O vazio político institucional estava dado num contexto onde o quadro de retomada da normalidade ou de reconhecimento e abertura para uma recomposição temporária de forças só podia ser realizado através do apoio às decisões já tomadas pela oposição e por todos os partidos que recusaram Gonzalo Sánchez Lozada, levando à sua derrubada.

“Os governantes latinoamericanos, em especial o governo Lula, devem escutar a voz do movimento das multidões sob pena de entrarmos num quadro de retrocessos em nomede uma institucionalidade esvaziada de democracia”. A lição dos limites da rebelião espontânea de fevereiro foi aprendida. Uma coordenação de organizações indígenas, sindicais e camponesas assumiu a exigência da imediata renúncia de Sánchez Lozada. Em El Alto e La Paz houve um esforço de coordenação das comunidades para garantir a organização social e cuidar das crianças e dos feridos. As mobilizações e marchas em direção à capital encontraram obstáculos, mas as mulheres indígenas, vestidas com suas roupas de festas, apoiadas pelos jovens e pelos vários movimentos organizados, exigiram a saída de um governo que rompeu com as bases materiais, culturais e jurídicas que mantinham as formas institucionais da nação. Do ponto de vista internacional a situação exigiu que o governo Lula e demais países considerassem a complexidade do processo do ponto de vista da autonomia democrática do povo boliviano que, através de seu poder constituinte, se manifestou nas mais diversas formas de luta. A saída de Gonzalo Sánchez Lozada do poder

é o fim de uma ditadura. Falar da aplicação da Cláusula Democrática (OEA) é defender os cidadãos bolivianos contra os desmandos, não apenas do tirano que caiu, mas da forma institucional liberal-oligárquica e do programa liberalizante que leva ao abismo. Jogo conservador O governo de Goni, ou El Gringo, como era denominado o presidente boliviano, esteve sustentado pela coalizão dos interesses espúrios de oligarcas, de setores militares conservadores e pela relação de forças políticas aliadas ao capital transnacional. O peso dos desmandos do regime impopular levou a um processo insurrecional, de caráter manifestamente democrático, como expressão do desejo das grandes maiorias da população boliviana. Não existe nenhuma solução viável que possa manter artificialmente regimes como o de Gonzalo Sánchez Lozada no poder. O novo poder constituinte da multidão e a expressão democrática ativa de sua ação deve abrir novas possibilidades de criação histórica. A repetição de políticas como as da Bolívia só podem resultar num quadro de violência generalizada. Os governantes latino-americanos, em especial o governo Lula, devem escutar a voz do movimento das multidões sob pena de entrarmos num quadro de retrocessos em nome de uma institucionalidade esvaziada de democracia. A crise dos regimes democráticos e a fragilidade dos modelos representativos na região andina conectam-se, na ordem direta do grau de intervenção e subordinação a uma forma que combina a geopolítica norte-americana com estratégias de nova dependência conduzida pelo capital especulativo – e pelas empresas interessadas nos recursos energéticos dos países dos Andes. O fracasso das políticas de integração pela abertura dos mercados e da estratégia de substituição do cultivo da coca exige uma participação direta e ativa dos trabalhadores, camponeses e indígenas. Isto levaria a uma construção prática de alternativas de desenvolvimento com modos de integração continental baseados na prioridade dos direitos sociais, na cooperação produtiva do trabalho e na sustentabilidade sócio-ambiental. Conexões Globais 25 GLOBAL


Há uma campanha de alguns setores da sociedade argentina pedindo ao presidente Kirchner rigor contra os ‘piqueteros’

Entre a velha e a nova esquerda Horacio Tarcus Com a explosão dos movimentos de piqueteros, assembléias de bairros, fábricas recuperadas, coletivos de artistas e grupos comprometidos com a resistência global, a Argentina assistiu nestes últimos anos à emergência de uma nova esquerda. Essa novidade não assumiu a forma de novos partidos políticos ou doutrinas: trata-se de uma nova esquerda em ato, que pratica e experimenta espontaneamente novas formas de gestão coletiva e de ação política. Mais interessada nas transformações sociais do que na tomada do poder, nas redes horizontais do que nas hierarquias partidárias, na ação direta do que na democracia representativa, na elaboração coletiva em assembléias do que na liderança dos políticos profissionais, essa esquerda emerge através de ensaios e erros. Hoje é só uma promessa, o que não é pouco numa Argentina que vem da década menemista. A velha esquerda (comunista, trotskista, maoísta, guevarista, populista...), que até dezembro de 2001 estava órfã de sujeitos sociais, lançou-se precipitadamente sobre os novos movimentos. Entretanto, essas formas horizontais, autogestivas, reticuladas e autônomas estão nas antípodas da sua concepção instrumental do poder e da política. A velha esquerda procurou, por um lado, legitimar-se socialmente dentro desses novos movimentos e, por outro, controlá-los para levá-los pelo “bom caminho” do programa partidário correto e da tomada do poder. Nas últimas semanas assistimos a uma intensa campanha na imprensa, GLOBAL 26 Conexões Globais

liderada pelo jornal liberal-conservador La Nación e pelo empresariado “nacional”, pedindo ao novo governo de Kirchner “mão dura” contra os cortes de ruas praticados pelos piqueteros. Por que? Porque os piqueteros, segundo o jornal, infiltrados por correntes maoístas, trotskistas e putchistas, procuram provocar um enfrentamento direto com o Estado (La Nación, 30/11/2003). Na verdade, essa imagem dos piqueteros violentos e hiper-politizados pretende retirar deles a legitimidade que tiveram até pouco tempo atrás entre as classes médias e a opinião pública, preparando um clima de repressão. E, para piorar, essas imagens se superpõem até quase identificar os novos movimentos com as forças da velha esquerda, impedindo ver tudo o que os primeiros têm de inovador. É verdade que muitos desses grupos políticos, verdadeiras seitas, sobrevivem na Argentina tomados por um imaginário insurrecional à espera do seu Outubro Vermelho. Mas também é verdade que, além de não apoiarem golpes de mão nem táticas de luta armada, participam como nunca antes do jogo político, inclusive através de seus legisladores. Ao mesmo tempo, por serem beneficiários da distribuição de subsídios sociais, têm ficado presos nas redes clientelistas, de longa tradição na política argentina. Mesmo quando podem crescer quantitativamente até atingir milhares de integrantes, as seitas não deixam de ser seitas: mantêm sua estrutura fechada, com uma rígida separação

entre o “dentro” e o “fora”, rituais de iniciação e expulsão, um dogmatismo administrado através de textos sagrados e profanos, intermináveis discussões internas e o culto ao líder. Apesar de seu credo laico, são herdeiras das seitas protestantes e da franco-maçonaria dos séculos XVIII e XIX. Como assinalava Marx numa carta a Schwaizer, “toda seita é, em definitivo, religiosa”. Apesar de viver num micro-clima revolucionário, nunca representam um perigo real para o poder: São, antes de mais nada, um sintoma de que o movimento social que tentam representar e controlar não está maduro o suficiente para se livrar delas e procurar o seu próprio caminho.


Não fomos todos feitos para os mesmos caminhos Grupo Recolectivo O colectivo (ônibus em espanhol) é uma invenção social do povo argentino. Em Córdoba, uma frota urbana de apenas cerca de 400 ônibus torna o transporte público precário e alvo das maiores críticas da população. Unindo estes fatos 'a idéia de que o passageiro de um ônibus urbano é um espectador em potencial, pois grande parte da população diariamente os utiliza, o Grupo Recolectivo decidiu realizar uma série de intervenções nos cerca de trinta trajetos dos ônibus da cidade, no interior e exterior dos veículos. Durante o mês de agosto de 2003 o Recolectivo realizou 60 performances à bordo dos ônibus nos horários de pico, ocupando cerca de 40 % dos ônibus da cidade e a totalidade de seus trajetos. O repertório das performances variou desde o oferecimento gratuito de serviços de cabeleireiro e manicure à bordo; curso muy acelerado de idiomas; noivas de véu e grinalda que procuram por seus noivos nos percursos e pontos de ônibus; alguém que sobe com uma grande torta, balões e línguas de sogra à procura de amigos para festejar seu aniversário; um milionário que pede aos passageiros dicas do que fazer com o dinheiro que acabou de ganhar

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O mercado de Bonpland Ocupação e reconstrução do espaço público Assembléia de Palermo Viejo, 2001-2003 Inés Fernández

Primeiro nos apropriamos do direito de gritar, de protestar e de fazer barulho com as nossas panelas. A rebelião de 19 e 20 de dezembro de 2001 foi resposta a uma política que marginaliza a maioria da população da “potestade” de decidir, que coloca a democracia como uma justificativa para avançar no processo de desigualdade e exclusão. Da rebelião, como resposta a esta política, surgem as assembléias. (Panfleto da convocatória à Trama 2003 Re-construyendo espacios) La Trama: encontro entre a política e a cultura realizado nos dias 25 e 26 de maio de 2002 a partir da iniciativa de diversos atores – sociais, produtivos e artísticos – do bairro, mancomunados no objetivo de encontrar uma nova forma de construção política. O encontro concretizou-se com a oferta de mais de 200 atividades de teatro, música, dança, mesas-redondas, oficinas abertas, edição de um livro, feira de artesãos, exposições de desenhos, moda, artes plásticas, e atividades infantis. As iniciativas reuniram milhares de participantes.

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O protesto foi o impulso que nos levou à rua. Mas nem o protesto nem a resistência em si mesmas resolvem. Começamos a nos dar conta disso quando voltávamos a cada sexta-feira da Plaza de Mayo, no final de fevereiro de 2002, tentando reproduzir o espírito da rebelião dos dias 19 e 20 de dezembro de 2001, sem conseguí-lo. Decidimos então aprofundar nossa presença no bairro e tentar construir coletivamente alguma coisa lá. A Assembléia de Palermo Viejo (bairro tradicional de Buenos Aires) nasceu numa autoconvocação no dia 17 de janeiro de 2002, no cruzamento das ruas Humboldt com Costa Rica, para construir “uma forma legítima de participação democrática, sem dirigentes nem partidos políticos, composta de cidadãos num mesmo plano de igualdade, com possibilidade de opinar, escutar e votar para tomar decisões de interesse comum”. Em abril de 2002, entre 70 e 100 pessoas participavam ativamente, apesar do frio e das chuvas de outono, das reuniões e dos longos debates que se seguiam, muitas vezes esquentados e difíceis (sobretudo quando tocavam em feridas profundas das convicções e sensibilidades pessoais). Mas, por fim, estávamos nas ruas aprendendo a respeitar a diversidade, o valor das palavras de todos e de cada um, e compreendíamos que é sim possível conjugá-las numa construção coletiva, no dia-adia, e concretizá-las em ações. O mês de maio nos encontrou “reconstruyendo la Trama social”, empenhados em reconstruir os fragmentos de uma Argentina despedaçada pelas ditaduras militares, por democracias autoritárias e pelo individualismo neoliberal. Mas a rua continuava a nos estimular e, depois de muitas reuniões e assembléias em esquinas, bares, clubes e estacionamentos, concluímos que necessitávamos de um espaço para concretizar nossos projetos. E que esse espaço devia ser público, aberto a todos, amplo e horizontal, soberano e autônomo de toda tutela e,

como nossa assembléia, capaz de acolher a diversidade que nos caracteriza. O Mercado de Bonpland Nosso bairro não tem praças nem espaços públicos que permitam ou facilitem os encontros sociais, porém, andando e descobrindo o bairro, identificamos um conjunto de construções abandonadas atrás do mercado municipal, cujo acesso podia ser feito através de duas ruas pequenas com calçamento de pedra, e que, apesar do aspecto de deterioração, revelavam uma marcada singularidade urbanística. Um lugar que, sem dúvida, podia abrigar naquele momento não apenas nossas reuniões de assembléia como também outras atividades que começavam a mostrar-se indispensáveis e necessárias. Na mesma época, várias assembléias começavam a ocupar espaços abandonados, criando âmbitos culturais, instalando centros de trueque (troca) e merenderos (lanche), transformando terrenos baldios em parques comunitários, e oferecendo serviços básicos à população. A repercussão obtida pela Trama e pelo trabalho intenso das comissões (saúde, imprensa, ações do bairro, política, jovens, cultura, relacionamento com outros coletivos e comunas) também nos incentivaram a projetar nossos desejos para um futuro de mais longo prazo. A possibilidade de um lugar próprio reavivou algumas idéias que tinham ficado pendentes. A Assembléia entrou então num intenso e profundo debate sobre o tipo de relacionamento a ser promovido com o governo da cidade, tendo em conta as práticas de assistencialismo e clientelismo, a possibilidade de integrar outras organizações do bairro em projetos mais abrangentes, as experiências de outras assembléias, as estratégias de crescimento e de inserção da população do bairro etc. No mês de julho de 2002 submetemos um projeto ao governo municipal. A ocupação Em setembro, diante da ausência de resposta, debatemos ao longo de várias


quintas-feiras a ocupação do prédio. As posições eram as mais diversas: alguns consideravam que o projeto não tinha sido suficientemente debatido, outros temiam cometer um ato de ilegalidade, outros duvidavam da aceitação por parte do restante da comunidade. Naquele momento, as manifestações de repúdio à repressão policial e ao assassinato dos piqueteiros Maximiliano Kostecki e Dario Santillan, além da luta conjunta com outros movimentos sociais, enriqueceram nossos debates. Aos poucos, os diferentes posicionamentos foram se aproximando, as desconfianças foram minguando, e as dúvidas transformaram-se em estratégias de ação (no dia 27 de setembro, a comissão de Cultura da Assembléia decidiu projetar num centro cultural do bairro o filme colombiano “La estrategia del caracol” que trata da ocupação de moradias por parte dos vizinhos na cidade de Bogotá). Desse modo, o consenso necessário para passar à ação foi sendo obtido, passo a passo. E a decisão de ocupar o mercado foi finalmente tomada. Organizaram-se comissões ad hoc para desenvolver um plano “logístico”, para comunicar e integrar o bairro no processo de ocupação, e para contar com o apoio de outras organizações – mas sem “dar muita bandeira”. O delicado equilíbrio entre a difusão e a clandestinidade foi difícil de resolver, mas, àquela altura dos acontecimentos, já tínhamos os objetivos claros, uma decisão firme e a consciência da legitimidade dos nossos atos. Surpreendentemente, no sábado, 5 de outubro, pela manhã, ao chegarmos para ocupar o mercado, fomos recebidos por um aparato policial. Evidentemente, os serviços de inteligência haviam feito seu trabalho. Ali ficamos, fazendo cartazes e reunindo assinaturas, acompanhados por outras assembléias, estudantes, rádios independentes, meios gráficos e vizinhos em geral. Decidimos não nos mover dali até que os donos do prédio explicassem os motivos do abandono e nos permitissem ocupá-lo. Os vários representantes do governo que prestaram alguma atenção ao caso mostraram- se logo incompetentes. Finalmente, o próprio Secretário de Desenvolvimento Econômico da Cidade de Buenos Aires, diante do firme questionamento da vizinhança,

ordenou a retirada da polícia, ao que ingressamos no prédio. Em poucos dias, firmamos um convênio com a Prefeitura. Reconstruindo As pequenas ruas de pedra acabaram se tornando o espaço ideal para o estabelecimento de uma Feira de Artesãos noturna, que no verão teve mais de 100 postos. Uma maneira de fazer frente ao desemprego através de um âmbito de produção e comercialização autogestionado. Artistas e artesãos do bairro desenvolvem oficinas, exposições e espetáculos de música e teatro. Desenvolvem-se também mesas-redondas, apresentações de livros e reuniões entre as assembléias de diferentes bairros. Mas não paramos por aí: a partir de uma série de encontros sobre economia solidária, com a participação de mais de vinte organizações sociais de diversas origens – movimento piqueteiro, fábricas recuperadas, organizações sindicais, empreendimentos cooperativos, assembléias de bairro, produtores orgânicos, entre outros – e com a assessoria de universidades e ONGs, vem sendo desenvolvido o projeto do Mercado Social Solidário, ocupando o espaço central do antigo mercado. Hoje, encontramo-nos em pleno processo de recuperação deste espaço público. Certamente o Mercado de Bonpland, com suas ruas de pedra, sua presença marcante na cidade, e sua qualidade arquitetônica e valor patrimonial, merece ser revalorizado. Fizemos então um estudo histórico e uma análise diagnóstica dos “problemas” da construção (que data de 1914), apresentando um projeto ao Governo da Cidade para que seja declarado patrimônio histórico, uma maneira de reforçar o caráter público e fortemente identitário do mercado. Em conjunto com o Movimento de Trabalhadores Desocupados de La Matanza (bairro popular de Buenos Aires) e com o esforço dos vizinhos, enfim, estamos conseguindo reabilitar o mercado. Ao mesmo tempo em que se ressignifica o espaço com práticas comunitárias, solidárias e cooperativas, o velho mercado se transforma num centro de condensação e inclusão social, onde resulta possível a prática da cidadania e também a satisfação de necessidades mais cotidianas.

na loteria; alguém que seca a roupa lavada nos canos nos quais os passageiros se apoiam durante as sacudidas viagens ou ainda uma mulher que os interpela sobre o que fazer com quilos e quilos de batata enquanto os passageiros as descascam. Estas performances procuraram introduzir o absurdo presente, possível, mas nem sempre visível, de nosso cotidiano urbano no espaço público. A surpresa e o desconcerto dos passageiros viabilizou sua participação na obra sem que esta se tornasse educativa ou moralista. Grandes adesivos negros com letras brancas foram colocados nas fachadas laterais dos ônibus revelando frases becketianas e ionescas que intensificam a idéia do trabalho que se complementou com quarenta outdoors brancos com letras negras colocados nas calçadas ao longo do percurso dos ônibus no centro da cidade. Estes cartazes reproduziam citações da imprensa argentina no período de elaboração da obra, que coincide com a grande crise econômica que afetou este país. O grupo, que partiu de uma proposta de Maurício Dias & Walter Riedweg, é composto também pelos artistas plásticos cordobeses Alejandra Bredeston, Azul Ceballos, Sara Carpio, Graziela Rasgido e o renomado grupo argentino de arte pública Urbomaquia (com Magui Lucero, Sandra Mutal e Liliana di Negro), o designer gráfico cordobês Lucas di Pacuale, o designer carioca Marcílio Braz e o recém-falecido dramaturgo Jorge Diaz, a quem o grupo dedicou esta obra. Conexões Globais 29 GLOBAL


Carlos Contente GLOBAL 30 Quadrinhos


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Continuação no site www.fotolog.net/contente ou contactando carloscontente77@yahoo.com.br

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Intermitentes “Intermitentes do espetáculo” são aqueles que trabalham na área cultural (atores, técnicos, iluminadores, bailarinos...) e que, pela própria natureza de sua profissão, não possuem sempre a mesma rotina, nem o mesmo ritmo de trabalho. A França, até hoje, reconheceu a intermitência deste tipo de trabalho remunerando tais profissionais nos períodos de recesso, por exemplo, entre um espetáculo e outro. Com as reformas, o governo francês começa a colocar em questão esse estatuto, para eliminá-lo, o que suscitou enormes movimentos de resistência da parte dos intermitentes, incluindo paralisações de festivais importantes e a incrível invasão de programas de televisão, como um importante telejornal, que foi assumido, durante alguns minutos, antes que a emissora o tirasse do ar, por uma intermitente. Estado de exceção Mas uma questão se coloca: a intermitência é uma característica apenas do trabalho no espetáculo? O fato de o trabalho ter se tornado flexível faz com que este estatuto possa ser reivindicado por inúmeras formas de trabalho, estendendo a luta dos intermitentes à toda a sociedade. Sobre este ponto há uma divisão entre aqueles que pensam que a universalização da luta é a única forma capaz de barrar as reformas e os que defendem a “exceção cultural”, ou seja, a especificidade do trabalho na cultura. Para falar em “exceção cultural” precisaríamos esquecer as mudanças radicais que a cultura e a arte sofreram nos últimos anos, quando passaram a integrar intrinsecamente a produção capitalista. Exponho a seguir alguns argumentos recolhidos de várias intervenções de Maurizio Lazzarato, filósofo que participa dos “Precaires Associés de Paris” e da coordenação do movimento dos intermitentes. Hoje em dia, as indústrias culturais e de comunicação não são apenas novos terrenos de acumulação capitalista, mas têm por função a produção e a reprodução do sensível, da sensibilidade dos consumidores (dos clientes) que precede a produção material. É o consumidor-comunicador que determina a produção, e este consumidor é formado pelo marketing e pela publicidade graças a mecanismos artísticos. Do mesmo modo que o capitalismo industrial se apropriava dos recursos naturais e da força de trabalho, explorando-os para produzir bens, o capitalismo contemporâneo captura gratuitamente os recursos culturais e artísticos produzidos por todos, e não apenas pelos artistas de profissão. Diante disso, é inútil reivindicar o estatuto de artista para os artistas, sob o risco de particularizar a luta ao ponto de esterelizá-la. A coordenação dos intermitentes entendeu este problema e afirma: “Nossas reivindicações não podem ser confundidas com uma luta por privilégios: flexibilidade e mobilidade tendem a se generalizar e não devem implicar precariedade e miséria. A elaboração de um seguro-desemprego fundado sobre a realidade de nossas profissões é, na verdade, uma porta aberta a toda forma de contaminação em direção a outros setores”. GLOBAL 34 Trabalho/Arte


Governo francês quer acabar com os benefícios trabalhistas dados aos artistas nos períodos de recesso. Tatiana Roque Novos financiamentos Se a intermitência não é mais uma característica apenas do trabalho do artista, devemos perguntar qual seria a forma de evitar a precariedade crescente que é conseqüência da flexibilização de todo tipo de trabalho? Lazzarato responde: “Uma renda universal garantida para todos como meio para: inventar novas formas de atividade que se subtraiam à relação de subordinação ao trabalho, direcionando-as para a criação e realização de bens comuns, e não para a valorização das empresas; dissociar tempo de trabalho e remuneração para o acesso de todos a temporalidades não controladas, criadoras de riquezas e de processos de subjetivação; derrotar a potência financeira do poder (welfare) que tende a reproduzir a subordinação ao trabalho (workfare) em direção a um financiamento dos indivíduos e das infra-estruturas necessárias à criação de bens comuns; construir condições para a neutralização da divisão entre invenção e reprodução, entre criadores e utilizadores; e integrar a multiplicidade dos sujeitos que participam do desenvolvimento da cooperação social na construção de um novo conceito de democracia que os transforme de clientes, utilizadores, necessitados de emprego, precários, trabalhadores informais, em atores políticos de uma nova esfera pública que não dependa do Estado.” Este último ponto mostra que a discussão sobre os meios de financiamento e sobre a factibilidade deste projeto não precisam anteceder a sua implementação, uma vez que se trata de um dos meios para uma redefinição da democracia. O presidente Lula sancionou a lei que institui a renda de cidadania proposta há tantos anos por Suplicy, mas o projeto só entrará em vigor no início de 2005.

Resta saber se o governo está convencido de que se trata de um meio efetivo para enfrentar os desafios contemporâneos, não apenas sobre o trabalho, mas sobre propriedade e democracia.

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sof t wa r e l i v r e ou morte!Software livre ou morte! software livre ou m or t e!

Software livre ou morte! Hermano Viana O Brasil tem a chance de se tornar um pólo de referência mundial de produção e utilização de programas de código aberto

No prefácio do livro “Software Livre e Inclusão Digital” (Editora Conrad), organizado por Sérgio Amadeu e João Cassino e que é uma excelente introdução a várias experiências no Brasil com a aplicação de softwares livres em projetos sociais, escrevi que a questão da liberdade digital é “a batalha política mais importante que está sendo travada hoje nos campos tecnológicos, econômicos, sociais, culturais”. Não é, ou não é apenas, um recurso retórico para vender o livro, ou para incentivar o leitor a enfrentar os demais capítulos. Eu realmente acredito no que escrevi. É claro, há outras batalhas de extrema importância – e de radical impacto para todas as áreas de nossa existência política – sendo travadas atualmente. Cito, por exemplo, o ma pea mento do genoma humano ou o terrorismo e o combate ao terror. Mas, mesmo diante de fenômenos tão avassaladores – e talvez pelo otimismo incurável que insisto em cultivar – continuo com a impressão de que as lições trazidas/propostas pelo desenvolvimento de uma comunidade internacional de programadores de software livre podem ter impacto decisivo na maneira como pensamos, vivemos e lidamos com todos esses outros fenômenos. O regime de colaboração que tornou possível a existência de um sistema operacional como o GNU-Linux (ou de toda a internet, que não existiria sem o software livre) não parece ter paralelo na história da humanidade. Por mais que eu tente encontrar algum aconte-

cimento semelhante, nada me vem à memória. Não é o resultado que mais importa, mas o processo. Este é descentralizado e envolve uma massa muitas vezes anônima de trabalhadores de todos os cantos do planeta. Pessoas de muitas tradições culturais diferentes, que trabalham freqüentemente de graça em torno de um projeto comum e global. E isto sem estarem necessariamente guiadas por um programa corporativo ou por uma ideologia partidária ou por um único grupo organizado. O movimento social que possibilita a produção do software livre me parece uma grande novidade em termos de agrupamentos políticos, revelando uma estratégia extremamente criativa de utilização dos meios de comunicação de massa como ambiente emancipatório e não-alienante. O filósofo alemão Peter Sloterdijk descreveu, com aparente melancolia, o que ele chama de massa pósmoderna como "massa sem potencial, uma soma de microanarquias e solidões que mal lembra o tempo em que – incitada e conscientizada por seus porta-vozes e secretários-gerais – deveria e queria fazer história como coletivo prenhe de expressão." O movimento do software livre mostra algo que ninguém esperava ver surgir no meio dessa "soma de microanarquias e solidões" de gente que joga videogame ou troca arquivos musicais pela internet, e por isso é punida pela indústria fonográfica e por muitos legisladores (lanço aqui meu apelo para que o Congresso Nacional não se deixe enganar pela indústria fonográfica, que está usando o combate à pirataria para nos aprisionar no seu mercado, com leis e tecnologias que vão vigiar todos os nossos hábitos musicais). E essa massa continua dispensando porta-vozes, secretáriosgerais ou líderes carismáticos: ela está sim produzindo História, História com “H” maiúsculo, e boa parte do futuro da humanidade está sendo decidido de forma absolutamente coletiva e cheia de expressão – e já com um efeito econômico inquestionável – em seus computadores, com código aberto,

a que todo mundo pode ter acesso. Na minha procura por fenômenos coletivos semelhantes, retornei a um pensamento que venho alimentando já há algum tempo em várias pesquisas. Lembro-me de um disco de vinil que veio encartado na revista francesa Le monde de la musique e trazia provas de “plágios” realizados por compositores como Beethoven, Wagner, Brahms, Mahler etc. O que parecia uma denúncia herética era para mim uma revelação antropológica: a cultura da humanidade sempre foi uma criação coletiva. Sem essa vibrante troca coletiva não há qualidade artística, nada de interessante se cria. Recentemente participei do projeto Música do Brasil, quando visitei 82 brasileiros documentando manifestações chamadas de folclóricas. Nessa viagem pude ver como todas essas brincadeiras estão ligadas em rede, trocando pedaços de melodias, letras de canções, estilos coreográficos, fantasias. São também criações coletivas, de código aberto, em constante transformação. Essas experiências me levam a desconfiar de todas as tentativas de “preservar a identidade cultural” ou defender o “direito autoral” que tragam embutidas uma visão da cultura como um código fechado e proprietário, imutável e refratário a qualquer intercâmbio com outras tradições. A riqueza cultural para mim sempre foi função direta da possibilidade de transformação e circulação livre das idéias. Vide este meu artigo: mesmo quando não estamos fazendo citações explícitas do pensamento de outros autores, nossas palavras são devedoras de idéias que nos foram propostas por outras pessoas. Se tivéssemos que pagar por cada idéia, eu não teria dinheiro para falar nada. Não escrevo aqui como advogado do plágio, mas quero apenas fazer a defesa da possibilidade de que tenhamos – ao lado e complementando o atual sistema de direito autoral – um outro sistema de licenciamento para a produção cultural semelhante àquele proposto no exemplo já vitorioso do software livre

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soft wa r e l i vr e ou morte!Software livre ou m orte! software livre ou m o r t e !

Stop (me) de Romano (que, é preciso deixar claro, não afronta a legislação de direito autoral já existente). Um dos projetos mais interessantes nesse sentido está sendo desenvolvido pela entidade norte-americana Creative Commons (www.creativecommons.org), que tem como um de seus objetivos incentivar a universalidade de obras livres para serem reutilizadas e copiadas, com clara inspiração na prática do software livre. O direito autoral como conhecemos é essencialmente proibitivo, impedindo qualquer tipo de re-utilização ou cópia de obras por ele protegidas. Se um artista quer, por quaisquer motivos (inclusive comerciais), que sua obra possa ser copiada ou re-utilizada para determinados fins, ele não terá proteção legal. A Creative Commons está desenvolvendo licenças para esses fins e já estabeleceu parceria com a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas para ter essas licenças traduzidas para a legislação brasileira. O ministro Gilberto Gil mostrou-se interessado nessas licenças, propondo caminhos para que elas possam contribuir para a divulgação da cultura brasileira pelo mundo afora.

“Lanço meu apelo para que o Congresso Nacional não se deixe enganar pela indústria fonográfica que está usando o combate à pirataria para nos aprisionar no seu mercado, com leis e tecnologias que vão vigiar todos os nossos hábitos musicais”

Posso dar um exemplo prático de como isso pode acontecer. Há hoje um grande mercado para a música independente brasileira em festivais europeus e norte-americanos. Para muitos músicos brasileiros interessa que suas canções possam ser executadas por estações de rádio na internet ou possam estar disponíveis para cópias em sites de música, mesmo sem cobrar pela execução ou pela cópia, pois estarão divulgando seu trabalho e aumentando a possibilidade de serem contratados para apresentações ao vivo onde poderão ser contatados por gravadoras locais para lançarem seus discos em pequenos mercados especializados em determinados estilos musicais. Hoje, eles podem seguir esse caminho, mas não terão nenhum aparato legal para proteger suas músicas, por exemplo, de serem usadas comercialmente sem a sua permissão. As licenças propostas pela aliança Creative Commons e Fundação Getúlilo Vargas podem regulamentar essas situações que vivem à margem da indústria fonográfica tradicional. Além do aspecto de divulgação, temos também que encarar toda uma nova realidade da criação artística que tem sido feita cada vez mais com a utilização de computadores. Para continuar com o exemplo da música: a maior parte dos novos estilos populares entre jovens das periferias brasileiras, como o hip-hop paulistano, o funk carioca, o novo forró cearense ou o tecno-brega paraense, são de músicas produzidas inteiramente em computadores ou em sintetizadores que são verdadeiros computadores. É preciso facilitar o acesso livre e criativo dessas máquinas em suas produções artísti-

cas. Por isso, a utilização de softwares livres é recomendada, já que incentiva um uso não-passivo das máquinas. O Ministério da Cultura está desenvolvendo um projeto no qual jovens das "periferias" do país poderão ter sua iniciação digital usando o computador para produzir arte, começando com música eletrônica, edição de vídeo e programação de jogos eletrônicos (atividade adorada por adolescentes de todas as classes, além de ser um grande mercado de entretenimento planetário, onde o Brasil não tem participação relevante). Essa é uma atividade também profissionalizante, com objetivo de ocupar postos em mercados de trabalho que estão sendo criados agora. Esses estúdios multimídias serão montados com software livre, é óbvio. Repetindo – me autoplagiando sem pagar meus direitos! – as palavras que estão impressas na capa do livro “Software Livre e Inclusão Digital”: “A questão do software livre é também uma questão de libertação nacional. E, se tiver coragem, o Brasil tem agora a chance de realizar uma grande campanha de mobilização pró-liberdade digital [temos fome de computadores também!], tornando-se assim referência mundial na luta pelo software livre [...] e pólo produtor de novos softwares – livres também, é claro – que poderão globalizar, no bom sentido, nossas conquistas libertárias.” Aqui eu incluo, nessas conquistas libertárias, nossa arte que sempre deu lições modernistas e tropicalistas para o mundo, mesmo quando o resto do mundo raramente tomou conhecimento dela e que, portanto, precisa ser melhor e mais ampla e livremente divulgada. Trabalho/Arte 37 GLOBAL

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OCUPAÇÃO DE ESPAÇOS, ALMAS E SENTIDOS Fabiane Borges

Fotos Eduardo Morais Captura vídeo Rafael Adaime

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“Quatro andares das paredes que abrigavam sem-tetos incendiaram no dia 7 de setembro de 2003, dois meses antes do nosso Encontro”

Aos aliados, Prestes Maia, em São Paulo

de sem-teto na Ocupação

a vida de 470 famílias

transforma em arte viva

Intervenção de 120 artistas

No centro da cidade de São Paulo, em dezembro de 2003, houve um ritual de interferência e celebração à vida. Eu, Cassandra, fui incumbida de narrar-lhes o acontecimento. Peço que compreendam a maldição que sofro por ter repudiado o amor do deus da razão, que por despeito fez-me gaga e balbuciante, incapaz de expor logicamente as travessias que o destino me força perpetrar. Eu, mulher despedaçada, dou-lhes meu testemunho desarrazoado, misturado a vidências incongruentes, sobre o que se deu no Templo dos Sem-Teto. Adianto que foi um Encontro de Arte Contemporânea junto ao MSTC (Movimento dos SemTeto do Centro de São Paulo) na Ocupação Prestes Maia. Enquanto arrisco um modo de dar forma sígnica ao que se sucedeu, imagens vibrantes me ocupam, exigindo moradia nesse texto. Quando vi o Templo pela primeira vez senti-me arrebatada para um outro Tempo. Entrei como que no negativo de uma foto antiga. O prédio Prestes Maia impressionou-me sobretudo por sua arquitetura e suas histórias. Soube que por muito tempo serviu como antiga tecelagem, onde mulheres nada Penélopes teciam e faziam greves; era uma fábrica de tecidos, de engrenagens lentas e repetitivas. Trinta e cinco andares de galpões abandonados durante vinte anos em função de dívidas, que agora são ocupados por dois mil sem-tetos. Estes criaram no interior desses espaços suas casas de tábuas de texturas distintas, lonas pretas, vidros achados nos lixões da cidade, pregos tortos e enferrujados. Verdadeiras instalações montadas a partir do que se encontra no caminho, no entulho e também nas Casas Bahia. Ao impacto espaço-temporal dessas duas mil vidas, reagi clamando pelas matilhas criativas escondidas nos edifícios cinzas, espalhados pelos corredores da megalópole. Eu, um corpo através do qual forças para além de mim emitiram sua vontade. E as matilhas, alertas como estavam, vieram de todos os lados, cada qual com seus coletivos e suas guarnições tecnológicas, performáticas, teatrais, musicais, corporais, sensoriais e mais. Estranheza! Cento e vinte artistas cheios de instalações, objetos conceituais e símbolos, encontrando uma ocupação do Movimento dos Sem-Teto; 470 famílias subsistentes, em tensão na luta por moradia, cujo cotidiano é feito de reuniões, assembléias, votações, passeatas e negociações ininterruptas, com as várias instâncias político-administrativas do país. Como poderia não ser estranho? De que forma mundos tão diferentes poderiam se encontrar? Que conexões possíveis teriam movimentos tão alheios um ao outro? Essas são questões que perduraram durante todo o tempo do Encontro e ainda persistem. Eu e meu amigo Don Quixote das artes, conhecido também como Túlio Tavares, fomos impelidos a coordenar esse “Estranho Encontro”. Coordenação experimental, sem controle de coisa alguma, em tudo esquizofrênica, sem nenhum tipo de financiamento, cuja existência sustentouse naquelas três semanas de encontro. Nossa única proposta aos artistas foi que entrassem em contato com o espaço, com as pessoas, com seus modos de vida e que, a partir desse encontro, se pudessem, se pusessem em obra. No decorrer do processo de “Ocupação na Ocupação”, o prédio, os andares, os moradores e os artistas foram gra-

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sobre a cidade”

visão incrível

de cima –

e ver São Paulo

do último andar

subir ao terraço

e escadarias,

pelos corredores

a ‘passear’

que começaram

dos moradores,

nos hábitos

transformações

provocou notórias

“O encontro

dualmente sendo ocupados. A palavra ocupação foi se tornando comum e plena de significados, instalando-se em nossos pensamentos feito a lacraia que se instalou na cabeça de um dos personagens de Alan Poe, que ao atravessar seu crânio, de uma orelha à outra, expeliu centenas de larvas de cem pés. Quantas faíscas loucas não suscitariam essas forçadas sinapses centopéicas? Às vezes acho que esse Encontro foi um ritual de fogo: o encontro de forças de mundos distantes, incendiando o cotidiano de mais de duas mil pessoas. O fogo para esta ocupação é signo especial, que lhes arde inescrupulosamente, e queima quem quer que se aproxime com a veemência do seu terror. Quatro andares das paredes que abrigavam tantos sem-tetos incendiaram no dia 7 de setembro de 2003, dois meses antes do nosso Encontro. Diante dessa fatalidade tiveram que reinventar espaços, agregar famílias, criar mutirões de colaboração, e produzir novos agrupamentos dentro do prédio. Essas chamas se mantêm acesas e inflamam a potência dessa singular coletividade. Pensar o Encontro como um ritual de fogo está para além de uma analogia propícia, está mais como competência de perceber os campos de forças que se estabelecem quando se deseja realizar uma ação. Transpassada por todas essas forças, fui sendo transfigurada em minha própria obra. Entreguei-me a devires que me atravessaram durante o tempo de “Ocupação na Ocupação”. Sentia alegria ontológica por estar conectada a um movimento social feito por uma grande maioria de mulheres, com destino tão diferente do que coube às minhas derrotadas companheiras troianas, que não tiveram forças para reconstruir a cidade incendiada. Às vezes me sentia como mistura de Kali e Morigan – que entre outras coisas, simbolizam a destruição nas mitologias indiana e celta –; em outros momentos me sentia imensa como Iemanjá, então vestia branco e, cheia de lenços pelo corpo, devaneava águas, seios fartos, ondas e repuxos;

às vezes estava triste, só triste, e me vestia de dor; e ainda: guerreira, aludida as grandes matilhas femininas das sem-teto e a Petensiléia – a cadela de guerra! Superar o pânico O encontro dos moradores com arte e artistas provocou notórias transformações em seus hábitos em relação ao prédio. As pessoas começaram a “passear” pelos corredores e escadarias, subir ao terraço do último andar e ver São Paulo de cima – visão incrível sobre a cidade – coisa que não era conhecida pela maioria dos que viviam ali, assim como não era comum subir aos andares dos escombros do incêndio. Tinha-se pânico desses andares, evidenciado nas falas infantis repletas de assombração e perigo: “Tem um homem que aparece lá e mata as crianças. Lá, as máquinas do antigo elevador funcionam sozinhas, a alma da menina que morreu queimada fica chorando de noite”. Eram andares proibidos que, aos poucos, foram sendo ocupados com pinturas nas paredes, instalações e oficinas, que serviram como dispositivos de retorno. As crianças se ofereciam como que em Sacrifício Sagrado à ocupação de criação. Nos guiavam pelo prédio, levavam-nos a esconderijos secretos, ao “andar das vovós”, às mães, aos tios, enquanto aprendiam a mexer em nossas câmeras de vídeo, máquinas fotográficas, construir monóculos, esculpir nas paredes, fazer malabaris, tocar tambor em latões, cantar. Essas pequenas vidas crescidas dentro de ocupações, ajuntamentos públicos e expulsões de prédios pareciam ter pressa de aprender tudo e exigiam habitar o mundo da arte. As matilhas criativas foram inventando estratégias de encontro dentro da ocupação. Uma delas – Coletivo Bijari – enviou cartas para vários moradores, deu o endereço duma casa lá dentro e aguardou respostas. Uma delas foi marcante, a moradora escreveu: “Vêm nos sugar, tiram-nos

tudo o que temos, bebem nosso sangue, como se não soubéssemos”. Carta dispositivo de angustiada reflexão. Fizemos esse encontro por que somos sanguessugas? Queremos tomar dos Sem Teto sua força? É sangue o que queremos? Sim, me pareceu dizer a voz de Cida, moradora do 19º andar quando falou: “Ser uma sem-teto deu sentido para minha vida. O momento de ocupar um prédio é o mais emocionante. Meu coração batia forte, mas tão forte! Quando a gente entrou aqui tava tudo escuro, cheirando a esgoto, sem luz, sem água, cheio de entulho... aí é que vem mais força, todo mundo se ajudando, se organizando, fico arrepiada só de lembrar!” Estava claro que se tratava de sangue. Foi um encontro de transfusão de sangue! Transfusão de potência! Tanto que num dia apareceu uma faixa na parede, que dizia em letras garrafais: “VISTA SUAS VEIAS”. Assim como essa faixa, muitas outras leituras foram sendo colocadas pelos corredores, pelas casas das pessoas, sem que ninguém, ou quase ninguém, assinasse sua autoria. Não tinha hora para as coisas acontecerem. Elas apareciam dependendo das linhas que iam sendo tramadas naquela antiga tecelagem. Evento sem hora marcada, nem assinatura das obras. O mais difícil foi lidar com os jornais. Não tínhamos assessoria de imprensa, mesmo assim apareceram jornalistas de todos os grandes jornais da cidade de São Paulo nos pedindo explicações concretas. Eu e Don Quixote os levávamos dentro das casas para conhecerem as pessoas e tentar que compreendessem que não se tratava de exposição em galeria exótica. Não era exibição, era transfusão! Mas a imprensa não entende nada de transfusão. E as notícias que saíram nos jornais de forma alguma traduziram o que se passava. Dessas trocas sanguíneas que falávamos, uma moradora foi exemplar – Célia Moreira – de casa toda feita de bambu e ervas de cheiros fortes. Em nosso primeiro encontro nos serviu café e leu uma de suas poesias:


Sua tresloucada, Cassandra.

lhes secreto que esses movimentos não se extinguirão!”

“Temos convites para participar das ocupações que se seguirão – adrenalina! Enfim, em vidência

“Versos de Ironia”. No segundo encontro, com Don Quixote das Artes, ela falou que era estilista e sua moda significava a união do absurdo e do ridículo. Mostrou suas roupas feitas de garrafas plásticas coloridas, sacos de batatas, sementes e pastos encontrados pela Terra. Não houve dúvida, faríamos um desfile! Célia convidou a mim e várias sem-teto para vestir suas roupas. Interrompemos a reunião do último encontro dos artistas no prédio, com batidas de tambor e vestimentas “ridículas e absurdas” pelo corpo. Célia radiante dizia: “Estou viva! Estou viva! Eu sou gente!” Suas roupas, nunca vistas, agora ganhavam forma em corpos de várias idades. A maioria dos participantes do Encontro não chegavam aos 30 anos. Por isso, me pergunto se o que aconteceu na Ocupação Prestes Maia foi um ritual de encontro dessa nova geração, uma espécie de deflagração do zeitgeist contemporâneo!? Há algum tempo esses artistas têm experimentado novos modos de produzir suas obras. O acontecimento que se deu na Ocupação Prestes Maia me parece ter sido fundamental para o fortalecimento dessas ações artístico-urbanas em São Paulo. Mas houve também momentos de resistência à nossa ocupação artística, que indicaram que os preconceitos raciais, religiosos e de classes sociais se faziam atuantes: alguns sem-teto interpretaram nossa chegada como entretenimento de gente rica; uns outros se negaram a fazer parte do processo, fechando suas portas; alguns crentes se chocavam com nosso comportamento irreverente, alguns artistas não conseguiam se envolver com os moradores. Era a travessia de uma maioria de estrangeiros brancos, universitários, intelectualizados, tecnologizados a uma zona de conflito ocupada por uma maioria negra, empobrecida, com poucos recursos de educação institucional, num prédio desprovido de telefones e computadores, que se ilumina precariamente por gambiarras. Negar essas diferenças seria fechar os olhos para o abismo de classes e de raças existentes nesse país. Para mim, esses confrontos fizeram muito sentido. Intuí que eram necessários para evidenciar a radicalidade desse projeto, para possibilitar experiências de riscos subjetivos, para propor modos de criação que surjam do contato com um mundo povoado de vidas. Para terminar, confesso-lhes que ainda estou atordoada, não sei bem o que aconteceu. Escreveria muitas páginas mais, se assim pudesse, para dar-lhes idéia do acontecimento. Posso dizer-lhes que tudo segue vibrando. Artistas continuam indo ao prédio; vários deles se juntam semanalmente para trocar suas experiências; ações coletivas estão sendo pensadas para 2004. A Ocupação ganhou posse do edifício, as pessoas vão ser encaminhadas provisoriamente para outros prédios, os moradores dessa ocupação vão se separar e a última festa que os ajuntou, foi a festa do nosso Encontro. Temos convites para participar das Ocupações que se seguirão – adrenalina! Enfim, em vidência lhes secreto que esses movimentos não se extinguirão! Estamos com sede da cidade, com desejo de ocupá-la, instalar-nos pelos espaços públicos. É a forma que encontramos de interferir e celebrar a vida.

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Participantes: Alexandra Pescuma André Komatsu; Angela Detanico e Rafael Lain Chiara Banfi Edilaine Cunha Eliane Testone Fabio Morais Gisela Mota e Leandro Lima Giuliano Montijo

João e Pedro Nitsche Laércio Redondo Maíra Voltolini Marilá Dardot Maurício Ianês Nicolas Robbio Paulo Nenflídio Rivane Neuenschwander Rodrigo Matheus Roni Hirsch e Giovana Gregolin Sara Ramo Curadoria de Lisette Lagnado assistência de Julia Rodrigues GLOBAL 42 Trabalho/Arte

Prototipo2003 e Pinball2003 de Giulianno Montijo Foto Edouard Fraipont

ARTICIPARÁS

Ficha técnica Modos de Usar Galeria Vermelho, São Paulo www.galeriavermelho.com.br


Exposição na Galeria Vermelho em São Paulo questiona que tipo de participação o pensamento artístico contemporâneo consegue ativar.

Angela Detanico e Julia Rodrigues

1

Colaborou Rafael Assef.

2

Colaborou Maurício Cardoso.

3

Colaborou Helio Magino.

Como pensar o problema da participação na arte? Foi a partir dessa pergunta que a crítica Lisette Lagnado inicialmente resolveu responder a um convite da Galeria Vermelho para realizar uma semana de performances. Construída coletivamente, “Modos de Usar” configura o resultado de vários encontros com jovens artistas entre setembro e novembro de 2003. Determinada a propor uma revisão do caráter espetacular que ainda orienta a performance, quando esta permanece presa à tradição teatral e reitera a separação entre performer e público, a curadora propôs um seminário para discutir a troca com o outro. Afinal, a participação sempre fora uma das prerrogativas da performance. Nos anos 60 e 70, período de desmaterialização da obra de arte enquanto suporte, objeto e mercadoria, a performance foi uma das expressões que mais se desenvolveu e ganhou velocidade. Nas formulações de Lygia Clark e Hélio Oiticica, o artista é um propositor, é o “molde” dentro do qual a ação do outro (o “sopro”) torna esse pensamento vivo. O participador entra para “completar” o diálogo. Se, nessa época, o convite esteve centrado na valorização das experiências sensoriais e na descoberta do corpo, em que bases se dão as parcerias de hoje? Que tipo de participação o pensamento artístico contemporâneo consegue ativar? O afeto A cada encontro, a discussão foi se afastando da esfera da performance, redesenhando a proposta da exposição. Algumas palavras-chaves alavancaram os debates: afeto, amador, economia, efêmero, imaterial, infância, fetiche, instruções, jogo, não-artista, negócio, participação, poder, fetiche, souvenir, troca, valor etc. Os ensaios de Walter Benjamin, reunidos no livro Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação (Summus, 1984) e de Toni Negri em Valor e Afeto, do livro Exílio (Iluminuras, 2001) foram adotados como fios teóricos, cada qual contribuindo com uma direção: a infância, como forma de sensibilidade e de apreensão livre do mundo, e os conceitos de “potência de agir” e de “economia da atenção”, compreendidos no sentido de cuidado e manutenção.

Ingressando no campo biopolítico, o afeto foi utilizado como dispositivo para mobilizar a participação do outro e para questionar o capital da arte. Ganhou espessura como prática política, mesmo que os projetos não se inserissem diretamente em uma linha de arte social ou ativista. Em diferentes formas e graus, os trabalhos levavam o público a descobrir novos modos de uso da arte. Alguns partiram de relações interpessoais já roteirizadas, como o jogo (os sete erros de Sara Ramo)1, a brincadeira (a casa na árvore de André Komatsu2, o telefone sem fio de Maurício Ianês e o esconde-esconde de Leandro Lima e Gisela Mota), a sala de aula (o mimeográfo de Marilá Dardot) e o comer junto (Traduções gastronômicas, de Rivane Neuenschwander, com a participação dos chefs Carlos Siffert e Neka Menna Barreto). A maioria das propostas trazia instruções e não poderiam existir sem participação. A vídeo-instalação Listen to me, de Laercio Redondo, apresenta imagens captadas com o público a partir de uma sentença: venha com a “música de sua vida”, ouça-a de olhos fechados e, ao final, abra os olhos3. O resultado é editado e exibido em monitores ligados a fones de ouvido. A participação recebe, no final, uma edição e formalização espacial. Na última etapa do processo, o visitante da exposição pode sentar e escutar o resultado. O papel da participação Se na instrução de Laercio, o participante é a matéria-prima da obra, no trabalho Eu e você, são coisas diferentes, de Maurício Ianês, ele gera transformações. O artista exibe em vídeo uma cena em que fala da dificuldade de comunicação e pede ao participante que reproduza sua fala e seus gestos. Mesmo seguindo a orientação dada pelo artista, a mímese perfeita nunca é alcançada e gera-se uma nova matriz. Esta é então mostrada ao participante seguinte, que a toma como ponto de partida. A repetição do processo cria uma espécie de telefone sem fio que evoca a distância entre o artista e o não-artista. O ambiente de Rodrigo Matheus, Recepção, foi criado para ser alimentado pelos funcionários da galeria no Trabalho/Arte 43 GLOBAL


decorrer da exposição. O artista reconstituiu um escritório, sem identidade reconhecível, sugerindo um circuito de funcionamento real acrescido de objetos dissonantes entre si: ventilador, quadro de contas, mural de recortes de jornal e aquário. Acrescentou ainda alguns elementos da própria galeria, (como o extintor), que foram apenas deslocados. O todo funcionava como um conjunto de aparelhos conceituais. Em outras obras, a participação apresentava-se de modo menos explícito. Pilha, de Angela Detanico e Rafael Lain, é um sistema que propõe a escritura por meio de empilhamento de objetos idênticos, relacionando-os à posição das letras no alfabeto. Seguindo essa ordenação, tijolos, borrachas, caixas de madeira e cubos de açúcar, quando empilhados, formavam “textos”, distribuídos pela galeria. O circuito do trabalho se completa quando essas frases são decifradas, o que implica a assimilação do código criado para decifrar as mensagens. Este esforço de leitura sugere uma alternativa para a interpretação das coisas do cotidiano. Com essas entradas múltiplas, “Modos de Usar” evidencia processos de trabalho, em detrimento de obras prontas para o consumo e a fruição. Evidencia ainda o hiato que existe entre artista e público e a importância desse espaço ser preenchido por uma participação, física ou mental, que ganha, nas linhas de Negri, a acepção de “trabalho imaterial”. Nesse sistema de trocas e cooperações, as propostas questionam o institucionalmente estratificado e suscitam nossa responsabilidade perante a realidade. São ações que, embora pontuais e circunscritas no espaço de uma galeria, procuraram colocar em xeque estruturas consagradas de emissão e recepção da obra, abrindo para uma possibilidade de desestabilização. Sendo a arte um veículo para a discussão da sociedade, poderia ela propor novos modelos de produção a partir da incorporação da subjetividade do outro? Ou, mais ambicioso ainda, reformular as moedas de troca quando se fala em forças de trabalho não reconhecidas porque não premiadas monetariamente? GLOBAL 44 Trabalho/Arte

Imaginário “Invadir”espaços comuns, como a estação da Central do Brasil, e transformá-los em galerias de arte é o objetivo desse grupo de artistas cariocas

Linhas de Mirela Luz para o evento Imaginário Periférico Foto Sandra Moraes

A estação ferroviária da Central do Brasil, usada diariamente por milhares de trabalhadores do Rio de Janeiro, foi tomada de assalto por 40 artistas plásticos, uma banda de rock, outra de funk e duas de samba, um grupo de Capoeira de Nova Iguaçu, poetas de Duque de Caxias, dança a 15 metros de altura. Um manifesto – Fome Zero Cultural (ver quadro) – é lido, aos berros, e seu texto/panfleto distribuído. O Imaginário Periférico transforma a Central numa monumental galeria de arte e espaço de performances. As obras ficaram expostas de 22 de setembro a 3 de outubro de 2003. Os usuários da estação, em sua maioria, jamais tinham pisado numa “galeria de arte”. O Imaginário Periférico decidiu, há alguns meses, atuar dessa maneira, por invasão, ocupação de espaços não específicos para a arte; e agenciar coletivos de artistas de linguagens e “planos” diversos, abandonando a competitividade e a hierarquização que sempre marcaram as artes plásticas. Em novembro, outra ocupação, agora em São João de Meriti. Em 2004, está na “mira” a UERJ, em Duque

de Caxias, única universidade pública na Baixada Fluminense. Deneir de Souza e Jorge Duarte, dois dos fundadores do Imaginário, fazem oficinas para os estudantes na instituição há três anos. No início, com pouquíssimos alunos. As artes plásticas não aparecem no currículo das escolas públicas, no Brasil, e a maioria chega à Universidade incapaz de ler esta linguagem. O Imaginário foi criado por seis artistas que já fazem parte do chamado circuito das artes plásticas no Rio de Janeiro – além de Deneir e Jorge Duarte, Raimundo Rodrigues, Julio Sekiguchi, Ronald Duarte e Roberto Tavares. O grupo aponta dois caminhos novos. O primeiro é o da disseminação da informação, uma ação de ruptura da separação social entre centro e periferia na produção/criação /consumo desses meios de expressão. E o segundo é o trato com as artes plásticas no que se pode aproximar do novo modelo para o trabalho, pensado por Negri/Cocco/Lazzarato, onde não se separa mais trabalho e vida; movimentos de indiscernibilidade entre produção/diversão/saúde/educação/cons


Periférico M a u r o S á Re g o C o st a

Manifesto Fome Zero Cultural CABEÇA V A Z I A NÃO ENCHE B A R R I G A umo. O melhor exemplo é o de Deneir de Souza, que não abandonou a Animação Cultural, preocupado com as crianças, mesmo quando o governo de Marcelo Alencar arrasou o projeto; trabalhou nos programas infantis de TV de Daniel Azulay, mas se recusou a trabalhar com a Xuxa; reclama o tempo todo de se dar pouco tempo para a “criação”, mas é inteiramente apaixonado pelo trabalho com jovens portadores de necessidades especiais em Conceição de Macabú (RJ), com jovens e mães fazendo cerâmica em Magé (RJ). Seus brinquedos e “engenhocas” feitos de lixo reciclado mereciam uma exposição no Museu de Arte Moderna ou no Museu de Arte Contemporânea. Imaginário Periférico foi o nome que o grupo se deu em 2000, concorrendo a uma verba da Petrobrás, para abrir um galpão na beira da Rodovia Rio-São Paulo, em Nova Iguaçu, que funcionaria como espaço de ateliês, oficinas, eventos e uma galeria de arte. A verba até agora não apareceu. Mas os contatos com as prefeituras locais já renderam vários eventos, como os últimos da Central do Brasil e

Assim como a riqueza monetária está concentrada, no Brasil, em poucas famílias, as artes, as ciências e as tecnologias estão concentradas em menos de 30.000 doutores. Arte, ciência e tecnologia para o povo. Cerca de 52 milhões famintos de comida. Cem milhões famintos de cultura. As artes, os artistas, não existem só na Zona Sul do Rio e nos Jardins de São Paulo. Estão também nas periferias do Rio, de São Paulo e da Bahia, do Ceará, do Paraná, do Mato Grosso, do Acre... Estão, mas não aparecem. O Fome Zero Cultural vai mostrar essa arte. O Fome Zero Cultural quer a engenharia, a arquitetura, a medicina, as telecomunicações, a televisão, a informática e a telemática para os 100 milhões de famintos culturais. Cabeça vazia não enche barriga. Redistribuição urgente do capital intelectual nacional! Pela criação de canais de circulação da produção cultural marginalizada! Pelo fim da exclusão digital! Pela obrigatoriedade do ensino de Artes Visuais, Música, Dança, Rádio, Teatro e Televisão no Ensino Fundamental!!! Pelo florescer dos talentos em qualquer área de saber e em todas as faixas etárias! Pela ocupação das direções dos órgãos públicos da Cultura por artistas, críticos e teóricos das Artes!!! Pelo estudo do impacto sócio-cultural nas populações dos locais de sua implantação para os empreendimentos de maior escala!!! Pela participação dos artistas no planejamento de inovações urbanísticas (visuais e sonoras) no Plano Diretor dos municípios!!! Pela implantação de centros culturais e de artes nas comunidades e periferias das cidades grandes e médias!!! Pelo pagamento das dívidas culturais com as etnias não-brancas!!! Por investimentos na manutenção de manifestações artísticas ou litúrgicas regionalizadas e globalizadas-locais: indígenas, camponesas e culturalmente específicas: samba, jongo, hip hop, funk, congo, mangue beat... Trabalho/Arte 45 GLOBAL


Participantes. Buenos Aires Nuevo Rumbo (Pepe Córdoba) Andrés Di Tella (Cinema e Mídia) Asosiación Mutual Sentimiento (Graciela Draguicevich) La Tribu (Ximena Tordini) La Colifata, Myriam Pelazas Rio de Janeiro Celula Urbana (Dietmar Starke) Coopa Roca (Tetê Leal e costureiras) Grupo Cultural Afro Reggae (Micheli Sobral) Ivana Bentes (Cinema e Mídia) aTraVer (Marcio Souza) Isabel Martins (Rede CCAP) Berlin Projeto ErsatzStadt (Stephen Lanz e Jochen Becker) Hermann Hiller (moda) Berliner Volksbühne Max Welch Guerra (Bauhaus) Ute Hermann DJ Agapê

Rio-Buenos

Zonas de Turbulência e Invenção Ivana Bentes

Projeto reúne, em Berlim, iniciativas das duas cidades sul-americanas que produzem não apenas bens materiais, mas valor, cultura urbana, arte e afeto. GLOBAL 46 Trabalho/Arte

Rio de Janeiro e Buenos Aires, duas cidades signos da América Latina, em meio a crises diversas, são percebidas nos últimos anos como laboratórios para os movimentos globais, laboratórios de uma outra experiência de cidade que funciona paralelamente, em parceria, ou mesmo negando o Estado. O que Rio e Buenos Aires teriam em comum e o que diferencia seus movimentos urbanos? Quais as características dessas cidades substitutas que vêm “funcionando na tensão entre uma nova produção cultural, ‘economias substituas’ auto-organizadas e ativismo político?” A proposta dos alemães Stephen Lanz e Jochen Becker foi construir uma ponte entre essas experiências e fazer das cidades escolhidas tema para uma extensa análise de caso, que apenas começou a ser delineada. O projeto reuniu, em Berlim, coletivos, cooperativas, representantes de fábricas, grupos de cultura, saúde, música, cinema e mídia em torno da seguinte

questão: “Com quais estratégias se enfrenta a exclusão centenária da ‘cidade oficial’ que produziu as favelas no Rio de Janeiro e como os novos movimentos argentinos estão reagindo ao completo colapso social em conseqüência das políticas econômicas?” O mapeamento das experiências do Rio e de Buenos Aires, o encontro de alguns desses agentes, redes, grupos e movimentos, durante três dias na cidade de Berlim (signo de tantas outras rupturas e crises), deram uma visão concreta do que poderiam ser esses “duplos” da cidade e como “todas essas crises levaram seus habitantes a reinventar estruturas alternativas de produção, de reprodução ou de resistência política”, redes dentro da cidade que forçam a pensar. As “cidades da cooperação” (City of Coop), ações que se tornaram visíveis dentro das cidades administrativas, são heterogêneas, mas têm questões e estratégias comuns: nascem de condições de trabalho informais e precárias,


“Nas duas cidades, os movimentos se constituem também a partir de ações culturais e estéticas, numa torção da política e do ativismo via cultura e arte, que marca os movimentos globais”

Aires tornam-se cooperativas, com “economias solidárias”, engajam-se na prestação de serviços sociais, na produção material e imaterial, e podem ou não se associar ao mercado formal e mesmo ao Estado. Outro ponto em comum: cada vez mais a cultura e a arte aparecem indissociáveis dessa nova forma de pensar o trabalho e as questões sociais. Nas duas cidades, os movimentos se constituem também a partir de ações culturais e estéticas, numa torção da política e do ativismo via cultura e arte, que marca os movimentos globais. Os exemplos são concretos. Uma cooperativa argentina de catadores de papelão, Nuevo Rumbo, representada por Pepe Córdoba, se desdobra na criação de uma indústria de reciclagem, apoia seus “subempreendedores” com serviços sociais e pensa numa associação que possa ter força nacional. Uma cooperativa brasileira de costura, Coopa Rocca, consegue unir coope-

ração com visão empresarial, acaba com mediadores e coloca as costureiras da favela da Rocinha produzindo diretamente para grandes grifes de moda brasileira, tornando-se elas mesmas uma “grife” valorizada em desfiles de alta costura, onde cada peça artesanal é vendida por preços elevados e inimagináveis para uma costureira da favela ou uma consumidora comum de moda, com todos os paradoxos e impasses que advêm dessa passagem, do pouco valor ao exorbitante. O Projeto Célula Urbana instala na favela do Jacarezinho um módulo experimental para uma cidade utópica, usando tecnologia da Bauhaus alemã e o conhecimento empírico de construção e urbanismo dos moradores para construir uma célula virótica de produção de valor, conhecimento, arte, oportunidades coletivas num ambiente degradado. Nos três casos os movimentos se afastam da idéia de pureza e isolamento e se arriscam competindo com o mercado existente, descartando atravessadores, criando novos mercados e valores. Reciclando o lixo industrial ou produzindo luxo e cultura, a produção de imagens como novo valor e capital foi tema dos debates em torno dos projetos e dessas “grifes”, com exibição de filmes e vídeos que se ocupam ou são produzidos pelos movimentos nascidos nas duas cidades. As imagens das favelas no cinema e na mídia brasileira e as imagens, documentários, ficção, vídeos amadores, realizados durante a crise argentina de 2001, traziam elementos perturbadores sobre uma situação em aberto: o devir desses acontecimentos, estratégias e ações e as imagens que circularam pelo mundo, muitas vezes esvaziando esse potencial perturbador. Quando uma câmera de cinema ou vídeo é colocada na mão de piqueteros, favelados, amadores, trabalhadores, documentaristas ou artistas com um olhar descondicionado, o resultado pode ser surpreendente, pois trata de registrar a vida “em obra”. Da Argentina, Andres De Tella trouxe os únicos 5 minutos de registro de um piquetero anônimo que usava pela

primeira vez uma câmera de vídeo digital para mostrar o lugar em que vivia, comia, resistia. Parte de um filme coletivo de estudantes universitários, os registros de Compañero, piquetero cineasta, dão a impressão do cinema político e poético se reinventando e a possibilidade de olhar um acontecimento com a potência da primeira vez. Um jovem desempregado assassinado pela polícia argentina durante os protestos de 2001 torna-se o tema do documentário Gustavo Benedetto presente!, de Naomi Klein e Avi Lewis, mostrando que o morto poderia ser qualquer outro jovem argentino que protestasse. Morte anônima e “insignificante” que ganha sentido justamente por não ser nada arbitrária, mas um programa cumprido pela lógica policial contra qualquer jovem que significasse uma vida em revolta. Do Brasil, as imagens que vieram das favelas e da cidade foram produzidas por moradores, artistas, urbanistas, que também dispensam os mediadores e extraem um pensamento do corpo a corpo com seu território e na sua vida cotidiana. Entre o “programa” administrativo, repressivo ou de contenção de parte dos cidadãos e os sujeitos políticos saídos desses territórios da pobreza e do precário, o projeto ErzatzStadt/City of Coop deu visibilidade a essas zonas de turbulência, risco e invenção nas cidades. Locais onde desempregados ou subempregados se tornam um novo tipo de empresário ou empreendedor, inventam formas de trabalho e de vida (sejam artistas, piqueteros ou camelôs), onde territórios como as favelas cariocas podem ser vistos como parte altamente produtiva da cidade, com trabalhadores que produzem não apenas bens materiais, mas produzem valor, bens imateriais, cultura urbana, arte, afeto. No final um horizonte: os impasses e confrontos dos movimentos sociais no Rio ou em Buenos Aires não são fenômenos isolados, efeito da instabilidade e crise latino-americana, mas estão no cerne mesmo da discussão sobre os movimentos globais e suas novas formas de pensar e questionar o Estado e o trabalho, inventando agora cidades do futuro e outras formas de viver. Um problema: com tantos pontos comuns, os movimentos e participantes vindos do Rio e Buenos Aires só se encontraram em Berlim, sem resposta para a questão: como formar redes latino-americanas ou cidades virtuais? Trabalho/Arte 47 GLOBAL


Seção 1 GLOB(A.L.)


A universidade estatal é pública? Alexandre do Nascimento O sentido de ‘público’ como ‘comum a todos’ passa longe das instituições de ensino superior estatais, que têm por modelo de ingresso uma prova para quem ‘sabe fazer vestibular’ O que chamamos de “público” tem o sentido de “comum”, ou seja, aquilo que deve ser comum a todas as pessoas de uma determinada sociedade, aquilo a que todos, rigorosamente todos, devem ter acesso. É o que o filósofo Cornélius Castoriadis chamou de “participável”, o que não pode ser partilhado, distribuído, apropriado em partes, mas o que deve permitir a participação de todas as pessoas. O debate sobre o público vai além do direito, pois o que importa é o processo da universalização dos direitos. A universidade estatal no Brasil – aquela que chamamos de “universidade pública” – é um interessante caso, que denuncia que aqui o público não é necessariamente comum. Vejamos alguns dados: a maioria dos estudantes das universidades estatais é oriunda de escolas particulares e/ou de cursos pré-vestibulares caríssimos, que não são acessíveis à maioria das famílias pelos seus altos custos. Curiosamente essas instituições de ensino superior são chamadas de públicas, mas para ter acesso a elas é preciso, antes, pagar caro. Corroboram para essa situação, entre outros fatores, a deficiência do ensino básico nas escolas públicas – onde faltam investimentos, professores, materiais básicos, equipamentos etc. –; o modelo de exame para seleção dos futuros universitários, que funciona muito mais para atestar se o estudante sabe fazer prova de vestibular; as universidades estatais não possuem políticas de atendimento estudantil adequadas para os alunos que necessitam de apoio; no meio acadêmico, especialGLOBAL 48 Universidade Nômade

mente no movimento docente – majoritariamente de “esquerda” –, alguns temas são tabus ou até mesmo inaceitáveis, como o debate sobre políticas de ação afirmativa (falar em políticas de acesso e permanência de pobres, negros, indígenas etc. é uma ofensa ao valor fundamental do “mérito” e que “compromete a qualidade”). Outro tema que é proibido debater é a possibilidade (antidemocrática) de professores aposentados prestarem novos concursos e entrarem com vantagens, como o direito a 60% da Gratificação de Estímulo à Docência (GED). Neste caso, o maior problema não é o direito ao concurso, mas a quase certeza da aprovação. Na universidade, tanto o individualismo de direita, quanto o corporativismo de esquerda são conservadores e reacionários. Movimentos Sociais como os cursos pré-vestibulares populares e o movimento negro, enfrentam algumas resistências dos que não querem que a universidade estatal seja pública. É comum ouvirmos que, em vez de lutarmos por políticas de cotas para negros e pobres, deveríamos lutar pela melhoria do ensino médio. Do ponto de vista do movimento dos pré-vestibulares populares, um ensino básico de qualidade é indiscutivelmente fundamental e deve ser objeto de luta. Entretanto, isso não substitui uma política de ação afirmativa. Para esses movimentos, o que substitui a ação afirmativa é a abertura da universidade a todas as pessoas, sem nenhum “processo de seleção”. As políticas de ação afirmativa são parte de um processo de universalização do direito à universidade. O governo começou a discutir uma reforma no sistema universitário. O problema maior não é o estatuto que rege a universidade estatal, mas as suas formas de funciona-

mento e as suas práticas internas de seleção excludente. A reforma tem a tarefa de refundar as bases sociais da universidade. A não-democratização do ensino superior é um dos limites fundamentais ao seu próprio desenvolvimento, pois a quantidade produz qualidade. Neste sentido, tornar a universidade pública passa por promover a sua abertura aos movimentos que a reivindicam e transformar a natureza dos processos de produção e de difusão do conhecimento. A reforma universitária que será promovida pelo MEC precisa tocar nesses pontos. É preciso responder a seguinte questão: A universidade estatal é pública? Pois esta é a pergunta que fazem os movimentos sociais que lutam para romper as barreiras impostas pelas universidades à sua própria democratização e à universalidade do acesso a ela. E esses obstáculos são, inclusive, funcionais à expansão das universidades particulares. A reflexão sobre essa pergunta pode contribuir bastante para uma reforma que revolucione as formas de funcionamento das universidades estatais para que elas possam se tornar, de fato, públicas.


Loucos pela

universidade

Francis Sodré Conhecida como espaço da liberdade de expressão, a Universidade revela-se uma fábrica em potencial de pacientes com graves transtornos mentais. Há dois anos como residente em Serviço Social da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ), vivencio uma realidade não muito discutida pela academia: o estranhamento ante o funcionamento pérfido da Universidade. Fui surpreendida por um dado do departamento médico da UERJ de que 40% dos casos de afastamento do trabalho ou de readaptação funcional são caracterizados por problemas mentais. Incluem-se aí desde o estresse agudo à esquizofrenia, que acomete professores doutores e mestres e chefes de setores do hospital universitário – local onde se trata das patologias mais diferentes, que as clínicas tendem a receber como demanda. Contudo, o mais expressivo número de pacientes mentais varia entre os auxiliares de enfermagem e os agentes de administração universitária. Curioso é o posicionamento das chefias no momento de decidir sobre o futuro dos seus subordinados que possuem doença mental. O que fazer com o adoecido? A primeira atitude do comando é: “não queremos fulano neste setor. Ele atrapalha o serviço”. A segunda, pela área de recursos humanos, é cobrar que se emita um parecer que retire o sicrano do trabalho: ou por licença médica ou aposentadoria por invalidez. Já acompanhamos situações onde todo o setor tinha mais de um funcionário com caracterização de doença mental: depressão, ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo ou esquizofrenia. Fora do lugar Quando pensamos naquele funcionário que é contratado apenas para carimbar papéis e colocar o nome do aluno em uma pasta que servirá de estatística para saber quantas pessoas foram atendidas no mês, sabemos que esse servidor é fácil de “aposentar”. Mas quando colocamos cargos e funções na mesma balança, verificamos que muitos docentes são acometidos por transtornos mentais. O resul-

Panela de lagostins de Cristina Pape para o evento Imaginário Periférico. Foto Wilton Montenegro.

tado é, por exemplo, os alunos não o quererem na sala de aula. O chefe de departamento quer colocá-lo à disposição ou readaptá-lo em funções “extra classe” – a chamada pesquisa. O departamento de saúde não quer se responsabilizar por seu licenciamento contínuo (e inevitável), e a universidade pede um professor contratado para colocar em seu lugar. Tudo ao mesmo tempo. O espaço máximo da liberdade de expressão, o lugar onde se concentra o “estado da arte”, a dimensão questionadora do saber e do conhecimento não consiste em um locus tão livre como se imagina. Muitos tentam aprisionar os “produtores do conhecimento”. Posso dizer que a área de saúde tem realizado muitos diagnósticos que servem como instrumental para a retirada dessas pessoas do espaço do saber. Perdi as contas de quantas vezes ouvi: “só porque ele é professor, acha que deve nos tratar como ele tivesse sangue azul”. Ou ainda: “este funcionário é péssimo, vou solicitar que seja transferido para outro lugar”. Ambos se referem às pessoas de mesmo diagnóstico. Ambos não sabem como conduzir a situação de um transtorno mental no trabalho. Ambos utilizam a linguagem hierarquizada do poder universitário. Ambos se cumprimentam normalmente com frases de “bom dia” durante suas rotinas. Ambos esperam do departamento de saúde que seja colocado um ponto final na vida funcional deste servidor público. Ambos estão no espaço chamado Universidade. Os casos Em março de 2002, recebi, como uma situação que necessitava de acompanhamento do Serviço Social, uma auxiliar de enfermagem que solicitava remoção do seu setor, pois sentira-se coagida por colegas de trabalho que conheciam o fato dela ter denunciado um roubo de materiais hospitalares por um colega. L.S. dizia-se vigiada e seguida nas ruas pela nova chefia que assumiu o seu setor. Com laudos e pareceres que diagnosticavam esquizofrenia, optei por facilitar sua saída do setor como desejava. Porém, nos atendimentos que agendávamos ouvia seus relatos de perseguição, ameaças de morte, rejeição da família, ou mesmo conversas com pacientes que nunca existiram no setor de internação do Hospital Pedro Ernesto. L.S. via vultos, ouvia vozes, viase perseguida por pessoas (sempre do seu trabalho), a ponto de já ter se mudado para outras casas cerca de dez vezes. No mesmo ambiente universitário, atendi A.F., professora, doutora, dona de um dos currículos mais almejados pelos pesquisadores das ciências biomédicas. Diagnóstico: depressão profunda, com várias tentativas de suicídio. O chefe do departamento, outro professor doutor, solicita ao Serviço Social que viabilize seu licenciamento ou sua readaptação em funções somente extra-classe. Desde que ingressei na Universidade, recebo a cada dia vários casos como esses. Tiro apenas algumas conclusões deles. A principal delas: o espaço do livre saber é um espaço disciplinar como os outros. Muitas vezes, mais perverso e apodrecido que esses outros. E agora, o que fazer com esses loucos? Universidade Nômade 49 GLOBAL


na


Saberes

y Democracia

Marco Bascetta

Graciela Hopstein

Tradução Gerardo Silva

cineastas com idéias inovadoras, a propagação de diversas escolas de cinema e o novo contexto político, econômico e social parecem estar desenhando (construindo e instalando) um novo olhar da realidade argentina. Porém, o termo “Novo Cinema Argentino” ainda apresenta algumas arestas difusas. Muitos críticos até resistem a utilizar a expressão, já que as diversas produções não têm aparentemente vinculação entre si, embora de fato apresentem alguns elementos comuns. A presença definitiva de diversas problemáticas da vida urbana, bem como a incorporação de figuras e de falas oriundas do denominado “mundo popular”, contribuíram para dar um outro tom, e uma virada radical na produção cinematográfica no país.

a essência das histórias. Trata-se de um cinema realista onde não se fala da crise, mas sim das diversas formas de vida na região e do impacto da chegada da TV a cabo num território onde ainda nem todas as pessoas têm acesso aos serviços básicos de luz, água corrente, gás, etc. O road movie também pode ser considerado um processo subjetivo de fuga para alcançar a liberdade, percurso que tem como particularidade a necessidade de diferenciação frente a uma vida cotidiana que se apresenta monótona e previsível. A aventura e a procura de novos horizontes se instalam como formas potentes de pensar a existência, e é literalmente a idéia do movimento que leva o espectador a pensar que tudo pode acontecer, em qualquer momento e lugar.

A realidade da imagem argentina Cinema argentino se renova ao discutir os dramas vividos pela população após as crises econômicas e os levantes políticos As novas formas de protesto e de resistência que emergiram recentemente na Argentina não se inscrevem exclusivamente ao âmbito políticosocial. Algumas das expressões que surgiram ao longo da década de 90 saíram a campo não apenas para confrontar, mas também para contribuir com perspectivas e ações culturais de caráter inovador, que trouxeram novas formas de olhar a realidade social do país. Neste cenário, não é casualidade que o cinema argentino esteja atravessando um momento de significativa efervescência criativa. A chegada de jovens GLOBAL 50 Maquinações

Novos e velhos problemas Certamente, filmes tais como “Pizza, Birra y Faso” (Stagnaro y Caetano, 1997); “Mundo Grúa” (Trapero, 1999); “El Bonaerense” (Trapero, 2000); “Bolivia” (Caetano, 2001), “Historias Mínimas” (Sorín, 2002); Tan de Repente (Lerman; 2002), dentre outros, trouxeram perspectivas inovadoras para apresentar novas (e velhas) problemáticas sociais vinculadas à situação de risco em que se encontram as novas gerações de jovens, à crise do emprego, às reações xenófobas – que surgem tanto frente ao migrante do interior quanto do exterior (principalmente dos países limítrofes), como é no caso do filme Bolivia – e às múltiplas respostas que as diversas situações de violência e “exclusão” geram nos sujeitos envolvidos. A viagem também constitui um tópico recorrente na produção cinematográfica dos últimos tempos. No caso de “Historias Mínimas”, o filme apresenta uma Patagônia de paisagens desérticas e contrastantes sob as perspectivas dos seus habitantes, cuja interação com os atores tende a modificar

Neorealismo Muitos críticos chegaram até a falar de uma tendência neorealista na produção cinematográfica argentina. Quebrase assim o “olhar de fora” e desta forma, os novos diretores conseguiram que o espectador pudesse mergulhar em cada uma das cenas e histórias apresentadas. As imagens propostas são tão reais quanto os diálogos dos personagens que, além do mais, demonstram ter uma dificuldade constante para se comunicar e para encarar projetos de vida, considerando o contexto de crise no qual estão inseridos. Também, o uso “abusivo” do preto e branco e as cenas filmadas (quase exclusivamente) em cenários naturais contribuíram para instalar uma estética documentarista, que reforçaria a idéia da tendência neorealista no cinema argentino. Contudo, essa nova narrativa emergente não adotou formas sofisticadas, mas, ao contrário, derivou na apresentação de narrações íntimas e dos problemas cotidianos em que se resgata a vida das pessoas comuns: um bando de adolescentes marginais vivendo


O vampiro de Timbuca. Técnica mista, 2003.

sua rotina de delito e violência (“Pizza, Birra y Faso”); um homem gordo, morador do subúrbio de Buenos Aires, que faz do seu trabalho como operador de guindastes seu mundo, inclusive procurando novos “mundos” na sua viagem pelo sul do país (“Mundo Grúa”); um homem que vive no pacato interior da Província de Buenos Aires que está envolvido num confuso incidente, acaba trabalhando para a Polícia Bonaerense, entrando sem muita convicção e envolvimento em esquemas de corrupção que se apresentam como as únicas estratégias para sobreviver na corporação policial (El Bonaerense). Também os recursos que o Estado vinha destinando ao cinema foram, a

partir do ano 2000, cortados de forma drástica – em um percentual de 50% – situação que não apenas gerou uma visível crise na produção cinematográfica, mas também estimulou a emergência de novas iniciativas de baixo custo e grande potência criativa. O surgimento do chamado “cinema independente” apoiado por concursos e financiamentos nacionais e internacionais – promovidos pelo INCAA, o Instituto Goethe, a Fundación Universidad del Cine, o Sundance Festival, e por fundações holandesas e francesas – foi fundamental para impulsionar este novo movimento cultural que atraiu não apenas espectadores, mas também um importante reconhecimento internacional. Em alguns casos,

os diretores atuaram como produtores e distribuidores; em outros, os atores “sacrificaram” seus cachês para garantir a finalização dos filmes. Desta forma, podemos afirmar também que o movimento vinculado ao “Novo Cinema Argentino” está gerando uma autêntica “revolução”, não apenas por ter conseguido desestruturar as “velhas” narrativas, mas também por ter instalado formas de expressão debochadas e olhares novos, colocando os sujeitos (e as suas subjetividades) no centro das histórias.

Maquinações 51 GLOBAL


Inquietação e Écio de Salles

Veja, olhe outra vez o rosto na multidão A multidão, ela é um monstro Eu sei: rosto e coração.

Racionais MCs, Negro drama

Movida a ódio de Cristina Pape Foto Wilton Montenegro

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Houve um tempo em que canções de Tim Maia embalavam nossos bailes; uma das melhores dizia no refrão: “o que eu quero é sossego”. Hoje, ouvimos tiros na noite e sabemos que a cidade está em guerra. Dormimos ao som de rajadas de metralhadoras e fuzis. Acordamos diariamente com a contagem dos corpos nos jornais toda manhã. Daí, argumenta-se em favor de medidas duras, fala-se em pena de morte, defende-se a redução da maioridade penal. Onde quer que o medo se instale, logo o ódio aparece, para disfarçá-lo. Por outro lado, nesta geração, as canções que nos embalam armaram nossas almas, e elas miram justamente “a cara do sossego”. Este é o momento em que vivemos, e se o entendo (ainda que pouco), percebo que ele abriu espaço para uma ação inquieta, contínua, que lhe possa fazer frente. Não se trata de uma obrigação moral, mas de uma decisão política. Parte da música que se faz agora é indicativa desse processo: “Não há guerra alguma/ apesar de todo esse barulho infernal/ é só o capital cruzando o mar/ hoje ele voa mais rápido que qualquer míssil”. Esses versos da canção “Caiu a ficha”, faixa do último CD do Mundo Livre, apontam uma questão interessante do

mundo globalizado: o fato de o capital – e portanto as elites – ser móvel, rápido, ele pode cruzar os oceanos na velocidade de um míssil; enquanto ao restante da população restaria a imobilidade, o apego compulsório ao local: os pobres estão presos ao seu lugar de origem. No entanto, as experiências artísticas que têm surgido, ou se consolidado na última década em localidades estigmatizadas ao extremo – como os subúrbios ou as favelas –, e a partir dos setores populares, têm demonstrado a viabilidade de formas radicais de resistência. Elas têm demonstrado também uma virtude fundamental: a inquietação. É a partir do sentimento de que algo não funciona bem na engrenagem social que elas recusam a quietude, a acomodação. Há muitos exemplos de experiências desse tipo. O Hip-Hop é uma das mais interessantes, até devido à sua diversidade interna, que autoriza tanto o discurso de MV Bill no número anterior desta revista, quanto à apologia às drogas, à violência e ao sexismo mais banal, como é o caso de astros internacionais como Snoop Doggy e Jah Rule, que no início de janeiro deste ano fizeram show no Brasil. Até por isso, me interessa neste momento o rap “Negro drama”, dos Racionais MCs. Ele já inicia afirmando dicotomias que tornam dramática a experiência de mobilidade (social que seja) vivida pelo rapper: “Negro drama/ entre o sucesso e a lama/ dinheiro, problemas, inveja, luxo, fama”, e mais à frente: “Negro drama/ cabelo crespo e a pele escura/ a ferida, a chaga, a procura da cura”. O negro drama é o “drama da cadeia e favela/ túmulo, sangue, sirene, choros e vela”. Como se vê, não é uma visão muito pacífica da realidade. Nem poderia, uma vez que o discurso


fúria

dos Racionais não representa apenas a inquietação de jovens negros, moradores de favelas. Ele é direto e contundente, a “fúria negra que ressucita outra vez”, como dizem em outra canção. Mas essa fúria não é cega, não é simplesmente manifestação de um ódio irracional. É antes uma máquina que deseja subverter a realidade que parecia congelada, impossível de ser modificada. Os Racionais pensam diferente. Edy Rock, que no disco canta a primeira parte da música (dividindo-a com Mano Brown, que canta a segunda), diz “Tim tim, um brinde pra mim/ sou exemplo de vitórias/ trajetos e glórias”. Curiosa a associação dos termos “vitória” e “glória” ao termo “trajeto”. Essa idéia – de caminho, estrada, nomes que expressam movimento enfim – é muito presente na música dos Racionais e aparece mais de uma vez apenas nesta composição. Em sua parte, Mano Brown, dirigindose aos poderosos, admite: “Seus carro é bonito/ e eu não sei fazer Internet,

vídeo-cassete, uns carro louco/ Atrasado eu tô um pouco sim”. Por outro lado, afirma: “seu jogo é sujo/ e eu não me encaixo”, para afirmar no fim a sua grandeza: “Eu vim da selva/ sou leão/ sou demais pro seu quintal”. Os Racionais vieram da “selva”, agora estão em outro lugar e, embora também se apeguem firmemente à sua origem (“o dinheiro tira um homem da miséria/ mas não pode arrancar de dentro dele a favela”), sabem que na verdade estão em todo lugar, mesmo que não saibam fazer internet, através dela e de outros meios, habitam um espaço muito maior. “Inacreditável, mas seu filho me imita/ no meio de vocês ele é o mais esperto”, canta Mano Brown, “entrei pelo seu rádio/ tomei/ você nem viu”. O que indica também uma mudança siginificativa na postura do grupo dos discos ante-

riores pra cá. Os Racionais agora sabem que não participam da vida apenas dos 50 mil manos de que falam em “Sobrevivendo no inferno”. O arremate da estrofe é revelador: “Seu filho quer ser preto/ Ah! Que ironia”. Em contrapartida ao imobilismo, os Racionais põem em cena um ativismo nômade, que migra não só através do espaço, mas através das diferentes mídias, das consciências de incontáveis pessoas. Mano Brown sabe que nada é fácil, que é aquele “que não pode errar/ aquele que você odeia”. Mas percebe também que o rap – mas não só o rap – encontrou um outro caminho, através da inquietação e da fúria, e que é nesse caminho que se criam as bifurcações para outros sentimentos e outras ações. No final, Brown pode dizer: “E de onde vem os diamantes? Da lama!” Maquinações 53 GLOBAL


Nasce uma política de Psicodrama da Cidade surge como um modo acolhedor de fazer política, no qual é possível se relacionar diretamente com as pessoas Marisa Nogueira Greeb Finalmente vivemos num regime democrático depois de tantos corpos caídos – seja pelas perseguições, torturas ou fome – mas ainda não conquistamos uma democracia na qual cada cidadão tenha condição de se responsabilizar pela produção coletiva dos desígnios das nações. Penso que isto talvez se deva à política de massas, através do sistema de representação que empreendemos. Recuperei uma reflexão que tinha realizado anos atrás, quando lia Freud no texto Psicologia das Massas. O autor trabalha a questão da situação transferencial que ocorre na relação da massa com o líder. Transfere-se para o líder o ego ideal ou o ideal de ego. E não só isto: as massas delegam ao líder a realização de seus desejos e, conseqüentemente, a responsabilidade das ações e realizações que produzirão as condições do viver. A massa é o um. Não há a mínima condição de conflito, de diferentes posicionamentos e de criação. A delegação se faz de tal modo que entregam a própria cidadania ao modelo da representação. Isso se percebe com clareza quando encontramos as pessoas alienadas e des–animadas isto é, sem anima, sem alma cidadã! Muitas vezes, sentindo-se traídas e ressentidas. Criação do grupo Dispor de um método que facilite a compreensão do drama que se vive, das forças que constroem as articulações existentes na vida da cidade, poder ressignificá-las para conquistar uma cidadania plena, torna-nos responsáveis e comprometidos a usar e multiplicar esse método com esta sua GLOBAL 54 Maquinações

significância. Por isto e para isto foi criado o Psicodrama da Cidade. O Psicodrama da Cidade foi reinventado, na sua versão latino-americana, em 12 de outubro de 2002, como “Escenas de los pueblos”. Que cenas estão sendo vividas pelos pueblos, que articulações objetivas existentes na vida das cidades e quais são, de fato, as articulações subjetivas que geram essas concepções e articulações, que negam aos pueblos a vida digna e justa do e no exercício da liberdade? A noção de protagonismo e a compreensão histórica de que todo drama é contextualizado, oferece a possibilidade de perceber que toda ação está prenhe de conteúdo coletivo, e de identificar qual desses conteúdos está se desdobrando naquele momento. Essa leitura permite compreender o quanto somos produzidos pelo coletivo e, ao mesmo tempo, mostra-nos o quanto também produzimos esse coletivo. Não há um descolamento entre indivíduo e sociedade, mas sim uma construção dialética da dinâmica de um mesmo complexo indivíduo– coletivo, singularidade–pluralidade, na produção da vida. O “insight terapêutico” na cena psicodramática se dá pela visualização do próprio paciente. Moreno diz: “Quando você pode ver a si mesmo, um palco se faz aos seus pés, e você recupera o riso”. Espelho. Esta é uma compreensão de que, se você pode se ver numa cena, um outro em você existe fora da cena, e é este outro que pode lhe tirar da cena não desejada. Uma compreensão que produz alívio, ao mostrar que não é a totalidade que está aprisionada, mas um modo de ser que está gerando aquele sofrimento e aquele lugar na dinâmica das relações sociais, no contexto em que se vive. É uma compreensão do homem como um ser múltiplo e em conflito entre vários campos de forças, entre o pensamento mítico e o reflexivo. Este é o drama. Neste momento, importa denunciar a sociometria do protagonista e/ou do grupo protagônico, e/ou do tema protagônico, para que as relações possam ser reconstruídas na direção de conexões desejantes. Facilitar a libertação das capturas que impedem rela-

cionamentos saudáveis, ações desejantes, éticas, cidadãs, criando as condições de superação da clandestinidade das falas, expressões e relacionamentos saudáveis, é a nossa função. Seria a nova revolução sociométrica, como profetizou Moreno? Política feminina Na época do Psicodrama da Cidade, realizado em São Paulo em 21 de março de 2001, recebi surpresa um telefonema da Bélgica de uma jornalista muito interessada, que me perguntava: – Isto é um novo modo de fazer política? Respondi, rapidamente, que sim. Ainda não tinha, de fato, pensado de maneira organizada no assunto, mas no momento me pareceu óbvio. Ela continuou: – Este é um modo da mulher fazer política? Imagino que tenha sido uma proposta vinda de uma mulher, Marta Prefeita, no caso do Psicodrama da Cidade. Respondi que não, mas que, sem dúvida tratava-se de um modo feminino de fazer política. Um modo acolhedor, que permite se relacionar diretamente com pessoas de diferentes grupos e, fundamentalmente, de ouvi-las. Mas que isto pode ser realizado por homens e por mulheres... É uma outra atitude política que, à medida que se torna um movimento, transforma-se em um outro modo se fazer política sim! Grupo é o lugar do conflito e, nesse sentido, é o lugar onde as pessoas podem se posicionar, discutir, criar novas soluções, criar redes de sustentação e, portando, exercitar a cidadania assumindo sua responsabilidade frente ao coletivo que está sendo produzido. Grupo é o lugar onde a transferência é trabalhada e ressignificada, o que permite que as pessoas se responsabilizem pela produção de suas relações e ações. Esta seria a política de grupo. Esta é uma das possibilidades que o método, mais corretamente chamado de sociopsicodrama, pode oferecer à vida nas e das cidades. E não só nas cidades, mas também na área rural. Já tive a oportunidade de psicodramatizar com os “sem-terra” e foi admirável como esse é um método próprio para a compreensão de pessoas afastadas


grupos da cultura “psi”. É uma linguagem de ação, vivencial. No caso, estamos focando a cidade por ser ela o lugar de encontro das diferenças e também porque nela se apresentam todas as riquezas construídas pelas civilizações, riquezas que todo ser humano tem direito a usufruir. A cidade protagoniza a intensidade das contradições sociais. O simultâneo Outra novidade que favoreceu a ampliação da rede dos psicodramatistas implicados com a questão social foi a simultaneidade dos eventos. Isto também foi inédito no movimento, e incrivelmente atual pelo desejo da mundialização dos “sem-fronteiras”. A simultaneidade também despertou em nós a alegria de nos sentirmos acompanhados e numa rede em ação, ao mesmo tempo e em vários lugares, desvendando a força da ação coletiva para a vitalização da própria rede. E não só. A descoberta de um desejo já presente, mas muitas vezes oculto, na própria escolha do método para a vida profissional. O que não quer dizer que não existam interesses de mercado ou mesmo pouco rigor profissional dos que escolhem um método "mais fácil" e que, por ser vivencial, não exige tanto empenho nos estudos e reflexões. Isto ocorre com todos os métodos e profissões e não podemos nos iludir a respeito de nossa imunidade em relação ao sistema capitalista, que tenta transformar tudo e todos em mercadoria. Estou convencida que, para transformar fundamentalmente o atual regime de competência internacional em um sistema de cooperação mundial, muitas políticas simultâneas precisarão ocorrer. Penso ainda que os psicodramatistas implicados com a questão social – os socionomistas – estão sintonizados com o movimento das multidões que exigem a libertação da vida dos cidadãos do mundo.

A governadora Benedita da Silva acena na partida do dirigível Olho Grande – Extra, Sexta-feira, 6 de setembro de 2002 de Alexandre Vogler. Maquinações 55 GLOBAL


Pirataria

Gilmar Rodrigues

Sender: Gilmar Date: Friday, August 15, 2003 10:15 AM Subject: PIRATARIA

Caros Editores, eis a minha contribuição para o próximo número 2 da GLOB(AL). Um grande abraço e parabéns pela iniciativa! Gilmar PIRATARIA Nos dêem uma boa razão não comprar produtos piratas. São de qualidade inferior? Dane-se. Se não funcionarem a gente compra outros, vale a pena. Um cd pirata custa cinco vezes menos que um cd normal! Compre disco pirata sem nenhum peso na consciência, a pirataria tem um enorme valor social. É distribuição de renda pura. Em vez do champanhe francês do dono da gravadora, o dinheiro vai pra cervejinha do camelô e ainda evita dele tomar uma cachaça vagabunda. Os artistas não ganham nada? Ótimo, além da grana permanecer no nosso bolso, é muito bom pra nossa saúde que cantores e compositores ganhem menos dinheiro. Assim seremos poupados de ver mais uma plástica craquenta na cara desenganada da Zilú (mulher do Zezé di Camargo), acompanharemos o Belo comprar um canivete suíço no lugar de uma submetralhadora fashion direto das passarelas de Beirute e o nossos olhos não assistirão o interminável desfile dos filhos do Netinho: com menos plata, o negão terá que se controlar. Por aí vai uma lista infinita... o Bono Vox pagará menos micos em encontros de cúpula e... sonho supremo (!), os Backstreetboys se apresentarão num clubinho da Pavuna ou de Itaquera. E mais uma coisinha sobre a pirataria... Em que cabeças passa a rídícula idéia de gastar uma grana ferrada em softwares originais? Pra enriquecer a cara de bolacha do Bill Gates? Ninguém de bom senso pode fazer isso em vez de aparelhar sua pequena empresa ou seu computador caseiro com os lindos softwares pirateados. Não é verdade? Vamos ser honestos, vamos ser ladrões e piratas! Sender: Coordenação Editorial GLOB(AL) Date: Thursday, August 28, 2003 12:45 PM Subject: RE: PIRATARIA Caro Gilmar, na reunião da Coordenação Editorial de ontem foi intensamente debatida a tua proposta para a GLOB(AL) número 2. Em termos gerais, a maioria concorda com o encaminhamento que você da ao assunto. O problema, na verdade, foi com relação ao tom “politically incorrect” que você escolheu para manifestar sua convicção. Em particular, não fica muito claro para nós: 1) porque debochar da mulher de Zezé di Camargo, 2) se foi provado que o Belo comprou uma submetralhadora, 3) se o uso da expressão ‘negão’ não é um pouco ambígua.Gostariamos de saber o que você acha destas observações, e se pode encontrar alguma forma alternativa para a reelaboração das mesmas. Gratos, Coordenação Editorial GLOB(AL). Sender: Gilmar Date: Tuesday, September 02, 2003 11:30 AM Subject: RE: RE: PIRATARIA Caros Editores da GLOB(AL), Estou enviando a resposta a respeito do pedido de modificações no meu artigo sobre pirataria. Das mudanças que foram sugeridas eu concordo apenas em suprimir a palavra "negão", porque retirá-la não muda em nada o sentido do texto. Eu não concordo que haja algo de ofensivo no uso desse termo, pelo contrário, no texto ele é usado como um tratamento carinhoso. Se eu achasse que o Netinho é um filho da puta, eu apenas citaria o nome dele, como não é o caso, carinhosamente o tratei como "negão". Mas como não é essa a opinião do conselho editorial sobre o negão, digo sobre a palavra negão, a mudança não me custará a perda de alguma idéia importante. Quantos as outras mudanças, inclusive a minha cara "submetralhadora fashion direto das passarelas de Beirute", eu não estou disposto a mudar, não. Se as frases que dão o tom agressivo e ao mesmo tempo bem-humorado do texto (que é tom que eu desejo, me diga se eu acertei) são justamente as frases recusadas, acho que há uma incompatibilidade entre as minhas posições e as da GLOB(AL). De nada adianta eu trocar essas frases por outras igualmente no mesmo tom, acho que vocês não aceitariam. Eu não entendo o motivo de não se poder falar das plásticas da Zilu, por exemplo. Claro que a questão não é a pessoa dela em si, mas da indústria fonográfica que enriquece alguns, nega oportunidades para tantos e ficam nos empurrando um monte de porcarias que saturam as rádios e a mídia toda em geral (todos os canais de TV, Revista Caras Desenganadas, etc). Eu não quero escrever um artigo falando objetivamente, falando num tom político sobre isso, porque não é a minha especialidade, seria pretencioso querer me meter de uma forma séria na discussão. Minha área é a crônica, a impressão pessoal e subjetiva, se possível debochada. Queria dizer que não estou me recusando a mudar por vaidade autoral. De jeito nenhum. Mudaria com toda boa vontade, mas não posso mudar ao ponto de acabar com a essência, a graça e o espírito do texto. Um abraço, Gilmar.

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