Ética Moral: contra o que moralismo da Lula “suposta” esquerda dodinâmiPT! Não é versus difícil entender e admitir o governo se relaciona com as relações entre governo e movimentos Radicalizar cas de poderasreal na economia financeirizada global, em! nome de recriar as condições e a infraestrutura para o crescimento, buscando um multilateralismo No momento de mandar esse novo número da Global Brasil para a gráfica, a crise ativo no plano comercial e no terreno geopolítico. Reconhecer os condicionapolítica e institucional está estourando em consequência das declarações do Presidente mentos internacionais dos fluxos com as mediações na formapor de parte políticas ativas do PTB sobre um suposto esquema de pagamento de “mesada” do PT aos de regulação e reorientação dos rumos da nossa inserção internacional parece deputados da base de governo. Jefferson “colocou o governo na rua” depois da graser mais adequado um dosuposto que nos afundar no neoliberalismo da era vação que documenta esquema de corrupção nos Correiosprimário que o envolveria. Fernando Henrique ou num cesarismo político de recriação de um certo “terceiro Não podemos esquecer quearticular é a mesma oposição que votou maciçamente em Severino, mundismo”. Mas como novas dinâmicas voltadas para redistribuir a agora see vangloria em mobilizar constituir as uma CPI, visando dar o trocoComo ao PTmobilizar quando era riqueza o poder sem multidões nos territórios? os oposição e antecipando de quebra a campanha eleitoral de 2006. Após ter multiplicado territórios e em particular as cidades (metrópoles) sem universalizar direitos, os esforços para impedir esse municiamento instrumental da oposição conservadora, sem redistribuir renda? uma Como interferir e ampliar potencialidades o governo Lula amargou derrota na medida certaasdos 8 deputados e produtivas do senador sem reverter as lógicas da desigualdade, sem redistribuir do PT que mantiveram a assinatura em favor da CPI. Mais umariqueza? vez, se a oposição capitaliza, os problemas são internos ao próprio PT. Dessa vez não se trata apenas da indisciplina solipsista de um deputado, como no caso da eleição para a Presidência da O resultado contraditório das urnas vaifoi além de uma polêmica sobre as alianças Câmara, mas de um mais numeroso que pretende defender um princípio ético e as contradições dogrupo PT. Ele expressa o caráter ambivalente do resultado. Aposta quePT constituiria a própria alma doas Partido dos Trabalhadores. Com certeza, esses depno e reafirma o pacto com possibilidades de aceitar regras prudentes no utados e o Senador estão certos se eles pretendem manter uma postura que era típica plano internacional e na gestão dos recursos públicos, aprofundando a derrota do PT na oposição. Mas, nessa repetição, eles explicitam a ambigüidade das denúncias de e enfraquecendo o PFL, mas ao mesmo tempo cobra um olhar queoligarquias o PT multiplicava e agora, enquanto governo, é obrigado a articular politicamente. mais comprometido com os territórios e as políticas universais. A pasteurização Qual é essa ambigüidade? Aquela que separa uma verdadeira perspectiva ética do morado projeto político nivelado Opela lógica da subordinação sem inovação no plano lismo petulante e autoritário. moralismo continua afirmando que a democracia representativa deve serleva “limpa”, é a própria que a cormacro-econômico o PT aquando não escutar a criserepresentação dos territórios, aliimplica onde ele gorupção.e/ou a população quer mais. verna Moral e ética não são a mesma coisa. A moral se afirma a partir de princípios abstratos,
As falhas do Fome Zero; a incapacidade de gastar com o social e os problemas ela é indiferente aos processos reais, ao passo que “os moralistas”, afirmando-se pordo Bolsa se ligam menos a problemas de gestão que ào incapacidade tadores doFamília, “bem” contra o “mal”, entram numa “guerra justa”do contra diabo (a “corde universalização. Não se pode atacar por doses homeopáticas de rupção”) que na realidade opõe os fins (transcendentais) aos meios os (as pontos condições estrangulamento onde a relação de forças necessita de uma do afirmação políticas para alcançá-los). Ao contrário, a ética é inseparável processoestratée dos sujeitos a produzem, seja, da transformação social que ela gica de que peso, uma claraouinversão de prioridades. As econômica ambivalências do determiprojeto na e quenão a constitui. A ética em não golpes procurade assemelhar-se a um “bem” já existe, pelo mas petista se resolverão força política para uma que “revolução o produz e, nessa exata medida, não é uma “guerra justa” (uma cruzada) em nome alto”, nem no âmbito da lógica palaciana entre o alargamento da base governista desse suposto bem, mas uma produção de paz. A ética não é a procura de um fim mais e a tecnocracia submetida aos humores do mercado volátil. Somente uma justo, pois ela é interna (imanente) ao processo de recomposição dos fins e dos meios: recomposição sociedade pode alargar das aestratégias de a democracia, a por virtúbaixo contrana a fortuna. Enquanto a moral oé campo constituída, ética é constidesenvolvimento, mobilizando o potencial sócio-produtivo das multidões na tuinte. Os deputados do PT que assinam junto com eleitores do Severino não são éticidade. nada se fará semAuma pactuação que responda ao falsocoloca dilema que cos, masMas apenas “moralistas”. questão que a (suposta) crise política é bem outra, muito na além da composição de umainternacional CPI. O que se de explicita nestas “crises” é que se inscreve concepção de inversão capital, que desconsidera a democracia representativa muito vivo longena decriação uma democracia de fato. a lógica da centralidade doestá trabalho das riquezas. Para mobiliar sócio-produtivamente os territórios é preciso um pacto social interno, o que Maquiavel, que não gostava nada do Savonarola (monge que condenava a corrupção muitos chamam de um “novo welfare”, o que certamente não nos separa da dise acabou sendo queimado pela inquisição), dizia que a virtude não era outra coisa puta que articula redistribuição da renda e do poder base senãointernacional o “povo em armas”, aquelaasituação absolutamente democrática na como qual não há para uma outra globalização enfrentando o neoliberalismo. separação entre o sujeito potente e o excercício desta potência. Trata-se, então, de apostarmos na radicalização democrática, único caminho para a recomposição – ética – dos meiosescassos e dos fins,não momento no qual a virtude se erguede contra a fortuna, contra o Os meios justificam uma incapacidade realizar escolhas que acaso, contra o passado, contra tudo é estabelecido. podem reverter os mecanismos de que desigualdade, a partir das reservas internas e
da potência viva de nossas cidades. O PT tem de reconhecer que o interno também Essa democracia absoluta está nas relações possíveis, abertas, conflituais, embora é externo, que a globalização é de cima para baixo do ponto de vista do capital dinâmicas, que hoje podem se constituir entre governo e movimentos sociais: no e de baixo para cimamínimo do ponto de vista das multidões, dos que pertencem às clasdebate sobre salário e para democratização da política monetária, na reforma ses que vivem da venda de seu trabalho, tanto de forma assalariada quanto por agrária, na reforma universitária, nos programas de distribuição da renda, na publiconta potencialidades estão imobilizadas por conta de o governo cizaçãoprópria. do uso Nossas dos recursos - que já eram públicos - voltados para a produção cultural. Esse é o nosso O resto é apenas e impotente “má connão encontrar umaterreno outra ético. via para o choque de moralismo renda interna, sem o qual não ciência”. resposta à crise política deve ser a mobilização social. Uma mobilização que podemosArealizar uma acumulação relacionada aos modos de produção e consumo o próprio governo deve engajar para sair do labirinto criado pelo moralismo da autode massa. Para construir as dimensões das relações de uma economia avançada denominada “esquerda” do seu partido e de hipócritas do conservadorismo corrupto e integrada para além dos condicionamentos imediatos das forças mais preque impera em muitas de nossas “instituições democráticas”. Para isso, o núcleo datórias dado globalização. Assim, comona não existe inovação âmbito da onova estratégico governo precisará avançar relação direta com osno movimentos, que economia capitalista imaterial e cognitiva sem investimento de risco, não existe significa superar a lógica da representação que existe hoje (Fóruns, Conselhos e possibilidade de recompor as condições e relações de classe de a buscar Grupos de Trabalho entre governo e "líderes" de movimentos). Se modo democracia é o "povo em armas", é preciso apoiar/instrumentalizar/subsidiar os movimentos para que um novo paradigma de desenvolvimento sem um investimento social de risco. eles possam "se armar"
Seção 1 GLOBAL
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Capa Capa de Exú, de Bispo do Rosário Coleção Museu Bispo do Rosário / IMAS Juliano Moreira / RJ. Foto Lula Aparício. Comitê Editorial e Coordenação Executiva Alexandre do Nascimento Barbara Szaniecki Caio Márcio Silveira Ecio de Salles Ericson Pires Fábio Goveia Fábio Malini Francisco Guimarães Gerardo Silva Giuseppe Cocco Ivana Bentes Leonora Corsini Maria José Barbosa Patricia Fagundes Daros Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Peter Pál Pelbart Ronald Duarte Tatiana Roque Conexões Globais Antonio Negri (Itália) Franco Ingrassia (Argentina) Javier Toret (Espanha) Luca Casarini (Itália) Marco Bascetta (Itália) Michael Hardt (Estados Unidos) Nicolás Sguiglia (Espanha) Raul Sanchez (Espanha). Conselho Editorial Adriano Pilatti Alexandre Vogler Ana Monteiro André Basseres André Urani Charles Feitosa Emanuele Landi Eugênio Fonseca Fernando Santoro Hermano Viana João Almeida Sobrinho Joel Birman Jô Gondar Kiko Neto Leonardo Palma Lorenzo Macagno Luis Andrade Luiz Camillo Osório Mauro Sá Rego Costa Simone Sampaio Suely Rolnik
Participaram deste número / Textos Alessandra Giovanella Alexandre do Nascimento Artur Barrio Brian Holmes Carlos Lafforgue Coletivo Non Gratas Pass Felipe Maranhão Francis Sodré Gerardo Silva Giuseppe Cocco Ivanete do MSTC Leonardo Retamoso Palma Liv Sovik Lúcia Copetti Dalmaso Michael Hardt Newton Goto Paolo Virno Paulo Domenech Oneto Pedro Gabriel Delgado Rés-do-chão Ricardo Aquino Rodrigo Fagundes de Cristo Rodrigo Guerón Samantha Longoni Vera Sílvia Magalhães Vera Vital Brasil Tatiana Roque Telma Lilia Mariasch Participaram deste número / Imagens Antonio Manuel Artur Barrio Bispo do Rosário Edson Barrus Franz Manata Giancarlo Neri Glória Ferreira Grupo Urucum Lívia Flores Lula Aparício Maria Gorete Dadalto Pedro Stephan Paulo Jares Romano Ronald Duarte Rosângela Rennó Xico Chaves
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GLOBAL. 2 Sumário
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brasil
G L O BA L (01) Editorial
(04) Para um novo pacto Giuseppe Cocco (06) Deu branco na mestiçagem Liv Sovik (08) Fosso da normalidade democrática Paulo Domenech Oneto (10) Direito de morar, direito de viver Entrevista com Ivanete, coordenadora do MSTC, por Samantha Longoni (12) Reduzir Danos Pedro Gabriel Delgado (14) Saúde em comum Francis Sodré
(16) Esquecer a dor, não as razões da dor Tatiana Roque (18) Ao encontro da memória Entrevista com Carlos Lafforgue por Gerardo Silva e Telma Lilia Mariasch (20) Sem medo dos arquivos Telma Lilia Mariasch (22) Micropolítica do afeto Entrevista com Vera Sílvia Magalhães por Newton Goto (28) A vida que insiste em resistir Vera Vital Brasil
(30) A política e a felicidade Paolo Virno (34) Uma viagem à China Michael Hardt
(38) Os museus na era do workfare generalizado Brian Holmes (41) From: Artur Barrio, to: rés-do-chão Entrevista de Artur Barrio por rés-do-chão. (44) Implosão de muros e paredes do museu Ricardo Aquino (46) Desfile Fashion Real Coletivo Non Gratas Pass (50) A potência revolucionária do desejo Rodrigo Guerón (52) Garganta Fecunda Alessandra Giovanella, Leonardo R. Palma, Lúcia C. Dalmaso, Rodrigo F. de Cristo (54) Ano da igualdade racial Alexandre do Nascimento
(56) Adão: o homem que virou projeto Zé Colmeia Sumário 3 GLOBAL
Os governos de Brasil e Argentina precisam encontrar uma esfera pública que reconheça as dimensões produtivas da cidadania e da democracia
GLOBAL. 4 Trânsitos
Um dos maiores desafios dos governos Lula no Brasil e Kirchner na Argentina é o de encontrar o caminho para um pacto capaz de mobilizar a sociedade para além da crise do Estado – crise da dívida e da representação – para enfrentar, em novas bases, os constrangimentos externos. O novo pacto social será efetivo se conseguir romper a falsa alternativa entre a gestão técnica dos constrangimentos do superávit primário, das taxas de juros etc. e o impossível curto-circuito “isolacionista" da moratória. Isso significa que o novo pacto deverá deslocar essa feroz alternativa num terreno inovador. Mas, se sabemos o quê o novo pacto deve visar, não sabemos quais são as condições de constituição deste pacto enquanto inovação democrática adequada a esse desafio. Com efeito, a questão, em vez de oferecer uma fácil resposta, abre uma longa série de outras questões:
• o que é um "novo pacto", quando a relação salarial está em crise e nem produz a perspectiva do grande enfrentamento e da grande mediação entre capital e trabalho? • que “pacto” pode sustentar uma dinâmica de desenvolvimento, quando a perspectiva da inclusão social pela correlação entre crescimento e emprego formal se desmancha no ar? • qual pode ser o espaço político institucional de um "pacto" frente à crise irreversível da soberania do EstadoNação? Ultrapassar o antigo pacto A resposta a essas questões só pode ser inovadora. Digamos que o único pacto possível é o que, paradoxalmente, ultrapassa a própria noção de pacto entre forças produtivas (trabalho) e relações de produção (capital). Nesse sentido, seu espaço político é também – e imediatamente – um espaço produtivo, inovador.
Foto de Maria Gorete Dadalto
PARA UM NOVO PACTO
Organizando os movimentos Trata-se, pois, de organizar o trabalho dos movimentos, ou seja, de constituir o espaço público do trabalho da multidão de sujeitos produtivos que desenham as redes integradas de pro-
dução e distribuição. O trabalho comum deve encontrar seu espaço público: o "novo pacto". O novo direito público da produção intelectual, como, por exemplo, o copyleft; as formas de resistência no âmbito da produção cultural, como os movimentos Afroreggae, Nós do Morro e, mesmo que em termos diferentes, o novo cinema argentino; as lutas pela conquista da terra e da moradia; e as lutas de auto-valorização, desde a auto-produção das favelas até as fábricas ocupadas na Argentina, passando pelo terciário informal de todas as grandes metrópoles latino-americanas; todas essas iniciativas têm que encontrar uma esfera pública que reconheça as dimensões produtivas da cidadania e da democracia. Constituir o pacto é mobilizar produtivamente a sociedade. Por isso, organizar os movimentos e organizar a produção é a mesma coisa. O "novo pacto" é o âmbito político dessa mobilização produtiva da sociedade.
Giuseppe Cocco
No "antigo pacto" – estamos falando do pacto rooseveltiano-fordista e das formas parciais e corporativas que ele conheceu no Brasil de Vargas e na Argentina de Perón – a mobilização produtiva já tinha acontecido dentro da relação salarial. Tratava-se de distribuir os frutos do crescimento produzido por essa mobilização assalariada do trabalho, de maneira a estabilizar o crescimento pela redução das desigualdades (sabemos que na América Latina nem isso aconteceu). Hoje, o "novo pacto” só é possível quando proporciona uma distribuição da renda que funcione como momento fundamental de uma mobilização produtiva. A mobilização produtiva, a inclusão social, não pode mais ser dada a priori pela relação de capital, mas pela própria dinâmica do pacto, ou seja, a constituição das bases materiais da cidadania: renda universal e acesso universal aos serviços.
Trânsitos 5 GLOBAL
Deu
BRnaAmestiçagem NC O Imagem de país da convivência A identificação do Brasil como país mestiço foi, no início do século XX, uma resposta da auto-estima brasileira à ideologia do embranquecimento. Contudo, em um país mestiço, os brancos são irrelevantes, pois a questão é de misturarse, deixar-se misturar, reconhecer-se como produto da mistura, o que, paradoxalmente, sempre é possível sem se deixar de ser branco. Pois ser branco no Brasil é ter a pele relativamente clara, funcionando como uma espécie de senha visual e silenciosa para entrar em lugares de acesso restrito. O branco se coloca como problema hoje porque a militância cultural e política negra e as estatísticas oficiais informam que o Brasil não é só um país de mestiços, mas de negros-e-pardos, de um lado, e de brancos, do outro. Nesse sentido, cabe aos brancos uma renovada reflexão sobre seu lugar na sociedade brasileira, para proceder a uma ação também de brancos contra o racismo. É necessário encontrar não só formas concretas de combater o racismo juntos, mas de tirar o peso do argumento que, em um país mestiço, está tudo (relativamente) bem. Perda de centro Os brancos tendem a considerar que as “queixas” dos que estão do lado de fora são chatas, feitas por quem não sabe entrar nos circuitos do poder. Agrega-se a isso o fato de que é mais fácil para os brancos conviver passivamente com hierarquias sociais racistas – muitas vezes abençoadas pelo discurso de serem todos mestiços – do que relembrar a escravidão e sua vinculação com a injustiça presente, um dos principais estímulos éticos à mudança. E, ainda, os brancos resistem a acatar a liderança negra e ficar na sombra quando participam de um grupo racial misto, e a entender que não detêm o principal poder de reflexão e mobilização política nesse tema. GLOBAL. 6 Trânsitos
pacífica alimenta o discurso do vazio racista no Brasil Liv Sovik Algumas dessas resistências brancas estão sendo enfrentadas. O resultado desse processo de enfrentamento por rappers, funkeiros, organizações e lideranças negras e pessoas negras na vida cotidiana já se faz sentir, com a crescente consciência da questão racial brasileira pela classe média branca. Mas é preciso elaborar um discurso não só sobre ajustes políticos necessários; nem é suficiente valorizar a cultura negra sem discutir o lugar da branquitude nas relações raciais. É preciso enfrentar a versão conservadora da mestiçagem. Para mudar o quadro de aceitação da rotina racista, é preciso inventar uma nova versão do Brasil. Por ser uma estrangeira arraigada no Brasil, preocupa-me particularmente a necessidade de reinterpretar a mestiçagem na imagem do país no exterior. Lá, como cá, ela faz sucesso como indicação da singularidade das relações raciais brasileiras, cuja característica principal seria uma falta de conflito aberto e a convivência pacífica de sofrimento e gozo. “São pobres, mas sabem se divertir melhor do que a gente”, diz o turista estrangeiro que visita o Brasil. O discurso mais autorizado de todos – o da filosofia francesa – diz coisa muito semelhante: o nietzscheano Clément Rosset declarou, em uma passagem pelo Rio de Janeiro, que havia aqui “uma convivência extraordinária entre a alegria e o caráter trágico da vida”. Há porta-vozes brasileiros da mesma mensagem, que afirmam que a Bahia é a terra da felicidade e o brasileiro um povo alegre.
Nimbo/Oxalá, interferência de Ronald Duarte, realizada nos pilotis do Palácio Gustavo Capanema - FUNARTE, 2004. Foto Pedro Stephan A cor do Brazil Enfim, a imagem do Brasil no exterior tem gênero e cor: é uma mestiça. Nesse sentido, é importante retomar a história da mestiçagem, pois ela é patrimônio cultural nacional e global. Retomar essa história implica ver que a valorização da mestiçagem não data só das primeiras décadas do século XX. No Brasil Colônia, mestiços eram valorizados porque eram considerados melhor adaptados ao trabalho nos trópicos e porque teriam meio caminho andado entre o mal do negro e o bem do branco. Impossível pensar o Brasil sem essa história; impossível pensá-lo sem a mestiçagem, historicamente engendrada pela violência e a dominação, assim como pela resposta que os dominados deram. Um exemplo de que a mestiçagem não significa fusão entre elementos iguais encontra-se na máscara católica sincrética do candomblé. Essa máscara nunca aderiu completamente. Hoje, depois que a repressão oficial ao candomblé passou, entende-se que Santa Bárbara representa Iansã, mas Iansã não é Santa Bárbara: as relações são assimétricas e dificilmente o discurso da identidade negra atual será reencapsulado pelo da mestiçagem.
São necessárias novas políticas culturais e de turismo que derrubem o mito da mestiçagem apaziguadora. É preciso reformular a mestiçagem para projetar uma identidade que promova a igualdade racial sem abandonar a dos termos históricos do imaginário em que a mistura sempre teve um lugar privilegiado. A divulgação da diferença brasileira no exterior poderia ter novas palavras de ordem, tais como: o Brasil é um país que parece familiar para o turista estrangeiro, mas na verdade é difícil de entender; o Brasil é um país multivocal, cuja cultura abarca a ironia e a autoironia. As novas políticas terão que valorizar essa complexidade. Central nesse esforço será o fim da naturalização do alto status social do branco.
Este texto foi apresentado em um painel realizado no Rio de Janeiro no Centro Cultural Banco do Brasil em 18 de novembro de 2003, encerrando a quarta edição dos Diálogos Contra o Racismo. Os Diálogos representam o esforço de 40 redes e organizações da sociedade civil brasileira para construir alianças contra a desigualdade racial.
Trânsitos 7 GLOBAL
fosso da normalidade democrática Imaginemos alguém que tenha parado de acompanhar a política nacional nos últimos anos. O que esta pessoa pensaria ao ler a primeira página dos jornais no mês de fevereiro deste ano? Como aceitar, com tranqüilidade, que um aliado da ainda recente ditadura militar – homófobo e fisiologista contumaz – pudesse ser guindado à presidência da Câmara dos Deputados contra as intenções de um governo com elevado poder de barganha e boa aprovação popular? Pois, se o discurso da "normalidade democrática" era bem fundamentado, não haveria espaço para semelhante descompasso entre o apoio popular ao executivo e o poder legislativo. Como suportar as imagens que cercaram a desocupação da área invadida por centenas de sem-teto em Goiânia? Se a democracia é o regime que transfere poder à população e o poder de habitar faz parte dos poderes básicos que devem estar ao alcance de todos – como explicar que se deva guerrear contra a polícia para exercer este poder? No caso da eleição para a presidência da Câmara, pouco importa saber se Severino Cavalcanti foi eleito em virtude de falhas na articulação de um governo que, mesmo dominando a bancada, pecaria por ignorar os bastidores do Congresso. Relevante seria notar que o “toma-lá-dá-cá” que agiu como trunfo no processo de votação continua em pleno vigor "lá dentro", enquanto aqui “do lado de fora” todos já declararam, há tempos, seu repúdio a esta tendência endêmica da política brasileira. Também importa pouco saber se Severino é um homem de oposição ou simpático à base governista, quando o que mais irrita é que o governo pareça estar mais interessado em se legitimar por medidas econômicas acertadas do que em convocar outras forças políticas, tornando extremamente difícil combater o fisiologismo, aumentando deste modo a distância que separa a população não-organizada dos poderes oficiais. GLOBAL. 8 Trânsitos
Na realidade, o que parece existir é um fosso entre as ações dos poderes instituídos e o desejo de participação da população, algo que conduz a um sentimento de impotência política cada vez mais forte e que é, no fundo, inerente ao modelo de democracia calcado no mecanismo de representação. A tão sonhada “normalidade democrática” se resume a um espaço de liberdade de manifestação e voto? Sem que nenhum projeto claro visando conferir poderes básicos à população, como morar ou controlar os governantes, seja discutido? O que o mais despolitizado dos brasileiros volta a enxergar, através dos dois acontecimentos narrados, talvez o leve a se desinteressar ainda mais pela política de gabinete. Enxerga-se, no acontecimento da desocupação, uma cratera, cavada entre as instituições ditas democráticas e sua ação efetiva, entre o poder formal, tão bem encarnado na ilusão do voto, e o poder efetivo de morar. Vislumbra-se uma cratera, igualmente vasta, entre o que a população deseja como negociação política no Congresso e no Planalto e o que efetivamente se passa nessas instâncias de poder.
A confiança desmesurada na demo cracia representativa parece, inevitavelmente, levar a um fosso, na medida em que a própria idéia de representação pressupõe uma ausência. Como o objeto do desejo na psicanálise, o representado é aqui sempre faltante. E é no lugar dessa ausência que se cava o fosso. As dificuldades de criar novos canais de participação, e de informar os que desejam utilizá-los, faz a sociedade se convencer de que o representado estará sempre, e em última instância, ausente. Só lhe resta delegar poderes e torcer para que os delegados ajam em seu lugar. Pior ainda: a crença na ausência inelutável do represen tado faz com que a questão de seu poder efetivo (poder de morar, de se educar, de manter a saúde, de ter os impostos pagos direcionados para seus interesses) conduza a um discurso vago sobre direitos. É como se nos fosse dito que não podemos reclamar da má distri buição de teto, uma vez que os eleitos pela maioria não o querem, é como afirmar que há coisas mais importantes a fazer.
“O que parece existir é um fosso entre as ações dos poderes instituídos e o desejo de participação da população, algo que conduz a um sentimento de impotência política cada vez mais forte e que é, no fundo, inerente ao modelo de democracia calcado no mecanismo de representação. A tão sonhada 'normalidade democrática' se resume a um espaço de liberdade de manifestação e voto?”
Dois acontecimentos explicitam esse dilema da política brasileira: a eleição de Severino Cavalcanti na Câmara dos Deputados e a desocupação de área ocupada por sem-teto em Goiânia. Paulo Domenech Oneto
Não matarás, projeto de outdoor de Romano.para a Via Light, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, 2005.
Os limites do raciocínio da direita e da esquerda clássicas se revelam aqui com toda a clareza. O liberalismo acredita que democracia é liberdade formal e que sua realização de fato é uma questão de tempo, dependendo da livre iniciativa no plano econômico. A esquerda, por sua vez, acredita saber o que são os direitos essenciais da população e busca impô-los de cima para baixo, sem se perguntar o que se quer em termos de sociedade e como viabilizar estes direitos. O atual governo parece se esforçar para escapar dessas visões, mas talvez seja incapaz de fazê-lo, de maneira mais contundente, precisamente por permanecer na ótica da democracia representativa. Enquanto nova elite política, o que parece lhe faltar é uma espécie de virtù maquiavélica, isto é, uma maior capacidade para usar as paixões da população em
favor das mudanças que pretende implantar. Isto, no caso de nossos governantes saberem o que pretendem. De um modo ou de outro, se há algum problema no poder central, ele não é certamente de gestão ou de confiabilidade, mas de pouco interesse em estimular novos canais de participação, além dos mecanismos institucionais vigentes, que permitam que a sociedade se expresse. Se, dentre os motivos da eleição do atual governo pela população brasileira, pudermos incluir uma certa admiração pelo estilo petista engajado, que sempre reclamou uma recomposição por baixo (diferentemente das esquerdas tradicionais), é preciso que sua base partidária faça jus a essa aspiração dos eleitores. Faz-se necessário forçar o debate sobre reforma política, dando ênfase aos limites da democracia representativa. Não basta
achar bom que movimentos sociais busquem realizar seu potencial de participação. É preciso perder menos tempo com articulações ministeriais para se concentrar na construção de uma ponte sobre o fosso da normalidade democrática. Em outras palavras, é preciso trazer a sociedade para perto, recusar a tese da ausência. Não tentá-lo implica em recair nos velhos círculos viciosos da política nacional. Círculos do tipo: é preciso educar o povo para que elejam candidatos que possam realizar mudanças na legislação, mas é preciso mudar a legislação para que haja mais educação. O círculo vicioso se manifesta aqui sob a forma de um dilema entre esperar uma articulação espontânea dos diversos setores da sociedade e continuar depositando toda a nossa fé nos mecanismos da democracia representativa. Enquanto isso, nosso personagem do "alienado" continua perplexo. Trânsitos 9 GLOBAL
R, A OR R te, M e n E IVE Iva TC, D O E V com o MS ni T I E O D vista ora d ongo R I D EIT ntre enad tha L E n ord ma DI R a co rS po
No documentário produzido por Samantha Longoni sobre o MSTC, Dia de Festa, a coordenadora Ivanete conta um pouco das ações do grupo. O trabalho será lançado ainda em 2005.
Quais são as principais formas de luta do movimento? Nós nos organizamos por manifestações, atos, passeatas e, se esse tipo de pressão não é viável ou não consegue nada, aí a gente parte para a ocupação. A ocupação se organiza na base, na própria base, e avalia. Se a base decidir o momento de ocupar, a gente vai ocupar! Essas são as principais formas de luta: atos, passeatas e, principalmente, a ocupação. Fale um pouco mais sobre uma coisa muito interessante: é feita uma pesquisa sobre o prédio e, antes mesmo da ocupação, já há uma proposta para esse prédio. Quando a gente parte para a ocupação, primeiramente discute tudo que tem que ser discutido com as famílias do grupo de base. É o momento? É! Então vamos levantar o imóvel. GLOBAL. 10 Trânsitos
Levanta o imóvel, vê há quanto tempo ele está fechado, se realmente é viável. Levantou o imóvel! A gente parte para a ocupação, geralmente, quando dá certo, as famílias moram no imóvel. No Prestes Maia deu certo, e as famílias estão morando lá há dois anos, sem pagar aluguel, vivendo e comendo melhor. Então, é um pouco isso a ocupação, bastante voltada para a questão da família que está em situação subhumana dentro do cortiço. A família pode sair do cortiço, onde paga aquele absurdo de aluguel, e vai para a ocupação. Com o dinheiro que ela gastava no aluguel, passa a comer melhor. Você falou do Prestes Maia... Esse prédio, Prestes Maia, tem projeto. Ele vai estar sendo reformado através do PAR (Programa de Arrendamento Residencial) e através da prefeitura: então uma parte vai ser PAR, que é da Caixa Econômica Federal, e outra parte vai ser locação social. São 249 unidades e as famílias que forem para o imóvel e não tiverem condição de comprar o imóvel vão pagar 10% do salário que ganham. Isto é, se a família ganha R$200 vai pagar 20 reais de aluguel e vai viver lá. Agora lá tem 468 famílias. Aquelas que não entram nas 249 ficam dentro do bolsa aluguel, esperando outros projetos que nós temos, cerca de 38, já sendo encaminhados. O imóvel Brigadeiro Tobias também é outro caso de sucesso. Ficou fechado por mais de 10 anos, foi ocupado há vários anos e agora está dando certo. Ali, antes da ocupação, era um ponto de tráfico de drogas. As pessoas entravam no Brigadeiro e iam traficar para poder usar a droga, havia homens que queriam estuprar as mulheres. Teve uma época, antes da ocupação, em que o B.T. pegou fogo porque os moradores de rua pegavam fio e queimavam para tirar o cobre
Não Hesite, de Romano, projeto de grafite para área pública em demolição, Barcelona, Espanha, 2002
e vender. Com o imóvel precário, vazio e com muito lixo, sabendo da dívida de mais de 3 milhões de IPTU que o proprietário tem, resolvemos ocupar o espaço, que tinha sido avaliado também pelas famílias e que podia dar em um bom projeto. No dia 3 de novembro de 2000 ocupamos o Brigadeiro Tobias. Depois, as famílias saíram porque o projeto passou para o PAR? As famílias permanecem lá. Pedimos ao arquiteto que acompanha a gente no movimento para ver quantas unidades davam. Levamos para a prefeitura e para a Caixa Econômica Federal e a proposta do movimento é que a prefeitura, devido ao débito que o proprietário tem, desaproprie o imóvel e passe para a função social. Essa é a troca, a prefeitura desapropria o imóvel e passa para a utilização social: uma parte fica com o PAR, outra parte com a locação social. Ou seja, não tem exclusão, quem tem condição de morar definitivamente vai morar, quem não tem condição de morar definitivamente, dá para pagar um aluguel viável e morar também. Quantos prédios foram ocupados até hoje com sucesso, como o Brigadeiro Tobias? Hoje são pelo menos cinco imóveis com famílias que entraram no movimento e estão aí sem pagar o aluguel, comendo melhor. Esse aqui do Santa Rosa, depois de uma luta; o do Barão de Piracicaba; o do Prestes Maia; o Brigadeiro Tobias nº360; o Nova Conquista; e o Bela Vista. Esqueci de outro que foi ocupado e estão lá cerca de 28 famílias. Então nós temos sete imóveis ocupados. Ocupados e conquistados, porque foi tudo através de muita luta. Quais as diferenças e semelhanças entre o MSTC e os outros movimentos? Não apenas de sem-teto, mas de sindicalistas, intelectuais, sem-terra? Estamos dentro da frente de luta por moradia, temos relação com essa frente, que é boa. São movimentos que realmente estão vendo que a conjuntura atual não esta voltada para a questão social e que o coletivo só vai ter alguma conquista através da luta. Então uma frente está nascendo, nascendo com a vontade de crescer, e é dentro desta frente que estamos buscando parceria com outras cidades, como Recife. Com eles, que são a favor da luta, tivemos uma conversa informal. Com o MST não tem nada certo, o MSTC quer a parceria e o MST também está interessado, só que temos que ter mais conversas ainda. (...). A avaliação que eu faço é de que, para se ter uma reforma agrária, deve-se ter também uma reforma urbana. Sem-terra no campo e sem-teto na cidade para, juntos, construirmos uma nova sociedade. Tem tudo para dar certo, para que se faça uma unificação da luta, para que, quando se ocupar a terra, o centro apóie e, quando ocupar o centro, a terra apóie também. Já com o sindicato temos pouca relação. Anteriormente a luta sindical era muito forte, hoje eu não sei o que aconteceu. Infelizmente, a avaliação que eu faço, de repente eu estou avaliando errado, mas é que o movimento sindicalista teve uma direção um pouco errada, meio de cima para baixo. Eu acho que você ter uma organização, ou tentar montar alguma coisa de cima para baixo, não funciona muito. Você tem que pisar no barro, de baixo para cima, que aí a coisa dá certo. O movimento sindi-
cal, como está um pouco de cima para baixo, treme na estrutura. E você não ouve mais falar de greve sindical, você não vê mais passeatas sindicais, mas só, sempre, de cada um dos setores. Anteriormente não era assim, ou seja, não temos muita relação. Intelectual também não. Você tinha dito que tem estudantes que participam e contribuem com vocês na luta... O estudante nos ajuda muito quando precisamos montar alguma coisa sobre formação, mas isso é raro, só um ou outro, ou quando eles têm alguma coisa para fazer na escola, na universidade, aí eles têm que escolher alguma coisa, então esse estudante quer entender mais sobre a questão do sem-teto e vem para a ocupação para conhecer a nossa luta. Eu acho que os estudantes, na verdade, nos ajudam levando, de uma forma mais real, para dentro da universidade, o motivo pelo qual os sem-teto estão lutando. Será que os sem-teto são vândalos como mostram? Porque tem uma parte lá fora que nos odeia, que acaba achando que somos um bando de vândalos, que colocamos a nossa vida e a de outros em risco. Mas também somos até convidados pelas universidades para darmos nossos depoimentos, para falarmos um pouco do movimento, e isso é muito bom. Quantas pessoas há no MSTC? São 3 mil famílias, e pessoas são 6 mil. Cada titular representa uma família, então são cerca de 3 mil famílias organizadas dentro do movimento. Como é o movimento organizado: grupo de base, coordenadores, apoio? Nós organizamos os grupos de base em associações de bairros, em salões cedidos pela igreja, até mesmo em algumas sedes de salas de sindicatos ou de igrejas em que o padre entende a luta. Com isso, são cerca de 60 grupos de base. Também nos organizamos nas ocupações, que também têm seus espaços para poder concentrar as famílias. Qual é a avaliação do movimento sobre o resultado das eleições municipais em São Paulo? É tão complexo, intenso, que se eu fosse falar demoraria uma hora. É lamentável! Eu acho assim, todo mundo sabe, eu não quero ser pessimista, mas todo mundo sabe e nós sentimos na pele, que o PSDB no governo do estado nunca abriu as portas. E eu sinto que vai ser um pouco igual no governo municipal. Acho que foi super-lamentável o PT perder a eleição, porque o PT fez um trabalho mais voltado para o social, o PT se preocupou muito com a questão da merenda, dos uniformes da escola, da educação para o pobre, a questão do homem e da mulher em situação de rua, a questão do desempregado que não tinha o vale-transporte. Se o PSDB continuar esta preocupação com a questão social, tudo bem, a gente perdeu mas não perdeu tanto. Mas o medo é que eles não continuem com a preocupação voltada para o morador pobre, para aquele morador em situação sub-humana mesmo. Tomara que eu esteja enganada, mas eu acho que esses projetos não vão continuar. Foi lamentável, uma perda muito grande para São Paulo. Mas, independente de qualquer situação, como somos do movimento, a luta continua (e quem não luta está morto) então temos que lutar muito mais para ter conquistas na questão social (...) Trânsitos 11 GLOBAL
reduzir danos é ampliar direitos na saúde pública No governo Lula, as ações de redução de danos estão sendo ampliadas, passando a integrar o eixo estratégico do programa de saúde mental e atenção aos usuários de drogas Pedro Gabriel Delgado O carro com a logomarca da Universidade Federal da Bahia estaciona numa rua lateral do bairro de Pituba, em Salvador. São 21 horas. Quatro pessoas descem da perua; um deles, de jaleco branco, é muito jovem; uma senhora esguia, de rosto suave, toma a iniciativa. Espalham-se pela esquina e pela rua lateral e começam a conversar com os garotos da rua. O jovem de jaleco logo se põe a examinar a pele de um dos meninos. Aos poucos formase uma rodinha; as meninas e meninos da rua circundam as pessoas da equipe, em uma conversa que começa desanimada e arisca, e logo se torna viva, cheia de interrupções e risos. Pacotes de camisinha são distribuídos, alguns dos jovens saem para uma conversa particular com pessoas da equipe, telefones e horários são combinados. A chegada de um carro de polícia estabelece uma tensão ríspida no ar. Um diálogo hostil mostra que os policiais já conhecem aquele trabalho, alguns curiosos se aproximam. Vinte minutos depois, a confusão já se desfez, e a rodinha inicial vai se reconstruindo. O jovem residente de jaleco continua buscando os incontáveis ferimentos e lesões de pele, e agora está francamente auscultando os pulmões de uma garota muito magra que apareceu depois. Conversas particulares se multiplicam, demonstrações do uso da camisinha provocam risos, um rapaz muito exaltado discute asperamente com uma psicóloga da equipe. Tudo isto dura cerca de três horas. Começam as despedidas, a equipe entra na perua branca, que manobra e sai, com o motorista gritando pela janela: “Até Quinta!”. GLOBAL. 12 Trânsitos
Quinta-feira é na Pituba, nos outros dias será no Pelourinho, na Zona Ferroviária, em outros bairros de Salvador. É o consultório de rua do Centro de Estudos e Tratamento de Álcool e Outras Drogas (CETAD), onde funciona também o Centros de Atenção Psicossocial (CAPS-AD), um serviço de atendimento diário, responsável pelo centro da cidade. Contudo, aquela perua branca circula mais, porque durante o dia ela leva os voluntários e redutores de danos para regiões mais remotas da periferia de Salvador, em trabalho conjunto com a Associação Baiana de Redutores de Danos. Lugares aparentemente inatingíveis podem ser visitados regularmente, porque os redutores são pessoas da comunidade, conhecem o ambiente e a gente dali, e construíram uma relação de confiança com os moradores e com os usuários de drogas. “Em diversos estados do Brasil existem cerca de 250 grupos de redução de danos apoiados pelo Ministério da Saúde, num trabalho que salvou milhares de vidas nos últimos 9 anos” Este é o exemplo da Bahia, mas em diversos estados do Brasil existem cerca de 250 grupos de redução de danos, apoiados pelo Ministério da Saúde, os quais começaram realizando o trabalho fundamental da troca de seringas, que salvou milhares de vidas nos últimos 9 anos. Estima-se que 149 mil usuários de drogas injetáveis já tenham sido atendidos no programa, e a redução dramática dos índices de contaminação por HIV e Hepatite C neste grupo é uma das razões pelas quais o programa de AIDS do Brasil é considerado exemplar no mundo. No governo Lula, as ações de redução de danos vão se ampliando, deixam de ser marginais, passando a integrar o eixo estratégico do programa de saúde mental e atenção aos usuários de drogas.
Alguns dados do problema: 1. A vulnerabilidade à droga é tanto maior quanto mais vulneráveis socialmente são as pessoas, especialmente crianças e jovens. 2. O álcool é 10 vezes mais danoso que o conjunto das drogas ilícitas, mas toda a comoção institucional é mobilizada pela condição de ilicitude das drogas, pelo transfundo ideológico da “guerra contra as drogas”. 3. Há uma historicidade, a ser melhor recuperada, da associação entre drogas, mercado ilegal de drogas e armas e variáveis demográficas e urbanas no contexto brasileiro. 4. A legislação simplista e dura, que criminaliza o consumo, é um dos principais empecilhos para uma política pública democrática e eficaz. 5. A saúde pública retirou-se historicamente do problema, deixando-o para raros especialistas e instituições religiosas, além da polícia e da justiça, claro. Com a redução de danos e a criação dos CAPS-AD (que somam hoje 84 no país) a saúde pública busca resgatar sua dívida histórica com a sociedade brasileira. Mas isto é apenas um começo. 6. Para a saúde pública, as drogas e as pessoas que as usam são diferentes. Então, as ações têm que ser diversificadas e criativas. Principalmente, pragmáticas. Exemplo: a transição do uso do crack para o uso de maconha, sob condições estritas de acompanhamento médico e psicossocial, pode ser um caminho terapêutico para adolescentes muito graves. Esta é uma das alternativas de manejo terapêutico da redução de danos que vem dando resultados efetivos na experiência brasileira. As salas de uso seguro para dependentes muito graves (com risco de acidentes por overdose, por exemplo) constituem outra possibilidade que já mostrou bons resultados em diversos países.
Bola / Boca livre, de Edson Barrus, trabalho em processo 1992-2005.
A redução de danos é uma estratégia da saúde pública para enfrentar um problema espinhoso. A relação com a segurança pública e a justiça, a marginalização social, as condições de vida no limite da sobrevivência física, são ingredientes obrigatórios desta clínica complexa. É o nosso dever, entretanto, procurar e oferecer saídas, para fora do beco, para a luz da cidade, para o centro da vida. A base legal para a redução de danos é dada pela lei 10.409/2002, pelo documento oficial da Política Nacional
Antidrogas, de 2003, e por vários textos normativos. Uma regulamentação mais abrangente e eficaz na legitimação do trabalho dos redutores de danos – que ainda enfrentam manifestações de incompreensão e intolerância por parte de alguns setores da justiça, da segurança pública e do Ministério Público – está sendo elaborada no âmbito do governo federal. Entre as várias experiências que já mostram bons resultados estão o CETAD, na Bahia; o PROAD, da Universidade Federal de São Paulo; o
Centro Mineiro de Toxicomanias, de Belo Horizonte; a Secretaria Municipal de Saúde de Santo André (SP); o NEPAD-UERJ, no Rio de Janeiro; o governo do Acre. Destaca-se também a Associação Nacional de Redutores de Danos, a ABORDA. Este é o caminho que a saúde pública no Brasil vem tentando construir, em diálogo permanente com a sociedade e escuta sensível à delicadeza da questão. Mas estamos apenas no começo. Trânsitos 13 GLOBAL
saúde em [ comum] O Brasil traça no governo Lula sua mais ofensiva política de saúde como capital de barganha no interior do Mercosul. Considerada uma ação estratégica de governo, a saúde vem desenhando sua política com um foco direcionado também aos vizinhos. Pensar sobre as fronteiras e os “riscos” que elas envolvem é uma preocupação do Estado desde a sua formação. Porém, o Ministério da Saúde adota uma postura que vai além da ponte que nos separa dos países vizinhos. Pensar a saúde do nosso tratado de livre comércio envolve também pensar a saúde dos seus signatários. No último encontro de ministros da saúde do Mercosul realizado em junho do ano passado, a pasta da saúde brasileira expandiu seus projetos também para os países associados, como Chile, Bolívia e Peru, com a intenção de estabelecer estratégias comuns, respeitando a realidade sócio-econômica de cada país. Entretanto, o Ministério da Saúde já vem implementado ações nesta área. Biopolítica A primeira ação desenvolvida pelo Ministério é proveniente da nossa mais antiga experiência: a vacinação. Apenas durante os meses de junho e julho de 2004, o Brasil doou para os países que compõem o Mercosul mais de 300 mil doses de imunobiológicos produzidos pela Fiocruz e transportados pela Unicef. Além disso, o Brasil tem articulado políticas conjuntas de vacinação, como o caso da vacina contra poliomielite, sarampo e gripe, em que todos os membros do acordo aduaneiro foram vacinados ao mesmo tempo – uma ação planejada pelo governo brasileiro. Ainda aproveitando aquilo que temos de melhor, o Brasil lança para o Mercosul uma política intergovernamental de prevenção e tratamento do HIV/AIDS. Destaca-se, dentre outras ações, a elaboração de estratégias e assistência no cuidado às populações fronteiriças, que se traduzem no estímulo à criação de programas conjuntos para a redução dos preços de medicamentos anti-retrovirais, na ampliação da distribuição de preservativos e na redução dos custos de tratamento. GLOBAL. 14 Trânsitos
A atuação do Brasil na política de saúde que está sendo direcionada para o Mercosul
Francis Sodré
Com apenas R$ 5 milhões, o Brasil montou um projeto antitabagista para os países pertencentes ao Mercosul. Nele está prevista a compra de adesivos e gomas, além do cloridrato de bupropiona para os dependentes do tabaco. Os principais entraves para a circulação de medicamentos são os testes de bio-equivalência e biodisponibilidade entre os países. Nesse sentido, o acordo de troca de informações para o desenvolvimento da ciência e tecnologia é um dos principais documentos firmados entre os países. A “harmonização” prevê o acordo entre as vigilâncias sanitárias e epidemiológicas – área em que o Brasil e a Argentina têm liderado desde 1999. Neste grande pacote de ações e iniciativas para o tratado de livre comércio, muitas medidas já se encontram em andamento, como o controle da dengue, distribuição de medicamentos, medidas de saúde reprodutiva, saúde ambiental, atenção à saúde mental, sistemas de informação e comunicação para geração de conhecimento em saúde. Ações que estão sob a coordenação do governo brasileiro. O principal obstáculo ainda reside na capacitação de recursos humanos, pois a equivalência de diplomas entre os países mobiliza discussões corporativas entre os profissionais de saúde. Dentre as técnicas de mais alto refinamento, o Brasil dispõe ainda de uma cartada final: em agosto, a Argentina aceitou aderir ao programa de intercâmbio de informações e projetos de pesquisa na área de transplantes. O Ministério da Saúde brasileiro idealizou a proposta e disponibilizou seus bancos de medula óssea, pele, sangue, ossos e córneas à população mercosulina. O acordo foi firmado entre os dois países na cidade de Buenos Aires e vislumbra a assinatura protocolar do Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia. Dessa forma, através das relações de reciprocidade mediadas pela saúde, o Brasil torna-se protagonista de uma integração regional que vai além das relações comerciais e institucionais que criam tantos impasses ao Mercosul. Mensagens vazias, Grupo Urucum.
Trânsitos 15 GLOBAL
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ARQUIVOS DA DITADURA
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Tatiana Roque
Esquecer a dor, não as razões da dor GLOBAL. 16 Dossiê Arquivos da Ditadura
A abertura dos arquivos da ditadura, bem como o esclarecimento dos crimes cometidos neste período, é uma etapa fundamental para que tenhamos a possibilidade de esquecer. É preciso esquecer, é preciso esquecer o passado como condição para a liberdade, seja de um indivíduo ou de uma civilização. Mas, do mesmo modo que para lembrar é necessário esquecer, para esquecer é necessário lembrar. Para esquecer, é necessário que haja algo a ser esquecido: não se esquece senão os traços da memória. Anistia-amnésia Esquecimento não é, pois, amnésia, apagamento dos traços da memória, "fazer como se nada tivesse acontecido". Algo terrível aconteceu na história do Brasil durante os anos sessenta e setenta e a abertura dos arquivos da ditadura, bem como o esclarecimento dos crimes cometidos neste período é uma etapa fundamental para que tenhamos a possibilidade de esquecer. A anistia deveria cumprir, em tese, a função de apaziguamento necessária à dita "conciliação nacional", mas sua verdadeira face, inconfessável, foi a eliminação dos traços de memória relativos a este período. A figura institucional do esquecimento foi efetivada como figura institucional da amnésia, simulação de um pacto institucional que teve como efeito perverso, o silêncio. Aos familiares, digo, aos integrantes de uma família ampliada que inclui os familiares de mortos e desaparecidos (como eu), os sobreviventes e todos aqueles que insistem na necessidade de saber e de lembrar (para esquecer), restou apenas a voz, a única voz – por vezes transformada em grito – a não deixar que os traços daqueles anos se apagassem. Uma segunda conseqüência, igualmente perversa, da anistia-amnésia, foi a instauração da simetria entre supostos "dois lados". A história universal da tirania e da opressão perpassa, sem dúvida, tanto a história do capitalismo, quanto a história do socialismo. Mas quem poderia confundir as forças de estado (obviamente presentes em governos, partidos e hierarquias as mais variadas) com as forças de resistência, com as linhas de fuga,
com a potência de homens e mulheres que não hesitaram em arriscar suas vidas na batalha contra a repressão do desejo de viver? A crise do socialismo real não elimina consigo a energia revolucionária dos movimentos dos anos sessenta e setenta, seu afeto e sua paixão. Os documentos daquela época, os poucos aos quais tivemos acesso, impressionam, justamente, pela dissimetria: jovens, muito jovens, contra aparelhos de estado; homens e mulheres contra a cavalaria. E não importa que estes homens e mulheres, muitas vezes, estivessem equivocados, não importa que estivessem envolvidos, como estavam, com estruturas partidárias que reproduziam as técnicas de estado, pois não é disso que estamos falando. Importa o devir revolucionário que os movia, absolutamente independente do futuro da revolução que apregoavam. Esclarecer a história da ditadura militar é remexer suas micro-histórias, pequenas histórias afetivas da resistência, carregadas de emoção e de indignação. Além da questão moral Quando se fala em abertura dos arquivos da ditadura militar brasileira, pergunta-se sempre, ainda que tacitamente, em que esta história pode interessar à imensa maioria da população brasileira, que não é familiar de mortos e desaparecidos e que não sofreu diretamente com a repressão? Poderíamos repetir o bordão de que os que ignoram o passado estão fadados a revivê-lo, o que, na versão psicanalítica que postula a repetição do trauma desconhecido, possui interesse apenas individual. Na sua versão histórica que afirma a necessidade de se conhecer o passado para entender o presente e avançar em direção ao futuro, parte de um pressuposto moral: como se a existência tivesse um sentido revelado por sua evolução; como se evoluíssemos, necessariamente, em direção a um mundo mais justo e mais feliz; como se os pensamentos e as ações humanas fossem guiadas por necessidades históricas e universais; como se, enfim, o "homem" fosse, ele próprio, a medida da justiça. Por que aprenderíamos agora se, desde o massacre dos índios e o tráfico de escravos, ainda não
aprendemos? Não faltariam barbáries "didaticamente" eloqüentes para provar nossa incapacidade para um tal aprendizado... Permanece, assim, a pergunta: para que abrir os arquivos? Há outras teses, de natureza mais sociológica, como a do perdão e sua relação com a democracia. Não as descartamos, mas talvez elas dependam de outras razões. Segundo Nietzsche, o limite a partir do qual é necessário esquecer o passado é dado pela força plástica de um homem, de uma nação ou de uma civilização. Ou seja, o quanto um homem, ou uma civilização, é capaz de assimilar o passado para transformá-lo e para transformar-se, para dominar o passado reconstruindo, de uma forma nova, aquilo que foi destruído. Não é um dever falar do passado, mas este passado pode constituir um horizonte a partir do qual se insere um devir, a produção de uma nova história. Talvez o desvendamento da história secreta da ditadura seja uma etapa necessária para que consigamos nos livrar das imagens complacentes do Brasil, seja a de um país acolhedor e privilegiado, sempre alheio à chaga da catástrofe e da barbárie, seja a imagem contrária, a de uma nação que "não tem jeito". O período da ditadura militar, a repressão e a tortura, ainda não foram assimilados. E não falamos de um resgate histórico, nem de uma explicação sociológica, mas de uma compreensão trágica que iguala este episódio a tantos outros na história da humanidade: o que torna possível tamanha monstruosidade? Se, por um lado, o homem não pode nos dar a medida da justiça, por outro lado, também não podemos dizer que este homem está impregnado, de uma vez por todas, pela marca do monstro. A pergunta remete a sua ultrapassagem: é preciso fazer alguma coisa, ainda que não saibamos muito bem o quê. O homem para além do homem, a nação para além da nação, a civilização para além da civilização.
Castle King e Old Nazi, de Rosângela Rennó.
Urna quente, de Antonio Manuel, 1975.
GLOBAL. 18 DossiĂŞ Arquivos da Ditadura
AO ENCONTRO DA MEMÓRIA Entrevista com Carlos Lafforgue, secretário executivo do Arquivo Nacional da memória da Argentina Carlos Lafforgue, secretário executivo do Arquivo Nacional da Memória, em visita ao Brasil para tratar de assuntos vinculados às políticas públicas da memória, definiu o Arquivo como uma grande conquista dos movimentos de direitos humanos da Argentina. Para ele, o Arquivo foi criado principalmente como resposta à pressão da sociedade por reparação dos danos sofridos pela ditadura militar argentina. GLOBAL/Brasil: poderia contextualizar o nascimento do Arquivo Nacional da Memória na Argentina? O arquivo nasceu no dia 16 de dezembro de 2003, através de um decreto do presidente Néstor Kirchner. Como na maioria dos países da região, existe na Argentina um monte de arquivos vinculados à violação dos direitos humanos espalhados pelo país. Temos, portanto, um grave problema de dispersão, tanto territorial quanto institucional. GLOBAL/Brasil: poderia explicitar melhor a forma de trabalho do Arquivo, em particular com relação à reabertura dos processos judiciais que têm a ver com a ditadura militar? Bom, acontece que se passaram vinte anos desde o grande julgamento da cúpula militar responsável pelo genocídio, ao que se seguiram as chamadas leis de “obediencia debida” e “punto final”, que congelaram o processo. É um lapso de tempo muito longo para que as causas penais e as provas resistam. Agora que existe a possibilidade da reabertura dos processos contra os responsáveis dos crimes cometidos durante o período da ditadura, é preciso um novo esforço de recuperação desse material. Na verdade, boa parte das provas acumuladas não servem mais. Muitas pessoas implicadas nas causas já morreram, centros clandestinos de detenção e tortura viraram shopping centers ou estacionamentos. Temos que coletar novas provas, porque é a única maneira que temos de dar consistência a essa reabertura dos processos. Neste momento estamos reunindo a informação existente nos arquivos e nas Câmaras Federais, nos Órgãos Fiscais e nos Tribunais, e toda essa documentação está sendo incorporada ao Arquivo Nacional da Memória. Estamos processando ou escaneando aproximadamente duzentas e cinqüenta mil folhas por mês. É importante ressaltar que já contávamos com mais de três milhões de folhas do arquivo do Conselho Nacional pela Desaparição de Pessoas (CONADEP), criado em 1983. GLOBAL/Brasil: por que fala em “folhas” (e não em dados específicos)? Sim, acontece que quando se fala em folhas não significa que todas elas contenham muita informação relevante. Mas o que escaneamos são “folhas”: fichas, depoimentos, pareceres, artigos de jornais, fotografias, panfletos etc., que é como são referenciados os processos judiciais. Por um lado, não temos muito tempo para fazer um trabalho de seleção. Por outro, o Arquivo torna-se mais completo dessa maneira. “Pequenos detalhes” das causas, que normalmente passam desapercebidos quando se faz uma seleção,
Gerardo Silva Telma Lilia Mariasch podem tornar-se relevantes quando associados a outros “pequenos detalhes” em outras causas similares. Às vezes, trata-se de detalhes processuais. A informática é o que permite observar este tipo de procedimento. Desenvolvemos um “buscador” que permite não apenas localizar a informação, como também vinculá-la ou associálas rapidamente com outros dados constantes no Arquivo. Ajudamos a reconstruir um quebra-cabeça, essa tem sido a nossa tarefa. GLOBAL/Brasil: como é o acesso ao Arquivo? O Arquivo é público e não tem restrições de acesso. Ele pode ser consultado na sede da Secretaria nos dias e horários normais de funcionamento. Somente temos que fazer ressalvas quando se trata de informação que pode afetar as vítimas, sobretudo os que foram presos e/ou torturados e ainda estão vivos. Nesses casos a pessoa – que normalmente se interessa por saber quem e porque motivo está sendo feita a pesquisa – é consultada. Este talvez seja o único critério exigido dos pesquisadores: o preenchimento de uma formulário ou declaração do que está sendo pesquisado e por que motivo. GLOBAL/Brasil: existe algum tipo de resistência das Forças Armadas ou de Segurança à constituição do Arquivo? Atualmente, não. Eles estão entregando o que é solicitado. Depende mais de nós, da nossa capacidade de correr atrás, de ter os recursos e sermos eficientes para reunir e informatizar a informação disponível. Porém, deve ser lembrado que na Argentina foi ordenada a queima de todos os arquivos militares antes da chegada do presidente Raul Alfonsín, no final de 1982. Logo depois, outro general também mandou queimar o que sobrou. Mesmo assim, sempre há papéis, pois o Estado produz muito papel. GLOBAL/Brasil: o Arquivo Nacional da Memória não seria, na verdade, somente um Arquivo da violência do Estado durante a ditadura? O Arquivo Nacional da Memória abrange desde o início da história argentina até os dias de hoje. Tem dentro um arquivo – o mais importante – consagrado especificamente à violência do Estado durante a última ditadura militar. Mas, logo depois da ditadura, na democracia, houve episódios que se enquadram dentro dessa definição, como por exemplo, os seqüestros e assassinatos perpetrados pelas Forças Armadas contra um grupo de militantes do Movimento Todos por la Patria que havia decidido tomar de assalto o quartel militar de La Tablada na grande Buenos Aires, tendo sido os militantes encurralados e reprimidos com força excessiva e inusitada. Isso aconteceu no ano de 1986. Temos também os mortos pela violência policial no levante de 19 e 20 de dezembro de 2001 na Plaza de Mayo e em outros pontos do país. Indo mais para trás no tempo, também temos as investigações relativas aos fuzilamentos de militantes peronistas no ano de 1956 … Dossiê Arquivos da Ditadura 19 GLOBAL
GLOBAL/Brasil: na Argentina existem vários tipos de “reparações” ... As reparações, no momento, são econômicas. Existem as reparações pela Lei 24.411 dos Mortos e Desaparecidos, que determina o pagamento de um montante fixo em dinheiro para os beneficiários das vítimas. Tem também a Lei 24.043, de reparação para os que sofreram prisão durante a ditadura. Ambas as leis foram reabertas na gestão do atual presidente Kirchner. Neste momento, estão sendo avaliadas mais de três mil novas solicitações de indenização! Existe a Lei Reparatória 24.321, que qualifica a "desaparição forçada de pessoas". Nesta gestão também foi sancionada a Lei 25.914, que determina uma reparação para pessoas nascidas em cativeiro e também aquelas que tenham sofrido troca de identidade. Também por decreto foram pagas indenizações aos familiares dos fusilados em 1956, durante outra ditadura militar; decretou-se ainda a reparação dos familiares dos mortos e feridos durante os acontecimentos de dezembro de 2001. Estão sendo estudados outros projetos de lei de reparação. Nesse sentido, o trabalho do Arquivo é fundamental para que essas leis possam ser efetivadas. GLOBAL/Brasil: as indenizações poderão ser estendidas às vítimas do “exílio forçado”? Neste momento existe uma lei tramitando no legislativo que trata de indenizações nos casos do exílio forçado, mas não sei que fim vai ter essa lei, não sei se vai sair ou mesmo se dará certo. Acontece que tem alguns problemas; se alguém quiser prova real, é muito fácil, basta ligar para o escritório das Nações Unidas e trabalhar juridicamente com os que foram inscritos como exilados ou refugiados em outros países na época da ditadura. Mas tem muita gente que se exilou numa situação, digamos, intermediária ou preventiva, sem inscrição em qualquer organismo internacional. Principalmente em países vizinhos, que não eram propriamente lugares de exílio ... na maioria destes casos a prova é muito dificil. Mas a questão está colocada institucionalmente. GLOBAL/Brasil: de visita no Brasil, o senhor realizou diversos encontros com instituições e pessoas vinculadas à defesa dos Direitos Humanos (incluindo o grupo Tortura Nunca Mais e os arquivos da antiga DOPS). Qual é a sua impressão sobre esta questão aqui? A minha impressão é de que tanto este governo, quanto as organizações de direitos humanos, têm uma preocupação convergente, mas que ainda deve ganhar força de articulação. Acontece, como também se passa na Argentina, que depois de tanto de tempo de governos “omissos” nesta questão, existe uma certa desconfiança por parte das organizações de direitos humanos com relação à vontade institucional de avançar no sentido de uma política pública da memória. Evidentemente, essa desconfiança é compreensível, porém às vezes é preciso saber identificar o momento e a oportunidade de avançar. O trabalho em conjunto sobre os arquivos, por exemplo, poderia ser um caminho. GLOBAL. 20 Dossiê Arquivos da Ditadura
Na argentina… O Arquivo Nacional da Memória foi criado na Argentina por Decreto Presidencial em dezembro 2003, como um órgão do Ministério de Justiça, Segurança e Direitos Humanos da República Argentina. Sua criação inspira-se em instrumentos internacionais e regionais especializados na matéria. Encontramos antecedentes no país na tarefa desempenhada, desde a década de 80, por Organizações NãoGovernamentais de defesa dos Direitos Humanos, pela CONADEP (Comissão Nacional sobre Desaparição de Pessoas), e pelos Arquivos da Secretaria de Direitos Humanos. Encontram-se também no trabalho de recuperação da memória histórica realizado pelo Museu da Memória, que depende da Secretaria de Cultura da Cidade de Rosario e pela Comissão Provincial da Memória da Provincia de Buenos Aires (além dos arquivos nacionais vinculados às Leis de Reparação 24.411 e 24.043, citadas na entrevista). Seu alcance, entretanto, excede as fronteiras nacionais e persegue o desvelamento do “operativo Condor”, um acordo de cooperação repressiva entre os serviços de segurança da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai, Bolívia e Uruguai, cujo principal objetivo era eliminar qualquer tipo de oposição às ditaduras militares na região.
SE M M E D O D O S
A RQUIVOS Telma Lilia Mariasch
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Foto Glória Ferreira
O Chile viveu uma etapa de ditadura e violações de Direitos Humanos a partir do golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet que derrubou o regime democrático de Salvador Allende (11/09/1973 a 10/03/1990). Os três governos de centro-esquerda que se sucederam à ditadura têm documentado essas violações desde então. O primeiro desses registros foi o Informe Rettig, redigido pela “Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación” nomeada pelo Presidente Aylwin, em 1991. O documento reconheceu pela primeira vez a identidade dos detidos, desaparecidos e mortos por violência política, assim como as circunstâncias em que foram detidos. O segundo processo de documentação da ditadura chilena foi a Mesa de Diálogo instalada pelo Presidente Frei em 1999 como desdobramento do caso Pinochet, na qual as Forças Armadas se incorporaram à discussão nacional
Chile intensifica o processo de esclarecimento dos 17 anos de ditadura no país sobre as violações dos Direitos Humanos. As Forças Armadas disseram quais unidades tinham sido utilizadas como centros de detenção, falaram sobre alguns procedimentos utilizados na época e as circunstâncias históricas que teriam influenciado a atuação de seus homens. Finalizando a transição interna, o General Cheyre efetuou, a partir de 2002, uma série de atos de normalização: desvinculou o Exército do regime militar, falou de um "nunca más", homenageou o General Pratts, e ordenou a colaboração com os tribunais. O terceiro foi o programa "No hay mañana sin ayer" (não há amanhã sem ontem), promovido pelo atual presidente Ricardo Lagos em agosto 2003. Parte de um processo no qual o Estado busca reparar os que sofreram graves violações dos seus direitos. Na ocasião, foi anunciada a criação de uma comissão que se ocuparia do problema dos presos políticos e/ou torturados, a ser presidida pelo Monsenhor Sérgio Valech. Rumo à reparação Constatadas as graves violações dos Direitos Humanos, três linhas de
reparação foram propostas pela Comissão no ano passado: a) medidas institucionais: anunciou-se a criação de um Instituto Nacional de Direitos Humanos que promoverá, através da educação, o respeito a esses direitos e se encarregará do patrimônio e da confidencialidade da informação acumulada no Chile. O Instituto terá acesso à documentação já existente sobre a tortura, que se encontra nos arquivos da “Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación,” os da “Fundación de Archivos de la Vicaria de la Solidaridad”, bem como de ONGs de Direitos Humanos; b) medidas simbólicas que deverão expressar o reconhecimento moral do Estado e da sociedade para com as vítimas, e medidas jurídicas que possam prevenir as atuais e futuras gerações dessa terrível experiência; c) medidas de reparação individual, que se expressam tanto no âmbito jurídico quanto no econômico. Nesse contexto, a Subdireção de Arquivos Nacionais e grupos de Direitos Humanos identificaram a necessidade de elaborar um cadastro que permitisse obter informação siste-
matizada de arquivos e formular estratégias de preservação adequadas a sua natureza. Esses arquivos também deveriam ser integrados ao programa do Sistema Nacional de Arquivos em Desenvolvimento, cujo objetivo central é contribuir ao fortalecimento dos arquivos como gestores de informação e o seu aproveitamento como instituções de apoio à gestão pública da memória no Chile. Informações adicionais sobre o caso chileno podem ser obtidas em: http://espanol.news.yahoo.com/040911/2/udfz.ht ml Paso del tiempo amenaza archivos de dictadura en Chile - Gabriela Donoso - 11 / 09 / 2004 http://www.hrea.org/lists/educa-dh/markup/ msg01004.html Archivos DDHH de Chile Declarados Patrimonio http://www.latinamericalinks.com/chile%20 society%20issues.htm http://solidaridad.universia.es/derechos_humano s / 2 0 0 4 1 1 0 6 _ e j e r c i to_chile_reconoce_violaciones_ddhh.htm
Esforço da ONU Em agosto de 2003, a UNESCO incorporou ao registro “A Memória do Mundo” as coleções documentais de um conjunto de grupos de defesa dos direitos humanos no Chile, formalizando a vontade internacional de assegurar a preservação dos registros que testemunham o que aconteceu durante a ditadura militar chilena.
Dossiê Arquivos da Ditadura 21 GLOBAL
Vera Sílvia Magalhães em Alvesta, 1974. Pág. 21 a 27, fotos de Glória Ferreira. Página anterior, cartaz "Presidente no pida resignación, queremos revolución”. Última manifestação com presenca de Allende, 4 de Setembro de 1974, Santiago do Chile. GLOBAL. 22 Dossiê Arquivos da Ditadura
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i c r o p o l í t i c a d o afeto
Da luta armada contra a ditadura ao trabalho com presidiários numa ONG: Vera Sílvia Magalhães simboliza a face da juventude brasileira nos últimos 40 anos Entrevista a Newton Goto, com participação de Felipe Maranhão Vera Silvia Magalhães militou ativamente na resistência à ditadura no Brasil, principalmente como membro do grupo Dissidência Comunista da Guanabara. Participou do seqüestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, ação empreendida para libertar presos políticos e para dar visibilidade internacional aos problemas sociais do país sob o autoritarismo, repressão e censura do regime militar. Ex-presa política, torturada e exilada, hoje trabalha na ONG Alto Lapa no Rio de Janeiro, na qual é professora de cidadania de grupos de excluídos sociais, notadamente presidiários. GLOBAL - Como foi a movimentação de resistência à ditadura? Vera Sílvia Magalhães - A ação que liderou 68 foi a Dissidência Comunista da Guanabara (DI) através da União Metropolitana dos Estudantes, do Vladimir Palmeira. Na verdade foi o Vladimir quem laçou a Dissidência, quem lançou o movimento estudantil, mas foi logo preso, um ano depois. O Vladimir tem um ethos muito interessante. Porque ele era liderança mesmo, liderança de massa, de botar 100.000 na rua e todos o ovacionarem. Vejo 68 como o lançamento dessa palavra de ordem, não era slogan, era palavra de ordem: a revolução é possível. E as pessoas estavam na rua para fazer a revolução. Basicamente estudantes e artistas. Os artistas foram para o Aterro e tiraram a roupa durante a passeata dos 100.000. Não foram presos. Tinha professores também. Mas o básico era de estudantes. Porque era das universidades que havia saído o movimento social. Nós nos conhecíamos – coisa proibida pelas organizações – nos conhecíamos visualmente, sabíamos o nome e tal: a Dissidência era isso. Tanto é que nunca houve infiltração porque éramos todos amicíssimos. Houve infiltração na VPR com o cabo
Anselmo, na ALN, mas na nossa organização não. Quer dizer, essa questão do afeto era um grande laço entre nós. Na minha opinião, as pessoas nem saíam da organização por causa desses laços afetivos. Laços afetivos e políticos. Mas o político, quando a barra pesa muito, passa a ser menos importante, por incrível que pareça. Você pensa menos na revolução que em seu companheiro, que está com você e é seu amigo. Na tortura – e eu fui muito torturada – poupei meus amigos, já não estava em condições de defender a revolução. Estava sendo massacrada. Isso é muito difícil de um torturado dizer. Mas é verdade. Você vive um momento extremamente difícil, limite. E o que te segura ali é esse ethos da relação do afeto, com política, é claro. Mas política entre nós. Ninguém me diz que vai defender o socialismo na tortura, acho impossível. Essa geração criou um ethos próprio que permeia a nossa vida até hoje, são valores como solidariedade, afeto, são valores preservados. A Dissidência tinha esse aporte a dar. A identidade revolucionária pertencia a todos nós que estávamos nos expondo para fazer a revolução. Mas nós tínhamos a preocupação em termos comunistas, que é uma identidade um pouco diferente, comunista mesmo: saber do marxismo, saber da história do Brasil, ler Celso Furtado, mas ler criticamente, porque ele era um reformista; nós tínhamos todo um approach da realidade. Isso não quer dizer que a gente não tinha cometido, no fundo, os mesmos erros que as outras organizações. Não foram os mesmos erros, mas foram tão errados quanto, na medida em que enfrentávamos a repressão que dizia: “Brasil grande, ame-o ou deixe-o”; e a gente não percebia que esses slogans da ditadura eram para ser ouvidos por nós. E nós os desprezávamos comple-
tamente. Não me lembro de nenhuma organização que tenha estudado isso. Se o Brasil estava crescendo, isso deveria mudar nossa tática de ação. Na verdade, a Dissidência não dizia que o Brasil estava crescendo depois do Golpe, depois do AI-5, depois do Golpe dentro do Golpe. A maioria não dizia, não queria saber de nenhum crescimento político social, econômico, nada. E houve crescimento econômico durante a ditadura. Depois não, no final, não: houve uma enorme inflação. O final foi terrível. Nós não podíamos ignorar! A gente considerou o crescimento, mas sem ouvir esses slogans. Mas nem por isso deixamos de enfrentar a ditadura como se fôssemos grandes artilheiros. Quase não tínhamos armas, era ridículo. Nunca deixei de usar mais do que um 38. E diziam no jornal que eu saía com dois 45, que era a “loura 90”. Nunca usei um 45 na vida. Nós não tínhamos armas, eram vontades e idéias. A força das idéias. Agora, quando eles começaram realmente a organizar a repressão – depois do AI-5, depois do seqüestro do embaixador americano – eles nos aniquilaram em pouquíssimo tempo. O seqüestro foi em 69. Em 69 já morreu o Marighela. Já mataram uma porção de gente da ALN. Da nossa organização não, só em 70. Em 70 fui presa, todo mundo foi preso. Mataram aquele com quem eu era casada na época. Não posso dizer que a gente não teve vitórias parciais, a gente teve. Acho que a grande vitória é a da identidade. A gente conseguiu uma identidade. Para mim essa foi a grande conquista. Não me arrependo. Era o melhor a ser feito na época, como geração. Também não julgo quem não fez, porque era muito barra pesada. Agora, percebo os que participaram, e hoje estão nos órgãos públicos, na vida cotidiana, eles, a maior parte, mantêm uma identidade, um critério, um valor.
Vocês sabiam que o Estado não supriria as necessidades pessoais, mas havia uma expectativa sobre o Estado. Havia. Era tomar o poder, controlar o Estado. Dossiê Arquivos da Ditadura 23 GLOBAL
“Queríamos realmente mudar o mundo. Era muita ilusão. Não me decepcionei, apenas considero que não era o caminho.
E você se via trabalhando no Estado? Não. Engraçado. Era uma coisa completamente etérea. Era um desejo. Uma fantasia. Era um simbolismo de mudar o país através da tomada de poder e controle do Estado. Mas não me via nessa situação. Eu sendo Ministra da Educação. Jamais me vi exercendo um cargo dentro do Estado. O Estado não resolve. Na época, você pensava o contrário. Sim. Depois, com o tempo, fui mudando. Não sou anarquista não. Mas essa descrença, essa desilusão... São duas palavras diferentes. Porque desilusão eu não tinha, tive uma descrença. Por exemplo, em relação ao próprio marxismo. Eu li até O Capital, acreditei mesmo, fui longe, li as obras completas. Completas não, porque só tem em alemão. Eu acreditava naquele caminho. O marxismo, hoje, para mim, é uma lembrança de algo que poderia ter sido bem sucedido. Mas não foi. Depois de todo esse socialismo real, não dá para acreditar. Não só Lênin errou. Todos, todos, todos. Só Cuba... mas nem dá para caracterizar como um país socialista... é uma ditadura. Seu grupo foi muito influenciado pelo Che Guevara? Demais. Até as teses de Debray. O Debray é aquele amigo do Fidel e do Che. Até fui ao Chile, na época do Frei, antes do Allende. Fui lá e trouxe essas teses, e traduzi. Essas teses do Debray eram de um militarismo a toda prova. Realmente corremos esse risco. Debray junto com Guevara. Guevara era um ídolo. Tinha um lado heróico. E muito generoso. A generosidade também fazia parte de nossa identidade. Ele era um homem sem fronteiras. Ele acreditava realmente na revolução mundial. Ou da América Latina, pelo menos. Mas quando ele morreu, na guerrilha, não consideramos como fracasso. Ainda continuamos nessa linha debraysta e guevarista. Na prática, eles nos influenciaram mais que os teóricos do marxismo. Porque na prática da luta armada, eram eles os teóricos. Eram eles que propunham não sei quantos Vietnãs na América Latina. Para nós eles eram muito mais importantes do que Marx, ou Engels. Nós lemos todas as teses do Debray. Todos os escritos de Che Guevara foram lidos. Depois disso as nossas linhas políticas mudaram, elas se tornaram militaristas. Falavam em focos guerrilheiros. Nós dizíamos uma GLOBAL. 24 Dossiê Arquivos da Ditadura
coisa híbrida: o foco não pode estar isolado, tem de estar ligado à massa. Só o foco cubano foi ligado ao Movimento 26 de julho. Eles tiveram apoio do movimento sindical na cidade. Deve ter sido o único foco a dar certo, a conseguir fazer uma revolução. Agora, a história é bem diferente também: os cubanos negam, dizem que foram só as colunas do Cienfuegos, do Guevara. Não é não. Porque sem comida, sem gente para ir substituir na montanha, não tem foco que se sustente. Esse foi o nosso caso. Mas não chegamos a fazer foco. Nosso isolamento político foi chegando a um ponto que nem o vizinho olhava para nós. Éramos pessoas perigosas, nitidamente perigosas. E éramos muito jovens, é incrível. Eu tinha 20 anos quando fui presa. Levei um tiro na cabeça. No grupo, a faixa etária da Dissidência era 22, 23 anos. Era muita garra, queríamos realmente mudar o mundo. Era muita ilusão. Não me decepcionei, apenas considero que não era o caminho. Não foi só a realidade a demonstrar isso. A teoria também. Negri fala disso. A teoria política mostra o isolamento da extrema esquerda, inviabiliza o prosseguimento de sua prática. Isso é verdade. Como era a relação de vocês com os jovens da contracultura? Com as propostas de uma revolução comportamental? A única coisa adotada da contracultura foi o amor livre. Isso era escrachado. Mas no resto eram uns preconceitos enormes: com o homossexualismo, com drogas. Mesmo quem fumava maconha na organização era punido. Não era declarado. Não tivemos uma relação íntima com a contracultura, aqui no Brasil mesmo. Porque havia um movimento de contracultura. O Pier era um movimento. A Leila Diniz fazia parte do movimento. Esse grupo do Pier de Ipanema... Nunca nos encontramos. Talvez por puro preconceito. Amor livre tudo bem porque era homem e mulher... Mas nada mais permeado. Impressionante... E com Maio de 68, houve alguma ligação direta? Maio de 68, ficamos sabendo. Mas não fizemos as relações necessárias: Checoslováquia, Maio de 68, Vietnã. O mundo todo se movimentou em 68. E nunca teorizamos nada a respeito, que eu me lembre. Certamente algum intelectual sim, mas nós revolucionários, não. O Vladimir encontrou o Bendit depois, quando já tinha tudo terminado. Naquela época, ninguém. Tínhamos a meta brasileira: derrubar a ditadura. Ou alguns: criar o socialismo. Hoje você trabalha numa ONG. Como você vê esse tipo de atuação social? É outra concepção. Esse caminho tem as suas limitações.
Negri fala disso. A teoria política mostra o isolamento da extrema esquerda, inviabiliza o prosseguimento de sua prática.”
Dá para argumentar a favor da juventude de hoje, dos grupos e das manifestações das ruas. Mas muitos valores estão se perdendo. Como você vê isso? Vejo isso. Conformismo, descrédito. A juventude tinha muito mais vida, era extremamente aguerrida, queria coisas. Hoje, o neoliberalismo ganhou um espaço muito grande. A ditadura foi colocando valores, foi amortecendo a ação das pessoas na repressão. E as gerações foram se alienando. Claro que profissão envolvida com problemas sociais não vai dar muito dinheiro. Não tenho nada contra ganhar dinheiro, mas isso não pode ser o valor. Recentemente, acho que há uma retomada crítica. Não diria nenhuma ebulição, ainda. Percebo pela própria juventude. É minha grande esperança. Comecei a perceber uma luz na juventude, jovens que vêm aqui, percebo uma luz na ONG, jovens que se politizam. Dei aula para camelô, quase marginal, politizaram-se todos, foram trabalhar. Aulas de cidadania. Alguma coisa fez eles sentirem a necessidade de interferir na sociedade.
É mais flexível também. Mais flexível. Outro caminho, radicalmente diferente. Não vou pegar em armas. Não vou radicalizar o poder com a sociedade. Não quero poder nenhum. ONG é não-governamental. É prazeroso porque trabalho com os excluídos. E a minha vida foi de exclusão. Eu me auto-excluí da sociedade. Eu me aproximei bem dos excluídos. Sinto que tem a ver comigo: subir o morro, entrar no presídio, dar uma aula de cidadania. Quando trabalhei no serviço público eu quase pirei!
Acima, Ernesto Costa, Vera Sílvia Magalhães e Chico Nelson, Estocolmo, Suécia, 1974. Ao lado, campo de refugiados em Alvesta, Sul da Suécia, 1973. Página seguinte, Vera Sílvia com sua mãe Virgínia Gonçalves e seu filho Felipe Maranhão, Paris, 1978. Fotos de Glória Ferreira.
Nos anos 70 chegou a haver um certo modismo em participar do movi mento, não? Antes da luta armada, sim. Depois já era muito perigoso. Não tinha uma homogeneidade. Homogêneo nunca é. Tem gente que entra consciente. Muita gente vai porque a namorada entrou... Via o movimento na rua, chamava a atenção, entrava. Muitos saíram quando a barra pesou muito. Era muito importante participar, pelo menos do movimento de massas. Era importantíssimo. Na Praia Vermelha [campus da UFRJ] tinha Medicina, Economia, Administração, Farmácia. Era uma coisa. Não havia um dia sem manifestação, e sem invasão da polícia. Não tinha uma aula possível, nenhum dia do ano. Não sei como se passava de ano. A Praia Vermelha e a Filosofia. Eram os lugares de maior movimentação. Os estudantes tinham uma arena, sentavam ali, um ia para o meio e começava a falar sobre qualquer assunto, política... outro levantava, pegava a palavra. Era um movimento. Ninguém entrava em sala de aula. E todo mundo estudava. Quer dizer, Dossiê Arquivos da Ditadura 25 GLOBAL
“Se uma amiga quer uma roupa minha, ela leva. Eu tiro a roupa e passo. Não tenho bens, não possuo. Tenho um único bem
entrava de vez em quando. Nós líamos e éramos bem informados. Mas muita gente entrou na dança sem saber porquê. Fui presa sabendo claramente porquê. Daria um filme só sobre a Praia Vermelha. Pegava a Urca, aqueles militares ali. Era uma coisa fantástica. Muito próximo dos militares e eles não podiam reprimir. Daí chamavam a PM. A PM entrava e reprimia. A gente saía pelo outro lado, entrava pelo Pinel [hospital psiquiátrico ao lado do campus da Praia Vermelha]. Vivíamos correndo por aquele campus. Enquanto a repressão não entrou para matar foi uma coisa divertidíssima. Também levamos porrada, até eu. De cacetete. Mas até os anos 70 era uma grande festa. Era muito engraçado. Engraçado enquanto durou. Quando a coisa começou a pesar, não houve graça nenhuma. Nenhuma. Vivíamos uma vida de maluco. A clandestinidade, ninguém sabe o que é. Nem contando as pessoas acreditam o que vivemos. Nossas fotos em todas as bancas de jornal. Nossas fotos na barca RioNiterói. Eu peguei uma barca uma vez, com a peruca da Lúcia Murat que também era militante para encontrar o Zé Roberto do outro lado. E tive de sair. Porque tinha tanto retrato meu... E digo: “Vou cair [ser pega]. Vou pegar uma barca, vou cair, vou cair”. Fui embora!
E ninguém arrancava os cartazes? Se arrancasse era preso. Ninguém arrancava. A gente vivia assim. Eu mudava de apartamento. Mudava de casa às vezes numa fração de 5 minutos. Entrava num “aparelho” [casa]: tinha caído. Já ia embora para outro “aparelho”. Eu andava com o quê? Com uma calcinha, uma camiseta, uma bolsa e um revólver. Era com isso que eu andava. Minha vida era essa. Tinha que comer. Não tinha dinheiro. Ganhávamos salário mínimo da organização. Então comíamos aquele pastel com caldo-de-cana. Era meu almoço e meu jantar. Ia para a Penha só com caldo-de-cana. Era uma paranóia. Você chegava num lugar, sentia que estava “caído”, eles não te reconheciam. Você conseguia sair. Às vezes não. “Caí” numa perseguição. Sendo perseguida por uma patrulha. Uma ação na favela do Jacarezinho. Uma panfletagem. “Caímos”. O Zilio levou 3 tiros e eu levei 1. Estávamos no morro.
E mudando os contextos, mas tentando aproximar esse momento com o tempo presente. Como você vê a chegada do Lula à presidência? Fiquei muito entusiasmada, no início. Sabendo que era um governo. Ninguém tinha tomado o poder. E ele tinha feito muitas alianças, e elas teriam repercussão. E realmente tiveram. Essas alianças todas têm tido repercussão negativa no governo dele. Agora não estou mais entusiasmada. Ele deveria ter feito muito mais projetos. Espero que melhore. Vou continuar votando no PT. Muitos amigos já desistiram, mas eu não. Nessa passagem das décadas ocorreram outras perdas sociais também. Várias posturas e comportamentos contestatórios à ordem social predominante foram absorvidos pelo próprio mercado. O próprio Che. Ele se multiplicou como um fenômeno Pop. Também o Punk. Viraram até coisa de boutique. O mercado absorve, para mudar o sentido, esvaziar o sentido. Isso é triste. Eles têm esse poder. Guevara virou qualquer coisa, até vassoura. Coitado.
Vocês tinham contato com o pessoal do morro? Não, nenhum. Só o Capitane que entrou no morro e conseguiu fugir. Mas nós não tínhamos contato com o povo. Fui denunciada pela minha vizinha, você acredita? O Zé Roberto, meu primeiro marido, ele foi assassinado por causa dessa mulher. E eu cuidava dos filhos dela! Adorava criança. E ela teve coragem de me denunciar. Eu com a criança dela no colo. É o que eu te digo: é um ethos. Devolvi a criança. Eu devolvi a criança, e disse: “Ó, Miriam. Um dia eu volto. Mas não para matar seu filho. Para matar você!”. E não fiz nada. Até hoje não voltei. Na Penha... Nem sei onde é. Mas fiquei revoltada. Porque morreu o Zé Roberto nessa, né? Barra pesada. Foi a experiência mais triste de minha vida. E eu “caí” 15 dias depois. GLOBAL. 26 Dossiê Arquivos da Ditadura
Dos anos da ditadura ao presente, como ficam essas passagens de perspectivas, você vê elos nessas passagens? Mudei de perspectiva antes desse período. Minha perspectiva política nos anos 70 acabou em 74, 75. Fui mudando a minha vida mas não sei dizer qual o elo orgânico com a atualidade no Brasil. Porque minha geração está muito longe do que está acontecendo. Hoje é um país muito mais reformista, um governo reformista, vai melhorar um pouco esse país. Não tenho grandes expectativas. Agora, em relação a minha vida, descobri esse meio para exercer a política da amizade, a política do afeto, junto aos excluídos. Minha identificação com o governo Lula não é completa, tenho minhas restrições. As pessoas dizem que nossa geração contribuiu para o Lula chegar onde chegou. Não sei. Isso aí é uma coisa meio delirante, não tem nada a ver. Outra geração, outras perspectivas, outras formas de luta. “Porque lutou contra a ditadura”: mas o Lula não lutou contra a ditadura, não tinha mais ditadura nenhuma. Naqueles anos surgiu também um certo culto à figura do marginal: o artista como marginal, a poesia marginal. Hélio Oiticica e o estandarte “Seja marginal, seja herói”, e também o bólide “Homenagem à Cara de Cavalo”. Além de serem marginalizados pela repressão, vocês, quando agiam, colocavamse como uma consciência marginal, viam a si mesmos como marginais? Não nos considerávamos marginais. Marginal era aquele pessoal do morro, que matava. Mas houve um documento do Jamil, de São Paulo, sobre a Revolução dos marginais; era o lúmpen. O lumpensinato foi definido por Marx como aqueles que não eram operários, não eram camponeses, não se sabe o que eram. Então seria a revolução dos lúmpens. E um cara da Dissidência respondeu: revolução dos marginais ou os marginais da revolução?
E quando você trabalha com os presidiários. Como é essa questão dos “comandos”, o Comando Vermelho, o Terceiro Comando. E antes, houve relação com a Falange Vermelha? Teve gente da Falange no MR8, em Ilha Grande. Uma pessoa. E desistiu. Que eu saiba. Eu já estava no exterior.
que é esse, o afeto em si mesmo, os conhecimentos adquiridos, que vou continuar adquirindo. Micropolítica do afeto é isso”
E a história de criminosos comuns entrando em contato com presos políticos? Que eu saiba isso só aconteceu na Ilha Grande. Os presos políticos deram aula de português, de inglês, e depois começaram a ensinar também como se fazia um banco sem “cair” etc. Aí o diretor separou. E um cara da Falange formou um grupo paralelo. Não lembro direito. Como você conduzia seu trabalho com os presidiários? Eu tinha um certo trânsito porque eles sabiam da minha vida. Então eles tinham o maior respeito, até alguma admiração. E colocava as diferenças entre a minha experiência e a deles. Fazia parte do curso de cidadania, colocar as diferenças. Sempre fui a cadeias onde predominava o Comando Vermelho, por uma questão circunstancial. Uma vez no Terceiro Comando. Bangu. Aula de cidadania. Aula de história sobre a ditadura etc., onde entrava a minha história também. Era uma forma de você mostrar ser possível a luta sem ter uma cabeça de marginal. Mostrar as diferenças. Não sei se colava.
minha micropolítica às vezes é só afetiva. Com os amigos essa micropolítica é fundamental, esse desprendimento. Vou dar um exemplo bem banal: se uma amiga quer uma roupa minha, se ela quer levar, ela leva. Eu tiro a roupa e passo. Não tenho nenhuma privacidade mesmo, nem quero ter. Não tenho bens, não possuo. Tenho um único bem que é esse, o afeto em si mesmo, os conhecimentos adquiridos, que vou continuar adquirindo. Micropolítica do afeto é isso. Também tem a política da amizade. É uma política importante de se ter. A micropolítica é uma interferência, a cada passo, em todo momento.
Eles tentavam contextualizar seus próprios atos como políticos? Não. Eles diziam ser vítimas da sociedade. Em geral diziam nunca ter feito nada, estavam lá por acaso. Mas eu sabia que haviam feito. Tinha gente politizadíssima, muito politizada mesmo. Nessa linha da vitimização, da exclusão, da pobreza, da luta de classes, povo mesmo. Mas outros eram completamente alienados politicamente. Eram pessoas violentas, facínoras. Eles não defendiam a violência para mim. Não tinha como. Mas eu percebia. Até pelo jeito da pessoa se colocar, agressiva ou não. Você pode falar um pouco mais sobre a micropolítica do afeto? Sempre falo para as pessoas que no motivo de minha prática de vida, substituí aquela macropolítica pelo Estado, governo, para tomar o poder. Absorvi aqueles valores na minha vida cotidiana, aquela identidade. Então faço uma micropolítica; faço a micropolítica com meu filho, na ONG, é uma política diferente. Procuro colocar aqueles valores adquiridos, lá longe, na minha vida atual. Estou sempre disponível. No bom sentido – não sou babaca não! Tem de ter paciência, condescendência, uma série de valores. Tem de ter sobretudo essas coisas, não ficar só pensando no seu umbigo. Isso aprendi lá em 70. Quando me dediquei a uma causa maior, meu umbigo desapareceu. Comecei a pensar no mundo. A ONG é uma forma. Se fosse professora faria micropolítica da mesma forma, ou seja, passando esses valores, esse ethos adquirido – para meus alunos, na forma de apresentar matérias, estaria tudo presente. Como está na minha aula de cidadania. A Dossiê Arquivos da Ditadura 27 GLOBAL
Justiça cega, de Xico Chaves. GLOBAL. 28 Dossiê Arquivos da Ditadura
Que repercussões estariam em curso a partir da experiência da violência do terrorismo de Estado? A experiência passou? Deixou rastros? Quais os possíveis desdobramentos no mundo contemporâneo daquela que foi, por sua vez, uma aplicação de uma tecnologia de morte já experimentada nos campos de concentração na segunda guerra mundial?
A prática do silenciamento e esquecimento forçado do terrorismo de Estado no Brasil prolonga os efeitos do ontem no hoje
E
A VIDA QUE INSISTE EM R Passadas quase três décadas do exercício da violência de Estado sob a forma das ditaduras latino-americanas, estaríamos “liberados” daquelas experimentações do terror? A ampliação do estado de direito pósditadura tem produzido mudanças nas práticas sociais, no modo de se perceber, sentir, agir no mundo? Que manifestações de silêncio imposto, processo ativo de esquecimento, estariam hoje em funcionamento? Por que o Estado brasileiro ainda mantém fechado o acesso às informações necessárias para o esclarecimento deste período? Vários países do cone sul da América Latina avançaram no sentido de colocar a público estas informações, entendendo que com esta iniciativa possam ampliar e fortalecer as bases da democracia e construir uma nova história. O que mantém a lógica do silenciamento, do seqüestro ao direito de acesso às informações? Estas são perguntas que atravessam permanentemente uma prática clínica ocupada com a repercussão das violações dos direitos humanos, ontem e hoje. As experiências de violência, tortura e morte da época da ditadura têm sido silenciadas ao longo destes anos apesar do clamor dos movimentos sociais para tornar público o que ocorreu naquele período. A Lei 9140/ 95, que prevê a responsabilização do Estado pelas violências e a elucidação das mortes e desaparecimentos, não têm sido levada a cabo. Foi entregue aos familiares apenas um documento e uma reparação simbó-
lica. Constituída pela lei, a Comissão responsável pela tarefa de esclarecimento tem se defrontado com variados impedimentos para a apuração dos fatos. No ano passado, quarenta anos do golpe militar, alguns acontecimentos chamaram a atenção. Declarações oficiais de que “não há arquivos; foram todos queimados no Santos Dumont”, contrastam com a comprovação de que os “inexistentes” arquivos existiam. As fotos do suposto Herzog nu e torturado, os arquivos queimados na base Aérea da Aeronáutica da Bahia e os descobertos no Rio Grande do Sul desencadearam a retomada das discussões sobre o assunto. Uma turbulência de declarações oficiais desencontradas, marcadas por disfarces, teatros e preconceitos, mostrou como está em funcionamento uma lógica discriminatória que tenta impedir o acesso aos acontecimentos do passado, em fazer silêncio sobre aquilo que não quer calar. Disparatadas, estas declarações desencadearam revolta e perplexidade. Ora uma voz vinda do passado a assombrar o presente, acusando, (ainda!), os atingidos pela violência do Estado. Ora outra, justificando a não abertura dos arquivos, afirmava necessário “proteger” a memória de familiares dos atingidos pois muita coisa “feia”, como opções sexuais, casamentos desfeitos dos militantes, poderia vir à tona! Estas vozes, que usam da desfaçatez e tentam zombar da inteligência alheia, são variações sobre o mesmo tema. Mas, a que serve tudo isso? Qual a dimensão das forças de reação a um movimento de vida que insiste em resistir?
SISTIR Vera Vital Brasil
A guerra do medo Esta lógica discriminatória e preconceituosa, aliada das forças conservadoras e responsáveis pelo silenciamento, deu sustentação a violência contra aqueles que se opuseram ao regime militar. Hoje, com as atuais modulações capitalísticas, redirecionou-se e está canalizada mais fortemente para os setores empobrecidos. A tortura hoje é generalizada e sistemática; o extermínio, o genocídio de jovens pobres e negros, uma marca insuportável nos dias atuais. A violência se ampliou, se intensificou e compõe, como uma rede que pulsa ativamente, o conjunto das relações sociais. O medo continua se impondo e sendo um componente ativo de controle social. Ariel Dorfman diz que foram os desaparecidos que contribuíram para as mudanças no panorama chileno de resgate de memória histórica e justiça. Eles, os desaparecidos, não nos permitem esquecer. Eles estão sempre aí, presentes, como uma força de resistência, lembrando-nos de que não é possível esquecer. Curiosa imagem que permite entender que o silêncio produz efeitos, dentre eles, o do nãoesquecimento. E que, para esquecer, para virar a página da história, para produzir mudanças no mundo, é indispensável lembrar, incluir o passado, conhecer o que passou. Dossiê Arquivos da Ditadura 29 GLOBAL
O filósofo italiano Paolo Virno afirma que vivemos em uma época de crise que nos obriga a repensar conceitos e categorias e faz sua aposta em uma democracia da “multidão” por meio de uma visão materialista da
v GLOBAL 30 Conexões Globais
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a política
A construção de novos valores Encontramo-nos em uma situação bastante parecida com a que se viveu na Europa no século XVII, quando foram inventadas todas as categorias e conceitos que agora nos parecem óbvios, triviais e comuns. Foi naquele momento que se criou a idéia do Estado nacional, central, e se inventaram conceitos como soberania e obrigação de obedecer. Tenho a impressão de que estamos em uma fase na qual todos esses conceitos estão em crise, e outros são construídos para substituí-los. Quem os constrói? Esta é uma pergunta muito pertinente. E não se deve pensar que existem filósofos ou pensadores que inventam conceitos políticos, porque este é um modo de conceber a política herdeiro do pior Platão ou da pior Ilustração. Esses conceitos emergem aos poucos, de dentro das experiências coletivas, por ensaio e erro. Neste momento um novo modo de ser emerge na esfera pública, que se caracteriza pelo fato de que o Estado é algo que se tornou obsoleto, inadequado, como a máquina de escrever em comparação com o computador.
A política e a felicidade Quando se fala de felicidade muitos pensam, talvez, naquele artigo da constituição dos Estados Unidos que fala do direito à felicidade. Penso sobretudo no uso que fez Hannah Arendt da expressão “felicidade pública”. É difícil pensar em felicidade como uma espécie de possessão secreta, um bem privado. A felicidade é algo relacionado com o fato de que nossa mente, a minha, a sua, é sempre como uma mente pública, social, e que não se pode realizar se não estiver em relação com os próprios semelhantes. Pensar que somos mentes realizadas em si mesmas, completas, e que só em um segundo momento nos colocamos em relação com os outros me parece pouco verossímil, soa falso. Por fim, penso que este estado de bem estar que chamamos de felicidade é algo que tem a ver com o tempo. Acho que 68 na Europa, nos Estados Unidos, ou mesmo na América Latina, foi um momento em que fomos pessoalmente felizes. Existe um momento em que o que acontece ao nosso redor e o que se passa em nossos sentimentos mais íntimos têm uma relação muito forte. O nexo entre política e felicidade tem sido negado durante muito tempo em nome do ascetismo, em nome da separação entre o público e o privado, mas talvez tenha chegado a hora de pensar de novo sobre a vinculação entre ambas as coisas. Natureza e história Creio que, pela própria natureza humana, é necessário entender o conjunto de condições invariantes que são verdadeiras desde sempre e que constituem a base para tudo o que se modifica em nossa vida. Existem condições fixas, constantes, sempre iguais, que no ser humano permitem sua grande mutabilidade, as grandes transformações dos modos de produção, dos costumes, das culturas. Quando falamos de uma nova época, falamos de como essas condições invariantes que constituem a nossa natureza – como a faculdade lingüística, por exemplo – emergem de uma ou outra maneira, como o “sempre presente”, o verdadeiro perpétuo, em uma sociedade histórica que se transforma. Por natureza humana deve-se entender um conjunto de condições que se abrem à História, à temporalidade, à mutabilidade e que este conjunto de condições pode reduzir-se ao fato de que somos animais lingüísticos, e que não nascemos já sabendo o que fazer, senão que devemos aprender. Na globalização, a precariedade, a instabilidade, a ausência de um ambiente determinado, que são elementos da natureza humana, convertem-se em características sociais, sociológicas. No caso dos imigrantes, por exemplo, a necessidade de modificar muitas vezes ao longo da vida seu próprio saber laboral – ou seja, um elemento que sempre foi verdadeiro – adquire uma visibilidade particularmente intensa.
Conexões Globais 31 GLOBAL
a felicidade
“Estamos em situação bastante parecida com a que se viveu na Europa no século XVII, quando foram inventadas todas as categorias e conceitos que agora nos parecem óbvios, triviais e comuns” Virtuosismos Houve um tempo em que quando se dizia virtuose, imediatamente se pensava em um grande dançarino, um grande pianista. Para mim, as características virtuosísticas têm uma dimensão muito menos artística, muito menos sublime, encontram-se no trabalho intelectual de massa, na economia pós-fordista baseada na comunicação, na cultura, na informação. Quantas vezes no trabalho – digamos, pós-fordista – é necessário improvisar, compreender o que fazer para responder a uma situação imprevista: é como se as características do virtuose não se esgotassem em um objeto, em algo que é um fim em si mesmo; é estabelecer uma relação com quem ouve, com o público. Estas características hoje estão também presentes no trabalho industrial, foram socializadas.
Excesso de História Em Recordação do Presente sustento o contrário do que diz Fukuyama sobre o fim da História. Estamos vivendo uma situação de excesso de História. E em que consiste este excesso? Obviamente, é certo que sucedem muitos acontecimentos históricos, mas o excesso deve-se ao fato de que também passou a ser objeto histórico a capacidade humana de fazer História. Ou seja, nossa historicidade, a capacidade de poder fazer História, transformou-se em objeto da práxis. Por exemplo, fazemos e temos uma História porque temos linguagem e porque somos seres potenciais. Estas duas coisas, nossa potencialidade, nossa “lingüisticidade” – condições da História – hoje passaram a ser matéria-prima da economia globalizada. O trabalhador deve estar aberto à potencialidade, deve ser comunicativo. Em vez de falar do fim da História, eu falaria de um excesso de História, ou uma “hiper-história”. Falta uma ética e uma política a altura deste excesso de História, e por isso esta situação de angústia e medo. Há incerteza quanto às formas políticas, há uma crise do Estado, mas não há uma alternativa que se apresente. Por que? Este excesso de História constitui uma desproporção em relação a nossos hábitos, nossa ética, e nossas categorias políticas.
GLOBAL 32 Conexões Globais
Multidão e liberais A idéia liberal de indivíduo e a singularidade da multidão são como irmãos gêmeos totalmente diferentes um em relação ao outro. São muito parecidos, mas têm significados profundamente distintos. Porque o liberal pensa que o indivíduo é o elemento primeiro e depois trata de compreender como o indivíduo atua em relação aos outros e ao Estado. Do ponto de vista da multidão, o indivíduo, a singularidade, é resultado de um processo. Por isso podemos lançar mão de um velho conceito filosófico de princípio de individuação, pelo qual a singularidade é o fruto, o resultado de um processo de individuação, de diferenciação. Todos nós, você, eu, somos singularidades irrepetíveis, mas é assim porque portamos elementos que são, ao contrário, universais, comuns. Como o fato de termos ambos, você e eu, características que pertencem a toda a espécie: a faculdade de linguagem, de pensamento. Que logo se singularizam. Portanto, o indivíduo é o resultado de elementos comuns e universais.
Exit, de Franj Manata
Voto da multidão Apesar de a multidão dizer não à democracia representativa, as pessoas continuam votando. Por quê? Votam da mesma maneira que continuam fazendo outras coisas que já não contam muito. O problema não é votar, mas construir formas de democracia que estejam à altura destas forças produtivas. A produção contemporânea chegou a um ponto tal que é muito mais complexa, muito mais madura, que os aparatos administrativos e legislativos dos Estados. Então, a questão é que tipo de democracia se busca. Não se trata de uma democracia simplificada, de assembléia, de democracia direta, que naturalmente é um belo mito. Mas da idéia de uma política simplificada e elementar. Por isso, a questão é que a democracia esteja à altura da complexidade da produção social em que se valorizam todas as capacidades cognitivas e comunicativas do animal humano, aquilo que Marx definia em uma bela expressão – o General Intellect –, o cérebro social enquanto pilar da produção moderna. Inimigo político Penso que o problema do inimigo político ainda existe. Isso demonstra que não vivemos em um mundo mais suave, mais doce. A multidão não tem o problema de tomar o poder, tem o problema, em todo caso, de limitar este poder e derrubar o Estado, construindo instituições e uma esfera pública fora dele. Então, deste ponto de vista, o inimigo se parece mais com o faraó do Êxodo da Bíblia, que persegue os que buscam o êxodo, a fuga. Não se trata de uma fuga no espaço. É uma fuga no sentido de sair das categorias das instituções estatais. Inimigo existe, mas já não é mais o inimigo que está em nossa frente e que constituiu o modelo das guerras civis, ou o que está por trás da idéia de tomada do poder. É um inimigo que trava, que sabota a construção da democracia não-representativa, de novas experiências comunitárias. Futuro da classe trabalhadora
A classe trabalhadora existe. Só que agora ela tem o modo de ser da multidão e não mais o do povo. Não se deve achar que porque falamos de multidão, dissemos um grande adeus à classe trabalhadora. A classe trabalhadora é um conceito científico. Quer dizer produzir ganho, maisvalia. O movimento socialista e o movimento comunista pensaram a classe trabalhadora em termos de povo, algo compacto, unitário, que no fundo queria constituir um novo Estado. Na minha opinião, a classe trabalhadora atualmente deve ser pensada em termos de multidão, de singularidades ricas, mas trata-se sempre de classe trabalhadora. Invasão do Iraque e Império O anos 90 foram anos de espera, um interregno, enquanto que o verdadeiro depois do muro de Berlim começou recentemente com Bush e a invasão do Iraque. Aquilo que um terrível teórico da política, Carl Schmitt, chamava de o nomos da terra, a ordem mundial. A redefinição desta ordem começou com a guerra no Iraque, não com Clinton nos anos 90; aquele foi um período intermediário, de espera, como um entreato. O novo governo Bush deixa bem claro o que no pensamento político é decisivo: a relação de força. Que se tenha falado durante tantos anos de política sem pensar em relação de força demonstra apenas que não se chegava a pensar, a realmente falar de política. Pessoalmente, quanto ao conceito de “Império”, tenho muitas dúvidas, porque me parece uma tentativa de fotografar a situação pós-muro, do fim do socialismo, tomando a administração Clinton como modelo. Quais serão as novas palavras que deverão ser adotadas para nomear a nova ordem mundial? Isso compreenderemos justamente a partir do desenrolar das coisas depois do Iraque, nos próximos anos em relação à China. Estamos justamente no início de uma redefinição das formas de domínio mundial. É muito prematuro colar aí uma etiqueta, como por exemplo “Império”. Revolução Talvez nos dias de hoje pudéssemos prescindir da palavra revolução, porque este modelo foi o de tomada do poder para construir um novo Estado. Preferiria falar de êxodo. Penso que o modelo de êxodo é um modelo rico. Êxodo significa, mais do que tomar o poder ou submeter-se a ele, sair. Sair significa construir um contexto diferente, novas experiências de democracia não-representativa, novos modos de produção. Existe uma terceira possibilidade – por favor, não estou falando de “Terceira Via” e sim de uma política de extinção do Estado que construa algo positivo! – de opor a palavra república à palavra Estado. Construir uma república não-estatal com um movimento que está sendo mais de êxodo e de experimentações positivas que de revolução no sentido clássico que, embora tenha sido uma atividade inteligente de muitas gerações, leva à idéia de construir um novo Estado. Não ter mais que se haver com um monopólio de decisão, quer dizer, multidão: muitos, pluralidade. Conexões Globais 33 GLOBAL
Uma viagem à China Michael Hardt / Tradução Leonora Corsini
Êxodo rural e trabalho precário também marcam o país que cresce 9% ao ano A questão central que então Em maio de 2004, Toni Negri e se coloca é: haverá condições eu passamos uma semana em suficientes para se estabelecer Shanghai e uma semana em uma ação coordenada e conBeijing, dando palestras e junta entre as lutas políticas discutindo com intelectuais travadas pelas populações chineses. A questão que mais rurais na China, na América debatemos foi se as condiLatina, na Africa, e onde mais ções sociais e as lutas na elas sejam necessárias? China de hoje têm elementos em comum com o que aconPrecariado tece fora do país, a ponto de O segundo foco de mudanças possibilitar algum tipo de colaque nos interessa diz respeito boração e intercâmbio polítiao desenvolvimento nas zoco. Os intelectuais chineses nas urbanas, não apenas das estão divididos com relação a várias formas de trabalho esta questão. Apesar da granimaterial, mas também de de internacionalização prouma proliferação de arranjos movida pela era Mao, existe de trabalho precário. Isto é hoje uma fortíssima (e, talvez, particularmente evidente em hegemônica) tradição de penShanghai, uma cidade que pasamento fundada na especifirece seguir firme na disposicidade da condição sócio-políção de construir mais arranhatica da China que, geralmente, céus do que Manhattan e São acaba resultando em persPaulo juntas. Ao lado dessa pectivas ultra-nacionalistas. febre desenfreada de construNo entanto, vários jovens ção, verifica-se uma aceleraintelectuais reconhecem a ção das transformações sociexistência de importantes ele- Puzzle Pólis, de Lívia Flores, 2002. Foto Paulo Jares ais para adequar o país à mentos sociais em comum entrada na economia capitalista globalizada. com os países estrangeiros, que podem estabelecer um Torna-se mais uma vez necessário pesquisar as condições ponto de partida para discussões e eventuais colaborações sociais e políticas do trabalho, especialmente em suas forno plano político. Dois focos primordiais de mudança social mas precarizadas. Além disso, a pergunta que fazemos é: pareceram-nos particularmente interessantes. Primeiraas poderosas batalhas políticas travadas por trabamente, a crise da produção agrícola. Hoje, após décadas de lhadores imateriais e precarizados de outras partes do uma política de descoletivização e distribuição de terras na globo podem ter relação e se comunicar com as lutas dos China, muitos agricultores não acreditam mais que possam chineses? sobreviver com o trabalho no campo. Especialistas estiUm dos jovens acadêmicos mais dinâmicos que conhecemam que pelo menos 10% desses agricultores abandomos, Wang Hui, oferece uma resposta positiva a essa naram suas terras para se transformarem em um exército questão, ao propor que os acontecimentos da Praça de migrantes desterritorializados. Tienanmen em 1989 representam o marco inaugural de um ciclo de lutas contra a globalização neoliberal, que Êxodo teve desdobramento em Chiapas, Seattle e Gênova (vale a Existe, na verdade, um forte influxo de populações rurais pena conferir o excelente livro de Wang Hui, recentemente empobrecidas em direção às grandes cidades, com o objepublicado em inglês com o título “China’s New Order”). tivo de encontrar trabalho em setores transitórios como o Ele nos lembra que Tienanmen foi mais do que um simda construção. Com a entrada da China na Organização ples movimento estudantil, foi um movimento que Mundial de Comércio e com a proibição de subsídios envolveu vários tipos de trabalhadores; os protestos estatais à agricultura, certamente a tendência é de que a incluíram grupos das mais variadas orientações ideocrise torne-se ainda mais aguda nos próximos anos. Talvez lógicas. A grande chamada contra a corrupção, diz ele, foi fosse extremamente interessante e útil conduzir uma muito mais do que um libelo contra o liberalismo ameripesquisa comparando a crise da produção agrícola e o cano; foi a condenação de uma liderança tradicional empobrecimento da vida rural na China com o que ocorre centralizadora e das políticas neoliberais emergentes. De em outras regiões do mundo – o Brasil, por exemplo. qualquer maneira, consideramos o trabalho de Wang Certamente, muitas das condições de fundo são diferentes, Hui emblemático de um tipo de pensamento que pode mas é igualmente claro, no nosso ponto de vista, que, ao possibilitar a comunicação entre a China e os movimentos enfrentar as mesmas forças globais, as mesmas políticas políticos que eclodem em vários outros pontos do neolíberais, o mesmo mercado mundial, os dois países Império global. compartilham um grande território em comum. GLOBAL 34 Conexões Globais
MANIFESTO DA CULTURA PELA REFORMA PSIQUIÁTRICA CULTURA, DIREITOS HUMANOS, DIREITO AO TRABALHO, CIDADANIA / POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS Há 18 anos a sociedade brasileira comemora o dia dedicado à luta pela construção de um mundo sem manicômios, sem exclusão, que assegure o direito ao atendimento digno no campo da saúde mental. É uma luta cultural, e não apenas de profissionais, usuários e familiares. Em diversos lugares do Brasil, muitas pessoas e organizações, se associam aos esforços de todos aqueles que, nos diversos estados, estão desconstruindo os manicômios e outras instituições totalitárias implantando novas formas de relação com a loucura. A loucura faz parte da vida. A liberdade também. Apoiamos todas as iniciativas, na gestão pública e nos movimentos sociais, que buscam gerar oportunidades de trabalho, geração de renda, lazer, educação, cultura, para toda a população, especialmente para os usuários de serviços de saúde mental. Apoiamos com entusiasmo os novos serviços de saúde mental – CAPS, residências terapêuticas, centros de convivência e outros – nos quais a cultura é parte viva do ambiente terapêutico. Defendemos um debate amplo, em defesa da reforma psiquiátrica, com a adesão de grupos sociais que atuam em diversas áreas, construindo uma sociedade mais justa e mais feliz. Por uma sociedade sem manicômios, com liberdade e direitos para todos! 18 de maio de 2005 Centro de Teatro do Oprimido-CTO-Rio e Augusto Boal. Adesões encaminhem mensagem para ctorio@ctorio.org.br
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A cidade região Jeroen Johannes Klink A economia da infelicidade Franco Berardi (Bifo)
O capitalismo cognitivo Alexander Patez Galvão, Gerardo Silva e Giuseppe Cocco (org.)
A duração das cidades Henri Acselrad (org.) Trabalho imaterial Maurizio Lazzarato e Antonio Negri
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Conexões Globais 35 GLOBAL
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Brian Holmes
Imaginem um multiplex de seis andares, com guichês de entrada de cinema, salas de conferência e de teatro, centros de informação e de mídia, bibliotecas, uma loja de livros e de presentes, uma cafeteria, um barrestaurante e, claro, algumas salas de exposição. Trata-se do Centro Pompidou em Paris. Distribuam agora estas funções em um pátio, com uma profusão de prédios distintos e todas as atrações de um passeio arquitetural: é o MuseumsQuartier de Viena. Espalhem, ainda, no meio de uma cidade renovada na qual os festivais tradicionais e a vida intelectual contemporânea possam ser reprogramadas como eventos do calendário turístico: temos todo o centro de Barcelona. Os Estados-providência talvez estejam em vias de extinção, mas não os museus. Estes estão, na verdade, em fragmentação e entram, cada vez mais profunda e organicamente, nas malhas complexas da produção semiótica. Seus sub-produtos – GLOBAL. 38 Maquinações
Os museus na era do
o design, a moda, o espetáculo multimídia, bem como as tecnologias relacionais e a consultoria em gerenciamento cognitivo – encontram-se entre as forças diretrizes da economia contemporânea. Estamos longe da noção modernista de museu como coleção de grandes obras, apresentadas a todos como serviço público. Ao invés disso, falemos de laboratórios próativos da evolução social. São os museus que trabalham, que fazem parte da economia dominante e que se transformam com uma velocidade imposta, tanto pelo Estado, quanto pelo mercado. É possível utilizar este vasto desenvolvimento da atividade cultural para outra coisa, que não apenas a promoção do turismo, do consumo, que não apenas o tratamento, por alguns grupos, da atenção e da emoção humanas?
Crise do Estado-providência A crítica pode começar por uma melhor compreensão da "crise", hoje quase definitiva, do Estado-providência. As origens desta crise são corretamente atribuídas à Transformação neoliberal do sistema dominante, iniciada em meados dos anos setenta com a escola de Chicago e a revolução conservadora de Thatcher. A crítica cultural dos anos sessenta era essencialmente antiburocrática, anti-disciplinar, e visava dissolver as hierarquias industriais. O antropólogo Pierre Clastres resumia esta aspiração em uma frase: "A sociedade contra o Estado". E é aí que os neoliberais encontraram sua oportunidade e combinaram uma transformação na organização econômica (a gestão modular de "centros de lucro" semi ou pseudo-autônomos contra qualquer integração vertical) com uma nova e ambiciosa política social (a mobilização da força de trabalho, não através da promessa de garantias
workfare
GENERALIZADO
Magasin de l’art, Edson Barrus. coletivas, mas através da implicação pessoal da paixão, da ética e da subjetividade de cada um). A imaginação chega ao poder, para além da importância decrescente da mecanização; enquanto o Estado social, o welfare (a garantia de um certo "tempo livre" longe das máquinas) é substituído pelo workfare, pela colocação em trabalho (palavra de ordem para uma mobilização total da população). A arte – ou, mais amplamente, a criatividade – tornou-se pivô do sistema de colocação em trabalho da era financeirizada da produção de imagens e de signos. É, ao mesmo tempo, o ícone da sociedade atual e seu modo de inclusão mais eficaz. Esta sociedade estimula todo mundo a uma escalada constante em direção a maiores níveis de atividade, ou em direção às margens, quando alguém não consegue se integrar. Deste modo, o multiplex cultural exprime um estratagema. No meio da profusão de uma estética comercializada, a
revolta individual das gerações passadas foi integrada como vetor e máscara de uma dinâmica de exclusão repressiva. Mas, não escaparemos a este destino pela via de um retorno às burocracias estatais, aos museus modernistas religiosamente silenciosos. O que deve ser inventado é uma forma radicalmente diferente de governamentabilidade, este dispositivo ético através do qual, como dizia Foucault, os sujeitos livres procuram "conduzir a conduta dos outros". Ativismo em rede Em que consiste, então, uma prática atual de confrontação? Consiste na produção deliberadamente "ineficaz" e des-normalizada de dispositivos estéticos, com o fim de perturbar e de desencaminhar as técnicas de captura da atenção postas em prática pelos parceiro do Estrado do workfare e do capital neoliberal. As manifestações do Mayday inventadas em Milão, e
praticadas também em Barcelona, constituem exemplos paradigmáticos, pois começam pelas múltiplas formas de exclusão – clandestinos, trabalhadores ilegais, desempregados, movimentos de sem-teto, pessoas sem qualquer forma de seguro e sem qualquer possibilidade de negociação coletiva – e tentam construir uma consciência política sobre a situação de trabalho e de vida, debatendo-se furiosamente contra os modos mais característicos de opressão e de exploração. Seus meios são, obviamente, estéticos, pois esta é também a maneira pela qual os membros de nossas sociedades "conduzem a conduta dos outros". Mas trata-se de uma estética do carnaval e do caos. As manifestações do Mayday usam formas de organização cooperativas, fundadas na solidariedade, para mobilizar a energia de subjetividades iguais e livres, reunidas em uma resistência caótica e alegre contra as imagens calculadas das marcas e dos ambientes Maquinações 39 GLOBAL
turísticos, que geram e canalizam o comportamento com o objetivo de evitar a palavra política. A imagem de dançarinos vestidos de rosa irrompendo expressivamente em uma loja Zara em Milão resume perfeitamente este novo combate. Mesmo para o vídeo espanhol "Desmantelando Indra", que mostra a entrada de um grupo de manifestantes disfarçados de inspetores nos escritórios de uma indústria de armamentos, seguida do desmantelamento deliberado dos equipamentos de comunicação e de informática, postos em quarentena em caixas seladas sobre as quais lia-se: "Perigo: armas de destruição em massa" (http://www.sindominio.net/mapas/ es/accions_es. htm). A comunicação e as formas empresariais de organização social como armas mortais em uma guerra civil mundial: é exatamente o que está por trás das "Armas de decepção em massa" da indústria da moda. A questão é a desconstrução da economia de guerra e a criação de uma base coletiva para as formas voluntárias de cooperação livre (transformação da habitação, do seguro, do transporte e dos regimes de trabalho, novas formas de acesso socializado aos equipamentos de comunicação, de direitos de acesso "copyleft" aos bens comuns, a invenção de formas coletivas de propriedade, a extensão da subsidiaridade e dos produtores democráticos diretos). E o estilo Mayday de ativismo de urgência é apenas a figura mais evidente dos novos espaços que se abrem à experimentação da confrontação. Em toda parte ao nosso redor, mas de modo mais modesto, lento e discreto, energias similares estão agindo, em níveis mais contidos, sutis e íntimos, onde o psíquico se junta ao artístico e ao político.
Como um museu pode contribuir para este tipo de ativismo estético? Primeiramente, fazendo ver sua genealogia, que segue em uma linha sem ruptura das experiências dadaístas às práticas instalacionistas, aos happenings, à arte conceitual e à intervenção situacionista. Uma genealogia da arte que procura ir além de si mesma, a arte do fora. GLOBAL. 40 Maquinações
O museu pode abrir o debate às formas ativistas, não como corpos do passadio para dissecação acadêmica, mas como pontos de referência e de fonte de inspiração para o desenvolvimento de novas práticas no futuro imediato. Novas práticas de intervenção e experimentação Mais do que enfiar as receitas mais up-to-date de estimulação consumista sobre reservas de expertise moderna em desuso, a instituição pós-workfare torna-se uma biblioteca de alternativas sensíveis à mobilização total da sociedade capitalista. É um arquivo que não requer o silêncio dos usuários. Terceira contribuição, projetar algum recurso para além de seus muros para se engajar em uma experimentação e em uma troca com a textura de estéticas concorrentes que é a cidade contemporânea. Juntar os traços desta prática e de outras atividades autônomas. Trabalhar para conectar os espaços, físicos e eletrônicos, nos quais estes traços possam tornar-se objeto de discussões prospectivas abertas. Fazendo isso, ajuda-se a satisfazer as ambições de boa parte da arte contemporânea – a pretensão da arte instalacionista, por exemplo, de constituir um modelo em miniatura das interações sociais, e um campo indeterminado para sua invenção. Mas, ao invés de esterilizar esta promessa dentro das fronteiras exclusivas e altamente determinadas do pertencimento de classe e, ao invés de reduzir sua produção a objetos de contemplação, é possível reconhecer os conflitos fundamentais da sociedade, engajando procedimentos arriscados que podem ajudar a retirar os conflitos dos violentos impasses a que se encontram relegados, fazendo-os subir ao nível político onde os iguais se confrontam aos iguais. O nível onde a governamentabilidade se torna uma questão coletiva. É aqui que se encontra o papel de serviço público do novo "museu". Ele é exemplarmente satisfeito por uma micro-instituição como o Public Netbase, sobretudo nas operações em container montadas recentemente na Karlsplatz de Viena, e em
todos os seus ecos e prolongamentos eletrônicos. Mas, ele existe também, virtualmente, no desejo de milhares de atores institucionais decepcionados e revoltados pelas operações dos multiplexes culturais e pela modalidade em declínio de serviço público, tal como era concebido pelo Estado providência. Como pode este virtual tornar-se real? O que falta hoje é menos uma prática artística do que uma crítica forte que possa inscrever critérios de valor e de decisão no seio dos debates, tanto públicos quanto profissionais. Depois de cinco anos do mais intenso ativismo social e artístico, devemos ainda desenvolver uma crítica construtiva. O debate das revistas e dos curadores permanece pateticamente servil, enquanto os desenvolvimentos minoritários continuam presos na armadilha da desilusão e da observação cínica do desastre, ou ainda, no impasse marginalmente preferível do radicalismo puro e da recusa de qualquer coisa que cheire a recuperação. É verdade que a crítica, bem como a prática da confrontação, recebe os atributos de mercadoria cada vez que é aceita nos confins do mercado institucionalizado. E trata-se de um verdadeiro problema. Mas a recuperação é também um front aberto de luta social. A idéia segundo a qual esta luta poderia ser ganha pelo apelo às puras formas da discussão democrática e da razão comunicacional mostrou-se tão ilusória quanto a confiança perversa nas capacidades do mercado de traduzir as aspirações populares. Não há "solução" para uma posição cultural de esquerda no seio de uma sociedade de mercado, mas uma tensão a ser mantida entre os atores que se encontram no interior e no exterior das instituições, no limite, freqüentemente ultrapassado, da ruptura. Hoje, parece que o movimento continuamente problemático entre o que Diego Stzulwark e Miguel Benasayag chamaram "situações de resistência" e "situações de gestão" – apreendidas em sua irrevogável contradição – oferece a única chance de fazer alguma coisa com uma pletora de instituições estéticas capturadas pela maré montante do Estado de workfare contemporâneo.
------------------------------------------------------------------From: "Artur Barrio" Date: Tue, 11 Jan 2005 00:06:26 -0200 To: rés-do-chão Subject: Re: rés-do-chão pergunta para barrio Boa noite Cecilia Cotrim,
11 Jan 2005 00:22:41 -0200
................começarei por responder às perguntas do meio para o fim assim como do fim para o princípio e isto em vários mails e noites.
Resposta à pergunta nº 3 :
Resposta à 5ª pergunta : Arte-vida, Vida-Arte, público desavisado mas avisado de que para entrar não seria necessário pagar o que talvez tenha resultado de que os avisados e os desavisados poderiam ir e vir quantas vezes quisessem, ou aguentassem, o que por si só não deixa já de ser algo muito interessante. Quanto a saber que público é esse, não sei mas perguntome o por quê desse mesmo público "desavisado" querer penetrar, viver, olhar e, quem sabe, ver uma Bienal com obras ou Obras de arte ou Arte e onde justamente não se encontravam jogos de futebol, vôlei, estrelas avisadas, fashion, cachorros e novelas e toda essa parafernália da cultura chamada de massas, ou será que no MAM do Rio de Janeiro, com seus shows fashion (para sobreviver, coitadinho..............) só entram os avisados? A Bienal dos desavisados, penso eu, criou um hiato. Aos mortos o ir.........................................................Aos vivos o ir e vir................................................................................................. Resposta à 4ª pergunta : ................................................ para o visitante desavisado deixei a escolha de poder se sentar ou se deitar e descansar no sofá azul-sujo com 3 pernas colocado sobre um montículo de areia. .....................................................para o visitante avisado, deixei-lhe a pergunta. (Não há armadilha, pois quando se quer ou se deseja entrar no que você subentende como armadilha, a armadilha evidentemente deixa de o ser.)
Concordar ou discordar, o que importa? O que posso eu fazer ou não fazer se isso mais aquilo tranformam-se naquilo? Penso que o importante seja o que se entende e subentende no relacionamento entre os trabalhos e seus contrários . Quanto à ancestralidade ........................................................... ............................................................. o que escrever, ........... ............................................................. o que dizer,.................? Mas, por quê ser um ancestral, já que só se passaram quinze milionésimos de minuto? ---------11 Jan 2005 00:52:15 -0200 Resposta à pergunta nº11 : A importância do tecido em minha obra é secundária. Não. Nem confluências, nem desconfluências. Resposta à pergunta nº 6 : Há quem goste e há quem não goste, mas Arte gosta......... .................................................................................................... Há quem desenvolva com mais potência a sua criatividade quando do contacto e do odor, Fémina, é sim muito importante para o presente da arte contemporânea. Quanto ao futuro(?) da arte contemporânea,............................................. ........................................................................................não sei. ------------------------------------------------------------------------------------
11 Jan 2005 01:04:37 -0200 A jangada, enquanto objeto inscrito em seu ambiente e na faina para a qual foi construída, corresponde à idéia de movimento (Héráclito), mas não é considerada como Arte. A jangada, enquanto objeto inscrito no espaço de um acontecimento artístico – no caso uma Bienal de Arte – fora de qualquer contexto para o qual foi construída, além de estática (Empédocles), passa a ser Arte? A jangada, ou melhor, o Projeto/Idéia Fortaleza-Lisboa (1998-2006) foi adquirido por um colecionador .
Resposta à pergunta nº 8 : Reticências.................................................................................. Espaço de reflexão..................................................................... Espaço de / para composição.................................................... Pontinhos.................................................................................... Espaços livres em uma frase não terminada para que o leitor a elocubre e a construa? Maquinações 41 GLOBAL
Resposta à pergunta nº 9 :
Ventos/Vento......................................(Oráculo).........................
Não sou religioso.
Perscruta as estrêlas..........................................pois quanto mais intenso for o brilho mais forte o vento será.................. ..................................................................................................... .....................................................................................................
Resposta n º10 : Seria ótimo se fosse coletiva e daí a procura e pesquisa para encontrar esse ponto de apoio para algo muito muito melhor. O coletivo é fundamental. Parafraseando Fernando Pessoa ................, tudo vale a pena se a alma não é pequena.
.................................................................................vento forte.
-----------------------------------------------------------------------------------14 Jan 2005 02:45:16 -0200 Subject: UE ARTISTARe: rés-do-chão pergunta para barrio
Resposta à pergunta n° Resposta à pergunta nº 7 : PS. vou dormir ,bateu o sono,são 04' de terça feira do dia 11 de janeiro de 2005.
---------12 Jan 2005 00:42:31 -0200 Resposta à pergunta nº 12 : ..................................................................................................... ..................................................................................................... ..................................................................................................... ..................................................................................................... ..................................................................................................... ..................................................................................................... ..................................................................................................... ..................................................................................................... ..................................................................................................... ..................................................................................................... .....................................................................................................
-----------------------------------------------------------------------------------13 Jan 2005 01:57:32 -0200 Resposta à pergunta nº 2 : .........................no espaço possível há que criar o Impossível, mas sem alguma história específica em relação ao local ou lugar aonde (onde) acontece o trabalho, ou melhor, em que o trabalho é criado / realizado........., ou seja, uma ocupação de um espaço através do meu processo criativo naquele momento exato.......................................................................... .........................................................................................exacto.
-----------------------------------------------------------------------------------13 Jan 2005 03:45:30 -0200 Resposta à pergunta nº 1 : 2h25'......................... 13.01.2005............................................... Poesia/Arte...............................Limites/Circuitos...................... GLOBAL. 42 Maquinações
....beuhhhaaáaa,..............parecia uma espécie... de cachorro velho com o "pau" cheio de gonorréia, espécie de coisa sulamericana mesclada a coisa francesa que pariu Maldoror..................................................................................... ................................et Ste. Geneviève devant Átila a mis au monde Marcel Duchamp ... e a arte do # @ ~ ^ s Q A A A A = = [ K m ; s + YRSDbO+^xcJ@!qo]zH2,jI;'B4OOw=zJhAhT !w / nYcxnl2F {@$Gs0!OB} *q9y!WSw9!Us1sUfT)yKcd9sR!,x6 cq9y!jsOo?G!)+:cS9Yy2YcyYW,YlbJ:R4YsvP,tnkTtOxZPhb[Y 4'!@*@!@*Ebp+DAAAA==^#~@ . XX.................................... arrondissémant....................e o "pobre" Cézanne que disse que o filho não era dele porque tinha medo do pai,.................. MAS QUE PINTOR............................................ ...........que importa um sonho Português cheio de.... bofetadas na cara se temos Pessoa e Mário de Sá Carneiro e Florbela Spanca............(delicadezas)....................................... ................uma espécie de Liberdade Aprisionada.............nos braços da verdade. que..............................................jocosamente disse............................................................................................ .........é tudo mentira. Você está vivo? PS. Claudia Cadiman disse HHEEEeeeeeLLLlllOOOUUUWww
-----------------------------------------------------------------------------------14 Jan 2005 04:20:03 -0200 Re/ resposta à pergunta nº 12 : como tocar em teclas que têm medo de ser tocadas..................................................? Na ponta da espada há que metê-las para baixo para que aprendam a escrever. Com o pau vermelho pleno de ......................... assim disse o miau. E no rés do chão a flor mais linda do mundo..... disse que não era uma gatinha e muito menos putinha.........! Coro dos cachorros velhos (depois dos 25 anos de idade)
MA QUÊ.........................................FARE...........FARE>!!!!???? ....................................e disse Sade............................................ ............ma chère dévoiteuse de Cristina,.......................je vous emprie........ vous et vous amants......SADE ........................, et je pense a ma chère femme q'aime lire épuirdement Aline et Valcourt....................................................................................... sem alguma circunstância possível entre o bem e o mal.............................................................................................. ..................Flor , .....onde sinto os teus lábios confrontados aos ... meus..............e um dia vinha de um mergulho e vi uma filhuela que ................uma filhôla.............que era exatamente como uma estatueta grega antiga..................... e depois sempre............................................................................ e chamavam-me...............Artur...................Artur..................e o mar... estava lá ----- Original Message ----From: rés-do-chão To: Artur Barrio Sent: Friday, January 07, 2005 6:42 PM Subject: rés-do-chão pergunta para barrio
Estamos aqui reunidos, nós, do recalcitrante colectif-naïf chamado pelas más línguas lapianas de 'resto', ou rés-dochão, para tentarmos entabular uma interação cambiável. Começamos pois com as colocações: [1] Barrio, boa noite. propomos perguntas, mas você escolhe as jogadas de agora em diante. ao menos um pouco imprevisível, o jogo, uma vez que não sabemos como você vai jogar.S estou lendo um livro lindo, do Nietzsche, lembrei agora de seu subtítulo, "um livro para espíritos livres", e me pergunto: sobre tudo o que envolve a poesia/arte, e sobre esses limites do circuito.... pode soprar um vento? vai soprar? sopra? nesse circuito pode surgir algum pensamento inflamado? [2] outra questão: parece que você vem deixando, no circuito, traços de um modo muito particular de relação com a/s instituição/ções [até como no caso da mostra information e do 4 dias 4 noites, talvez endereçado a nova york], trazendo todos os senões e também os acordos.... pensando e repropondo os termos a cada articulação do processo do trabalho, antes, durante, etc... e a realização do trabalho no sítio e a partir do sítio, nesse processo que você deflagra, também leva a pensar em história – a história do local? e, enfim, a pergunta: então essa história, ainda que provisoriamente, vai adquirir carga poética, como se prometesse um mínimo de sentido ao lugar? [como no trabalho 'da volta dos ratos'?] [3] bem, o que eu teria para colocar pro Barrio é o seguinte: o Luiz Camillo Osorio, por ocasião do Açucar Invertido, quarentena/processo desenvolvida na funarte, falou: "isso
aqui é um Barrio multiplicado por 70". Eu queria saber se o Barrio concorda que ele tenha se multiplicado tanto assim, e se ele concorda com essa ancestralidade que se atribui a ele, nos ditos coletivos a(r)tivistas. [4] Para o visitante desavisado, a jangada teria sido devorada pelo "gigante adormecido elefante branco" aka [mais conhecido como] Bienal de São Paulo, cuja campanha publicitária estampava out-doors com o slogan ‘arte-vida_. Mas... Será, Artur, que o que ali se passou foi mesmo assim? Como reverter o jogo, escapar da armadilha, manter o espaço de deslocamento ..................................... ? A pergunta//resposta seria onde, como e quando lançar-recolheramarrar-desamarrar âncoras e pedras? [5] Nessa bienal arte-vida, a vida ficava por conta do visitante desavisado: o público que não pagava pra entrar. Que público é esse? Há um interesse renovado? [6] certa vez li na parede de uma mostra sua, acho q na retrospectiva do mam/rj, em 2001, algo sobre "chupar mais bucetas". vc acha q o presente ou futuro da arte contemporânea, no Brasil e lá ´fora`, tem a ver com isso? [7] café, peixe, jangadas, dejetos variados, fotografias, etc . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..................................................................................: encontros fortuitos sob/sobre a mesa. Lautreamont está vivo? [8] Dois recentes resultados de uma escrita cuidadosa: "artista //" e "artista-etc". Você nos brinda sempre com "................................................................SSSSSSSSSSSSSS. ..................................................................................................... .................." Barrio: o que são estes pontos em sua escrita? [reticências, pontinhos, areia, ...] [9] Lembrando Yemanjá,....... por onde você sente a hidrosolidariedade das festas de santo dentro do "circuito d´arte carioca"? 4 dias 4 noites é de Exu? [10] A criação é indivudual ou coletiva? Trabalhar sozinho ou em grupo? Um encontro real e possível, ainda que seja sem contato ou presença física? [11] Qual a importância do tecido em sua obra? Você acredita que há alguma confluência com os trabalhos de Hélio Oiticica e Leonilson? [12] Sobre o que você não quer falar? Participaram por e-mail ou aqui: Alex Hamburger, Alexandre Sá, Amélia Sampaio, Arthur Leandro, Cecilia Cotrim, Daniela Mattos, Edson Barrus, Luis Andrade, Marcelo Cucco, Ricardo Basbaum, Ronald Duarte, Tatiana Roque, Tato Teixeira.
Sexta-feira, 7 de janeiro de 2005, 20hs. Maquinações 43 GLOBAL
Manifesto do Museu Bispo do Rosário propõe uma nova inserção
IMPLOSÃO R
I C A R D O
A
M U R O S
E
Q U I N O
A sociedade disciplinar organizou instituições tais como a universidade, o asilo, o hospital, a prisão, o museu etc. O museu é a instituição disciplinar que se organiza em torno da memória: memória do Estado nacional, memória do saber científico, memória do valor cultural. Como todas as instituições disciplinares, o museu é uma instituição de afirmação da identidade. O museu histórico ajudou na consolidação do Estado nacional burguês, ou seja, da identidade nacional; o museu das ciências deu substância ao mito da supremacia da identidade do homem europeu – branco, racionalista, cristão – e da história enquanto processo linear, legitimando a exclusão da diferença e do periférico – negro, índio, nãoeuropeu, não-urbano, não-racional (entre esses, os loucos); o museu de belas-artes configurou a identidade da arte da corte como a Arte. No campo artístico, a tensão promovida pelas vanguardas levou à inclusão no museu das artes acadêmicas – ou seja, da arte da representação ou da arte clássica – de outros segmentos artísticos, como a arte moderna e a arte contemporânea, que o museu passou a também abrigar. No entanto, um museu de arte moderna ou um museu de arte contemporânea permanecem nos limites de uma instituição disciplinar. Entre as funções da instituição disciplinar está o exercício do controle e a afirmação do poder. Todos os tipos de museu (histórico, antropológico ou artístico) de natureza disciplinar exercem e são atravessados por jogos de poder e visam estabelecer uma identidade determinada como a Identidade Absoluta e Prevalente, necessariamente excluindo a diferença. O conjunto das instituições disciplinares entrou em crise com a passagem para a sociedade de controle. Nesta, a função de controle ultrapassa os limites dos muros institucionais e é exercida em todo o tecido social. Este Manifesto dirige-se a todos aqueles interessados num posicionamento de dobra ao exercício do controle que se multiplica no funcionamento da sociedade contemporânea; a todos que GLOBAL. 44 Maquinações
DE
possam interrogar sobre a maneira como deveria funcionar um museu para que pudesse se colocar como estratégia de resistência ao controle e para que não funcionasse mais ingenuamente à serviço dos intentos do poder. O Museu Bispo do Rosário propõe a reflexão sobre: 1. O entendimento de que o museu disciplinar foi construído em torno da obra de arte, nomeada como valor para
o saber das elites. O museu disciplinar organizou esta coleção de objetos num prédio – a sede do museu –, a ser visitado por um público. A narrativa que o museu veicula é o exercício do poder disciplinar de conferir a identidade de pertencimento ou de exclusão do mundo (de valores) das elites para aqueles que visitam o museu e assimilam ou não a sua narrativa. Com isso, delineia-se o seguinte
das instituições artísticas como resistência ao controle
PA R E D E S
DOS
Dicionário de nomes / A-I, de Bispo do Rosário. Foto Lula Aparício. entendimento de modelo de museu: museu = edifício + coleção + público. 2. A crise disciplinar instaurada com a passagem para a sociedade de controle exige uma crítica radical desse modelo. O Museu Bispo do Rosário busca funcionar dentro de uma nova lógica, atento para se confrontar com o intuito de controle: museu = lugar praticado + criação + rede. O não-lugar é o que caracteriza o es-
paço desterritorializado da sociedade de controle. Trata-se de pensar o museu funcionando num não-lugar enquanto um espaço praticado pela ação museal que transborda, com isso, os limites dos muros da instituição disciplinar. A criação artística como a que promove a resistência ao biopoder, com a criação da vida que a arte proporciona. A rede, enquanto modo de funcionamento da sociedade de controle, deve
MUSEUS ser redirecionada pela ativação dos nós para a função de resistência. Tratase de agenciar, através da ação de criação desmedida e de lugar praticado do museu, novos parceiros para se colocar na dobra ao poder. 3. Este modelo de funcionamento de resistência ao controle coloca a necessidade para o Museu Bispo do Rosário – que abriga em seu acervo as obras de Arthur Bispo do Rosário e de outros artistas que criaram nos limites dos serviços de saúde mental – de considerar alguns aspectos. Primeiro, a luta contra os (pré)conceitos que circulam dentro e fora do campo da Psiquiatria, formulados como forma de controle e de redução da produção artística à condição de sintoma de doença mental. Esses conceitos são: arte psicótica, arte degenerada ou arte psicopatológica. Depois, a luta contra as denominações forjadas no campo artístico que servem como rótulo para essa produção, marcando-a de um caráter de estrangereidade ao mundo da arte: arte virgem, arte bruta, outsider art e folk art. Em terceiro lugar, a afirmação do caráter dessa arte enquanto arte, entendendoa como boa ou má arte, interessante ou não, mas como pertencendo ao universo da arte e como tal entendida e integrada, com suas particularidades, em cada uma das correntes artísticas reconhecidas na História da Arte. O Museu Bispo do Rosário luta pela afirmação da diferença, promovendo através da criação artística a afirmação da singularidade e da cidadania de cada um desses criadores. Circulando pelo espaço liso da sociedade de controle, o museu promove, através de suas ações, o agenciamento de redes de parceiros interessados na promoção da cidadania dos usuários dos serviços de saúde mental. Enfim, no momento em que os muros das instituições disciplinares estão em crise, deve-se estar atento às funções sutis do controle. Assim, de nada adianta colocarem-se os usuários para fora dos asilos se eles e sua produção artística circulam no espaço liso, etiquetados com os rótulos que a Psiquiatria e os agentes do campo da arte buscaram ligar a essa produção, negandolhes o caráter de arte autêntica e reduzindo-a à doença mental. Maquinações 45 GLOBAL
DESFILE
Boa noite, eu sou Alexandre Teves e eu Vanessa Pascale. Estamos aqui para apresentar Fashion Real. Um desfile pra lá de excêntrico com as últimas tendências da precariedade no Brasil. Nesse desfile teremos a participação de diversos modelos com as condições desumanas em que vivem. O Rio está na moda. Cidade dos sonhos, sonhos que nem sempre se tornam realidade. As estatísticas mostram 9 milhões de pessoas em idade ativa, grande desemprego e, no “emprego”, altos índices de informalidade ou má-remuneração. Apropriando-se do funcionamento e da estrutura típica de um desfile de prêt-à-porter, Prêt-à-Précaire propõe uma passarela de reivindicações das pessoas em situação de precariedade no trabalho ou na ausência de trabalho. Depois de Paris em 2003, Prêt-à-Précaire apresentou sua coleção carioca Fashion Real na Escola do Parque Lage.
www.nongrataspass.org contact@nongrataspass.org GLOBAL. 46 Maquinações
Realização do desfile: Coletivo Non Gratas Pass e equipe de trabalho Prêt-à-Précaire Brasil
Fashion Real apresenta
Juliana Nabuco
As últimas tendências de jovens que buscam empregos em sua área de estudos realizados com um tropicalismo revisitado, sem emprego há dois meses, procura trabalho na área social e do meio ambiente, batendo de porta em porta, estilo com atitude. Formada em publicidade, apresentou um projeto final de linhas nada convencionais. O uso da publicidade no combate à cultura de omissão dos meios de comunicação de massa, a publicidade como ferramenta na desconstrução do imperialismo fashion capitalista, resultando no movimento resistência viva, que visa a conscientização ambiental do público. Top da moda tenta construir uma carreira com muitos holofotes. Por enquanto com uma super ajuda de 200 reais por mês de sua mãe. Mora com o pai, super desempregado, com a madrastra e um irmão, também estudante com um futuro difuso e entusiasta. Acha que o governo não dá muitas oportunidades e cria formas quadriculadas e rígidas para nos manter escravos do sistema. Encontra sugestões em pequenos grupos não governamentais que combinam com estilo alternativas em longo prazo para a melhoria social. Aposta firme que o mundo não irá melhorar enquanto houver pessoas indiferentes, em todas as ocasiões, como essas que se acomodam perdendo movimento. Fashion Real apresenta
Jurema Corrêa Ela representa Corte e Arte, a cooperativa de costureiras da comunidade do Cantagalo. Uma aposta sedutora realizada pela Corte e Arte que, formada em 1995 com muito suingue, dá um show de tops. Nessa vanguarda do fashion precário atuam 22 mulheres. Elci, após nostálgicos 10 anos de desemprego, lança agora tendências de costura e toma conta da administração do grupo. Elizete combina com estilo os setores de coordenação, costura, vendas e relações externas, sempre respeitando o ritmo da igualdade. Jurema cursou até a terceira série do primeiro grau e traz novidades para o dia a dia dando acabamento nas peças que produz. Além da cultura e dos costumes brasileiros, cria com sofisticados 350 reais, salário médio ganho por essas trabalhadoras, seus seis filhos. O mérito desta coleção se dá em como foram os dias de trabalho não remunerados lutando para manter mais de dois empregos e sustentar suas famílias quase em harmonia. Por imposição da moda, elas não possuem contrato de trabalho, carteira assinada, não pagam impostos, nem participam de sindicatos. Com o look totalmente 2004, trabalham de segunda a sexta de 9:00 às 18:30, sendo que a maioria mantém a casa criando com sucesso os filhos e ajudando o marido desempregado. O amor pelo trabalho que exercem é inspirado pela necessidade de sair da precariedade e dificuldades que têm em conseguir suprir as necessidades básicas. Querem mostrar na passarela como conseguiram com muito glamour se superar em uma realidade que não lhes proporcionava expectativas, sendo que o maior desafio é a realização pessoal.
Fashion Real apresenta
Guillerme Curty da Costa Ele trabalha em uma empresa de saúde, devido à necessidade de top sobrevivência. Há mais 20 pessoas que trabalham nesse local. A atividade da empresa são os planos de saúde. Ele é um agente de vendas irresistível. Top bolado não lhe agrada seu trabalho. Nunca trabalha com carteira assinada. Usa um uniforme natural, roupa social. Trabalha 6 horas, 5 dias por semana. E quer defender seus interesses. Destacando que gostaria de trabalhar exclusivamente na mágica. Top profissional, ele cria números e conferências para mágicos profissionais. Precariedade sempre na moda, ele a sente em sua vida quase todos os momentos em que quer projetar uma idéia. Para ele a precariedade é a forma de estagnar a conquista dos recursos necessários para as vitórias de uma pessoa.
Fashion Real apresenta as últimas tendências de mulheres que lançam alternativas de trabalho,
clube da amizade da Cidade de Deus.
Associação de costureiras
Teresinha é a professora da confecção, profissional top de arte e costura. Olentina dos Santos e Rosalina trabalham com outras 20 mulheres e alguns homens nesse clube da amizade. Maria da Gloria de Souza é voluntária de ações sociais e também sacode a poeira nessa confecção de integração nacional de moda que faz bolsas de fuxico, retalhos, roupas e acessórios de crochê. Concordam que o lugar onde moram é uma marca registrada, dificultando a obtenção de oportunidades trabalhistas. Com estilo e atitude, esses sinônimos de bom gosto não tem salário fixo e todos os meses entram em cena com 250 reais. O grupo não contribui para o INSS, nem paga imposto de renda. Gostam muito do trabalho que fazem, pois é inspirado nas alternativas ao desemprego, que por muito tempo as sensibilizou. Vale a pena destacar que, com relações fluidas, aprendem muito umas com as outras, atualizando o que sabem. As carências da comunidade são lançadas com tendências precárias de falta de equipamentos para a evolução no trabalho, dificultando um revival de estilos. Querem destacar sua moda, mas não têm local para mostrar essa salada deliciosa de desenhos com criatividade top que produzem para vender, pois o espaço fisico não tem as formas adequadas. A tendência não é o sofisticado, a precariedade de suas vidas é quase natural. Top ativas apostam firme no trabalho, mesmo ganhando pouco. Para elas a sociedade não oferece alternativas. Convocam neste desfile visões encantadoras de sobrevivênvia na precariedade. Maquinações 47 GLOBAL
Fashion Real apresenta
Vaniusa José da Costa Cursou até a terceira série do ensino fundamental, e atualmente trabalha em uma creche como cozinheira com mais nove pessoas. A proporção de seu salário de 280 reais mensais com o resto de suas necessidades básicas entra no ciclo de vanguarda do fashion precário.
As oportunidades para ela são ainda mais leves e extravagantes, pois não fala nem escuta, mas trabalha de segunda a sexta, de 8 a 16h30, tem carteira assinada, 4 filhos, 3 vivem com ela, mora no alto de Santa Marta, leva uma hora para chegar no seu trabalho em Vila Isabel e uma hora e meia para voltar, sem contar a subida do morro que é inspirada em lugares leves e românticos. Combina bem com o patrão e colegas de trabalho. Usa uniforme estruturado. Com a ajuda de instituições uma vez por mês come comida não perecível, no momento a precariedade não entra e sai constantemente de sua casa. Diz que gostaria de ter mais tempo para estar com os filhos e morar em uma casa que seja um ambiente que convide a introspecção, com um conforto básico. Fashion Real apresenta as últimas tendências de trabalho autônomo na ruas com
Roberto Luis Peixoto.
Fashion Real apresenta
Tamara
É estudante e gostaria de novas tonalidades para boas condições para estudar, pois as escolas públicas top básicas estão top destruídas. Com uma aposta sedutora gostaria de ter uma profissão para ajudar a mãe e os irmãos que vivem com ela. Tem um sonho de volumes localizados: ser modelo profissional, mais as condições dos pobres é sempre mais difícil, com proporções gritantes de intenso destaque. De cultura e moda brasileira a precariedade é temporada em todos momentos na sua comunidade. Para ela é difícil lidar com esse problema de forma assumidíssima. Ela acha que em primeiro lugar o governo deveria cumprir suas promessas e dar uma diversificação de oportunidades fluidas para que as pessoas demonstrem seus valores. Próxima parada: espera passar pela passarela e mostrar que é o tipo de pessoa que não vive sem um desafio, por isso vai conquistar seu lugar entre as estrelas tops reais. GLOBAL. 48 Maquinações
Seu trabalho é abordar pessoas nas ruas para recitar seus poemas e ganhar algum trocado. Essa aposta sedutora começou por ser ex-presidiário e precisar de dinheiro para as necessidades urgentes já que esta atualizando as tendências do mundo fashion business depois de 23 anos de sentença cumprida, que o deixaram com justíssimas oportunidades. Vive da poesia como sua profissão – pra lá de sofisticada – mas muitos saem do tom e não o respeitam. Esse trabalho lhe rende por mês uma visão encantadora de 400 reais. Estilo severo nas formas, sua casa são os pertences que carrega consigo, e quando o dia lhe rende algumas moedas, pernoita em alguma concorridíssima vaga para solteiros, o resto é questão de atitude. Estampado colorido de trabalhos e possibilidades que gostaria de fazer cheio de irreverências e ousadia, ele canta, compõe, escreve e é professor. Sensível às influências rígidas e estruturadas, ainda se sente prisioneiro do estado. Na moda dos experts não tem carteira assinada, e nunca foi reconhecido pelos luxuosos serviços que prestou na prisão e pelo maravilhoso trabalho de reintegração e socialização de outros detentos. Na vanguarda do fashion precário se sente muito mal em depender de lideranças políticas ou sociais, por isso aprendeu a lutar e acreditar com ousadia em si mesmo. Com muito suingue, espera editar um livro de poesias inspirados pelas horas silenciosas do xadrez. Define a precariedade como um estilo em que as pessoas deixam de brilhar na passarela da vida, desvalorizando suas competências. O mérito de sua passagem é apresentar-se como um cidadão que vive em exposição, misturando poesias e moedas. Surreal, não?
O Fashion Real apresenta Fashion Real apresenta
Jessica da Silva Marques Esta cursando a oitava série do primeiro grau e faz parte de um grupo muito bem sucedido na vida, o dos jovens que com muito glamour tem a oportunidade de concluírem seus estudos sem interrupções bruscas. Gostaria de fazer faculdade de medicina, se especializando em pediatria ou psicologia. Sinônimo de bom gosto, tem uma ajuda em dinheiro de sua família. Se sente uma pessoa de muita sorte, pois pode suprir suas necessidades básicas. Mesmo assim as características fundamentais da sociedade brasileira a envolvem pois, como moradora do Santa Marta. antes mesmo de viver as tendências do trabalho precário, já a sente: percebe que o local onde mora dificulta a conquista de um bom emprego. Mas com muita ousadia e irreverência sabe que vai consegui-lo. Ao entrar na passarela quer mostrar que para ela a precariedade é definida pela falta de oportunidade e pelo abandono que as pessoas que precisam sofrem.
Fashion Real apresenta
Fabio Nélio da Silva Cursou a primeira série do ensino fundamental e hoje, com 28 anos, vem de histórias passadas sofisticadamente complicadas que resultaram em sua marginalização com o sistema, tendo sido top excluído por cumprir pena de desobediência às leis que nos regem por 8 anos. Sem bondade, saía de tom, com estilo penitenciário 24 horas por dia. Se tornou difícil, com sua condição de ex-penitenciário, entrar no Mercado do trabalho. Hoje se encontra em condições legais integrais e próprias. Já fez curso de mecânica, gosta de desenhar. Gostaria de fazer curso de cozinha mas, como precisa trabalhar nesse momento, faz serviço de limpeza, segurança e boy… Enfim, o que importa é poder trabalhar e ser top da vez; digno dentro da sociedade. Tem três filhos e vive apenas com um e sua mãe. O último trabalho foi como auxiliar de carpintaria, há 7 meses. Marca da coleção, a precariedade que está sempre na moda é ver as crianças das comunidades se perderem por falta de oportunidades. Acredita que a sociedade é extremamente desestruturada. Não se preocupa em melhorar a situação das comunidades carentes. Já trabalhou com carteira assinada como gari comunitário, por dois anos. Depois não encontrou um trabalho fixo e estável. Nostalgia de uma estação de estabilidade, acredita que sua passagem vem lembrar à sociedade uma realidade acusada que ela tende a ignorar.
Fashion Real apresenta
Maria da Conceição Sabino Dias Maria da Conceição, uma mulher moderna com tendências de guerreira amazona ao trabalhar desde os 13 anos, depois de sua mãe falecer. Após 30 anos trabalhando na mesma residência como doméstica, sugeriram a viagem de prestar esse serviço extremamente inspirador: cozinhando, passando, lavando (tudo na mão, pois não há máquina de lavar), fazendo faxina, indo ao banco, fazendo compras e trabalhando de enfermeira, da idosa que a explora. Mesmo a moda vivendo em mutação, seu nostálgico salário de 400 reais sem carteira assinada, férias, décimo terceiro, e contrato de trabalho deixaram de ser novidade. Acordar às 6:00 da manhã, subir o Cantagalo com sacolas de compras para preparar as quentinhas junto com o marido e um dos filhos desempregados, foi a maneira mais chique que encontrou para manter a forma física e de seu bolso, pois fatura 300 reais em média com esse trabalho. Mulher autoconfiante, se equilibra no salto, por isso trabalha de segunda a sexta feira, das 6:00 às 23:00, ajudando a sustentar uma filha de17 anos, com dois bebês, e o genro e mais outros 4 filhos. Um filho foi assassinado há 4 meses atrás no hospital em que trabalhava por motivo de inveja de seu look fashion. Seu sonho é ter um restaurante, e quando tem tempo livre, investe nisso. Sente a precariedade em sua vida constantemente como um sentimento nostálgico que está sempre em alta, é muito triste, pois ninguém dá confiança à sua cor negra, que remete às modelos sensualíssimas de Jean Paul Gaultier, e por ser de classe inferior. Se pudesse ajudaria financeiramente seus filhos. O segredo para estar sempre divina, mesmo tendo as pernas cheias de varizes dificultando seu caminhar, é não demonstrar seus problemas, porque isso todo o mundo tem. Maquinações 49 GLOBAL
A potência revolucionária Os Sonhadores, de Bertolucci, provoca o conservadorismo e mostra uma revolução dentro da revolução de 68 em Paris. Rodrigo Guéron
Discordando do que li em algumas críticas, não creio que haja no filme Os Sonhadores (I sognatori / The dreamers: Inglaterra/Itália/França, 2003) uma condenação, nem da geração, nem do movimento de 68. Ao contrário, eu diria que o que ressoa potente no filme, quase uma palavra de ordem, é que a revolução é necessária – imprescindível até – e perigosa. Os Sonhadores é um filme do qual, no mínimo, não se sai impune. Fechado no gueto labiríntico, como o das ruas de Paris da Revolução de 1789 e da Comuna, o casal de irmãos chama o jovem americano para a revolução deles, convidando-o a passar uma temporada em seu apartamento. É neste apartamento GLOBAL. 50 Maquinações
que Bernardo Bertolucci cria a sua revolução: um devir revolucionário em plena Paris conflagrada – e radicalmente alienado desta conflagração. Algo tão libertador quanto fechado em si mesmo. Os rapazes estão tão mergulhados na sua revolução que simplesmente não percebem que há uma revolução lá fora. O próprio menino francês, que era um militante de extrema esquerda, abandona a militância. O que se instaura no apartamento, no limite da experiência do desejo, é uma dinâmica de vida e morte. De fato, sem uma disposição revolucionária, a vida e a história não se renovam e, por isso, não podem continuar. Mas, no limite desta história está a destruição radical de quem pensa que todas as questões do mundo são as suas. É este o paradoxo do desejo que aspira ao paraíso, ao gozo pleno; tal qual a revolução aspira à salvação da humanidade, que está sempre num mundo paradisiacamente racional. Como lugar da morte, onde não há mais o vazio, não há insatisfação e, portanto, não há mais desejo. O revolucionário está sempre neste limite: tem um discurso e uma atitude que são extremamente generosos; uma preocupação que é com e para o outro, no sentido de que vê no outro e em si mesmo uma potência de vida reprimida que precisa ser liberada. Por outro lado, numa fronteira dificílima de se determinar, está sempre à beira de um egoísmo, de um isolamento egocêntrico radical. Ou seja, a revolução vira o seu mundinho, o seu universo: dane-se o outro que não quer a “minha liberdade”, o que “eu” desejo. Nesse sentido, o apartamento que abriga os três não é mais do que Paris em 68, ou em qualquer outra das jornadas filosófico-revolucionárias onde a França aspirou ser – e algumas vezes foi – todo o Universo. E, insisto, o
de s j o
apartamento não é uma metáfora de Paris: ele é Paris. O gueto e o mundo. Como na maioria das revoluções, começa-se conclamando o outro a aderir: o ascético, almofadinha e puritano norte-americano. Mas, depois de hesitar, o rapaz acaba por assumir o papel do outro no devir revolucionário do desejo. Agora, são os dois irmãos franceses que precisam romper com o passado: matar o pai, a lei, com todo o vigor do antiédipo. E aqui discordo, ainda que parcialmente, dos que disseram que existia entre aqueles dois irmãos uma relação perversa. Só se for da ordem da perversidade infantil. Os dois dormiam nus – o incesto edipiano – mas, tal qual o próprio Édipo, numa nudez ingênua, de criança que não quer deixar a cama dos pais. Por isso, a jovem francesa, tão moderninha, tão cheia de atitudes, na verdade era virgem. Mas, é preciso que se diga, depois de alguma hesitação, conflito e sofrimento: corajosamente, os irmãos franceses rompem o seu Édipo, a sua lei. E isso foi o que de mais potente a França ousou em 68, a saber, romper com o grande pai, com o seu mito fundador e paradigma maior: a razão iluminista.
“O fracasso das revoluções não pode ser pretexto contra a vital necessidade do devir revolucionário” O que se buscava romper naquelas barricadas era a idéia de que a razão e a consciência seriam os grandes motores da revolução. Consciente ou inconscientemente eles haviam percebido que a razão iluminista tinha se esclerosado. Sua busca virou fascismo: virou “Eros Fora”, como denunciou Foucault. E a França, na contramão dos princípios da outrora potente revolução das luzes, reencontrou sua potência revolucionária, porque percebia ali que o que move a história não é a lógica racional da lei mas a ruptura do desejo. É verdade que a crença no “grande fim racional” da história ainda estava
e
do
ali, nas bandeiras vermelhas dos marxistas. Mesmo que – inspirados por um Marcuse, por exemplo – dizendo que o capitalismo era irracional e percebendo o mercado como superinstância de controle do desejo. Aí ainda tínhamos uma nostalgia iluminista do tipo “resgatar as luzes de nossa velha revolução”, que hoje insiste moribunda e decadente no mau-humor ultra-conservador da intelectualidade de pseudo-esquerda a resmungar contra o filme nos cafés parisienses. Mas há de haver os que o aprovam. Esperto, Bertolucci percebe este conservadorismo francês e europeu. Por isso, bem no espírito de 68, faz uma sacana – e italianíssima – provocação. Na qual caem, pateticamente, o Cahiers du Cinema e meia Sorbonne. É o americano, um “terrível americano”, que deflora a francesinha moderninha. De fato, é só o outro, o estranho, que nos arranca do eu-útero e nos joga para inventar no mundo: o lado de fora para onde o rapaz americano leva a menina e até mostra para ela, na televisão, a revolução que estava acontecendo. Curiosamente, um dos motivos de os três não saberem o que estava se passando era que, como intelectuais franceses, não viam televisão. Mas o grande espírito de 68 do filme está exatamente no fato de Bertolucci saber muito bem que uma revolução no passado não se resgata como algo puro, virgem e imaculado que ficou para trás. É preciso desvirginar até mesmo “a nossa bela revolução”: revolucionar, criar, é sempre já um ato de macular. Por isso, para falar de 68, ele inventa uma outra revolução dentro da revolução; um devir revolucionário, num apartamento fechado, em plena Paris conflagrada. Assim, a grande descoberta de Os Sonhadores é também a descoberta de 68, que o desejo é a grande potência revolucionária. Foi o que também descobriram Deleuze e Guattari: “o inconsciente é a usina do desejo”. Como eles, Bertolucci sabe muito bem que o fracasso das revoluções não pode ser pretexto contra a vital necessidade do devir revolucionário. Je ne regrette rien. Maquinações 51 GLOBAL
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Pastor Alemão e a Murcilha da Graça: “Entre. Mas não sem antes colocar a ponta dos dedos na água benta e benzerse. A pregação vai começar. O missionário S.S. Ribeiro alerta a sociedade sobre os males que a corrompem. Aquele satânico rock'roll, que causa a ruína de muitas famílias, as doenças incuráveis do corpo e da alma, e que provoca, ainda, um distanciamento do Nazareno, levando jovens a ingerir garrafões inteiros de maconha. Contudo uma religião de carteirinha não existe sem um líder máximo, um representante de Inri na Terra. Eis o Pastor Alemão presente neste culto. Quem, além dele, teria poder para exorcizar demônios, maus-olhados, febre terçã e carne no dente? Levanta-te e anda, Pastor Alemão é chegado em boa hora. Pastor Alemão e a Banda da Murcilha da Graça reúnem um pessoal que há tempos vem fazendo som e barulho, nesse paradoxo incurável que chamamos cotidiano, mesclando sacro e profano, reação e revolução, direita e esquerda. Em músicas como “O apedrejamento do Diabo” as palavras são gumes afiados, provocando um corte visceral na palavra orgânica. Provocar não é invocar: 'Satanás está nervoso (...) Vamos capar o capeta'. Neste humor sarcástico a mensagem é combate, luta e resistência. Sobretudo, é provocação.” Coletivo Estorvo: “Podemos enxergar alguém dentro ou fora de uma “cultura” nacional ou municipal? Questões sobre um possível underground e uma massa receptora são interrogações que nos interessam? Até quando esperar os “arautos” da cultura libertadora? Onde se concentram os espaços do imaginário coletivo? Nas horas pagas do espetáculo, o que fazemos com as paixões anestesiadas? A comunicação dos imaginários não se dá essencialmente pelas formalidades públicas ou privadas do mercado cultural – são correntes, não nascem nos dogmas, mas tornam-se neles – seria ingênuo de nossa parte, então, embalar conceitos culturais úteis e vendê-los em palcos como uma panacéia da falta de saúde da sociedade. O Estorvo surgiu não do ranço (que é o repouso da ação), mas da insatisfação, do desejo de fazer coisas que não obedeçam à anestesia das paixões que nos é proposta.”
Alessandra Giovanella mix e apresentação Leonardo Retamoso Palma colaboração / bedelho Lúcia Copetti Dalmaso ajustes Rodrigo Fagundes de Cristo sugestões adicionais / opinomorfoses
Circo Mágico, evento realizado em Santa Maria (RS), reuniu movimentos que refletem o espírito e a cultura da cidade do interior gaúco
Na cidade “cultura” do Rio Grande do Sul, nome dado aos bois, certamente não pelos fazedores/potência, mas pelos demarcadores do gado que come o pasto sem pular a cerca, nasce um grande corpo composto de corpos e que começam a tatuar na pele da Santa Maria as diversas linguagens reespacializadoras da produção artística.
Os coletivos, bandas, nômades, gentes embebidas pelo sangue das veias, organizados e interatuantes fervilham como construtores de espaços de criação e há muito interligam-se e pulsam em atividades multiplicadoras de Nós. No levantar da fervura desse tempo de fragmentação e conservadorismo coextensivo que, grosso modo, refletem o espírito da cultura e da sociedade santamarienses, todas essas veias entornaram o caldo e movimentaram uma quase “natureza morta” criando o Circo Mágico, evento que aconteceu na localidade de Três Barras, interior da cidade, nos dias 18 e 19 de dezembro de 2004. A ação foi movimentada pelos Coletivos Estorvo, Subasfálticos e o TUI (Teatro Universitário Independente), envolvendo a TV OVO, o Cineclube Lanterninha Aurélio e mais de 30 bandas e manifestações de todas as artes.
Nesse caldo que segue fervendo seguimos sem direções e definições, apenas tentando temporalizar o espaço, historicizar o tempo, fazendo de nós um corpo. Paixão é isso, às vezes dá nó na garganta. O Coletivo Estorvo, o Cineclube Lanterninha Aurélio e algumas bandas como a TSF (Tijolo Seis Furos), Dolores, Pastor Alemão e a Banda da Murcilha da Graça, Bispo do Rosário, deixaram escorrer pelo canto da boca um pouco do seu caldo verde. Dando vontade de sorver: lamba os beiços!
GARGANTA FECUNDA
A prática da criação, que não serve de alimento ao estabelecimento da ordem, enfia-se goela abaixo até provocar ânsia no diabo mexedor do caldeirão das paredes de morro. Do nó nas tripas resulta o vômito e do buraco do meio das pernas abertas a fecunda fervura entorna nós que se desmancham para mais amarraremse em outros nós.
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Cineclube Lanterninha Aurélio: “Em meados de 1977 estudantes da Universidade Federal de Santa Maria conceberam a criação do Cineclube Lanterninha Aurélio. Um deles, Gilberto Muniz Simon, com grande experiência na atuação em cineclubes operários de São Paulo e com trânsito entre as distribuidoras de filmes alternativos, facilitou a implementação do projeto. O equipamento necessário (projetor 16mm), foi conseguido sob empréstimo, junto à Pró-Reitoria de Extensão da UFSM. A relação da Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria Ltda. - CESMA com o movimento cineclubista nasceu dessa forma, já que ambos foram criados na mesma época, impelidos pelas mesmas condições políticas e basicamente pelos mesmos estudantes que desejavam mudar a realidade em que viviam, fazendo uso de um para divulgar o trabalho do outro. Em seguida o cineclube foi incorporado à estrutura da CESMA e o nome escolhido - Lanterninha do Aurélio - foi uma homenagem ao funcionário que trabalhava no Cinema Imperial da rua Dr. Bozano. O Cineclube Lanterninha Aurélio foi criado durante o período do regime militar com o objetivo específico de promover o debate político da realidade brasileira, tanto na Universidade como nos bairros e vilas de Santa Maria. Todos os mais de 100 filmes que o Cineclube trouxe para a cidade, antes do advento do vídeo, foram apresentados nos anfiteatros do Campus Universitário, DCE e vilas. Películas de conteúdo político eram a introdução para o debate que se desenrolava após as projeções. De lá para cá muitas coisas aconteceram, mas o Cineclube Lanterninha Aurélio continua em pleno funcionamento, agora com atividades regulares, com o apoio da TV OVO.”
Bispo do Rosário: “'Existe um pathos que desponta em de mim Toda vez que minha garganta enoda Toda vez que a minha barriga ronca Mas ainda assim existe um placebo dentro de mim' Sofrimento resignado, este é o dínamo que anima a caneta e embala as cordas, em batidas que embalam um sono que transcende o banal. O cansaço do comum revela uma ferida que ainda está por ser descascada, num embalo esquizofrênico de sexta-feira noturna. Daí a lembrança do velho Arthur, com seu manto sagrado e suas canecas de milagres significativos. Também não podemos esquecer da Nossa Senhora do Rosário, o berço geográfico dos primeiros ensaios desta banda. Estados patêmicos da subjetividade, constituída de uma paixão e de indignações, vivificadas por corpo que sente e transborda verdades efêmeras de uma garganta chorosa. Dentro desta poética barata, há um bolso rasgado onde nem uma moeda pára, de modo que quatro estômagos gritam em uníssono: 'sou pobre, tenho fome e sou artista'. Nas nossas linhas há espaço para um sutil 'soco na boca do estômago' de qualquer cultura, da nata ou da rapa de nossa sociedade. Por fim, resta o suplício por um xarope bendito, que não está no alcance de uma antena de rádio, nem nas coxas roliças de moça de outdoor, mas é dessa expressão quase que burra que surge a tal cura, uma necessidade sorridente de se fazer humano e criar. Isso é a Bispo do Rosário. Desde 2003.” Dolores: “A primeira vez que o nome sugerido, após um ensaio, fez sentido. Juntamos a base de Ike's Rap - Issak Hayes (Popularizada pelo Portishead - Glory Box) ao poema Se eu morresse amanhã (Álvares de Azevedo). Poesia musicada dando para aquelas palavras, com urgência, o peso que realmente continham: 'Não me batera tanto amor no peito'. No inicio não havia regras. As limitações com simplicidade eram descontruídas. Acho que é o termo certos associado ao nosso combo. No inicio só trabalho (experimentação), e alguns milagres. Braziliano, Ronaldo e Calixto sincronizados à vontade para se apaixonar por essa experimentação, dissonante à nossa vontade. Continuamos 'limpos, felizes e ainda mais bonitos'.”
TSF: “Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, é conhecida por sua fértil cultura roqueira. E é de lá que, desde 1995, sobrevive uma das mais antigas bandas em atividade, a Tijolo Seis Furos, mais conhecida como TSF. A banda pratica um hardcore old school tosco e enérgico, com influências de outros estilos, principalmente os mais barulhentos. As letras expressam os sentimentos e descontentamentos da banda com o mundo e com os seres humanos que nele vivem. Possuem um CD demo lançado em 2001 e um trabalho oficial lançado em meados de 2003 intitulado Reciclando Terror. O nome do álbum faz alusão, principalmente, ao material reciclável que o grupo coletou para custear boa parte do registro, pois de outra forma seria impossível gravar um CD. Além disso, possui dois vídeoclipes, também independentes: o primeiro é da música Com Medo. O vídeo foi gravado graças a intervenção da TV OVO, uma tv comunitária da cidade que durante um tempo ajudou bandas do cenário underground local a produzir clipes para divulgação. Já o segundo, é da faixa Discurso de um Parasita. Este foi realizado durante a terceira edição do Festival Santa Maria Vídeo e Cinema. Com garra e vontade a TSF segue sua sina fazendo shows e juntando material reciclável para ajudar nas despesas da banda.”
2005 é o ano da igualdade racial? Medidas concretas, como a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e de um fundo para ações afirmativas, deveriam ser priorizadas pelo governo federal no Ano da Promoção da Igualdade Racial Alexandre do Nascimento
O governo federal declarou 2005 como o Ano da Promoção da Igualdade Racial. Fato ao mesmo tempo importante e preocupante. Importante porque é muito recente o reconhecimento do Estado brasileiro de que o racismo é produtor de desigualdades sociais e que medidas concretas devem ser tomadas para a promoção da igualdade racial. Preocupante porque desde a criação de um órgão responsável pela formulação de políticas de combate ao racismo – a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR) – pouco se avançou concretamente. A população negra clama por políticas concretas, através dos diversos grupos e organizações que constituem o chamado Movimento Negro. E dois projetos fundamentais para a consolidação de políticas concretas, o projeto de lei do Estatuto da Igualdade Racial e o projeto de lei que institui cotas para estudantes oriundos de escolas públicas (e dentro dessas as cotas para indígenas e negros) nas universidades federais, tramitam lentamente no Congresso Nacional. Embora a ministra Matilde Ribeiro esteja fazendo esforços para que esses projetos sejam apreciados, o núcleo duro do governo não parece de fato considerar a igualdade racial como prioridade; e o Congresso menos ainda, sobretudo na gestão do Deputado Severino Cavalcanti, em que o toma-lá-dá-cá tornou-se prática explítica. GLOBAL 54 Maquinações
No caso do Projeto de Estatuto da Igualdade a questão é grave, pois além do fato de que ele tramita há quase 10 anos, o principal problema para a sua colocação na pauta do Congresso é a proposta de criação de um Fundo para financiar as ações afirmativas. Setores do Governo, notadamente a “equipe econômica”, não vêem o Fundo com bons olhos. Os donos da chave do cofre ignoram que políticas de ação afirmativa (renda de cidadania, programas de acesso e permanência nas universidades, bolsas, financiamento cultural etc.) são, de fato, elementos fundamentais de uma política econômica concreta, que podem ter impactos sócio-econômicos muito positivos. Ignoram, também, que concentrar esforços para a população negra e indígena (metade da população) não é exatamente fazer política “focalizada”, mas é, de fato, tratar de redistribuição de renda e de recomposição social e racial de uma maneira mais democrática. A lei que institui cotas nas universidades federais, embora seja muito polêmica, é menos complexa, pois, além de versar sobre um ponto específico, terá impacto menor no “equilíbrio fiscal”, mesmo sabendo que a política de cotas para ampliar o acesso para alguns grupos gera demandas no que diz à permanência. De qualquer forma, o projeto de lei que estabelece cotas nas universidades federais também tramita muito lentamente no Congresso. Além disso, na segunda versão do anteprojeto de Reforma do Ensino Superior, apresentada em 30 de maio, não foram mantidos os artigos que instituem cotas nas universidades federais. O governo cedeu às pressões do conservadorismo da chamada “comunidade acadêmica”. Nos elogios da representante da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Ana Lúcia Gazzola, à nova versão do anteprojeto, ficou nítido que a cor da reforma é mais problemática que reforma.
A lei que institui cotas nas universidades federais, embora seja muito polêmica, é menos complexa, pois, além de versar sobre um ponto específico, terá impacto menor no “equilíbrio fiscal”.
Está previsto para o próximo dia 30 de junho o início da Conferência Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, finalizando um processo de Conferências Muni cipais e Estaduais já foram realizadas por todo Brasil. O principal objetivo desse processo é produzir um plano nacional de promoção da igualdade racial. Ora, realizar uma conferência deste tipo no terceiro ano de governo sem que nenhuma política concreta tenha sido implementada é uma atitude que preocupa, pois as bandeiras e propostas do Movimento Social Negro e da Conferência Nacional de Combate ao Racismo, realizada em 2001 no Rio de Janeiro, já são suficientes para muitos mandatos. O que falta ao governo é dar prioridade material ao tema da igualdade racial e colocar a mão na massa, pondo seus articuladores e ministérios a serviço da perspectiva de igualdade racial de fato. O Ano da Igualdade Racial, muito mais que o ano da Conferência Nacional de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, deve ser o ano da mobilização de recursos políticos e financeiros para apro vação dos projetos de lei de interesse da população negra e estabelecimento de programas de combate ao racismo e de acesso aos direitos em todos os ministérios. Pois, caso contrário, a população negra, na Marcha do Movimento Negro Zumbi+10, prevista para novembro, dará a resposta.
Lo Scrittore, de Giancarlo Neri, Roma 2003.
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Zé Colmeia / Adãõ: o homem que virou projeto