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DesEditorial Esse numero 8 da Global/Brasil concretiza – pelo menos em parte – a perspectiva que colocamos no editorial do número anterior: com base na estabilidade e na legitimidade do primeiro mandato do presidente Lula, precisamos avançar em direção a um modelo de desenvolvimento que conjugue mobilização produtiva e radicalização democrática. Abrimos, pois, espaço para várias intervenções sobre a produção cultural da periferia, o embate da TV digital, a questão da cópia, etc. O terreno da produção cultural, os esforços para colocar a cultura em pauta constituem-se como os eixos privilegiados dessa inovação. A produção da cultura representa um dos maiores desafios de definição do modo de inserção do Brasil nos fluxos do capitalismo contemporâneo, ao passo que os investimentos em infraestruturas previstos no PAC vão além de uma mera – embora necessária – modernização. Hoje em dia, a circulação (que as infra-estruturas proporcionam e tornam dinâmica) se constitui – diretamente – em atividade de “agregação” de valor. Ao mesmo tempo, o debate político institucional parece demasiadamente sobredeterminado: do lado do governo e de sua base, pelos imperativos do crescimento; e, do lado de uma oposição derrotada, pela imposição do debate sobre previdência e reforma trabalhista. O lançamento do projeto de uma TV pública parece indicar que dessa vez o governo Lula articula uma resposta adequada diante de uma grande mídia autoritária e conservadora. Porém, o debate interno à base governista (dentro do governo, dentro do PT e dos movimentos) é atravessado por uma série de visões bastante perigosas. Podemos resumi-los nos seguintes termos: há uma sobre-avaliação do impacto e do significado do segundo turno das eleições presidenciais; e há subestimação das contradições internas ao segundo mandato. Essas duas posturas alimentando-se reciprocamente. Ninguém quer negar a importância política do segundo turno. Tratou-se de um golcontra da oposição e da mídia monopolista. Mas, seria um grande erro político – de natureza ideológica – transformar os temas do segundo turno (que, superficialmente, podem deixar entrever uma demanda por um maior papel do Estado na prioridade de uma outra política econômica) em temas do segundo mandato. O verdadeiro evento eleitoral é outro, e diz respeito à identificação massiva e sem hesiAcima, Frame de cena de performance, tação dos mais pobres, dos muitos, com o presidente Lula. Essa identificação – de Fafi. Ao lado, Frame de referência objeto de um vergonhoso fogo de artilharia que durou um ano e meio – tem uma figurativa de Gheysa, Magda e Manuela. base muito clara: a política social de distribuição de renda e redução da desigualdade. Ninguém deve esquecer que, se hoje é possível baixar a taxa de juros e avançar no crescimento, é graças à política social. É a política social que permite mudar a política econômica! Mais ainda, esse erro leva a sub-avaliar Newton Goto as contradições que – desde já atravessam o segundo mandato. Se o primeiro parecia marcado pelo conflito entre “Casa Civil” e “Fazenda” (Palocci), o segundo já indica a polêmica entre, de novo, a “Casa Civil” e o “Meio Ambiente” (a ministra Marina). No governo, indica-se que a saída estaria em uma mudança de postura por parte dos responsáveis do ministério do Meio Ambiente. Parece haver consenso de que se trata, no que diz respeito ao “meio ambiente”, de passar do “não fazer” para o “como fazer”. Esse tipo de embate não poderia ser mais emblemático: Desligare é um vídeo (e/ou videoinstalação) constituído de 115 situações de 1.Tela / espelho a lógica instrumentalfilmagem do crescimento dada de e,TV necessária e intrinsecamente, desligamento de TV, gravadas com mais de 100 participantes principalmente enquadradaestá no monitor na hora do desligamento, iniciando nas cidades de Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo etrará Londrina. A rede de noDiante aperto do botão,determinismo passando pelos frames de sumiço da imagem (trecho c/ frutos positivos. desse do “progresso”, toda preocucolaboradores foi constituída a partir de uma proposta que lancei ao público velocidade reduzida a 5%), até o momento onde manifesta-se a TV transforhesitação deveria dobrar-se. tendo como princípio a chamada "qual programa depação, TV vocêtoda gostaria de mada em espelho, refletindo o indivíduo e o ambiente privado, como num desligar?". Participaram artistas e público em geral, sendo o público não Porque isso, precisamos urgentemente voltar a enfatizar o significado político do retrato. artista foi basicamente todo agendado na rua, especialmente na Boca “primeiro turno”: a mudança da/ cena própria base social do governo Lula. Com efeito, 2.Percurso Maldita, em Curitiba. Misto de documentário e ficção, o projeto evidencia o filmagem desde porta deapresenta entrada da o casa onde vive o participante até o política (de distribuição de arenda) grande interesse de desenespaço público televisivo como resultante da somatóriaade espaçossocial privados, local onde ele assiste TV, seguida da gravação da cena de desligamento em os lares dos participantes. Simultaneamente, situa o volver indivíduo numa outra – em um só tempo e não em “três tempos” – políticas públicas e mobilização si. A porta aqui é concebida como uma membrana entre o público e o privado. dimensão política, o próprio vídeo, oportunizando uma situação de resposta democrática. É essa associação de forma e conteúdo que precisamos manter e crítica e criativa do sujeito receptor frente a empresa emissora de TV. A liberObservação dade e singularidade das situações de desligamento marcam o trabalho amplificar: nãotamse trata passar do aoorientação: ”como fazer”, de manter aosde participantes foi“não dada afazer” seguinte desliga amas TV como quiser; e bém como espaço performático, agregando carga existencial, acaso e improdepois de desligar, faz o quedemocrática, quiser. e aprofundar uma perspectiva radicalmente a única que pode resolver viso à proposta estruturalista, des-construtiva e recodificante. De início, antenas páginas 4, 5,de 6, se 7, 8decidir e9 cipou-se aos participantes as estratégias de captação de imagem: o verdadeiro enigma Projeto tático Desligare e estratégico, aquele “o que fazer”!

Desligare Editorial 1 GLOBAL


Este Projeto é apoiado pelo Programa Cultura e Pensamento 2007 Conheça o acervo do Programa: www.cultura.gov.br/culturaepensamento

Para o Ministério da Cultura, é de suma importância estimular e difundir o debate público de todo e qualquer tema relevante que corresponda à sua área de atuação. Tanto assim, que desenvolveu uma série de ações destinadas a ampliar ao máximo não apenas o incentivo a esses debates, como o acesso ao seu conteúdo. A publicação dos debates é uma das ferramentas utilizadas para democratizar seu conteúdo. Por isso mesmo integra uma das linhas de política cultural levadas a cabo pelo Ministério.

A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso país, apóia o Programa Cultura e Pensamento 2007, dando continuidade ao projeto iniciado em 2006. Também desta maneira reforçamos e confirmamos nossa parceria com o Ministério da Cultura. A missão primordial da nossa empresa, desde que ela foi criada, há pouco mais de meio século, é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. Fizemos e fazemos isso aprimorando cada vez mais nossos produtos, expandindo nossas atividades para além das fronteiras brasileiras, dedicando especial atenção à pesquisa de tecnologia de ponta. E também apoiando iniciativas como esta, porque, afinal, um país que não se enriquece através do debate e da difusão de idéias jamais será um país desenvolvido.

Patrocínio

GLOBAL 2 Sumário

Conexões Globais Antonio Negri (Itália) Cesar Altamira (Argentina) Javier Toret (Espanha) Luca Casarini (Itália) Marco Bascetta (Itália) Michael Hardt (Estados Unidos) Nicolás Sguiglia (Espanha) Raul Sanchez (Espanha) Conselho Editorial Adriano Pilatti Alexandre Vogler Antonio Martins Bruno Cava Caia Fittipaldi Emanuele Landi Fabiane Borges Fernando Santoro Hermano Viana Jô Gondar Leonardo Palma Lorenzo Macagno Luis Andrade Luiz Camillo Osório Maria Elisa Pimentel Mauro Sá Rego Costa Paulo Henrique de Almeida Pepe Bertarelli Romano Simone Sampaio Suely Rolnik Realização

LEI DE INCENTIVO À CULTURA

Co-Realização

Comitê Editorial Alexandre do Nascimento Alexandre Mendes André Barros Barbara Szaniecki Caio Márcio Silveira Ecio de Salles Ericson Pires Fábio Goveia Fábio Malini Francisco Guimarães Geo Britto Gerardo Silva Giuseppe Cocco Ivana Bentes Leonora Corsini Maria José Barbosa Patricia Fagundes Daros Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Peter Pál Pelbart Rodrigo Guéron Ronald Duarte Tatiana Roque

Revisão dos Textos Fábio Goveia Fábio Malini Leonora Corsini Tradução dos Textos Geo Britto Gerardo Silva Leonora Corsini Produção e Design Do Lar Design Pesquisa de Imagem Ronald Duarte Capa Famílias, de Luiz Nelson Jornalista responsável Fábio Goveia Participaram deste número / Textos Adriano Pilatti Alexandre do Nascimento André Barros Antonio Martins Barbara Szaniecki Bruno Cava Caia Fittipaldi Eduardo Ferreira Eric Alliez Fabiane Borges Fábio Malini Giovanna Zapperi Giulia Janelli Giuseppe Cocco Gláucia Dunley Leonora Corsini Marta Peres najup/uerj Oona Castro Paulo Henrique de Almeida Pedro Bento Till Baumann Tomás Herreros Sala Verenides Santos Walter Melo Jornalistas da Bolivia Participaram deste número / Imagens Alex Vieira Ana Tereza Prado Lopes André Santangelo Beatriz Pimenta Chico Linares Cildo Meireles Cláudio Cambra Cristina Bocayuva Edson Barrus Eric Alliez Fafi Flávia Sammarone Guilherme Whitaker Luis Guilherme Luiz Nelson Luciana Costa Martha Nicklaus Neilton Newton Goto Oku Abo Espaço Sagrado Pedro Varela Sandra Moraes Simone Michelin Till Bauman


brasil

G L O BA L (01) Editorial

Trânsitos (04) Defender e construir a efetividade do Governo Lula Giuseppe Cocco (06) Chega de chororô Caia Fittipaldi (08) Sobre cansaços e golpismos Adriano Pilatti

GLOBAL Brasil é uma publicação da Rede Universidade Nômade global.al@terra.com.br GLOBAL Brasil é a edição brasileira associada ao GLOBAL PROJECT www.globalmagazine.org

Conexões Globais (10) Notas sobre o protesto contra o G8 na Alemanha Till Baumann

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

(12) O êxodo constituinte da multidão Leonora Corsini (14) É preciso que o ar circule Walter Melo (16) “Que haces acá?” Giulia Janelli (18) Perguntar caminhando (parte2) Tomás Herreros Sala (20) Desde Bolívia - entrevista a A.Negri, G.Cocco, J.Revel e M.Hardt

Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique Esta edição da GLOBAL inaugura uma parceria com o CADERNO BRASIL do Le Monde Diplomatique, edição internet (www.diplo.org.br). O leitor encontrará na revista alguns dos conteúdos do site ou do Blog de sua Redação (http://diplo.wordpress.com).

(22) O impasse boliviano Antonio Martins

Universidade Nômade (26) Enade e Ações Afirmativas são eficazes Alexandre do Nascimento (28) O obsceno de nossa universidade Bruno Cava (30) A ética da democracia contra a moral da punição

NAJUP/UERJ

Dossiê: Constituição do Comum (32) Cultura digital: para além da fragmentação Fábio Malini (34) A cultura é a economia Paulo Henrique de Almeida (36) O Prefeito e o Presidente na Terra do Sol Barbara Szaniecki

Maquinações (38) Multitudes Icônes versus Documenta Magazine E.Alliez e G.Zapperi (40) Mato Grosso tem A Fábrika Eduardo Ferreira (42) Uma conversa com Rosa Mitô Fabiane Borges e Verenilde Santos (44) Museu da Maré: memória da resistência Gláucia Dunley (46) “Vidas Matáveis” André Barros, Marta Peres e Pedro Bento Sumário 3 GLOBAL


DEFENDER E CONSTRUIR A EFETIVIDADE DO GOVERNO LULA ! Giuseppe Cocco Pouco tempo se passou desde a reeleição triunfal: o Presidente Lula dispõe de um estrondoso nível de legitimidade social. Apesar disso, a elite brasileira vem renovando, de maneira irresponsável e até anti-liberal, os ataques anti-democráticos ao governo. Não há e não haverá trégua por parte da elite neo-escravocrata e da classe média corporativa. Tudo que o governo fizer será desmontado. Sempre que os mínimos interesses da elite são ameaçados, tudo é execrado. O que o governo fez, faz e fará de bom também para a elite (por exemplo, o PAN do Rio de Janeiro) é ignorado. Isso vale também para os “novos governos” da América Latina (Bolívia, Venezuela, Argentina, Equador), todos alvos do mais baixo ufanismo. Essas constatações nos levam a dois grandes paradoxos: O primeiro paradoxo é interno ao discurso do “poder”, ou seja, diz respeito ao fato de que a violência do discurso das elites é, na realidade, proporcional ao vazio de seu projeto. Vazio que se traduz no fato de que não são os partidos de oposição que dirigem essas campanhas, mas a grande mídia monopolista. Este paradoxo desdobra-se também em dois momentos específicos. GLOBAL 4 trânsitos

Uma elite de choque Por um lado, a mídia não tem mesmo projeto nenhum, a não ser veicular no Brasil (e na América Latina como um todo) os valores de um movimento neoconservador que tem na administração Bush sua referência fundamental. Não dá para entender – e não é importante para os fins de nossa análise – o quanto essa opção política e ideológica seja uma determinação da tecnocracia (quer dizer, os diretores de jornalismo e editores) que produz as linhas editoriais da mídia ou derive diretamente dos interesses da propriedade. O fato é que os colunistas e diretores de jornalismo dessa mídia articulam sistematicamente aqui no Brasil os conteúdos dessa nova direita ultra-conservadora (“neocon”): com um pano de fundo composto de puro preconceito racista e de classe, o moralismo hipócrita dessa “elite de choque” pretende desenvolver um trabalho sistemático de demolição: contra o Bolsa Família, contra o aumento do salário mínimo, contra as cotas sociais e raciais, contra a reforma universitária, contra as políticas culturais, contra o Creative Commons etc. Quando são a “favor”, é até pior: desejam que o Brasil não agüente firme as turbulências financeiras globais, ao

mesmo tempo que sabotam a integração continental. São, pois, a favor da guerra aos pobres e até da guerra do Iraque! O que há de irônico, se não fosse trágico, nessa linha político editorial, é que a grande referência “neocon” (Bush) está desmoronando de vez. Será que essa geração de jornalistas não sub-avalia os riscos que correm seus empregos? A tautologia da mídia Por outro lado, o fato de a mídia pretender substituir os partidos de oposição – além de constituir uma tendência geral (vide Berlusconi na Itália, ou Schwarzenegger na Califórnia) – levanos diretamente no cerne do autoritarismo dessa campanha. Em primeiro lugar, porque a tentativa de a mídia brasileira (e latino-americana em geral) constituir ao mesmo tempo “opinião” pública e “força política” traduz-se em ameaça ao próprio mecanismo democrático representativo que ela pretende defender e “purificar”. É elementar dizer que o dito mecanismo depende da existência de uma opinião pública informada por fontes plurais e diversificadas. Ou seja, o mínimo necessário para que se começasse a falar de ética seria uma separação entre a “opinião” e os “formadores de opinião”, enquanto os formadores deveriam ser


Da esquerda para a direita, Frames abstratos de Luis Guilherme, Martha Nicklaus e Cildo Meireles, Desligare, 2006.

muitos e diversificados. Em segundo lugar, porque o público comercial dessa mídia é, por causa da estrutura social iníqua do nossa sociedade, altamente elitizado. Quer dizer, ou a opinião é explicitamente manipulada para alcançar efeitos de escala (como foi tentado, de maneira suja, no caso da tragédia da TAM), ou as “colunas” com argumentações mais sofisticadas dirigem-se, na realidade, apenas a setores sociais que constituem uma clientela privilegiada de classe média alta. Quer dizer, quando a mídia tenta explicar um pouco mais suas posições ideológicas, acaba fazendo-o de maneira tautológica: são preconceituosos que escrevem para conservadores, conservadores que escrevem para preconceituosos. A sobre-avaliação do segundo turno Como acabamos de ver, o primeiro paradoxo e seus desdobramentos já explicam a pouca efetividade dessa odiosa campanha anti-Lula travada por toda a grande mídia. Mas, há um segundo paradoxo, e este diz respeito ao governo e a seu partido de referência, o PT. Por que será que o Partido dos Trabalhadores e o próprio Governo hesitam e parecem, muitas vezes, quase sofrer uma paralisia discursiva? Acreditamos que esse segundo paradoxo tenha a ver com uma interpretação hegemônica, na “esquerda”, do primeiro mandato e do significado do segundo mandato do Presidente Lula. A grande maioria dos intelectuais e militantes de esquerda avaliaram o primeiro governo Lula como sendo muito ruim ou demasiadamente moderado pelo fato de não ter mudado de política econômica. Foi uma mesma e única avaliação, diferenciada apenas entre os que apreenderam a gestão Lula como uma traição (e assim saíram para uma oposição raivosa) e os que a “aceitaram” como sendo uma necessidade imposta pelos constrangimentos políticos e macroeconômicos da globalização. Duas faces de uma mesma moeda. A inércia dessa visão ideológica mostrou toda sua força no momento de interpretar o segundo mandato do Presidente Lula: o que se enfatizou foi o conteúdo do segundo turno, quando os temas tradicionais da mudança da política econômica e do papel do Estado foram mobilizados para conquistar alguns setores das cha-

madas classes médias (sobretudo do funcionalismo público). Ora, o verdadeiro “evento” da reeleição de Lula foi e continua sendo o primeiro turno: o massivo voto dos “sem”, da multidão dos mais pobres de todo o país, em favor do Presidente Lula. Essa mobilização das multidões pobres das metrópoles e do campo não foi e não é o fato da figura carismática de Lula, mas de sua política social: por tímida que tenha sido, ela conseguiu dar voz aos “sem”! Todas as estatísticas indicam quanto o governo Lula avançou em termos de diminuição da desigualdade e da pobreza. É a política social que permite mudar de política econômica. E isto por duas razões: porque a política social é produtiva na medida em que a geração de riqueza depende hoje da qualidade da população (educação, serviços e renda!). E porque ela permite atualizar constantemente a legitimidade do “novo” governo! Sem política social, a multidão dos pobres que ficam na informalidade, nas periferias, nas favelas, no desemprego, no emprego com salário mínimo, sem proteção social, presos em transportes coletivos demorados, caros e de péssima qualidade, sem acesso às redes, sem acesso a ensino superior, inferiorizados por todo tipo de fragmentação social e racial (de cor), continuará sem voz. E, se a multidão dos pobres ficar sem voz, o governo Lula ficará refém de uma elite neo-escravocrata e das contradições internas a suas bases organizadas que, na maioria dos casos, são corporativas: sua legitimidade sobrará ... sem efetividade. É a atualização contínua do evento eleitoral, durante o tempo que separa uma urna da outra, que dá ao governo uma potência constituinte sem a qual não terá como afirmar o poder da verdade diante da verdade do poder de sempre. Isso vale para o Brasil, bem como para Argentina, Equador, Bolívia e Venezuela. O problema não é só a mídia golpista O que paralisa o governo não é somente a mídia golpista, mas as ambigüidades internas à esquerda, sua incapacidade de ler a nova composição social do trabalho e da produção e, portanto, o papel produtivo dos próprios processos de radicalização democrática: a distribuição de renda em primeiro lugar! As política soci-

ais devem chegar antes da “Força Nacional” (ao contrário do que aconteceu com o PAN no Rio de Janeiro). O governo deve retomar e massificar com força suas políticas sociais e organizar a pauta das reformas em torno delas: reformar a previdência para construir proteção social que alcance as grandes massas de trabalhadores informais; articular novas formas de proteção social do trabalhador com programas de distribuição de renda, implementando renda mínima incondicional para os mais pobres; retomar a lei das cotas e o estatuto da igualdade racial, para continuar articulando a luta contra a correlação perversa que junta racismo e desigualdade; atacar o corporativismo do funcionalismo público pela democratização (do acesso e da gestão), sem ficar refém das soluções que passam unicamente pelo mercado (é a pressão democrática dos muitos que permitirá qualificar os serviços públicos); retomar com força e determinação todos as reformas jurídicas de reconhecimento dos territórios de produção metropolitana. Isso significa regularização fundiária nas favelas. Transformar as drogas em questão de política de saúde (e não questão de polícia que alimenta todo o tipo de violência e corrupção). Significa apoiar as políticas de municipalização das infraestruturas de todo o tipo: dos transportes coletivos ao acesso universal e gratuito às redes de internet; apoiar as políticas de mobilização democrática da produção da cultura, em particular difundindo e ampliando a experiência dos pontos de cultura para que organizações sindicais, terceiro setor, movimentos sociais, possam encontrar espaços comuns de organização. É nesses termos que, finalmente, será possível pensar politicamente os quebra-cabeças da relação entre crescimento e meio ambiente. Não mais como relação dialética entre o homem e uma natureza que lhe seria externa, mas na perspectiva de uma relação de hibridação recíproca do homem com a natureza e da natureza com o homem. Somente quando apreendermos a produção como circulação social, como circulação de pontos de vista, como mobilização de sujeitos múltiplos e, pois, um processo de constituição democrática, conseguiremos resolver os debates ainda em aberto sobre bio-combustível, energia, Floresta Amazônica. Trânsitos 5 GLOBAL


From: Caia Fittipaldi To: Universidade Nômade Date: Wed, 12 Sep 2007 Subject: Chega de chororô

OK. Chega de chororô. Temos de fazer o que nunca se fez, no Brasil: calar a DES-universidade e calar o DES-jornalismo. Ninguém escolhe suas lutas. A nossa, agora, é contra o DES-jornalismo e a DES-universidade. Pronto. É disso que se trata. Agora, é pé na tábua. Dia de greve parcial, chamada pelo Sindicato dos Metroviários em São Paulo. Estou ouvindo a rádio CBN. Com o metrô semiparado, sim, a cidade vira total caos -- porque há excesso de carros e, além disso, temos hoje, como ferida aberta no coração da cidade, aquela cratera que há, ali, onde há muito tempo deveria haver muito mais metrô. A cratera do metrô é como que uma assinatura, a céu aberto, do governo dos tucanos no estado de São Paulo e na capital do estado. Mas o DES-jornalismo da rádio CBN não fala sobre a cratera do metrô do governo tucano. Nenhum DES-jornalista fala sobre isso. Nenhuma DES-sociologia uspeana jamais ensina a ver a cratera do metrô. Hoje, o assunto é greve. Não. Hoje o assunto é “democracia” com greve, mas sem cratera; com governo, mas... sem governador, prefeito, nada disso. Todos os DES-jornalistas da CBN, hoje, estão super pautados pra falar muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito em democracia. Estranho? Ah, estranhíssimo. Mas explicável: eles estão jogando. E a carta da vez, agora, é "democracia". Normal. A carta da vez, desse DESjornalismo que desgraça o Brasil-2007, não haveria de ser "o nosso fascismo explícito", né-não?! A carta da vez, desse DES-jornalismo que desgraça o Brasil-2007, hoje, não haveria de ser “não fazemos jornalismo: estamos em campanha eleitoral antecipada e ilegal”. A pauta da hora é: "depois de os cidadãos termos ficado reféns da incompetência do governo federal, nos aeroportos, São Paulo hoje é refém também do sindicato dos metroviários." Alguém, do consórcio que está construindo o metrô, repete, de 5 em 5 minutos, que "o sindicato desrespeitou des-ca-ra-da-men-te [sílabas dramaticamente escandidas] uma decisão judicial. A greve é ilegal". É mentira: a greve ainda nem foi julgada. Mas ninguém diz que é mentira o que diz um patrão-lá, no rádio. O DES-jornalismo brasileiro ensina que é verdade, aquela mentira, dado que ninguém diz que é mentira, que a greve sequer foi julgada. E fica por isso mesmo. E assim ficará, tudo por isso mesmo, nesse DESjornalismo que desgraça o Brasil-2007, até que nós construamos um jornalismo de democratização, que nunca houve no Brasil. Nunca houve, nem por meia hora, em 50 anos, pelo menos, com certeza. De nada nos adianta lamentar que as coisas, no Brasil, tenham chegado ao ponto que chegaram e que, hoje, só haja DES-jornalismo, no Brasil-2007. Essa DES-imprensa DESdemocrática começou a ser construída, na versão atual, por Sergio Motta – e todos sabem que, sim, foi ele. E ele fez o que foi pago pra fazer. E fez muito bem feito. Bom... azira. Só faltaria, mesmo, nós desejarmos que ele tivesse feito bem mal feito o que foi pago pra fazer bem feito. A verdade é que a luta por jornalismo de democratização já estava perdida, para o campo democrático, desde que FHC foi escalado para salvar o projeto deles -- do campo DESdemocrático -- que fazia água, então, entregue à piração de Collor. Aí e então foi que tudo começou. De fato, aí e então foi que tudo CONTINUOU.

GLOBAL 6 trânsitos


Da esquerda à direita, Frame de cena de performance de Flávia Sammarone e de Chico Linares, Desligare, 2006.

desligare Nunca tivemos no Brasil, nem UNIVERSIDADE nem IMPRENSA que ajudassem a sociedade brasileira a entender os processos aos quais também a universidade e também a imprensa SEMPRE estiveram submetidos, no Brasil. Darcy Ribeiro e Artur Neves, em 64, apenas começavam a pensar sobre isso. Estavam construindo o projeto do que seria (mas não foi) a primeira universidade de democratização do Brasil. O golpe de 64 foi feito TAMBÉM contra isso. E perdemos aquela. Esses são fatos. Nós perdemos. OK. Então tá. Não adianta lamentar que as coisas tenham sido assim. Não adianta lamentar as batalhas perdidas. Isso é uma sucessão de batalhas que a democracia perdeu, por aqui, é TODA a nossa história pós-colonial, pesando sobre o Brasil, até hoje, como ela sempre pesa, onde quer que o colonialismo tenha sido ativo. Aqui, houve escravidão por 300 anos. 300 anos não é um verão em Ipanema: 300 anos são 300 anos. E é claro que o colonialismo não foi apagado, no Brasil, nem por o Estado brasileiro ter mandado queimar os documentos sobre a escravidão, nem por a DES-sociologia uspeana-tucano-pefelista (e sempre golpista, sempre, desde 1932), de DES-democratização do Brasil, ter apagado, da cabeça (e das bibliografias DES-sociológicas) da classe média brasileira, toda a nossa história de fundo. É VERDADE que, em 2007, os mesmos golpistas de sempre ainda são eficazes, no trabalho de inventar e implantar palavras na discussão possível, para a classe média brasileira metida a letrada. Hoje a palavra-golpe da hora é "caos aéreo". Há apenas algumas décadas, a palavra da hora foi “contra os comunistas”. Hoje, a palavra da hora é “contra Lula”. Os DES-jornalões são os mesmos de sempre. Não mudou nada. "Caos aéreo" é expressão muito eficaz. Pode-se facilmente ver, no processo de construção e implantação dessa palavra que, sim, o DES-jornalismo DES-democrático, casado com a DES-universidade de DES-democratização, ainda é muito eficaz pra fazer o serviço sujo de IMPOR temas na discussão geral. A DES-mídia (ou a mídia DES-democrática) e a universidade de DES-democratização operam sob os mesmos príncípios: repetir, repetir muito, repetir incansavelmente, de modo que algumas falas pressupostas competentes 'comprovem' o besteirol de todos os outros. E todos, no Brasil, ainda falam a voz dos grandes anunciantes dos grandes veículos. E todos os grandes anunciantes estão reunidos na "LIDE – Lideranças Empresariais", dos falsos "cansados" da publicidade e do 'marketing político'... que nada têm de cansados e, sim, são, ainda, golpistas ativíssimos, animadésimos. OK. Já os deciframos. Agora, trata-se de fazê-los calar. Enquanto não soubermos fazer mais e melhor, para fazê-los calar democraticamente, que, pelo menos, façamos muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito barulho. É assim que as coisas andam. Mas, por favor, chega de chororô. A hora é agora: temos de gritar muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito contra os DES-jornais e contra a DES-universidade. É só o que se pode fazer, por hora. Mas, isso, pelo menos, a blogosfera da resistência democrática tem de fazer. Isso, NÓS temos de fazer, pelamôr de Deus. Façavôr. Deu. Chega de chororô.

Participantes (em ordem cronológica de entrada no filme): Elena D. Garcete de Helmfelt; Mariângela Bellegard; Marta Souza; Bárbara Fascina & Laura Guareschi; Luis Guilherme Wolf; Neli Gomes; Maria da Graça Stávis; Washington Silveira; Luiz Henrique Silva Jacarelli & Arnaldo Cezar da Silva; Gheysa Marques de Siqueira, Magda Oliveira Pereira & Manuela Tamara Flores; Célio Borba; Rafael Wasmann; Cristine Conde; Jonas Jr; Tony Ananias; Lucas Rodrigues; Lígia Borba; Dayvid Mendes Dias; Sérgio Augusto Dibner Maravalhas; Carlos Roberto Teles; Isabela Belotto da Silva; Bernadete Brandão; Mainês Olivetti; Margit Leisner; Marília Kubota; João Debs; Adelson Avellaneda Chaves; Gabriela Cardoso e Jorge Kruguer; Teca Sandrini; Fabrício Vaz Nunes & Ana Paula Bellenzier; Ricardo Corona; Eliana Borges; Orlando da Luz Jr; Maria Madalena Gomes & Maria Cristina Gomes; Fabiano Gomes e Waldeir Gomes; Luciano Betim; pessoal do ACT (em proposta de Michele Siqueira & Nena Inoue); Hélio Leites; Nixon Vieira Molveira; Sávio Nienkötter, Gisele Corrêa Nienkötter & José Elias; Marcos Cherobim Guiraud, Eunice Terres e Sofia Terres Guiraud; Cláudio Jesus Esteves e Ives Esteves; Claudia Becker, Priscila Becker e Apolo Becker; Marcelo Sandmann; Di Ferreira; Bill Lundberg; Ricardo Basbaum & Daniela Mattos; Ericson Pires & Goiano; Martha Niklaus; Julio Castro; Ana Prado & Joaquim Da Matta; Aparecida Oliveira Chagas Costa; Giordani Maia & Marize Rocha; Marssares; Jarbas Lopes; Juruna Mallon; Bruno De Nicola & Cristina Peñaloza; Ronald Duarte; Luís Andrade; Guilherme Whitaker; Zé Luis; Cildo Meireles; Eduardo Lemes; Carlos Henrique Tullio; Tânia Bloomfield; Octávio Camargo; Gilson Camargo; Patrícia Seravy; Daniela Georgia; Família Horn; Sabrina Oliveira Gaecia; Clara Cuevas & Letícia Monteiro; Marcelo Scalzo; Carla Zaccagnini; Daniel Lima; Carla Chaim; Daniel Nogueira; Luciana Costa; Chico Linares & pessoal do Ateliê Espaço Coringa; Alexandre Menossi; Francesco Calicchio; Ismar Assis; José Martins; Aldo Gecent e equipe; Flor; Ricardo Rosas; Carlos, Erasmo & Duda; Xiclete; Alexandre Fehr; Demétrio Henriques Portugal; Flávia Sammarone; Fabiana Prado; taxistas do ponto da rua Wisard; Cabelo & Geandre (Bijari); Bia Medeiros & Corpos Informáticos; Cátia Alexandra; Ricardo Ramalho; Maria; André Mesquita; programa 360º (Rafael Laffranchi, Almir Almas, Flávia Vivácqua), Juci, Fernando Augusto e Emerson; Interlux; Cleverson Salvaro e Joana Corona; Lúcio Araújo; Cuquinha & Fernando Cachaldora; Fumacê do descarrego (Alexandre Vogler & Guga Ferraz, em proposta de Rubens Pileggi); Rubens Pileggi; e/ou (Claudia Washington, Ana González e Goto); Ricardo E. Machado; Goto.

Trânsitos 7 GLOBAL


Da esquerda à direita, Frame de retrato de Guilherme Whitaker e de Luciana Costa, Desligare, 2006.

desligare Desligare 2006. Acima, frame de retrato de Guilherme Whitaker. Ao lado, frame de retrato de Luciana Costa.

SOBRE CANSAÇOS E GOLPISMOS Direita brasileira reativa virulência odiosa e golpista contra governos legítimos. E anda ressentida pelo fato de os recursos públicos estarem a ser utilizados em favor das grandes massas trabalhadoras e excluídas.

Adriano Pilatti

GLOBAL 8 trânsitos

Há pelo menos 60 anos, a cena político-representativa brasileira está polarizada no eixo direita-esquerda, aqui entendidas como correntes políticas fortemente vinculadas, no primeiro caso, ao mundo do grande capital (interno e externo); e, no segundo, ao mundo do trabalho e dos excluídos em geral. Desde 1947, com a proscrição do Partido Comunista pelo STF, o campo esquerdo da arena política nacional foi ocupado por um conjunto de pequenos partidos, dos quais o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado por Getulio Vargas e liderado por João Goulart após a morte do primeiro, tornou-se o maior e o mais importante. Já o campo direito dividiase entre o Partido Social Democrata (PSD), encarnação partidária de um conservadorismo conciliador tradicional entre nossas velhas elites dirigentes, de um lado, e a União Democrática Nacional (UDN), legenda dos adeptos de um conservadorismo modernizador insurgente e francamente próamericano, de outro.

Quem é a direita e a esquerda A polarização PTB-UDN amadurece nas eleições presidenciais de 1950, explode em agosto de 1954, com o tiro que Vargas disparou no próprio peito, para acertar na jugular as pretensões golpistas da UDN; e só termina em outubro de 1965, quando o general Castelo Branco, alçado ao poder por um golpe finalmente bem-sucedido da UDN, edita o AI-2 para extinguir todos os partidos políticos (inclusive a UDN, que apoiara o golpe e Castelo), sepultando, assim, as incansáveis ambições presidenciais de Carlos Lacerda, a mais perfeita tradução do ressentimento udenista. Embora as acusações de golpismo fossem recíprocas no conflito PTB x UDN, esta última é que sempre foi flagrada em todas as iniciativas golpistas do período: 1954, contra Getulio; 1955, contra Juscelino; 1961, contra Jango; 1964, idem. Contra todos, sempre a acusação de populismo, sindicalismo, continuísmo, arcaísmo e corrupção; contra todos, sempre o mesmo moralismo de ocasião e a mesma pretensão modernizante.


A partir de 1979, com a redemocratização, o campo trabalhista foi inicialmente disputado pelos partidos comunistas, socialistas e, principalmente, pelo PT de Lula e o PDT de Leonel Brizola. A partir de 1988, e por um instante fugaz, pensou-se que o recém-nascido PSDB também disputaria esse campo. Progressivamente, o PT assumiu a liderança da representação dos trabalhadores e excluídos, com uma novidade no discurso: a crítica ao populismo e à corrupção, e o exercício cotidiano de um moralismo juvenil. O reavivamento da virulência lacerdista no discurso político brasileiro, o requentamento da retórica modernizante-moralista (especialmente contra o PDT, remanescente último do velho trabalhismo getulista-janguista), foi uma de suas marcas iniciais. Já no campo da direita, a subsistência da representação partidária da ditadura até os anos 1990 retardou a decantação, que afinal se consumou, em 1994, na aliança PSDBPFL, expressão pós-moderna dos objetivos, métodos e delírios udenistas. A partir da campanha eleitoral de 2002, diante da iminência de deixar os postos de poder ocupados há pouco mais de oito anos, no caso do PSDB, ou há pelo menos quarenta, no caso do PFL, reavivou-se na coalizão o gosto pela retórica udenista, a essa altura já abandonada pelo PT no poder.

Os sentidos do movimento Cansei Após o interregno de serenidade subseqüente à acachapante derrota que fez o PFL adotar codinome para tangenciar a reprovação popular, renasce a fúria udenóide, e encontra uma de suas expressões no movimento “CANSEI”. Pouco importa se, para isso, for preciso pegar carona na necessária e justificada revolta de quem é atingido pela tragédia. Expressão fiel do ressentimento udenista da “minoria branca”, assim qualificada pelo mais lúcido dos próceres desta, o discurso pseudomoralista de hoje é, de certo modo, o fel que o petismo está a beber depois de cultivar a mesma cepa. Pouco há de novo no fenômeno. A mesma virulência odiosa, a mesma demofobia confessa, a mesma ignorância pretensiosa, o mesmo esnobismo incorrigível, a mesma agressividade “de bem com a vida”, a mesma leviandade satisfeita, a mesma vulgaridade envernizada que já amargaram os dias de Getulio, JK, Jango, Brizola, Arraes e outros tantos, e agora fustigam líderes como o governador Requião e, principalmente, Lula. Não pelos defeitos, mas pelas qualidades de todos, como dizia o inesquecível Professor Darcy Ribeiro, também tão desrespeitado por dondocos e dondocas de várias gerações.

A política do ódio O ódio que hoje se volta contra o BolsaFamília e a política de cotas é o mesmo ódio que no passado recente se dedicou aos CIEPs, ao Sambódromo e às benfeitorias nas favelas, classificados como desperdício populista pela elite econômica e sua imprensa. Subjaz a essas manifestações narcísicas de intolerância social uma incapacidade egóica de aceitar que os recursos públicos possam ser utilizados em favor das grandes massas trabalhadoras e excluídas, associada a uma patológica pretensão de superioridade diante de eleitorados e governantes populares. Por isso Getulio foi vaiado no Jockey Club, Jango era difamado nas altas rodas e Lula é vaiado nas bocas-livres promovidas por funcionários do “estamento”, dissecado pelo mestre Raymundo Faoro, saudoso presidente de uma OAB próxima das grandes massas e de seus desejos mais generosos. Tampouco é nova a naturalidade com que, para desqualificar povo e governante legitimamente eleito, se lança mão do luto alheio e se afronta o sentimento pelos mortos: a expressão “aves de rapina” está na carta-testamento de Getulio, e “corvo” tornou-se a alcunha do mais ativo dos golpistas udenistas. Trânsitos 9 GLOBAL


Conex천es Globais 1 GLOBAL


NOTAS SOBRE O PROTESTO CONTRA O G8 NA ALEMANHA Em Heilingendamm,

Heiligendamm é uma aldeia de 300 habi-

Coreografia de protestos

as ações diretas de protestos

tantes situada no norte da Alemanha:

bloquearam os caminhos

uma praia, algumas casas e um hotel

que levavam ao local

luxuoso. Neste hotel reuniram-se, no

do encontro do G8

período de 6 a 8 de junho deste ano, os

Mas, esses foram também dias de um movimento muito intenso e colorido. Na esteira da resistência contra os encontros em Seattle, Gênova, Praga etc., o G8 de Heiligendamm foi acompanhado por protestos e bloqueios. A chamada “coreografia de protestos” consistiu em várias manifestações, além de um encontro de cúpula alternativo e muitas ações diretas e bloqueios durante os dias do G8. Na maior manifestação, dia 2 de junho, na cidade de Rostock, distante 20 km de Heiligendamm, participaram 80.000 pessoas. Foi uma das manifestações mais coloridas na Alemanha das últimas décadas. A violência que teve lugar na parte final da manifestação foi intensivamente acompanhada pela mídia que, junto com a polícia, criou uma imagem bastante negativa de um dia que, na realidade, foi um dia de festa do movimento de resistência. As manifestações de resistência com maior impacto foram os bloqueios das ruas e trilhas de acesso a Heiligendamm a partir do 6 de junho.

chefes de estado do chamado G8. As

Till Baumann

medidas de segurança foram inéditas: a polícia construiu uma grade de treze km rodeando Heiligendamm de uma praia a outra, gastando 12,5 milhões de euros nesta construção. Mobilizando 17.800 policiais, foi a maior missão na história da Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial.

GLOBAL 10 Conexões Globais


Por razões de espaço, dentro da aldeia só puderam ser alojados os Chefes de Estado e os delegados de hierarquia mais alta, que chegavam de avião e de helicóptero. Milhares de outras pessoas necessárias para a organização do encontro – integrantes das delegações, tradutores, jornalistas, pessoal de segurança – ficaram em outros locais, fora da área gradeada. Os bloqueios foram organizados para impedir o acesso dessas pessoas e para perturbar o máximo possível o andamento do G8. Contra todas as proibições judiciais de manifestações e protestos perto da grade, 12.000 pessoas tomaram as ruas no dia 6 de junho, primeiro dia do encontro. Saindo dos acampamentos de Rostock, Reddelich e Wichmannsdorf, atravessando campos e florestas, conseguiram bloquear todas as ruas e trilhas de acesso a Heiligendamm durante aquele primeiro dia. Foram dois bloqueios grandes e vários menores, um pouco mais descentralizados. Alguns dos delegados foram transportados por helicóptero ou barco, mas muitos não conseguiram chegar a Heiligendamm naquele primeiro dia. A conferência de imprensa na inauguração do encontro aconteceu com a participação de apenas quatro jornalistas. No segundo dia, os protestos continuavam a atrapalhar os organizadores de maneira surpreedente. Vários dos bloqueios mantiveram-se até o terceiro e último dia do encontro do G8.

Para ilustrar, semanas antes do encontro de Heiligendamm, quarenta pessoas reuniram-se durante cinco dias numa pequena cidade alemã para uma “oficina de ações criativas” contra o encontro. Discutiram sobre G8 e a história da resistência, sobre formas criativas e artísticas de ação direta e entraram em ação: prepararam cenas de teatro, construíram bonecos gigantes, ensaiaram ritmo e percussão com panelas e tambores. Era um grupo muito heterogêneo, formado por várias gerações da esquerda, variando de 19 a 65 anos de idade. Na busca de um tema central, ficou bem claro que a enorme grade rodeando o local do encontro simbolizava a exclusão das vozes críticas e, ao mesmo tempo, era um dos símbolos mais fortes da política do G8: uma política de segregação, de violência e de exclusão. Em consequência, o grupo pintou uma grade que acabou virando cenário da performance no dia da manifestação dos 80.000 em Rostock. A grade foi montada muitas vezes dentro da manifestação, bloqueando a rua em frente aos manifestantes. Um grupo de bonecos simbolizando figuras de resistência aproximou-se da grade, acompanhado por percussão de lata e lemas como “Stop G8”. Junto com os manifestantes e com todo o barulho, a

grade simbólica foi quebrada. Ao lado da manifestação, e antes da quebra da grade, grupos apresentaram suas “miniaturas” – pequenas imagens e cenas sobre as consequências negativas do poder do G8. A ação foi apenas uma parte da manifestação de um bloco de pelo menos oitenta bonecos gigantes - algo inédito na cultura de protestos de Alemanha. O protesto criativo e eficaz contra o G8 foi uma experiência muito especial para os movimentos sociais. Trabalhando juntos em alianças inéditas, integrando culturas de protesto muito diferentes, não foi fácil; porém, foi muito importante para se conseguir o que aconteceu em Rostock e nas imediações de Heiligendamm. Poucas pessoas teriam pensado que os protestos e bloqueios iam ser tão fortes – muitos surpreenderam-se quando os grupos realmente chegaram nas ruas de acesso a Heiligendamm e conseguiram manter o bloqueio por tanto tempo. Parece que o tamanho dos bloqueios e a variedade das atividades e das várias formas de protesto foi demais, mesmo para o contingente de 17.800 policiais destacados para dar cobertura aos supostamente mais poderosos do mundo. Isso dá esperança.

Fotos Till Baumann

Protestos criativos O movimento anti-G8 do mês de junho foi muito heterogêneo: várias gerações da esquerda, organizados e não-organizados, dos mais radicais aos mais moderados. Nos acampamentos de protesto podiam ser encontradas organizações como ATTAC e Greenpeace ao lado de ativistas da esquerda radical e anarquistas. O protesto contra o G8 na Alemanha foi internacional, heterogêneo e extremamente colorido – uma das características sendo a presença massiva de formas criativas e artísticas: palhaços da “rebel clown army” que perturbaram polícia e mídia; baterias de “action samba” nos campos e no meio dos bloqueios de rua; teatro de rua durante as manifestações; bonecos gigantes; performances de dança nas ruas; a “internacional hedonística”, com seu protesto orquestrado por música tecno; o “bloco nu” enfrentando a polícia sem roupa, etc. Conexões Globais 11 GLOBAL


O ÊXODO CONSTITUINTE DA MULTIDÃO Leonora Corsini Esses portos, essas fronteiras, os istmos, as passagens, os canais, os deltas, nós os consideramos guardados por gigantes, nas lendas e na geografia do sonho, porque o gigante vê dos dois lados da linha de passagem, ele concebe ao mesmo tempo a identidade daqui e de lá, ele concebe sua necessária aliança ao mesmo tempo em que preserva e defende sua necessária particularidade. Édouard Glissant As migrações constituem um fenômeno impressionante de movimentação de pessoas pelos quatro cantos do planeta: são milhões que se deslocam entre cidades e países a cada ano. As estatísticas indicam que os números da migração no mundo aumentam ainda mais rapidamente do que os da própria população mundial! Esta crescente mobilidade de pessoas produz o surgimento de novas figuras sociais; aumenta a procura por grandes cidades e metrópoles no lugar dos países; provoca o esfarelamento das fronteiras de todos os tipos: culturais, geopolíticas etc. Como dizem Antonio Negri e Michael Hardt, os tipos de movimentos dos indivíduos, grupos e populações que se estabelecem hoje no Império expressam-se no movimento autônomo que define a multidão. E a multidão, em seus movimentos, transborda e põe por terra os pilares da medida e do valor, designando novos espaços, estabelecendo, em suas jornadas, novas residências: ‘uma nova geografia é estabelecida pela multidão à medida que os fluxos produtivos de corpos definem novos rios e portos’. Quais seriam as implicações das migrações, nesta dimensão de êxodo (ou fuga) constituinte? Em primeiro lugar, de dizer que as migrações funcionam como vetor de transformação, renovando e deslocando ao mesmo tempo o papel que já haviam desempenhado na era dos grandes “descobrimentos”. Os migrantes contemporâneos, ao virem de outros lugares, vivem e encarnam os dramas e as dificuldades que se revelam nas múltiplas formas de exacerbação da exploração: a intolerância, o racismo e o preconceito. Mas, por outro lado, eles tamGLOBAL 12 Conexões Globais

bém resistem e produzem, através de sua luta, estratégias que subvertem essas barreiras, criando e transformando formas de relação e modos de estar no mundo. Os migrantes – e junto com eles, os habitantes desses “territórios dos pobres” – revelam-se extremamente potentes, por vezes de maneira microscópica, através de seus pequenos e cotidianos movimentos, em suas lutas por direitos e cidadania. As migrações têm a ver com as modalidades de trabalho ligadas à produção da vida, aos cuidados e tudo aquilo que convencionalmente é designado como “reprodução”. Em seus rebatimentos na acelerada mobilidade do trabalho que se intensifica com a globalização, as migrações entram como elementos fundamentais numa pauta de discussões e preocupações em torno da formulação de políticas públicas de saúde, educação, habitação, previdência e cultura que possam dar conta da questão da mobilidade em toda sua complexidade. No campo social, enfrenta-se hoje o desafio de ter que atender às demandas de inclusão e democratização do acesso aos serviços básicos de atenção e cuidado de uma população que é, ao mesmo tempo, cada vez mais móvel e cada vez menos atrelada ao regime de assalariamento. Com a crise do fordismo e da grande indústria, o trabalho informal se dissemina, ao passo que o trabalho assalariado fica mais precário, e a própria reflexão sobre o trabalho se torna mais complexa, à medida que a geração de renda e a constituição de formas de cooperação e produção flexível convivem com mecanismos de precarização, marginalização e empobrecimento.

Mas, aí poderíamos perguntar: o que é que determina esta entrada na mobilidade de milhões de pessoas, a cada ano? As migrações contemporâneas são uma escolha, ou um contingenciamento? Do ponto de vista da emancipação, constituem algo positivo, no momento em que permitem a constituição de outros mundos e dessas outras “geografias”; ou negativo, ao acirrar e intensificar as intolerâncias, a exclusão de estrangeiros e seus descendentes, aumentando ainda mais as desigualdades, estimulando a concentração de riqueza para alguns poucos, e a miséria para muitos? Já se pode entrever aí uma bifurcação, uma tendência a separar em duas vertentes tanto as teorias que vêm sendo desenvolvidas para dar conta do fenômeno das migrações, quanto os próprios métodos empregados. Por um lado, existem as abordagens que interpretam a saída (emigração) de uma determinada população como uma resposta às situações de extrema adversidade que já se encontram lá. Neste caso, a emigração é apreendida como algo negativo, uma forma de sobre-determinação e exclusão. Por outro, há os que interpretam os movimentos migratórios em termos positivos, ou seja, de ruptura e/ou fuga das relações de exclusão e subordinação: as migrações em uma dimensão inteiramente positiva enquanto “deserção da soberania e dos limites que ela impõe à subjetividade”. Ou ainda, quando apontam para a constituição da “vida em estado de variação”, de modos menores de viver que se sobrepõem aos modos maiores, do biopoder à biopotência, como propõe Peter Pál Pelbart.


10:50-10:55 no MEC, de Ana Tereza Prado Lopes, 2007, dimensão 1.10 x 0.10 cm.

As migrações contemporâneas são uma escolha, ou um contingenciamento?

Na primeira vertente, que entende que as migrações são sobredeterminadas, tendese a realçar e enfatizar a perspectiva da integração do migrante ao seu novo território, na tentativa de capturar o que ele pode oferecer enquanto força de trabalho, neutralizando ou homogeneizando aquilo que o singulariza, ou seja, sua condição de “estrangeiro”. Já na segunda vertente, que vê a migração como a marcha da liberdade, é reforçada a dimensão de resistência, de constituição da liberdade. Isto supõe uma leitura da mobilidade dos migrantes como um movimento de fuga, um movimento constituinte que traz como pressuposto a prática de deserção: partir para um novo começo supõe também renunciar ao que já está constituído. O migrante lança-se numa aventura incerta, arriscada, imprevisível, para fazer o seu caminho ao caminhar. Se os migrantes são os pobres, os párias da globalização, sistematicamente colocados às margens, confinados às periferias, à margem dos direitos, eles também encarnam uma potência criadora e transformadora, eles corporificam nas suas lutas, na sua persistência, um desejo permanente de movimento e mudança. E esta persistência no ser, na ontologia, é que é hoje a base de toda a produção. Falar de migrações é também falar das múltiplas possibilidades de novos encontros, num sentido pleno e amplo de encontro. Podemos, ao mesmo tempo, colocar o foco na ambivalência constitutiva que caracteriza a experiência dos migrantes, que estão sempre na fron-

teira, num “entre dois”, entre a fuga e a acolhida, sendo portadores de todo um conjunto de possibilidades, de variações, de modulações e de virtuais transformações. Assim, podemos, em primeiro lugar, confirmar uma conexão bastante estreita entre migração e controle do trabalho, a partir das políticas que são implementadas pelos governos para regular os fluxos, um controle que é exercido pela modulação dos modos de inclusão do trabalho migrante através da multiplicação dos estatutos: legalização em massa, vistos temporários, clandestinização e precarização. A dinâmica das migrações constitui a maior e mais eficaz crítica à mistificação do “mercado” de trabalho, ao apontar que a suposta “liberdade” dos mercados precisa dos muros (físicos e jurídicos) que regulam os fluxos migratórios. A disputa política em torno da legalização dos 12 milhões de estrangeiros indocumentados que vivem nos Estados Unidos, junto com a construção de um muro ao longo da fronteira com o México, são evidências disto. Se é verdade que o trabalho se transforma, também é verdade que se modificam as formas de luta e os conflitos sociais e políticos. Surgem novas formas de racismo – o racismo contra os migrantes está no coração do debate político nos Estados Unidos e na Europa hoje. A democracia que se desenha e que se busca hoje é uma democracia radical; ao mesmo tempo, a cidadania no mundo da globalização e das migrações afirma-se cada vez mais como um campo de luta política em que as demandas pelos direitos e as dinâmicas de produção, de liberdade, de mobilidade vão além de perspectivas totalizantes e identitárias. Os migrantes exercem aí um papel fundamental. As inúmeras possibilidades

abertas pelo seu constante movimento não constituem mais uma exceção: são, como diz Maurizio Lazzarato, “a própria fonte de constituição do real”. Por último, vale lembrar que as migrações contemporâneas concernem também a todos os que vivemos e produzimos no mundo globalizado e interconectado – inclusive os sedentários –, seja pelo exílio ou pela mobilidade de parentes e familiares, por casamento, por convites de trabalho, por influência de vizinhos, pela transnacionalização dos estilos de vida etc. São esses os “novos migrantes”, somados aos refugiados que pedem asilo político na fuga de conflitos, de perseguições, das guerras e dos efeitos dos desastres ecológicos; aos migrantes pendulares, os precários, os trabalhadores sazonais, figuras cada vez mais presentes no mundo do trabalho imaterial e cognitivo; às mulheres chefes de família, geralmente de origem urbana, escolarizadas, que aspiram a uma vida com mais autonomia; aos trabalhadores qualificados ou super-qualificados, que não encontram nas suas cidades ou países de origem oportunidades para canalizar sua qualificação e constituem o que se costuma denominar “êxodo de cérebros”, contribuindo para a consolidação de espaços e redes transnacionais de produção e acumulação. E, finalmente, a todos aqueles trabalhadores, com grande ou nenhuma qualificação formal, que saem em busca de uma vida melhor, enfrentando desvantagens e adversidades, nem sempre encontrando acolhida e reconhecimento de seu direito de estar nos países que escolheram para viver: são os migrantes “sem autorização”, sem documentos, clandestinos; são as cada vez mais numerosas e excedentes “minorias” que resistem e desafiam os poderes constituídos.

Conexões Globais 13 GLOBAL


Artigo originalmente publicado no Latin American Journal of Fundamental Psychopathology on line. Vol. 7, número 1, maio de 2007. Walter Melo produziu essa resenha da coletânea “Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios” organizada por Helion Povoa Neto e Ademir Pacelli Ferreira. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

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É PRECISO QUE Despacho Cultural, 13', video de Beatriz Pimenta, no Prêmio Projéteis Funarte de Arte Contemporânea 2007, Mezanino do Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, 8 de novembro a 21 de dezembro.


O AR CIRC U L E

Walter Melo

Coletânea de estudos do Núcleo

Trata-se de uma obra com a participação de profissionais de diversas áreas do

Inter-disciplinar de Estudos

conhecimento, colocando-nos em contato com o objeto de estudo: o migrante.

Migratórios apresenta o migrante

Existe, ainda, algo mais importante: não podemos nem mesmo definir as fronteiras que são ultrapassadas a partir dos tradicionais acidentes geográficos que separam cidades, Estados, países e continentes. Na coletânea, as fronteiras disciplinares também são cruzadas, ocorrendo uma incessante interpenetração de saberes. Trata-se de uma obra com a participação de profissionais de diversas áreas do conhecimento, colocando-nos em contato com o objeto de estudo: o migrante. Os trabalhos apresentados, no entanto, não buscam um objeto transcendente. Essa não poderia ser a intenção, pois na tentativa de aproximação do pesquisador em relação ao tema o próprio pesquisador acaba migrando.

como uma alteridade radical, como um companheiro mítico

“O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes: 'Evitai ouvir esse impostor. Estamos perdidos e esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém!'”.

Estamos vivendo um processo de globalização, com vários países tendo a economia unificada e com a informação circulando de maneira instantânea através da televisão e da internet. Dessa forma as fronteiras parecem se dissipar. Por outro lado, os exemplos de defesa exacerbada dos territórios nacionais estão cada vez mais freqüentes. As justificativas para isso giram em torno de aspectos religiosos, econômicos ou de proteção contra possíveis ataques terroristas. Para garantir as fronteiras faz-se necessário criar grupos de inimigos potenciais, baseados em preconceitos e estereótipos. A criminalização dos migrantes – intensificada após o dia 11 de setembro de 2001 – é um dos temas abordados na coletânea Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios, organizada por Helion Póvoa Neto e Ademir Pacelli Ferreira.

De acordo com os autores, os estudos acerca do migrante se caracterizam por serem migratórios, em relação aos métodos empregados, às hipóteses levantadas, às análises apresentadas e aos conceitos utilizados. Os movimentos espaciais da população, no passado e nos dias atuais, vão estar intimamente relacionados aos aspectos subjetivos e de formação da identidade. O processo migratório apresenta-se como um dos fundamentos de transformação da sociedade, não sendo concebido como um mero reflexo das dinâmicas sociais. Os deslocamentos citadinos ou campesinos possibilitam aos migrantes uma aventura no campo do outro. E quem é que se desloca? São pessoas isoladas ou populações inteiras em busca da resolução de problemas. Mas, nessa busca pela solução dos problemas, surgem, muitas vezes, o medo e a preocupação, pois se abandona uma situação anteriormente conhecida para se viver a novidade de se estar numa cultura completamente diversa.

Ninguém pode se atrever a ler essa coletânea tentando fixar idéias, estabelecer estreitos limites às concepções que se desdobram e sempre se encaminham para outro lugar ao longo da leitura. Ora estamos entre “italianos” em Caxias do Sul, ora entre “alemães” no Rio de Janeiro ou em Blumenau. Podemos, também, acompanhar casamentos entre brasileiros e anglo-americanos nos Estados Unidos ou transladar ao outro lado do mundo junto com japonesas e nipo-brasileiras.

Os autores, no entanto, não apresentam medo do migrante e nem da conseqüente transformação daí surgida. Estão abertos às mudanças e podemos dizer que a mudança se constitui em método. A atenção que os pesquisadores dedicam ao migrante vai além da mera curiosidade intelectual. Trata-se, antes, de um engajamento junto aos sujeitos enfocados. E nesse processo de mútua migração, nessa aventura empática, o migrante surge como uma alteridade radical, como um companheiro mítico.

Jean-Jacques Rousseau

No Brasil, os que vieram de outras pátrias já foram desejados ou odiados. Os mais variados motivos fazem com que estrangeiros venham viver no Brasil. Essas pessoas sofrem um intenso processo de desterritorialização física, econômica, política e cultural, tendendo a criar espaços característicos onde podem cantar suas músicas, comer comidas típicas e falar a língua natal. Essas formas fundamentais de reterritorialização dos migrantes, seja em determinadas regiões, seja na diáspora, são, muitas vezes, consideradas enquistamento étnico. A tentativa de ancoragem cultural do migrante passa, então, a ser vista como um corpo estranho no organismo social, justificando tentativas de assimilação. No entanto, não existem nem quistos étnicos nem assimilação total de uma cultura pela outra, mas intensas trocas entre territórios-rede, pois se o movimento migratório retira o sujeito de um determinado espaço, não o desterritorializa por completo: sempre permanecem geografias imaginárias que trazem memórias e emoções de países e cidades invisíveis. Nesse contexto, a psicanálise dará uma contribuição fundamental: o conceito de inconsciente permite-nos pensar num sujeito que transita, sem fronteiras, no país do Outro, independente de qualquer demarcação identitária. A vida em sociedade, no entanto, nos traz constantemente o limite de alfândegas, de portas, de grades, de cercas, de arames farpados, de muros altos: a fronteira é uma invenção do homem. Atualmente vivemos num mundo globalizado, de livre circulação de dinheiro para quem o tem e que se mostra virulentamente odioso em relação à diversidade cultural. Mas como tudo o que é historicamente construído pode, um dia, deixar de ser como é, podemos sonhar com um mundo de maior troca afetiva e convivência entre as pessoas. Os estudos apresentados, frutos do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios (NIEM-RJ), configuram diferenciadas metodologias e são efetuados por profissionais de diversas áreas. Nesse sentido, os migrantes estudados ao longo da coletânea servem de modelo para que as hipóteses também migrem e as fronteiras que separam o conhecimento sejam ultrapassadas. Conexões Globais 15 GLOBAL


Sala invertida, instalaçãode Beatriz Pimenta no Castelinho do Flamengo, 2002. Foto Cristina Bocayuva.

Tradução Leonora Corsini

Giulia Janelli

Migrantes europeus seguem contra a corrente e vão viver na Argentina

“Que hacés acá?”

Vem aumentando o número de jovens europeus que migram para a Argentina. A imprensa dá destaque apenas ao segmento mais rico, que vive com euros ou dólares, mas existe também uma parcela significativa que faz uma opção mais radical: viver como um portenho, ganhando em pesos e enfrentando as dificuldades de obter um visto de trabalho, apesar da incredulidade das pessoas. GLOBAL 16 Conexões Globais

Em Buenos Aires, uma nova onda migratória parece estar se dirigindo para a Europa. O que pude perceber a partir de minhas entrevistas com relação a esta fuga de jovens para uma Europa que não é mais nada daquilo que se encarna no imaginário dos que, em números ainda muito expressivos, continuam emigrando para o velho continente, é uma frustração generalizada e um sentimento de impotência frente ao progressivo desmantelamento do sistema de direitos que custou a luta da geração de nossos pais, e à indiferença de uma política que vive a anos-luz das pessoas. Afinal, devemos admitir um outro fracasso do modelo neoliberal para nos convecermos de que este é o melhor dos mundos possíveis?

Mas, ao mesmo tempo que milhares de argentinos descendentes de europeus decidem cruzar o oceano em busca de novas perspectivas, outros milhares de estrangeiros chegam ao país. Atualiza-se um fenômeno do passado já vivivo pela Argentina: um pequeno, porém constante, fluxo de imigrantes europeus e também norte-americanos, faixa etária entre 25 e 35 anos, chegam como turistas ou estudantes e acabam decidindo se mudar para cá. De acordo com a Divisão Geral de Migrações, desde 2006, 3.885 estrangeiros provenientes da Europa ou dos Estados Unidos que visitaram o país solicitaram permissão para permanecer definitivamente, assim que expirou o visto de turista. Outros 16.220 estrangeiros com a mesma procedência e que


já estavam no país, solicitaram residência permanente. Na realidade, é difícil determinar o número exato, porque a maioria chega como turista e quando vence o visto, simplesmente sai para o Uruguai ou algum outro país vizinho para renová-lo. Nas matérias veiculadas pela imprensa nacional, geralmente são mencionadas as comodidades de se mudar para o país com um câmbio tão favorável para os estrangeiros (4 pesos para cada 1 euro). Mas, o que dizer dos novos migrantes que não vão viver em bairros chiques como Palermo Hollywood, ou pseudoboêmios como San Telmo, mas acabam em Balvanera, San Cristóbal ou La Boca bairros populares situados na Zona Sul de Buenos Aires - e começam a trabalhar ganhando em pesos, na maioria das vezes em uma relação de trabalho “clandestina”? “O que fazem aqui?” Esta pode parecer a visão privilegiada de quem cresceu no lugar para onde o fluxo mais expressivo de migrantes se dirige, tanto que a pergunta que mais nos fazem quando sabem que somos europeus e que estamos estabelecidos em Buenos Aires é: “O que fazem aqui?”. Pergunta feita com um meio sorriso de piedade por nossa suposta anormalidade. Fiz esta pequena pesquisa mais para entender esta onda imigratória de tipo novo, não mais conduzida pela vontade de melhorar a própria condição sócio-econômica, como acontecia no passado, mas para satisfazer, de alguma maneira, o cérebro e a alma. Os protagonistas de minha pesquisa são três pessoas. Conhecemo-nos em um call-center e eis o paradoxo dos paradoxos: a empresa onde trabalhamos, que presta serviços de assistência técnica a clientes, é holandesa. Instalou-se aqui há três anos, justamente para aproveitar o câmbio favorável e a alta qualificação de potenciais trabalhadores estrangeiros. Por fim, a metade de seu pessoal é composta de europeus (suecos, finlandeses, franceses, alemães, italianos, suiços e, obviamente, holandeses). Um dia vieram os fiscais do trabalho do governo municipal, e nós, que estávamos sem contrato, tivemos que sair escondidos do escritório para nos reunirmos, em uma pracinha próxima, com um ajuntamento de italianos, franceses, alemães... todos clandestinos, como numa nova versão do Clandestino de Manu Chao: “italiano, clandestino, fin-

landês, clandestino, alemão, ilegal...”. Todos dispostos a um tipo de trabalho que recusaríamos em nossos países. Mas aqui.... Vamos começar pelo mais jovem do grupo. Ele se chama Benja, 25 anos vividos em Perpignan, Pirineus franceses, quase na fronteira com a Espanha. O último trabalho que teve na França foi como cozinheiro nas temporadas turísticas, ganhando 1500 euros por mês, por uma jornada de 11 horas por dia, 7 dias por semana. A abertura das fronteiras ao “livre fluxo de mercadorias” produziu na sua região uma grande crise em dois setores fundamentais: o turístico e o agrícola. A Espanha leva vantagem nos dois setores, pelos preços mais baixos e por uma “onda” favorável. Benja diz que na França, sem recursos sólidos, é dificílimo ter acesso a um sistema educacional que permita sair com boa formação acadêmica, e que o aspecto social está cada vez mais marginalizado, os benefícios e dispositivos de proteção não avançam mais no mesmo passo que a sociedade. Compara a situação a de um bebê a quem se retira uma perna: cortar os avanços sociais seria como cortar a perna da criança, não lhe permitindo ser autônoma, correr, brincar, ser criança. Considera ainda que a política do medo seja o único recurso que restou aos políticos, e que a esquerda nada mais faz do que “incomodar” a direita, mas sem ter uma política própria. Por isso, em algumas eleições havia votado nos verdes, mas não votou na última eleição. Chegou na Argentina em 2005 e encontrou na Câmara de Comércio FrancoArgentina o anúncio do call-center. Toda vez que lhe perguntam de onde vem, ele responde que é de Villa Ballester (localidade da província de Buenos Aires). Outra pergunta frequente é o que vai fazer no futuro. Ele diz que para a França não quer voltar, só de férias, com passagem de ida e volta, que vai lhe custar o equivalente a 2 meses de trabalho. Eu, formada em Ciências Políticas, cheguei em 2005 de Milão para fazer mestrado em Relações Internacionais e, ao terminar o curso, me perguntei se não seria a oportunidade de ficar. A favor deste país, em comparação com o meu, percebia um entusiasmo já quase ausente das ruas das cidades italianas; uma abundante oferta de atividades culturais gratuitas e outras a preços acessíveis; e a percepção de poder perseguir versões sonhadas de mim mesma que, na Itália, pareciam simplesmente inviáveis por não se encaixarem

no “modelo” e porque, ao sair da faculdade, não havia encontrado muito mais do que call-centers, locutórios, restaurantes. Cheguei no call-center para poder obter um contrato de trabalho, procedimento muito complicado. Fiquei ali por um ano, mas podendo me dar ao luxo de ter um verdadeiro contrato, e usufruir de coisas que o custo de vida excludente de Milão não permitiria. Finalmente (apenas por uma questão de espaço), temos Papo, um italiano de 37 anos que começou seu processo migratório aos 18, deixando o sul da Itália em direção a Londres. Ao retornar para a Itália, emigrou para o norte (como são obrigados a fazer muitos italianos do sul), mais precisamente para Bolonha, para fazer um curso de intérprete. No norte, sentia-se discriminado, apesar de ser italiano. Depois de mais uma temporada de dois anos em Londres, resolveu passar por casa para preparar sua mochila para o Equador, onde pretendia ensinar italiano. No caminho para casa, acabou parando na Argentina. Pretende voltar para a Itália depois de uns cinco anos por aqui, mas tem medo de reencontrar a crônica falta de emprego no sul e ser forçado a emigrar dentro de seu próprio país – pelo menos, a Argentina é um país que não conhecia. Escapamos assim de um dos enésimos fracassos do modelo neoliberal: temos tudo, mas acontece que este “tudo” não nos satisfaz, não nos permite estar bem; no final das contas, não é nenhum “tudo”. Em muitos casos, a mudança de vida também vem como resposta a um desânimo frente ao sistema laboral que é experimentado pelas últimas gerações: precário, às vezes simplesmente inexistente, destituído das mais básicas garantias. Agora, uma das polêmicas mais repetidas sobre a globalização vem a ser justamente que ela permite o livre fluxo de capitais mas não deixa de criar barreiras à circulação humana. Pode ser que as crie de fato, mas só em um sentido. A emigração apresenta-se como condição intrínseca ao homem, se bem que, neste ano de 2007, não são apenas os estômagos que estão insatisfeitos, mas os cérebros também estão famintos. É a assimetria no mundo: para os europeus, diferentemente dos que vão em sentido contrário, ainda é possível escolher onde e como viver, mesmo no caso dos clandestinos, sem que nenhuma legislação os ameace ou tente confiná-los em “centros de detenção temporária”, como estes presentes em toda Europa. Conexões Globais 17 GLOBAL


PERGUNTAR CAMINHANDO:

governo Zapatero, Tomás Herreros Sala

A primeira parte deste artigo foi publicada na Revista Global n. 8 Tese 4. As mobilizações de março de 2004 na Espanha colocaram em marcha e em campo uma acumulação de saberes, cooperação, instantaneidade, que poderíamos chamar de sociedade civil auto-organizada, herança do zapatismo. Depois do atentado de 11 de março em Madri e a três dias das eleições gerais, as mobilizações em toda Espanha, cujo epicentro foi Madri, acabou sendo uma espécie de grand finale, de catarse de tudo o que vinha acontecendo nos quatro anos anteriores. Não foi só a última gota d'água; foi, de fato, a entrada em cena de um potente “basta”, de um desejo de superar definitivamente, e de uma vez por todas, um governo que maltrata até os limites do grotesco aqueles a quem chama seus cidadãos. A rede que se expressa através das tecnologias de acesso – celulares, blogs, webs – e que permite uma comunicação mais rápida e produtiva, adquire corporeidade, toma as ruas, faz a gestão, tensiona, dá voz ao nojo pelo atentado e à tremenda indignação pela gestão Aznar. Mostra sua potência, seu vitalismo, sua produtividade frente a um governo que controlava a maior parte dos meios de comunicação, mas ainda assim foi incapaz de dialogar com uma cidadania que se tornou, naqueles dias, totalmente insubmissa. Os dias 11 e 14 de março não foram apenas de indignação, foram também vontade desta multidão que se torna corpo, que se materializa, que se torna real. Que faz seus próprios panfletos, que grita suas mil consignas e lemas, que não atende a lógicas partidárias, a lógicas de contenção. E que, sobretudo, quer ser produtiva [e efetivamente o é], livrando-se de Aznar. Depois de três dias de luta, derrota da ignomínia governamental. Tese 5. Zapatero não é Lula, no sentido que não era o candidato da cidadania, tampouco é um grande reformador das presentes políticas econômicas e sociais na Espanha. Não há dúvida que Zapatero representa uma novidade. Decisões institucionais como a retirada das tropas do Iraque ou a aprovação dos casamentos entre homossexuais são bons exemplos. Existem outros, mais complexos, mais ambivalentes, e igualmente interessantes: a aposta na aliança de civilizações, na lei da dependência ou em uma política exterior mais realista e mais europeísta, inclusive, nas tentativas de abrir um diálogo político (não só repressão), no embate ETAGoverno. Pode-se dizer que, num plano moral, Zapatero é inovador, sobretudo levando em conta o grande poder que as grandes instituições conservadoras - como a Igreja, por exemplo – sempre ostentaram na Espanha. No plano econômico e social, no campo definitivo dos direitos econômicos, a avaliação é bastante outra: Zapatero não desenvolveu políticas em prol de um desenvolvimento avançado, e os problemas estão hoje mais presentes do que nunca. Exemplos disto são a sua política particular em relação à migração e os resultados pífios no quesito precarização da vida. Com relação aos migrantes, em 2005 produziu-se um processo de regularização, demanda antiga de boa parte dos movimentos e da própria sociedade. De fato, mais de meio milhão de migrantes conseguiram, a partir de então, obter cidadania administrativa. Porém, o processo foi pouco transparente, GLOBAL 18 Conexões Globais

dúbio, atrelado às idiossincrasias do caso espanhol. Além disso, a regularização fica condicionada ao emprego formal. Dadas as condições de trabalho na Espanha, principalmente para os migrantes, esta é uma condição perversa: a precarização do trabalho, a intermitência e, sobretudo, a informalidade, têm sido o destino das demandas laborais dos migrantes. O resultado é que grande parte destes trabalhadores – dois milhões, de acordo com várias estimativas – continuam irregulares, ou seja, não obtiveram cidadania. E o que é pior, desde então têm sido submetidos a um disciplinamento excepcional. Dentro da Espanha, desenvolvem-se fronteiras internas nos espaços urbanos (blitz da polícia em busca de indocumentados, dificuldades graves para encontrar moradia, dificuldades de mobilidade), isto somado ao uso ainda mais intensivo dos CIEs (Centros de Internamento para Estrangeiros). E, fora da Espanha, o governo vem militarizando e estendendo as fronteiras até limites impróprios a uma gestão que se pretende inovadora. Em relação à precarização da vida, a política de Zapatero não foi apenas nefasta, mas completamente nula, não passando de retórica vazia. As políticas no campo habitacional são escandalosamente favoráveis aos grandes interesses imobiliários e financeiros. Não há tampouco políticas em favor do transporte público e sua adequação às novas necessidades metropolitanas. Sequer temos observado uma opção firme pelos setores criativos ou culturais, cuja condição ainda é hiper-precarizada. No terreno do trabalho, além de não existirem propostas substanciais e reais de diálogo, intelectuais, professores e pesquisadores são submetidos a chantagens antiéticas e inomináveis. E, para o restante dos trabalhadores (chain workers, informais, empregados no setor de serviços, etc.) a Espanha nada mais é do que o reino selvagem da precariedade. A política segue laboral nas mãos dos dirigentes da indústria e dos grandes conglomerados financeiros, a quem o governo Zapatero continua ouvindo antes de propor suas reformas trabalhistas. Zapatero é, em síntese, produto de um desgaste acumulado desde Aznar. Ganhou as eleições não por si mesmo, por trazer alguma esperança de mais democracia, mas pelos nefastos acontecimentos dos últimos anos na Espanha e, notadamente, por uma vontade de cidadania que se expressou nos protestos de março. Zapatero tem, de fato, algo de inovador, no sentido de que soube liberar alguns desejos da sociedade espanhola; e aí reside, em todo caso, sua maior virtude. Mas ele tem muito de repetitivo, de continuísmo, com políticas sociais e econômicas ancoradas em um modelo de desenvolvimento extremamente deficitário como o espanhol.

Desenho de Bic, de Pedro Varela, 2005.


governança e movimentos (parte II) Tradução Leonora Corsini

Tese 6. Zapatero, portanto, não encerra o conflito, apenas libera um novo espaço que deixa emergir os movimentos. Zapatero liberou, sem dúvida alguma, os legados da Espanha conservadora e aposta também nos interesses do projeto europeu e global. Isto representa um avanço, resultado de uma longa e decidida fase de movimento que frutificou. É por isso que, desde 2004, os pontos de ruptura, as clivagens, são diferentes, apontam para outro plano, o dos direitos econômicos e sociais, o grande déficit espanhol. Aí surgem as novas formações políticas, que vêm combater em um novo terreno: destaque-se que o primeiro e mais frutífero sinal tenha sido – e ainda seja – o potente movimento por moradia deflagrado nas grandes cidades espanholas (Barcelona, Madri, Sevilha...). Trata-se de um movimento que, a partir do contágio das mobilizações do março francês de 2006, é apropriado e se junta ao legado dos movimentos anteriores, utilizando seus repertórios, seus códigos e adequandoos à nova realidade. É um movimento que faz uso intensivo das ferramentas comunicacionais, que fala uma linguagem clara, não ideológica, e que coloca em jogo novas gerações que são incorporadas, a partir da cooperação, na ocupação das ruas. Começam a surgir verdadeiras manifestações, que se transformam em carnavais de rua cada vez mais numerosos. Sem um programa político, isto é, sem definição operacional dos circuitos de reivindicação - um tipo de política “desde baixo” – colocaram em xeque as administrações políticas e os grandes partidos que, de olho das próximas eleições municipais prometem, dia sim, dia também, novas políticas públicas habitacionais para aumentar o acesso à moradia. Novidades também aparecem no campo do movimento dos migrantes. Por um lado, iniciativas inter-metropolitanas locais coordenando precários e migrantes, como as ações desenvolvidas em Sevilha, Málaga, Barcelona, Terrassa ou Madri, que impulsionaram mobilizações concretas, demandas especí-

ficas, dando origem a um núcleo de experimentações que mistura desde denúncias de hiper-exploração à criação de espaços comuns de sociabilidade tais como centros sociais, oficinas de direitos sociais e projetos pioneiros de comunicação como Indymedia Estrecho ou o jornal Masala em Barcelona. Por outro lado, mobilizações comuns nas redes de migrantes, como a denúncia e a resistência aos Centros de Internamento para Estrangeiros, ou a atual campanha pelo direito de voto dos migrantes. Surgem também lutas e mobilizações setorializadas em relação à extrema precarização e desvalorização dos trabalhos de pesquisa, culturais ou no campo das artes, assim como a privatização do espaço público. A mobilização dos bolsistas em toda a Espanha em prol da valorização do trabalho que desenvolvem, ou as mobilizações de bairro em defesa dos espaços públicos e comuns de Barcelona, são bons exemplos. No entanto, apesar destas mobilizações possuírem uma certa intensidade, ainda são fracamente comunicadas, o que repercute de maneira negativa na sua produtividade. Vamos ver como isto se resolve. Todos esses movimentos, lutas e mobilizações interpelam diretamente Zapatero, sua gestão nula e seu imobilismo no plano econômico e social. Assinalam adequadamente quais são os desafios, os novos terrenos de conflito que hoje se desenvolvem na Espanha. Em ambos os casos, a política do governo é descentralizada, a externalizada, uma espécie de subcontratação com contra-prestações políticas. A terceira parte do artigo será publicada no próximo número da revista Global.


PENSANDO O MUNDO DESDE BOLÍVIA

Rodolfo Garcia Um regime, por ser de esquerda ou revolucionário, tem o direito de restringir a liberdade de expressão?

Antonio Negri, Giuseppe Cocco,

Antonio Negri A liberdade de expressão é um dos primeiros direitos. O direito à expressão e o direito à vida não têm grande diferença entre si. Porém, cada vez mais, o direito à livre expressão não é somente um conteúdo de contrato político, mas também uma condição de produção biopolítica da nova organização dos corpos e dos espíritos. Definitivamente, é algo sagrado. Se tivéssemos que definir em que a pósmodernidade vai além do moderno, deveríamos dizer que é justamente na liberdade de expressão. A liberdade de expressão está no fundamento da vida, da relação política. A possibilidade de controlar este direito não tem de ser dada ao governo ou ao capital. Temos de encontrar uma forma de defender esta liberdade. Nos países democráticos mais desenvolvidos, ainda que não se tenha uma democracia subversiva ou revolucionária, como na França, existe um controle democrático – uma espécie de comissão – sobre a possibilidade do monopólio da informação, por exemplo. Existem outras situações em que este tipo de controle também faz falta. Evidentemente, um dos problemas fundamentais para a construção de uma nova ordem democrática é propor uma reforma que garanta os direitos de expressão e informação no que diz respeito à situação econômica e política dos meios de comunicação. Esta preocupação é cada vez maior, pois os meios de comunicação são um elemento de grande influência na opinião pública, do ponto de vista ontológico. Não sou Habermas para explicar isto, mas todo mundo sabe do que estou falando. Todos os poderes que influenciam na formação da opinião pública devem ser controlados de forma democrática. Não é possível, por exemplo, que Lula faça sua campanha eleitoral contra toda, toda a imprensa organizada do Brasil. Isto é um absurdo! Um absurdo que provoca em nós um profundo repúdio moral.

Judith Revel e Michael Hardt teorizam o Império e a multidão a partir da experiência de governo boliviana no seminário “Pensando o mundo a partir da Bolívia”, realizado em agosto em La Paz.

Tradução Geo Britto

Roberto Barbery Seu pensamento é “historicista”, vocês consideram que o ser humano é determinado pela história e não existe espaço para as liberdades individuais? Antonio Negri A questão do historicismo é muito interessante.

Foto de André Santangelo.

Roberto Barbery A miséria do historicismo, diria Karl Popper.


Antonio Negri Você sabe que é possível corrigir muitos dos erros que cometemos mantendo-nos sempre no campo popperniano (risos). Nós, continuamos com a força do pensamento marxista, estamos no interior desta força, mas para quebrá-la. Se conseguimos romper ou não esta questão historicista, tem de se levar em conta que, quando escrevemos Império, o pensador da moda era Fukuyama, que apresentava sua tese para atacar nossa concepção de história de um ponto de vista totalmente reacionário. Nós o combatemos e, afinal, vencemos. A primeira tese em que trabalhei foi a do historicismo alemão, que prognosticava o fim da modernidade. O próprio Heidegger lutava desesperadamente para se livrar da concepção da necessidade histórica em que estamos mergulhados. Tenho a impressão de ter lutado toda a minha vida contra isto. Mas também busco uma subjetividade que não seja pessoal, mas determinada de uma maneira singular, existencial, subjetivamente ativa, integrando os indivíduos e as forças históricas. A necessidade desta busca surgiu nos anos 50 e 60, com o fim dos soviets. Então estabeleceu-se a necessidade de reconstruir a capacidade revolucionária, mas agora desde baixo. Encontrando uma perspectiva de esperança, uma perspectiva comum, construtiva de saber e de ação. Judith Revel É claro que existe um certo pensamento francês que estabelece a idéia de que não existe um “fora” da história. Tudo seria histórico, tudo estaria social e politicamente determinado. Esta idéia tem sido atacada por setores das ciências humanas, a filosofia e a política, que a responsabilizam pelo relativismo, pela perda de valores e, finalmente, pela descrença na possibilidade de se construir um projeto político, já que tudo estaria determinado de antemão, sem liberdade. A idéia de Foucault sobre a mudança, lida de uma perspectiva marxista, é que no interior deste determinismo histórico existe espaço para liberdade e resistência. Uma coisa é dizer que os seres humanos não existem fora da história; e outra é dizer que os seres humanos podem produzir e produzir-se dentro desta determinação. O que é interessante é que a relação entre restrição e liberdade, a partir de finais dos anos 70, muda completamente nas ciências humanas e também nas ciências teóricas, como a física por exemplo. Não se pensa mais a liberdade contra o determinismo, mas sim a liberdade dentro do determinismo, e o fenômeno da determinação dentro da liberdade. Não existe nada mais historicamente determinado que o individuo. Segundo a hipótese de Foucault, o processo de individuação surge da necessidade cristã de criar uma responsabilidade pessoal ligada à idéia de pecado. O indivíduo, tal como o concebemos, não existe nos gregos. Não sei se existe nas culturas indígenas; esta é uma genealogia ocidental. É o que Derrida chamava de “metafísica branca”, contra a qual lutamos. Fernando Molina Sua concepção de “Império” pode incluir tudo e voltar a ser um sinônimo de “modernidade”, de “capitalismo”. Neste caso, sua afirmação de que é o Império que produz a vida das pessoas (a biopolítica), que está na base de sua denúncia contra ele, equivale a afirmar que a modernidade – a sociedade inclusive – produz formas de vida, o que é óbvio e generalizante, perdendo toda a sua força política. Michael Hardt Tínhamos a impressão, no inicio dos anos 90, quando escrevemos Império, que o poder mundial estava mudando. Hoje, não é mais suficiente pensar no poder mundial a partir do imperialismo ianque. Na América Latina em particular, este foi o modo de pensar a dominação nacional e global. Nossa idéia foi de que os Estados Unidos já não têm o poder de controlar tudo, surge uma nova forma de poder que é mais ampla. Certamente que os Estados nacionais contam; entretanto, existem outras redes, outras formas de poder que são também importantes, e nenhuma é capaz de ocupar o centro da

dominação global, de assegurar que os pobres continuem sendo pobres e que os ricos continuem ricos. Este foi o sentido do conceito “Império”. Pode ser que tenhamos nos equivocado. Contudo, creio que está claro que temos de pensar esta nova forma que não é mais o capitalismo nacional, nem o capitalismo dos Estados Unidos. Talvez o conceito de “Império” seja pós-moderno, mas mantenho minha convicção nele. Por exemplo, quando falamos da luta pela água em Cochabamba em 2000, quem foi o inimigo? O Estado boliviano, talvez; o capital estrangeiro, decerto; o Banco Mundial, claro. Então, não houve uma forma central de poder contra a qual lutar. O que tivemos foi uma rede de poderes que colaboravam para determinar, por exemplo, o preço da água. Então a pergunta é a seguinte: nesta situação, é verdade que estamos num mundo no qual o poder é descentralizado, mas ele é talvez mais forte do que nunca. Como lutar contra ele? Porque antes era bastante fácil, pelo menos conceitualmente, traçar uma luta contra a Casa Branca. Então, quando você diz que o conceito “perde força política”, eu acredito que não; acho que ele aponta uma mudança nas formas de lutar. Nos últimos anos, os movimentos estão experimentando formas adequadas de enfrentar esta nova situação. A forma adequada de democratizar o mundo está sendo inventada por eles. A Bolívia se encontra em um ponto muito alto desta luta mundial, e por isto nos interessa tanto. Aqui, as formas comunitárias de luta, por sua força e agora com sua relação com o governo, são algo muito novo. Parece-me muito interessante o desenvolvimento do conceito de multidão, que para nós é importante, mas também para um grupo de intelectuais bolivianos, “Comuna”. Me fascina que no pensamento local, este interessante sociólogo boliviano, René Zavaleta, tenha desenvolvido esse conceito de maneira completamente independente em relação a nós, forjado a partir do trabalho de Spinoza e dos ciclos de lutas na França, Estados Unidos etc. São dois caminhos paralelos, que têm muito que dialogar um com o outro. Isto mostra que existem novas formas de pensar a situação, que se expressam de maneira singular, mas que não pertencem somente à questão local, e se comunicam entre si. Claudia Benavente Para mim interessa explorar esta relação (ou talvez contradição) entre o particular, as lutas locais, o geral e os processos mundiais. Qual é, por exemplo, a especificidade da Bolívia em relação aos outros processos latino-americanos? Giuseppe Cocco O que interessa na Bolívia não é que ela esteja atravessando uma renovação da dinâmica social, de pensamento político a partir do fato de ter mais indígenas que outros países e outras regiões do mundo. Eu acredito que existe este elemento específico, mas também um mais geral, que é determinado pelo deslocamento paradigmático dos processos de mobilização produtiva. Temos duas dinâmicas diferentes, que se sobrepõem. Temos a mobilização das dinâmicas da vida, culturais, comunitárias, por um lado; e temos uma valorização da produção das formas de vida. Esta segunda dinâmica ocupa um outro espaço, em relação às dinâmicas da diversidade, desde os indígenas da Bolívia até os negros das grandes cidades brasileiras, passando pelos franceses de origem estrangeira na periferia parisiense. Não é um deslocamento nacional o que é mais importante. A importância da diversidade é que ela dá origem a um terreno de luta. Também creio que é necessário estabelecer com clareza a relação entre as lutas bolivianas por água, gás etc., e esta segunda dimensão, da produção. Os recursos naturais são importantes para as comunidades enquanto recursos de produção das formas de vida. As comunidades são contra a tentativa do neoliberalismo de organizar as formas de vida dentro de um mercado fragmentado. De modo que, dentro deste deslocamento geral, não tem nenhuma contradição entre a especificidade local e a dinâmica geral. Conexões Globais 21 GLOBAL


O IMPASSE BOLIVIANO Foi, sem dúvida, uma demonstração de força. Em 28 de agosto, um locaute (greve patronal) paralisou seis dos nove departamentos da Bolívia – os mais ricos, mais a leste e mais dominados pela oligarquia de origem hispânica. A maior parte das empresas fechou as portas. Os funcionários foram exortados a permanecer em casa. A paralisação dos transportes públicos contribuiu para o esvaziamento das cidades. Quem resistiu sofreu ameaças ou agressões. Em pleno centro de Santa Cruz de la Sierra, uma das capitais paradas, o mercado indígena de Abasto foi invadido por jovens brancos armados de porretes. Destruíram vitrines, prateleiras e objetos de seus ocupantes. Os conflitos foram uma nova tentativa de inviabilizar a Assembléia Constituinte, reunida em Sucre. Um ano depois de instalada, ela aproxima-se de sua fase decisiva, na qual serão votadas (e, em seguida, submetidas a dois referendos populares) propostas que ampliam os direitos sociais e alteram a composição dos poderes, a distribuição das riquezas, a relação entre as etnias. As maiorias indígenas continuam mobilizadas e a popularidade do presidente Evo Morales, alta – embora em leve declínio. O sucesso do locaute revela, porém, que a oposição não está batida. Desde 22 de agosto, uma escalada de tensões mantém a Constituinte paralisada. O velho espantalho da secessão do país voltou a ser erguido. A retomada das iniciativas populares, e de sua inventividade política, parecem cruciais para tirar o processo de mudanças do impasse ao qual foi conduzido. A primeira resposta dos que estão a favor das mudanças foi uma manifestação nacional em Sucre, dia 10 de setembro, reunindo milhares de pessoas. Uma manobra astuta da oposição desencadeou o atual embaraço. Em meados de agosto, o maior partido conservador, o Podemos (Poder Democrático e Social), propôs abruptamente, à Assembléia, o deslocamento geográfico das sedes do poderes Executivo e Legislativo. Hoje em La Paz, elas seriam transferidas para Sucre, que é a capital oficial, mas abriga apenas o Judiciário. O sentido da proposição é evidente. La Paz e a vizinha El Alto – um subúrbio-dormitório situado a 4,1 mil metros de altitude – são símbolos da Bolívia indígena e cenários de suas mobilizações. Esvaziar essas cidades significaria desprezar um processo de luta por direitos que tem marcado a vida do país nos últimos dez anos e que levou, em 2006, à posse do primeiro governante não-branco em cinco séculos. GLOBAL 22 Caderno Le Monde Diplomatique

Majoritários na Constituinte, os partidos que expressam o avanço indígena podem derrotar a proposta sem dificuldades. Mas não se deram ao trabalho de fazê-lo. Alegaram que o mandato da Assembléia não inclui o debate sobre a capital. Foi o pretexto para a oposição submeter o país a uma onda de tensões. Em 20 de agosto, os chamados Comitês Cívicos, ligados à elite empresarial, organizaram greves de fome individuais – recorrendo a uma forma de luta usada contra governos militares, nos anos 70, pelas mulheres indígenas. Dois dias depois, integrantes dos mesmos comitês e jovens de direita tentaram queimar a casa que supunham pertencer a um integrante do partido governista MAS (Movimento Ao Socialismo), que apóia as reivindicações indígenas. Os tumultos obrigaram Silvia Lazarte, a presidente da Constituinte, a suspender os trabalhos. Novas tentativas de reiniciálos continuaram sendo feitas, sem sucesso, até 6 de setembro, quando bandos de direita agrediram delegados e tentaram invadir o edifício em que se reúnem. Em resposta a eles, Silvia anunciou, um dia depois, a suspensão, por 30 dias, dos trabalhos da assembléia.


COMO OS CONSERVADORES PARALISAM ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE. QUE PROPOSTAS ESTÃO EM DEBATE E QUAIS AS VISÕES DE MUNDO POR TRÁS DELAS. POR QUE A DEMOCRACIA DIRETA PODE SER PARTE DA SAÍDA. Antonio Martins O QUE ESTÁ EM JOGO NA CONSTITUINTE Em disputa, na Bolívia, dois projetos para o país e duas visões de mundo Desde seu início, em 6 de agosto de 2006, os trabalhos da Constituinte boliviana têm se caracterizado por efervescência e disputa. As 21 comissões temáticas formadas pelos delegados examinaram mais de 7 mil proposições, boa parte das quais provenientes de audiências públicas, realizadas todas as semanas. Este impulso de participação, porém, não foi capaz de levar a assembléia a decisões. Durante os oito primeiros meses de sessões, o principal tema debatido nas plenárias foi o quorum necessário para a aprovação de artigos. Minoritários na sociedade e na Constituinte, os conservadores “exigiram” maioria de dois terços e ameaçaram constantemente não reconhecer decisões aprovadas de outra maneira. Apenas nas últimas semanas teve início algum trabalho de sistematização. As 7 mil propostas foram consolidadas em 767 artigos. Há consenso em torno de 250. Para outros 517, há sempre mais de uma redação em debate. As polêmicas concentram-se em cinco grandes temas:

OKU ABO ESPAÇO SAGRADO Educação ambiental para religiões afro-brasileiras - Oku Abo significa ‘bem-vindo’, termo do povo africano de língua iorubá. O terreiro de candomblé Ilê Omiojuaro tem, com isso, a intenção de saudar o resgaste da consciência ancestral das religiões afro-brasileiras por meio da educação ambiental dirigida a essas tradições religiosas.

Autonomias: O Estado unitário imposto pelos colonizadoras oprime, há 500 anos, não apenas a língua e cultura indígenas, mas também as formas originárias de organização em comunidades, produção e distribuição de riquezas, relação com a natureza, administração da justiça. O tema das autonomias, proposto há décadas, tornou-se central na Constituinte. Os movimentos populares reivindicam quatro níveis de autonomia: departamental, regional, municipal e indígena. Pretendem articulá-las, contudo, sob o guarda-chuvas das leis nacionais. Curiosamente, autonomia também passou a ser uma palavra-chave para os conservadores, que a empregam com sentido muito diverso. Desde os primeiros sinais do ascenso popular – e, mais ainda, após a eleição de Morales – eles sonham em reforçar o poder estatal dos departamentos onde sua influência é maior, como forma de se contraporem à Bolívia indígena. A escalada de tensões em Sucre sugere que podem estar dispostos a jogar a carta da separação do país. Visões de país e de mundo: Uma das comissões da Constituinte é a de Visão Nacional. Encarregada de redigir os artigos sobre o modelo geral de Estado e economia, ela também está dividida. A tradição indígena propõe um “Estado unitário”, porém “plurinacional e comunitário”, voltado para “o bem viver” (um conceito aimara) e com ênfase na garantia inclusão dos pobres e marginalizados. O Podemos e outros grupos de oposição querem manter a estrutura do Estado, assegurando apenas o reforço de seu caráter federalista. Diversidade: Na comissão de Direitos e Garantias, a reivindicação indígena é estabelecer o reino da diversidade. Sugere-se proibir discriminações de gênero, idade, cultura, nacionalidade, língua, orientação sexual, religião, opção política ou filosófica, condição econômica e social, desabilitação ou gravidez. Propõe-se cláusula constitucional assegurando o direito à água e proibindo a privatização dos serviços de abastecimento. Introduz-se o respeito à justiça comunitária, em paralelo à tradicional. Os partidos conservadores, em contrapartida, levantam, como bandeiras, a defesa da propriedade e a proibição constitucional do aborto (garantindo-se o “direito à vida desde a concepção”). Condenam a justiça indígena, afirmando que, por sua natureza não-escrita, ela tem caráter arbitrário. Poder estatal: Num país onde os indígenas são entre 55% e 60% da população, essa etnia deveria, segundo o MAS, eleger representantes próprios para o Parlamento. Ao invés de Câmara e Senado, como hoje, haveria uma única Assembléia, composta por 70 representantes nacionais, 27 departamentais (os atuais senadores) e 70 indígenas. Os conservadores insistem em duas câmaras. Vêem o Senado como um baluarte do poder oligárquico. Debate-se também a maioridade eleitoral: o MAS pretende reduzi-la de 18 para 16 anos. Reeleições: Confiante na popularidade de Evo Morales, o MAS quer estabelecer a possibilidade de um número indefinido de reeleições. A direita, em contrapartida, quer bloquear a possibilidade de concorrer até mesmo a um segundo mandato consecutivo.


O PODER AOS CIDADÃOS?

Empate entre as

A convocação de uma Constituinte para “refundar o país” foi um dos temas centrais da campanha de Evo Morales à presidência da Bolívia, em 2005. Ao contrário do que ocorreu em outros processos de mudança na América Latina (o Brasil é, talvez, o exemplo mais marcante), Evo tinha consciência de que não bastava “conquistar” o poder. Era preciso mudar o lógica da política tradicional, ou ela terminaria minando as forças da transformação.

forças institucionais da assembléia boliviana abre espaço para que a própria sociedade decida, em plebiscito, os sentidos da Constituição.

COMO REALIZAR SUA OFERENDA E REDUZIR O IMPACTO AMBIENTAL Dê sempre preferência a materiais biodegradáveis na prática do culto. Minimize o impacto causado na natureza. • Alguidares, louças, copos e garrafas quebram com facilidade e causam ferimentos em pessoas e animais. • Copos e garrafas podem ser substituídos por cabaças, cuias de côco ou bambu. • Para substituir os recipientes de louça ou barro, uma alternativa é o uso de folhas. • Bananeira, mamona ou morim, podem forrar o fundo dos alguidares e louças. • Após o ritual, deixe as folhas com as oferendas e recolha os recipientes. • Lembre-se de recolher todos os resíduos após o tempo mínimo de permanência.

GLOBAL 24 Conexões Globais

Nos primeiros meses, tudo caminhou bem e rapidamente. Empossado em 22 de janeiro de 2006, após vencer as eleições já no primeiro turno, o presidente teve amplo apoio quando convocou a Constituinte em março. As eleições ocorreram em 2 de julho, com ampla vitória dos partidos governistas – e sob o entusiasmo despertado, em 1º de maio daquele ano, pela nacionalização das jazidas de petróleo e gás. Das 255 cadeiras, o MAS, de Morales, conquistou, sozinho, 137 (53%). O conservador Podemos, segunda agremiação mais votada, obteve menos da metade (60). O mapa da assembléia é composto por mais doze grupos. Passadas a surpresa e a derrota inicial, as forças conservadoras rearticularam-se em torno de uma tática reveladora. Assumiram de forma clara a condição de oposicionistas. Procuraram jogar contra os partidários da mudança o fato de que, agora, esses, “possuíam” o poder de Estado. Apostaram que o tempo esgotaria seu impulso em favor das transformações. Viria então o desgaste. Num país que é o segundo mais pobre das Américas (à frente apenas do Haiti), que detém o 115º IDH do planeta e que onde expectativa de vida não ultrapassa os 65 anos, a demora em corresponder às expectativas de direitos acabaria enfraquecendo e dividindo os partidários das transformações sociais. O questionamento interminável sobre o quórum da assembléia é apenas parte dessa tática. Ele foi sempre acompanhado, na mídia, de ataques à Constituinte, pelo suposto atraso em seus trabalhos. A minoria de direita impede que as proposições apresentadas pela sociedade sejam aprovadas. Mas os jornais e a TV associam genericamente, ao órgão em que estão depositadas as esperanças de mudança, as imagens da ineficácia e incompetência. O tortuoso caminho da democracia: A Lei Convocatória que criou a Constituinte estabelecia, a princípio, período de um ano para que ela concluísse seus trabalhos. A hipótese estava calcada no otimismo dos primeiros dias de presidência indígena. Esgotado o prazo, no início de agosto deste ano, deu-se uma negociação. Os partidários da mudança tinham a seu favor a popularidade de Evo Morales (apoiado por 57% dos bolivianos — um índice 4 pontos inferior ao do mês anterior, mas semelhante ao percentual de votos obtido em 2005, ou à popularidade de Lula, no Brasil). Os conservadores escoravam-se na insatisfação crescente com a própria assembléia (criticada por 53% dos cidadãos, e defendida por 36%). Esse empate entre poderes institucionais gerou um acordo que estabelece, se cumprido, um processo exemplar de democracia. Concedeu-se à Constituinte mais quatro meses de sessões. Firmou-se o quórum de dois terços para as votações. Mas ficou definido que os pontos que os delegados não forem capazes de resolver pelo voto, até dezembro, serão transferidos à decisão popular.


A QUEM INTERESSA A VIOLÊNCIA

Permitir que as decisões finais sejam tomadas

Os acordos que renovaram a Constituinte boliviana foram fechados nos primeiros dias de agosto, às vésperas de esgotar-se o prazo inicial de um ano, dado para a conclusão dos trabalhos. Ao transferir à sociedade o direito de se pronunciar sobre os temas mais importantes da nova Constituição, o compromisso esvaziou a alegação de que a assembléia poderia instaurar a ditadura do MAS, o partido do governo. Em declarações à imprensa, o próprio presidente Evo Morales pareceu menos apressado que no início de seu mandato. “Não se pode refazer em apenas um ano o que foi desfeito em cinco séculos”, disse à imprensa, no mês passado.

pela sociedade é uma forma de realizar, na prática, o discurso que os poderosos sustentam

Pouco depois de estabelecido o compromisso de agosto, os líderes conservadores perceberam que uma democracia de verdade não atende a privilégios. Optaram, então, por seus próprios interesses. Só podem, porém – e aqui está uma grande conquista da Bolívia –, deslegitimar a Constituinte se fingirem que são fiéis a ela. A proposta de transferência da capital é, claramente, uma provocação. Jamais havia sido levantada antes. Não há uma idéia nesse sentido, entre as 7 mil proposições populares apresentadas nas audiências públicas da assembléia.

apenas como farsa. É provável que, quando se recusaram a levar a proposta em consideração, as bancadas em favor de uma nova Bolívia tenham se deixado levar pela sensação de que estava começando mais uma manobra protelatória. Tinham razão. Mas, numa conjuntura tão complexa (e promissora…) como a que seu país está vivendo, talvez seja preciso, às vezes, relevar o que os privilegiados planejam por trás do discurso e comprometê-los por suas próprias palavras. Esvaziar qualquer pretexto para a violência (que cala o debate de idéias) e criar todas as condições para que as decisões finais sejam tomadas pela sociedade pode ser uma boa maneira de neutralizar a retórica dos poderosos, ao realizar, na prática, o discurso que eles sustentam como farsa.

Oku Abo Espaço Sagrado Contato: Aderbalashogun@yahoo.com.br Caderno Le Monde Diplomatique 25 GLOBAL


Enade prova que Ações Afirmativas são eficazes Alexandre do Nascimento Sem, desenho de Neilton, da série Diário,1999.

Governo Federal ignora desempenho positivo dos bolsistas do Prouni e não usa o resultado do exame para fortalecer o discurso pró-cotas nas universidades federais Em abril o Ministério da Educação e veículos de imprensa noticiaram: “Avaliação mostra bom desempenho de alunos do Prouni” (MEC, 10/04/07); “Estudantes do Prouni têm melhor desempenho no Enade” (O Globo, 11/04/07). De acordo com o relatório de notas do Enade 2006, aplicado em 14 cursos (Administração, Biblioteconomia, Biomedicina, Ciências Contábeis, Ciências Econômicas, Comunicação Social, Design, Direito, Normal Superior, Música, Psicologia, Secretariado Executivo, Teatro e Turismo), tanto nas médias de formação geral, com componentes específicos, quanto na média geral, os bolsistas do Programa Universidade para Todos (Prouni) obtiveram notas superiores aos outros estudantes. Mais interessante ainda é que, em 13 dos 14 cursos avaliados, entre os estudantes do programa federal, os que têm bolsa integral (os mais pobres) tiveram melhores notas do que os que têm bolsa parcial. Vale lembrar que o Prouni, programa do MEC que é um dos principais instrumentos de ação afirmativa do Governo, distribui bolsas integrais e parciais em instituições privadas credenciadas a estudantes de baixa renda (até 3 salários mínimos per capita); a estudantes oriundos de escolas públicas ou bolsistas de escolas particulares; e estabelece cotas para negros, indígenas e deficientes físicos. Já o Enade, Exame Nacional de Desempenho de Estudantes, é um importante instrumento de avaliação do ensino superior. GLOBAL 26 Universidade Nômade


O que os resultados do Enade revelam? Dentre as possíveis respostas, podemos dizer que políticas de ação afirmativa destinadas a pessoas pobres e/ou grupos sociais historicamente discriminados, são importantes medidas de democratização dos direitos. Os resultados do exame também mostram que os discursos contrários às ações afirmativas são apenas discursos sem base empírica. Como se pode constatar, os resultados do Enade não são princípios abstratos, mas dados concretos que mostram que, na realidade brasileira, as ações afirmativas constituem parte importante de um processo de universalização de direitos.

sociedade em torno do plano. A participação da sociedade foi também enfatizada pelo próprio presidente Lula na cerimônia de apresentação do PDE.

Políticas de ação afirmativa destinadas a pessoas pobres e/ou de grupos sociais historicamente discriminados são importantes medidas de democratização dos direitos.

Os resultados positivos do desempenho dos bolsistas do Prouni fortalecem o ponto de vista dos movimentos sociais populares de que a constituição da democracia começa por medidas de combate às desigualdades sociais, exatamente o que propõe o conceito de Ação Afirmativa. Portanto, além do Prouni, cabe ao Governo, através do MEC em especial, implementar outras medidas de ação afirmativa (como cotas nas universidades públicas) para avançarmos no processo de democratização, condição para a aceleração do crescimento com distribuição de renda. Programa de Desenvolvimento da Educação No início deste ano foi lançado o Programa de Desenvolvimento da Educação (PDE). Foram anunciadas medidas como: piso salarial para professores; elaboração da Prova Brasil para crianças de seis a oito anos, para avaliar a alfabetização; realização de Olimpíada de Língua Portuguesa (a exemplo da já existente Olimpíada de Matemática); investimento na formação continuada de professores; universalização dos laboratórios de informática, criação do ProInfo rural; eletrificação das escolas públicas; produção de conteúdo digital multimídia; estabelecimento do programa Caminho da Escola para melhoria do transporte escolar; intervenções na educação no campo; mudanças na alfabetização de adultos; integração de ensino médio e ensino profissional via educação a distância; criação dos Institutos Federais de Educação Profissional, Científica e Tecnológica para suprir necessidades regionais de professores e profissionais para os chamados arranjos produtivos locais. A meta do PDE é a melhoria da qualidade no ensino público brasileiro em seus vários níveis, e o ministro da Educação destaca a importância de mobilizar a

Entretanto, as medidas do PDE foram definidas e continuam sendo definidas sem uma participação efetiva da sociedade, especialmente dos movimentos sociais, sem consulta a outros setores do ministério, inclusive às várias comissões técnicas compostas por membros do Governo e organizações de vários segmentos e demandas sociais. Talvez por isso, algumas medidas consideradas ainda não tenham aparecido naquilo que o MEC divulga. Ações afirmativas para aceleração da elevação da escolaridade da população negra e promoção de igualdade racial e da diversidade no ensino superior são componentes fundamentais de uma democratização de direitos, como demonstram os exitosos resultados das experiências de acesso e permanência no ensino superior para estudantes negros, indígenas, oriundos de escolas públicas e de famílias pobres. Os resultados do Enade não deixam dúvida e faço um destaque: o curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense é o curso da UERJ que possui os alunos de menor renda familiar, o maior número proporcional de negros, as menores notas de vestibular e, ao mesmo tempo, a melhor avaliação no Enade entre os cursos de Pedagogia do Rio de Janeiro. Na lógica daqueles que o reitor da UNB chama de “intelectuais da exclusão”, os alunos desse curso de Pedagogia deveriam ter um baixo desempenho. Discurso x prática Além disso, notícias e fatos parecem sugerir um abandono, por parte do Governo Federal, do projeto de lei que estabelece cotas nas universidades federais. No discurso à Marcha dos Prefeitos,

por exemplo, o presidente Lula declarou que o executivo pode “dar ordem” à sua base aliada para aprovação de projetos de interesse do Governo. O projeto de Lei que cria cotas nas universidades federais, modificado pelo próprio governo para contemplar negros e indígenas, encontra-se arquivado na Câmara dos Deputados, mesmo depois de aprovado por unanimidade em todas as comissões pelas quais passou. Recentemente, um pedido de desarquivamento feito pela deputada Nice Lobão foi indeferido pela mesa diretora da Câmara, presidida pelo PT. Apesar de o Governo possuir uma Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR) e dos discursos favoráveis do ministro da Educação e do próprio Presidente da República, o Governo não demonstra disposição e interesse em mobilizar esforços políticos para atender a uma proposta histórica do movimento negro e de comprovado sucesso nas universidades onde as cotas já são adotadas. Será que Governo e Congresso temem os empresários e intelectuais da exclusão que atacam diariamente as ações afirmativas através dos seus veículos de mídia? É este o motivo de o PDE não contemplar políticas de redução das desigualdades raciais? Será que o Plano de Promoção da Igualdade Racial, os compromissos internacionais assinados e o próprio programa de Governo do presidente Lula são, como a lei do fim do tráfico de africanos, coisas “para inglês ver”? Se essas questões são procedentes, penso que os movimentos sociais precisam de mais mobilização para que o Congresso Nacional faça o que a maioria da população quer que seja feito em relação ao projeto de cotas: a sua aprovação. Um Congresso de Negros e Negras do Brasil está sendo construído pelo Movimento Negro. É fundamental que este processo, além de constituição de um projeto político do povo negro para o Brasil, seja também fator de mobilização em torno de medidas objetivas de radicalização democrática, ou seja, de ações afirmativas de promoção da igualdade e diversidade racial nas instituições. Devem estar ainda incluídos debates sobre reforma curricular e formação de professores para o ensino de história e cultura afro-brasileira e educação das relações raciais (Lei 10639/2003), sobre reforma universitária e a proposição da “Universidade Nova”, sobre a necessária abertura à multiplicidade dos projetos de TV digital e TV Pública, entre outras. Universidade Nômade 27 GLOBAL


São tempos obscenos. Telejornais e políticos exploram cenas de comiseração humana, em busca de ibope. Sem qualquer pudor, fazem das comoções um pretexto para o sensacionalismo, o oportunismo (e o golpismo) político. Nada é mais obsceno do que imagens veiculando sentimentos íntimos em situações chocantes, a serviço de interesses dos outros. A obscenidade na sociedade brasileira não é uma exceção, mas a regra. Está aí, diante do nariz, nas ruas, no campo, todos os dias. O maior adversário da democracia brasileira não são apenas episódios extraordinários de violência, mas, principalmente, uma guerra quotidiana e anônima que atravessa e constitui as instituições, as leis, a linguagem e os corpos. Violência estruturante inscrita numa história de exploração, desigualdade e racismo.

O OBSCENO

NÚMEROS OBSCENOS Neste contexto, os números do ensino superior brasileiro são obscenos. No Brasil, somente 10% obtêm acesso ao ensino superior. Na vizinha Argentina, mais de 30%. Na Europa, a inclusão ultrapassa os 60%. Do um décimo brasileiro, 8% vai para a faculdade particular e 2% para a estatal. Dentre os poucos que ingressam, 40% evadem a formação universitária. Logo, risíveis 6% dos brasileiros chegam lá, no diploma. Se o ingresso da classe-média já é difícil, que dizer dos pobres e/ou negros que são a imensa maioria do país. Nos cursos mais disputados, especialmente nas estatais, a composição social é flagrantemente elitizada e branca. Em instituições públicas sem política de quotas, levantamento do MEC demonstrou que predominam os alunos de escolas particulares, brancos, vindos da camada dos 5% mais ricos do país. A subversão do óbvio: o estado força o pobre e negro a pagar a mensalidade do rico e branco, que, boa parte, não quer saber do pobre e negro – muito menos lado a lado, na sala de aula.

Bruno Cava

DE NOSSA UNIVERSIDADE GLOBAL 28 Universidade Nômade


PROPOR UMA UNIVERSIDADE NOVA

NEOLIBERAIS E ESQUERDA ORTODOXA JUNTOS

É preciso propor. Transformar a realidade. Democratizar o país com propostas afirmativas e concretas, construídas com conteúdos históricos, calcadas em projetos materiais, sólidos. A democratização da produção passa, obrigatoriamente, pelos espaços em que se constitui, desenvolve e é reproduzida. Dentre eles, a universidade – local de formulação e difusão de discursos e práticas, de preenchimento dos postos-chave dos quadros sociais e políticos.

O curioso é que todas as políticas de democratização do ensino superior – quotas sociais e raciais, transferência de recursos condicionada à ampliação das vagas (Reuni), redução da evasão com políticas reais de incentivo, bolsas de estudo para os mais pobres (Prouni) etc. – vêm sofrendo cerrada oposição por parte do bloco neoliberal, do qual supostamente fariam parte. Esquecem que o projeto neoliberal julga negativamente as reformas, considerando-as, em síntese, contra a “qualidade do ensino” e a “eficiência do estado”.

Contudo, logo que chegamos ao ensino superior, somos bombardeados por um discurso maniqueísta. Uma propaganda de alguns veteranos e professores que se dizem, e até se parecem, doutores na verdade ideológica e militância política. Segundo eles, como num desenho animado, numa fábula, existe uma luta do Bem contra o Mal, diante da qual devemos imediatamente nos posicionar. Convidam-nos a aderir a um grupo organizado que quer “defender” a universidade, contra os inimigos que pretenderiam destruí-la: “Você entrou, então é um dos nossos. Querem entregar a universidade para os outros, vendê-la, privatizá-la, desintegrá-la. A faculdade nos pertence. Vamos barrar as reformas neoliberais e o FMI!”. Como em toda pregação simplória, vale a pena desconfiar. De fato, há uma campanha privatista. Encabeçada pelo fundamentalismo neoliberal, pela grande imprensa, acusa a universidade estatal de ser um elefante branco que, ineficiente e incompetente, alojaria professores e funcionários fantasmas, projetos custosos e inúteis, quando deveria mesmo era limitarse a inserir profissionais no mercado. Isto é, educá-los tecnicamente como operadores eficientes das normas sociais e valores vigentes, a serviço do status quo.

Quando o bloco neoliberal fala em “qualidade de ensino”, leiase “inserção no mercado”. Adora vestibulares dificílimos, ultraconcorridos, porque assim eles se assemelham cada vez mais aos esquizofrênicos processos de seleção das multinacionais. Quando dizem “mérito”, leia-se “elitização”: universidade para poucos, na qual o pobre (rectius: 88,5% do Brasil) apenas mui excepcionalmente entra. Porém, o mérito, nós só vamos ver depois que o sujeito se formar e aplicar o que aprendeu. Que mérito tem um super-aluno de economia da FGV ou USP, currículo recheado de MBAs, mas que, uma vez graduado, converte-se num executivo arrivista de uma multinacional qualquer? Ou, em vício simétrico, que mérito tem um excelente acadêmico que se enclausura na torre de marfim da faculdade pública, usando-a comodamente como ponte para acessar as cobiçadas verbas da Capes ou da Faperj? Do outro lado do bloco neoliberal – de novo a fábula – encontramos os tais paladinos da universidade pública que pedem a nossa adesão. Só que, peculiar ironia, o “outro lado” está rigorosamente aliado ao bloco neoliberal – uma aliança pra-lá de reveladora – quando se trata das mudanças na universidade brasileira. Como isso?

DIREITA NEOLIBERAL E ESQUERDA REACIONÁRIA SE UNEM AO DEFENDER QUE A UNIVERSIDADE FIQUE ONDE ESTÁ. PARA O PRIMEIRO GRUPO, A UNIVERSIDADE NÃO SE PREOCUPA COM O MERCADO. PARA O SEGUNDO, O MODELO ATUAL É MELHOR, MESMO SENDO EXCLUDENTE E ELITISTA. Entretanto, a fábula do bem contra o mal coloca nesse mesmo pacote – sem um mínimo de compromisso com a materialidade das lutas – as propostas de transformação da universidade brasileira, já em curso ou planejadas. Espertamente, num reducionismo conveniente, forja uma identidade entre o projeto neoliberal de privatização e o projeto de democratização expressado nas reformas.

PARA ALÉM DO MANIQUEÍSMO Ora, para os maniqueístas, o problema da universidade pública não é o fato de ser excludente, elitizada e racista, mas a falta de autonomia e “verbas”. Também mantêm preconceitos irredutíveis contra as instituições particulares, desprezando que quatro entre cinco alunos universitários nelas estudam. Então é caso de perguntar. Autonomia pra quê? Para que não mude nada, ou seja, para que a universidade continue excludente, elitizada e racista? Limitada a míseros 10% da sociedade brasileira? Verbas pra quê? Para não ampliar ou re-estruturar a faculdade pública, como propõe o projeto democratizante, dobrando ou triplicando as vagas, mas para engordar os próprios recursos e salários? De quem? Adivinhem...

"Em Copacabana você não precisa do mundo", de Edson Barrus.

O reacionarismo contra as políticas democráticas no ensino superior é obsceno, pois viola os direitos dos muitos sem-voz e sem-universidade que constituem a juventude brasileira. A tarefa de nossa geração ainda é de continuar se mobilizando, lutando, ocupando, para exigir, nos termos mais democráticos, a transformação inadiável da universidade brasileira. Universidade Nômade 29 GLOBAL


Direita e esquerda têm posições parecidas quando se trata de violência: ambas são conservadoras e aliamse contra os pobres NAJUP/UERJ

A política de exploração e extermínio de pobres e negros repercute diariamente nas mil notícias amargas do noticiário, definindo o tempo em que vivemos. Vivemos em um estado de exceção que virou a regra. A sociedade brasileira – desigual, elitista e racista – é atravessada de fora a fora pela violência: na cidade e no campo, no interior e na capital, nos morros e no asfalto. Brutalidade historicamente construída sobre a exclusão e a discriminação social-racial, a violência tanto se intensificou que se tornou banalizada. GLOBAL 30 Universidade Nômade

Neste contexto, dois discursos inundaram os meios de comunicação. De um lado, a leitura previsível da grande imprensa e de parte da classe média, que coloca a questão em termos de uma luta maniqueísta do Bem contra o Mal. O problema seria a impunidade. Seria a falta de aplicação rigorosa das leis. Contra bandido, não se poderia transigir. Exortando por mais punição, pregam o endurecimento policial, judiciário e penitenciário, considerando a recente ação de extermínio no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, como um marco inspirador. De outro lado, uma outra leitura previsível, também de parte da classe média, que possui a mesma estrutura argumentativa do primeiro discurso, só que o Mal agora é a polícia. Esquerda punitiva que, à criminalização da pobreza, opõe a criminalização da polícia. Como se os policiais não fossem, eles próprios, pobres soldados pobres, postos a serviço das elites – muito bem aconchegadas em seus luxuosos apartamentos na Zona Sul. Dessa forma, em meio a trivialidades sobre o “caveirão”, a esquerda punitiva respalda a estratégia conservadora que diferencia, opondo uns aos outros, polícia, “bandido” e trabalhador honesto – todos favelados e sem-direitos.

"Em Copacabana você não precisa do mundo", de Edson Barrus.


A ÉTICA DA DEMOCRACIA CONTRA A MORAL DA PUNIÇÃO A segunda perdeu-se em um denuncismo vazio, cujas únicas propostas são abrir CPIs, apurar crimes e punir os responsáveis, enquanto oportunamente enfia os demais atores políticos num saco de gatos, perante os quais só ela mesma se salvaria como a “esquerda pura”. Nada aproveitando das lições da criminologia crítica, tem uma visão positivista da segurança pública, desdenhando as políticas sociais que democratizam e desestruturam o tecido violentamente desigual da sociedade brasileira. O caminho da democracia é mesmo aprofundar a pauta de universalização dos direitos. A melhor resposta à invasão do Morro do Alemão e a tudo o que ela representa é mesmo o investimento social, o crescimento própobre, caracterizado por políticas de acesso a serviços públicos, saneamento básico, saúde, renda e educação fundamental, média e superior – como as políticas de cotas e as bolsas de estudo. Os dois maniqueísmos legitimam-se mutuamente, caçando votos lá e cá, reduzindo a discussão pública a uma medíocre disputa moralista, na qual se exige um posicionamento. Direita punitiva e esquerda punitiva não percebem – ou não querem perceber – que a política de segurança pública está conectada às políticas sociais. Assim, as duas, cada uma do seu modo, reproduzem o discurso da guerra civil. A pobreza não é simplesmente criminalizada, ela é gerida por essa lógica em que um pobre, policial ou não, acaba sempre executando o outro pobre. A esquerda punitiva lamentavelmente transforma a questão social em questão de polícia. A primeira não vê que a repressão ao tráfico de drogas ilícitas está na própria base dessa economia marginal, reforçando de violência um sistema intrinsecamente violento. Esquece como a lógica do estado de exceção é a mesma lógica que gerou e alimentou o terrorismo, numa cumplicidade perversa, porém evidente, em escala mundial.

Não por acaso, interessadas que são na perpetuação do estado de guerra que as legitima, tanto a direita punitiva quanto a esquerda punitiva opõem-se sistematicamente contra todas – sem exceção! – as políticas sociais de democratização. CONSERVADORES E "REVOLUCIONÁRIOS" ALIARAM-SE CONTRA OS POBRES, que, anônimos, morrem aos montões, enquanto âncoras de TV oferecemnos expressões austeras e cômodas indignações. Ultrapassando a paz dos vencedores e a moralista “guerrados-já-derrotados”, propomos a radicalização das políticas sociais em curso. Contra a gestão violenta e estratégica da pobreza, apoiamos – por óbvio! – as atuais políticas democráticas de erradicação da pobreza no Brasil. A Criminologia Crítica quer mais política-social e menos política-penal! Longe dessa esquerda, taciturna e vingativa, há uma esquerda alegre, jovem e otimista que afirma a liberdade e a ética da democracia contra a moral da punição.

Manifesto do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular da UERJ Grupo de Trabalho “Produzir Direitos”. Divulgado em 14 de Julho de 2007 Universidade Nômade 31 GLOBAL


CULTURA DIGITAL: PARA ALÉM DA FRAGMENTAÇÃO

Objetivo da atual Internet é agregar, através de plataformas comuns, a cacofonia de milhares de vozes distribuídas em veículos da dita Web 2.0 Fábio Malini A profusão da riqueza da diversidade da cultura digital faz minar, a cada dia, o quase finado conceito de homogeneização, proveniente da sociedade de massa. Na verdade, se há um traço peculiar no interior da cultura digital é o fato dela nascer e se desenvolver para arrebentar, de uma vez por todas, qualquer resquício da cultura de massa. Em especial, fazer com que toda e qualquer tentativa de docilização dos corpos e mentes seja espinafrada através de mobilizações nas redes virtuais. A internet é uma política contra o padrão e a favor da singularidade de expressões e de produções criativas, mesmo que essas expressões sejam para lá de questionáveis. Quem habita algumas comunidades virtuais do Orkut, como a ‘Eu detesto o gosto da Novalgina’ ou ‘Comunidade MSN Brasil’, sabe que os sentidos produzidos nos fóruns de discussão geralmente ficam numa espécie de joguinho em que o usuário responde a indagações toscas, como “beija ou passa”. Bom.... aquele sujeito mais moralista tende a condenar esse jogo semiótico como uma forma de comunicação vazia. Mas, para além de qualquer julgamento moralista, a diferença desses jogos toscos com os programas do broadcasting é que pelo menos o niilismo é produzido pelo próprio usuário em vez de atirado sobre eles. GLOBAL 32 Dossiê A Constituição do Comum

Como ultrapassar o dilema da fragmentação Bom, mas essa não é, para mim, a questão principal. O problema é que a diversidade digital é fragmentada. Muita gente falando, pouca gente escutando. Então temos, pelo menos na aparência, uma contradição. Por um lado, a internet produz a fissura na lógica do sentido único do broadcasting. Acaba com aquele mundo em que “líderes de opinião” falam por nós. Mas, por outro lado, se há todos falando, só há monólogo, e se há só monólogo, não há comunicação. É um Big Brother às avessas que vivemos. Uma forma de não haver entendimento e visibilidade é justamente fazer com que todos falem, mas sem canal de retorno. Assim, a profusão de blogues, podcasts, mídias sociais da Web 2.0 ou ainda sites independentes, aumentam a difusão pública de enunciados, mas não os torna comuns. Geralmente aqueles colegas jornalistas mais cínicos aproveitam essa deixa e sempre colocam o dilema: “tudo bem, há 70 milhões de blogues no mundo, mas são quase sempre pautados pelo que dizemos, ninguém ganha prestígio social se é citado por um blogueiro ou por uma publicação independente; e vamos e convenhamos, uma comunidade no Orkut com 50 mil usuários não nem faz cosquinha na televisão, com seus milhões de espectadores”. A tese desses amigos cínicos é que a cultura digital é nicho. É cultura fechada, no pior sentido do termo comunidade. São mobs. Tratam-se de grupelhos com uma nanoaudiência. E só. Essa crítica que cimenta a diversidade da cultura digital à cultura da fragmentação é repetida até pelos setores mais à esquerda da sociedade, que sonham com o eldorado das


Vídeo Cacofonia, de Simone Michelin. audiências de massa. Mas a diversidade é algo denso, porque trata de um conjunto de singularidades que não se resume ao Uno (o partido, o estado, o broadcasting etc). O diverso é muitos. É multidão. Daí que nosso caminho político seja agora criar a Televisão dos Muitos, a Internet dos Muitos, a Rádios dos Muitos, a Imprensa dos Muitos. Ultrapassar a fragmentação é criar plataformas onde os Muitos possam se auto-organizar, se auto-reputar, se autocoordenar e realizar uma livre troca de saber. A questão mais difícil é que, para fazer isso, não há modelos a seguir. É preciso construí-los. Além disso, estamos no interior de um desafio de como tornar massificada a diversidade das culturas da rede sem os dispositivos da cultura de massa. Experiências como Overmundo, Digg, ou ainda Slashdot, são boas soluções já testadas e que mostram como é possível agregar aquilo que está fragmentado e expor, numa plataforma comum, a diversidade a um número maior de pessoas. Mas, a característica dessas soluções é que não há mediação da autoridade. É um auto-governo. Pensar a ampliação da diversidade é investir no auto-governo. A cultura digital ultrapassa o Estado e o Mercado A diversidade é produto desses Muitos. Mas, têm razão os cínicos sobre a questão da fragmentação. Uma das formas de controle da diversidade é fazer com que ela própria não crie espaços públicos de convergência de suas expressões. Sabemos que, numa sociedade do controle, o direito à invisibilidade é até um ato de resistência. Mas o que acontece dentro das redes virtuais faz parte do tecido social. Não há fora. A cultura digital é produto dos múltiplos movimentos da sociedade. Mas, não vamos supervalorizar o fato de que a rede se transformou no espaço mais importante de distribuição da diversidade cultural. Isso porque o Estado e

o Mercado ainda trabalham com a lógica da escassez cultural (é a velha forma da cultura de massa de criar o valor de um bem), impedindo que a cultura floresça. A cultura digital ultrapassa essas duas formas (o Estado e o Mercado) porque é construída para ser comum, porque quer manter a ampliação da socialização dos conhecimentos e da cultura, a partir da abundância das trocas. Trata-se aqui de um devir minoritário. Esta é a tendência, mas não a hegemonia. Para isso, precisamos propor uma agenda em que a diversidade não caía na cultura da fragmentação. Não há como avançar na preservação e multiplicação dessa diversidade sem que haja: - O estímulo à produção de ambientes agregadores da diversidade da cultura digital, que sejam criados e administrados pelos próprios usuários. - O estímulo à produção de mídias colaborativas em instituições de educação e cultura, no sentido de ampliar a prática de expressão escrita, audiovisual e multimídia da cultura, bem como produzir relacionamentos e redes sociais. - Acesso à infra-estrutura de acesso universal e gratuito à internet via banda larga como política de comunicação das cidades. Isso para ampliar as possibilidades dos novos produtores de cultura disponibilizarem suas criações no universo das redes digitais. - O estabelecimentos de encontros (na forma de seminário, barcamp, wordshop etc) para ocupar a cidade com conteúdos e linguagens provenientes da cultura digital, ao mesmo tempo, reforçando a participação social nos espaços públicos da cidade. Dossiê A Constituição do Comum 33 GLOBAL


A produção cultural, o desenvolvimento das redes de difusão e das tecnologias interativas não atravessam somente o mercado da cultura, Metro-polis, de Luiz Nelson, 2006.

mas o conjunto das atividades econômicas contemporâneas

GLOBAL 34 Dossiê A Constituição do Comum


Paulo Henrique de Almeida

A CULTURA ÉA ECONOMIA

A cultura ocupa um lugar central na economia do século XXI, e este fato pode ser comprovado de vários pontos de vista. Em primeiro lugar, há o crescente peso das atividades culturais na formação do produto e na oferta de trabalho. Como reflexo desse movimento, o Department for Culture, Media and Sport, vale dizer, o Ministério da Cultura britânico, passou a defender uma política para as ‘indústrias criativas’ a partir de meados da década de 90. O termo é difundido desde então como uma alternativa, ampliada, para o conceito tradicional de ‘indústrias culturais’, incorporando novos setores (desenho industrial, moda ou jogos para computador) e sublinhando a passagem de uma indústria cultural fordista, baseada em economias de escala, para uma indústria pós-fordista, assentada em economias de escopo ou de variedade. Em segundo, estende-se a transversalidade do valor cultural. Na atual economia, bens e serviços são valorados e valorizados cada vez mais pelo seu conteúdo intangível e simbólico – estético, étnico, religioso ou político. É interessante observar como isso diz respeito até mesmo às tradicionais commodities, agora impregnadas e envolvidas em cultura. Não é apenas a indústria de confecções que se transforma em indústria da moda, mas é também o café, por exemplo, que se valoriza em função do seu “selo” verde ou social, ou ainda em razão do seu terroir e de sua denominação de origem. O valor de troca se descola do trabalho direto incorporado à mercadoria. O valor de uso não pode mais ser relacionado à utilidade em sentido estrito, pois o consumo é cada vez mais associado à necessidade de diferenciação social, a imperativos psicológicos superiores e, no limite, à singularização de desejos, muitas vezes supérfluos ou fúteis, mas sempre de forte conteúdo cultural.

Cultura e capitalismo cognitivo

A cultura e o comum

Em terceiro lugar, cultura é matériaprima. No capitalismo cognitivo, o valor se desloca para o imaterial, para os serviços e bens digitalizados. A produção se faz com cérebros criativos e quantidade crescente de insumos culturais intangíveis: informações, idéias, símbolos, linguagens, relações ou públicos. O principal ativo é o relacionamento, o público fidelizado e proativo: consumidores que são cada vez mais produtores – prossumidores.

Desde que, por suposto, a informação e o conhecimento, principais insumos da nova economia, possam se difundir como bens públicos.

Em quarto: a produção cultural está na vanguarda da inovação tecnológica, inclusive organizacional. O trabalho nas indústrias criativas não apenas incorpora, rapidamente, as novas tecnologias de informação e telecomunicação, como também se destaca no uso das novas formas flexíveis e móveis de trabalho. Terceirização, cooperação internacionalizada em redes, trabalho autônomo, teletrabalho, transversalidade, interdisciplinaridade ou trabalho temporário por projeto, nada disso é novo, por exemplo, na produção do cinema. A centralidade econômica da cultura se afirma ainda – e como decorrência de todos estes elementos – pelo fato de que a produção cultural é a arena central de duas das principais batalhas sociais deste início de século: a definição das condições de acesso do precariado aos novos meios de produção e distribuição, e a luta pela redefinição dos direitos de propriedade intelectual (incluindo o combate aos novos enclosures).

Os direitos de propriedade intelectual têm sido defendidos com base na tese de que remuneram os indivíduos e organizações inovadoras, garantindo, para o bem comum, a continuidade do progresso técnico e a diversidade cultural. Ocorre que é precisamente no terreno da cultura que o caráter controverso dessa tese se manifesta, hoje, de forma mais clara. A resistência da indústria fonográfica às inovações nas formas de produção, distribuição e consumo da música; a imposição, pelas grandes redes de TV, de equipamentos bloqueadores da gravação de emissões digitais; a opção dessas mesmas redes pela alta definição em detrimento da multiprogramação permitida pela TV digital; ou ainda, o boicote das editoras à digitalização universal dos livros e à pesquisa para a invenção de dispositivos mais eficientes para a leitura de ebooks, são apenas alguns exemplos recentes. Assim, a passagem das indústrias culturais às ‘indústrias criativas’ é marcada não apenas pela incorporação de novas atividades produtivas ao campo da economia da cultura, mas também pela tentativa de estender no tempo e no espaço a sombra da apropriação privada do comum.

Postos na linha de frente das mudanças nas condições de trabalho, artistas, técnicos do espetáculo ou produtores culturais pagam tributo à precariedade. De um lado, a alegria do trabalho autônomo criativo, potencialmente livre, distante dos relógios de ponto; de outro, remuneração incerta, instabilidade e ausência de direitos trabalhistas. Como liberar a potência e superar as atuais condições de vida? Asseguradas as condições mínimas de existência – o ponto de partida – decisivo passa a ser o acesso aos novos meios de produção e distribuição, vale dizer, ao conhecimento e às redes. De fato, o outro lado da “longa cauda da demanda”, da customização levada ao extremo, são os vastos espaços que se abrem para uma produção cultural cada vez mais livre, cooperativa e diversificada. Dossiê A Constituição do Comum 35 GLOBAL


O PREFEITO E O PRESIDENTE NA TERRA DO SOL Barbara Szaniecki

Para Fabiane Borges e Maria dos Camelôs

Desde o anúncio de que os Jogos Pan-Americanos aconteceriam no Rio de Janeiro, o Prefeito se apoderou desse acontecimento esportivo que, historicamente falando, sempre serviu ao governo dos povos. Aos poucos, toda uma poderosa simbologia foi sendo desenvolvida: escolha de uma logomarca oficial do Pan, votação para o nome do mascote (foi escolhido Cauê, uma saudação tupi que provavelmente não rendeu dinheiro algum para índio), instalação, na ensolarada praia de Copacabana, do relógio para contagem regressiva e, finalmente, apresentação dos “patrocinadores oficiais” como a cerveja Sol, aquela que tem o sol como marca, entre outros. O sol nasce para todos, mas a construção do Sol do Pan foi apenas o início de um longo processo de expropriação do comum que culminou numa vaia orquestrada contra o Presidente Lula. O campo da imagem é literalmente revelador desse processo de expropriação. Com base nas experiências fascistas e nazistas, é comum associar imagem a manipulação. É possível, no caso de eventos de massa como os jogos esportivos, produzir imagens que não sejam apenas brilhantes representações do poder? Do soberano, do lucro ou da própria mídia? Em nenhum momento desse processo de expropriação, pensamos em como retomar a posse simbólica desses jogos. Não construímos nossos discursos, não produzimos nossas imagens.

GLOBAL 36 Dossiê A Constituição do Comum

1O TAKE: SOMOS TODOS PATROCINADORES OFICIAIS OU SOMOS TODOS PIRATAS DO PAN? Durante todo o período do evento esportivo, os jornais produziram cadernos especiais com o logo do Pan e, claro, todas as notícias sobre o Pan. Nesses cadernos circularam todas as caríssimas publicidades de todos os "patrocinadores oficiais" do Pan: além da cerveja Sol, Sadia, Olympikus, Petrobrás, Oi e Caixa. Difícil entender como é possível praticar esportes depois de ingerir salsicha com cerveja, mas deixemos pra lá... Pergunto: onde é que nós estamos no retrato? Afinal, na medida em que foi investida oficialmente verba pública, somos ou não somos todos “patrocinadores oficiais” do Pan? Manchetes acusam a “venda ilegal de produtos sem licenciamento do CO-Rio” entendida como “competição por baixo dos panos”, e são ilustradas por fotos de ambulantes de Ipanema, de Copacabana e do Centro, todas elas com os tais produtos. Acabamos de tomar conhecimento do discurso do “sem licenciamento” que, como sabemos, vem acompanhado de violência contra camelô. Proponho darmos uma olhada no discurso do “com licenciamento”. Nos cadernos dedicados aos jogos, foram publicados anúncios coloridos com os “Produtos Oficiais dos Jogos Pan-americanos”: camisetas, blusas, boné, canecas, garrafas térmicas, mochilas, bolsas e bicicletas com a logomarca do Pan e com o tal do Cauê. Assina a publicidade o “licenciador oficial”. Ora, todos nós – patrocina-dores oficiais do Pan – temos que entender a lógica que, ao eleger um “licenciador oficial”, nos torna a todos automaticamente “piratas oficiais” de imagens do Pan. Temos de entender a lógica do conflito que opõe “bolsos oficiais” e “bolsos piratas”, acirrado pelo fato dos “bolsos oficiais” frequentemente condenarem o Bolsa Família! O CO-RIO coloca-se como detentor de todos os direitos referentes às marcas do Pan, na medida em que parte da verba que financia os jogos provém da exploração comercial das marcas pelos patrocinadores oficiais e pelos governos federal, estadual e municipal. Na realidade, nós – os “bolsos não-oficiais” – patrocinamos duas vezes: ao pagar os impostos com os quais é organizada a fabricação de imagens oficiais dos jogos que, em seguida, nos são vendidas sob a forma de bugigangas para financiar os mesmos jogos. Observemos que há uma lógica cristalina que, por mais cristalina que seja, não a torna necessariamente democrática. As imagens relacionadas a eventos públicos de tal porte não podem ficar atreladas a uma só agência de publicidade e/ou licenciador oficial, por mais transparente que tenha sido o processo de seleção dos produtos e dos produtores – e sabemos que nem sempre é o caso. Há de se criar processos radicalmente democráticos de produção e circulação de imagens de interesse comum.


COMO RESTITUIR AO COMUM A PRODUÇÃO E A CIRCULAÇÃO DAS IMAGENS DE EVENTOS PÚBLICOS?

2O TAKE: UMA EKONOMYA EM TRANZE PARA UMA EZTÉTYKA DE MONSTROS

É possível que o “Cauê armado” não seja uma boa imagem para protestar contra as formas como o Pan foi organizado desde o início. Outros sóis são possíveis? Sol Poente de Tarsila, Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber, jornal O Sol, Luz do Sol de Caetano... são tantas as nossas referências ensolaradas – nas Artes e nas Letras, no cinema e na música, além do cotidiano... – que certamente, através dessa radiante diversidade, podemos evitar a redução do evento dos muitos em espetáculo para poucos. Mas há de se ir além... Artesãos, artistas e dizáiners, entre outros produtores, deveriam não apenas poder criar, mas também fazer circular suas imagens sem serem (de)tidos como uma multidão de Coriscos, ou 'Diabos Louros'. Uma produção diversificada em termos de suportes, técnicas e visões de mundo à imagem de um público igualmente heterogêneo e beneficiando-se de uma monstruosa circulação. Não poderia o Divino Prefeito de São Sebastião do Rio de Janeiro, através de seu transcendente laptop, incentivar redes de artistas e ambulantes que, com a comercialização de imagens, não apenas tivessem um ganha-pão, mas enriquecessem verdadeiramente a iconografia da nossa cidade, dos apolíneos rituais esportivos ao mais dionisíaco dos eventos? O camelô Manuel acredita que sim. Hummm... desconfia Rosa, sua mulher: “vambora,

Manuel, vamos continuar na nossa fuga! na nossa luta!”

EPÍLOGO: O Filósofo Giorgio Agamben, profeta apocalíptico do Estado de Exceção, faz referência a uma oikonomia enquanto conjunto de dispositivos cujo objetivo é governar os homens. E afirma que, se consagrar significa a saída das coisas da esfera do comum para uma esfera separada através da religião (ou da política, com suas liturgias de representação, acrescento eu), profanar significa restituir o que é sagrado à propriedade e ao uso dos homens. Os dispositivos da economia na qual vivemos – dentre os quais a imagem, das liturgias televisivas às logomarcas institucionais, é um dos mais poderosos – seriam dificilmente profanáveis. Agamben não conhece a potência de Eldorado. Cabe à multidão dessa Terra do Sol restituir os dispositivos ao uso comum numa Ekonomya em Tranze, ainda sob o efeito das convulsões da fábrica fordista e de seus dispositivos disciplinares, mas de cujo ventre abrem-se novas possibilidades de produção e circulação para ícones profanas,

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

Paralelamente à denúncia contra a “pirataria” dos produtos oficiais do Pan, jornais noticiaram o surgimento de um Cauê armado com fuzil. Pichações nos muros do Maracanã foram imediatamente associadas a faixas de protesto produzidas por movimentos sociais. O “Cauê armado” faz apologia do crime ou denuncia a violenta política de repressão à população pobre? Tal como um Antonio das Mortes, armada até os dentes com o discurso da “apologia do crime”, a Mídia Toda-Poderosa aproveitou o incidente para perseguir ainda mais os movimentos sociais, além de criminalizar a população pobre em geral.

O vaqueiro Manuel se revolta contra a exploração de que é vítima por parte do coronel Morais e mata-o durante uma briga. Foge com a esposa Rosa da perseguição dos jagunços e acaba se integrando aos seguidores do beato Sebastião, no lugar sagrado de Monte Santo, que promete a prosperidade e o fim dos sofrimentos através do retorno a um catolicismo místico e ritual. Ao presenciar o sacrifício de uma criança, Rosa mata o beato. Ao mesmo tempo, o matador de aluguel Antônio das Mortes, a serviço dos coronéis latifundiários e da Igreja Católica, extermina os seguidores do beato. Em nova fuga, Manoel e Rosa se juntam a Corisco, o diabo loiro, companheiro de Lampião que sobreviveu ao massacre do bando. Antônio das Mortes persegue de forma implacável e termina por matar e degolar Corisco, seguindose nova fuga de Manoel e Rosa, desta vez em direção ao mar. www.tempoglauber.com.br

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Multitudes Icônes versus Documenta Magazine Eric Alliez e Giovanna Zapperi

GLOBAL 38 Maquinações

Foto de Eric Alliez


Multitudes-Icônes é composto, no momento, por três espaços formados pelo contra-projeto concebido como resposta ao convite do Documenta Magazine, um projeto de residências de artistas que os instiga a produzir um trabalho específico, os arquivos de textos e dossiês Ícones (projetos de artistas ou sobre artistas que estes são convidados a re-atualizar ou a “reanimar”) publicados pela revista desde sua criação em março 2000, onde se recoloca em jogo as relações entre estética e política, aos quais acrescentamos um certo número de artigos que podem ser úteis à problematização do campo estético como tal.

O Site Multitudes-Icônes (http://multitudes-icones.samizdat.net)

foi apresentado na Documenta 12

O contra-projeto Junto com uma centena de outras publicações, a revista Multitudes foi convidada pelos organizadores da Documenta 12 a responder às três perguntas oficiais da exposição (“Is Modernity our Antiquity?”, “What is Bare Life?” e “What is to be done?”) – e a publicar (na própria Multitudes) um dossiê assim constituído com selo da Documenta. Foi em resposta a esse convite que lançamos num site autônomo o contraprojeto intitulado “Crítica e Clínica da Documenta”. Nele, as três perguntas são reformuladas (isto é, deformadas e forçadas em seu aspecto 'clichê') para serem re-direcionadas a cerca de trezentos artistas, aos quais se pedia para integrar, nas suas respostas, a incidência eventual de sua posição quanto à participação ou não na exposição. O conjunto das respostas (das quais apresentamos, nesse dossiê, uma seleção restrita pelos limites técnicos da revista impressa) compõe uma multiplicidade de pontos de vista alternativos, humorísticos ou irônicos, que se deixam ler e ver como outras tantas perspectivas críticas e clínicas sobre os temas da Documenta – mas também, como não, sobre a própria Documenta.

e lançado por ocasião do workshop organizado pela revista (Kassel, Documenta Halle, 25 a 28 de junho de 2007) com intervenções de Benoit Durandin, Marika Dermineur, Maurizio Lazzarato, Yann Moulier Boutang, Eric Alliez, Giovanna Zapperi, Brian Holmes, Renée Green e Société Realiste.

Fundado sobre o princípio de uma “ética da coexistência” entre obras reduzidas à “migração da forma” (Roger M. Bruegel, diretor artístico da Documenta 12), o dispositivo de descontextualização museográfico adotado em prol da celebração de um prazer estético puro iria fazer funcionar os três leitmotivs expostos como engodos participantes de uma estética relacional de segundo grau. Nesse remix planetário do “universo das formas” convertido em livre circulação das “formas de vida”, os anos 60 e 70 desempenham o papel de inevitável biombo protetor para um neo-modernismo de ambição multicultural que aprendeu a

internalizar a crítica da tradição (máscula e branca) herdada do modernismo, assim como a “crítica” tout court. Através da apropriação das externalidades positivas (as revistas) e da integração efetiva de suas produções (os documentos) em um sintagma essencialmente formalista (o da exposição), Documenta Magazine pode assim oferecer à Documenta 12, a custo barato, um triplo simulacro de catálogo em No. 1 Modernity / No. 2 Life / No. 3 Education: (Editora Taschen). A onipresença da “mulher artista” (Ruth Vollmer, Mira Schendel, Maria Bartuskovà, Nasreen Mohamedi, Lee Lozano, Zoe Leonard, Valie Export, Charlotte Posenenenske, Alejandra Riera…) esconde totalmente a crítica feminista do mundo-da-arte, enquanto in situ o valor de exposição da arte não-ocidental reata com a antropologização aurática dos anos 40. Intervenções conectadas Paródia de exposição como medium universal onde o curador brinca de artista global e o crítico de mediador cultural, o agenciamento de respostas no espaço do site se apresenta como um dispositivo aberto que permite reticular cada resposta a outras, de modo a compor intervenções híbridas, transformando cada usuário em curador-artista de uma outra Documenta, menos imaginária que virtual-real. Se o projeto “Crítica e Clínica da Documenta” parasita desse modo os “quadros curatoriais” da exposição de Kassel (segundo a expressão de Georg Schöllhammer, mestre-de-obras do Documenta Magazine) e a função de comissário-cenógrafo que lhe foi associada, ele ataca também a separação entre “teoria” e “prática” imposta pela D12 pela ausência de qualquer relação dos magazines com a exposição. Nesse contexto (no qual a Documenta Magazine anunciava-se desde o início como um engodo relacional – ou um simple wash-out – mais que uma zona de autonomia temporária...) e para sua abertura, o espaço Residência do site deverá se revezar com o contra-projeto de Multitudes e com o workshop da revista que procurou produzir um agenciamento coletivo misturando intervenções políticas, análises teóricas e práticas artísticas. No site, três exposições virtuais são apresentadas em resposta aos três leitmotivs da Documenta, que elas contra-documentam com toda autonomia... Os trabalhos de John Beech, Birgit Jürgenssen e de Société Réaliste investem respectivamente as noções de Modernidade, de Vida Nua e de Educação. Maquinações 39 GLOBAL


GLOBAL 40


MATO GROSSO TEM A FÁBRIKA PARA NOVOS MODELOS DE PRODUÇÃO Eduardo Ferreira Mato Grosso, estado da região centrooeste. Território majoritariamente ocupado pela Amazônia Legal. Faz fronteira com seis estados brasileiros e com a Bolívia. Capital: Cuiabá. Fuso horário: 4 GMT, 1 hora de Brasília. Aqui nasceram o coletivo A Fábrika e o Espaço Cubo. Estas duas experiências fazem parte de um fenômeno crescente no estado, onde mais de 30 empreendimentos buscam novos modelos de organização, voltados às práticas coletivas. Cada qual vem, do seu modo, criando um novo ambiente cultural e rompendo barreiras dos mercados tradicionais. A excessiva concentração e as regras do mercado acabaram por criar um apartheid entre uma minoria consagrada e uma legião de pretendentes a furar os bloqueios impostos por ele mesmo. Ora, são evidentes as práticas que alimentam tal sistema: restrição dos canais de distribuição, controle dos meios de comunicação, poder econômico e controle dos meios de produção. Este modelo está em xeque. Com extraordinária capacidade de absorver modelos que lhes são refratários, o capitalismo, com suas contradições, não impediu o surgimento de experiências coletivas, auto-gestionadas e criativas em um segmento em que a circulação de bens, produtos e idéias foi historicamente o gargalo do processo. Com as novas tecnologias digitais, as tradicionais estruturas de mercado perdem espaço para a avassaladora produção de conteúdos e sua veiculação na internet. Uma das mudanças mais curiosas desse processo é a flexibilização das referências de público e autor. Práticas colaborativas formam comunidades que se estabelecem em torno de objetivos comuns e da atuação em rede – onde público é autor e autor é público. Até mesmo grandes corporações, em geral resistentes à redução de controle do conteúdo imposta pela internet, correm contra o prejuízo, incorporando iniciativas de produção colaborativa de conteúdo multimídia. Em 2002, Pablo Capilé, idealizador do Espaço Cubo, já dava início a atividades no circuito “fora do eixo” (expressão que deu origem ao nome de uma rede de produtores independentes de todo o Brasil). Disponibilizar o conteúdo na internet, deixá-lo circular livremente e criar formas de ganho financeiro caracterizaram a iniciativa. As velhas fórmulas já não contemplavam um grande número de artistas. A perda de valor de produtos como o CD e o DVD abre a necessidade de identificar outros elos – inesgotáveis – da cadeia de produção.

Cubo Cards O Cubo Cards, sistema de crédito criado pelo Espaço Cubo, ilustra a busca por modelos sustentáveis e colaborativos. A fórmula é simples e inovadora. Ao prestar qualquer serviço para o Espaço Cubo, o agente recebe em Cubo Card, que tem uma tabela de valor de referência monetária. Com a moeda, pode-se utilizar uma rede de serviços, que vai de crédito para estúdio de áudio, passando por locadora de vídeo, restaurantes, até a contratação de show de uma banda que esteja em seu elenco. Até mesmo o poder público municipal aderiu ao sistema e oferece apoios em Cubo Card.

ratório em São Paulo, no Rumos Audiovisual-Itaú Cultural.

O Espaço Cubo organiza o planejamento, a administração e as finanças para ações culturais, que se desdobram nos segmentos Cubo Mágico, Festivais (calangos, regionais e nacionais), Volume (voluntários da música), Imprensa de Zine e Próxima Cena. O Cubo Mágico envolve projetos sócio-culturais e serviços de agenciamento de bandas, comunicação e marketing, eventos, estúdios de gravação e ensaio, vídeo, moda, pesquisa e turismo. Do faturamento, 30% ficam com a equipe responsável e o restante é reinvestido no projeto.

Os dois empreendimentos, Espaço Cubo e A Fábrika, têm trajetórias semelhantes dentro de um contexto histórico local conservador de Cuiabá. A imagem de transgressão ficou pra trás e atualmente sua marca é a criação de alternativas concretas para o fomento de um mercado que dê sustentabilidade às iniciativas. Não por acaso, a participação de Cuiabá no cenário musical dos vários festivais que proliferam pelo Brasil cresceu. Apesar do caráter pragmático das iniciativas, ideologias permeiam as ações desses coletivos. Sua prática subverte os modelos de negócios tradicionais, questionam o modo de produção, coletivizam as decisões e buscam a divisão dos ganhos de forma mais justa e equilibrada. O retorno perseguido é social e ambiental, combatendo o consumismo desenfreado.

A Fabrika, por sua vez, é um núcleo criado em 2005, a partir da união de uma agência de publicidade, a Trup Design, e a A&G Intermídia, que tinha como foco a produção cultural. Sempre apostaram na auto-gestão, nas novas ferramentas da web, no compartilhamento de conteúdo. O grupo trabalha com estruturas abertas, dos pontos de vista artístico, social, político e dos direitos autorais. A sustentabilidade vem da atuação na área de comunicação e marketing cultural para clientes-parceiros. Parte dos projetos ainda conta com recursos públicos, por meio de leis de incentivo à cultura, mas isso não torna a aplicação de investimentos menos eficiente. Sustentabilidade financeira Em seu primeiro ano de existência, A Fábrika conseguiu R$ 37 mil do Fundo Estadual de Cultura para a produção do documentário “Uma vida sobre as águas”; prestou serviços para projetos culturais (design gráfico, produção de spots para rádio e vídeos) e obteve faturamento anual de R$ 95 mil, garantindo a continuidade do projeto. Em 2007, conseguiu R$ 80 mil do mesmo fundo para o documentário “Aroe Jarí”, uma pesquisa etno-musical do maestro Roberto Victório sobre o ritual funerário dos Bororo (etnia indígena quase extinta no Mato Grosso). O vídeo também foi classificado para participar de um labo-

Além de buscar novos parceiros para a produção audiovisual, A Fábrika tem se inserido em movimentos de software livre, cultura digital, pontos de cultura, associações, iniciativas que lutam pela democratização dos meios e da informação. O curta “Eunóia” foi produzido coletivamente, em só 20 dias e sem recursos financeiros, em parceria com a produtora Casarão. O filme foi para o 2º Festival Latino-Americano (SP), o Festival Cinema na Floresta (MT) e o Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá. A obra estará disponível para download em Creative Commons.

O mundo dos negócios já não é mais o mesmo. O que poderia ser apenas um clichê mostra-se concreto diante de perspectivas promissoras para aqueles que, por muito tempo, estiveram à margem do mercado convencional e pouco democrático. A distribuição em larga escala da obra de poucos artistas para uma sociedade de massas, perde espaço para a circulação, em nichos de mercado, de uma maior diversidade de obras e artistas. A idéia do artista genial e solitário é substituída pela concepção de um artista trabalhador e colaborador. Os direitos de propriedade intelectual individuais dão lugar ao compartilhamento, à criação e ao uso coletivo da arte e da produção intelectual. É possível que as mudanças estejam se consolidando antes em Cuiabá do que nas regiões onde a tradicional indústria cultural desempenha papel mais relevante. É possível que, para entender o amanhã, tenhamos que olhar com atenção para os lugares de onde nada esperamos. E um desses lugares, certamente, é aqui. Colaborou Oona Castro.

Império, de Claudio Cambra. Imaginário Periférico. Museu Bispo do Rosário, 2005. Foto de Sandra Moraes.

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Rosa Maria Monteiro – a Rosa Mitô – revela ativismo, militância e o perfil de um indigenismo imersivo.

Fabiane Borges e Verenilde Santos

Despacho, de Claudio Cambra. Imaginário Periférico. Fazenda São Bernardino, 2003. Foto de Sandra Moraes.

UMA CONVERSA COM ROSA MITÔ

História da indigenista

É difícil dimensionar o momento onde o mito instala sua complexidade, sua força, seus mistérios, sua renovação. Essa foi uma das inquietações que permearam a conversa com Rosa Maria Monteiro, indigenista gaúcha. Na década de 70, quando os massacres dos povos indígenas perpetrados pelas frentes desenvolvimentistas apoiadas pela ditadura militar permaneciam velados – apesar de abundantes – e quando pesquisadores buscavam interpretações para a fecunda mitologia dos povos indígenas, ela própria foi denominada pelos Kulinas como Mito (se pronuncia mitô). Através de Rosa é possível traçar o perfil de pessoas, especificamente de mulheres que, curiosamente, permanecem anônimas, embora tenham tido uma ação política que foi determinante para a continuação da existência dos cerca dos 230 grupos indígenas do Brasil, além dos quase trinta grupos que vivem isolados. Universos diferentes Foi nesse contexto político que jovens como Rosa Mitô foram atuar, largando suas casas, cidades e famílias para se aventurarem, mochila nas costas, por entre rios, florestas, aldeias, algumas já em processo de dizimação. Para além dessas problemáticas macroestruturais, havia ainda os planos microestruturais, micropolíticos, com os quais esses jovens indigenistas tinham que lidar. Se os militantes de esquerda dos anos 60/70 que atuavam no espaço urbano ou no campo enfrentavam dificuldades específicas, os militantes do movimento indígena tinham como agravante o fato de terem como espaço de ação política, universos sociais radicalmente estranhos aos seus, e de alguma forma necessitavam imergir nesses universos de forma a compreendê-lo, experienciá-lo, apreendê-lo. Para muitos esquerdistas dessas décadas, coisas como espaço, tempo, origem da vida, especulações simbólicas sobre a morte, eram assuntos secundários; mas, para sujeitos como Rosa Mitô, imergir nessas grandes questões era condição imprescindível para GLOBAL 42 Maquinações

sua militância cotidiana. Para adentrar e militar nesses universos de tão diferentes cosmogonias, era necessário um intenso despojamento subjetivo; mais do que isso, era necessário a entrega à cultura do outro, como forma de ativismo e sobrevivência, ao mesmo tempo. Esse mergulho cultural foi chamado por alguns grupos de “incorporação ou encarnação”, e por outros de “fusão de horizontes”. Dos conflitos às conquistas Na década de 70, após ficar três anos junto aos Pareci no norte do Mato Grosso, a jovem Rosa Maria Monteiro (Mitô) dirigiu-se ao mundo dos índios Kulina que vivem no médio Juruá (Acre). Os Kulinas se autodenominam Madijá, que significa povo, gente. De início, Mitô teria que significar (o que não quer dizer uma mera tradução), o que representava, para os Kulinas, a perda do território para as frentes de madeireiros, fazendeiros, seringueiros e latifundiários que adentravam indiscriminadamente os territórios indígenas; e ainda com o apoio das autoridades e instituições oficiais.


A indigenista não só aprendeu a língua dos Madijá, como passou por um processo de “esquecimento”, quando já não falava o português. Conta sobre o estranhamento que ocorria quando era chamada pelo nome de batismo, Rosa Maria, e não como Mitô. Às vezes, quando longe da aldeia alguém a chamava pelo nome de “branca”, o impacto era inevitável. Era ouvir e praticamente desconhecer tal identificação. Foi com o nome Mitô que ela saía campo a fora com os Kulinas, “traçando o rumo no próprio chão”, para demarcar seus territórios sem a utilização de aparatos tecnológicos, mas de forma rudimentar, que consistia em colocar placas identificatórias feitas de madeira nos limites dos territórios considerados seus, em função de memórias, posições do sol na montanha, pinturas rupestres, histórias míticas... Todo esse movimento das autodemarcações culminou na demarcação definitiva do território Kulina, reconhecido pelo governo federal em 1991, que deu aos Kulina o direito a uma área de 770 mil hectares.

Novos léxicos para Demarcações Nos últimos anos, tornou-se necessário ampliar as noções sobre Demarcação da terra para além da noção de territorialidade geográfica, devido à profusão de conteúdos novos que surgiram no panorama político-social-econômico, ou seja, as novas espacialidades com as quais o capital faz frente na atribuição de valor. São os espaços virtuais, comunicacionais, de acessibilidades e trocas. Insistir somente num tipo de espacialidade é alijar o indígena, assim como os sem terra e outros movimentos agrários, das possibilidades de espaço, inclusive o aéreo, exatamente acima de suas cabeças, assunto que é tão pouco discutido nos encontros indígenas: o direito à comunicação, à produção dos próprios meios de informação, assim como de seus próprios conteúdos, redes de trocas, economia, criação da sua própria energia através de ondas do ar, luz, água, plantas, árvores, etc. Mas, é muito tenso discutir tudo isso, exatamente pela problemática existente entre propriedade industrial e direitos de minorias tradicionais. Como garantir a sobrevivência e o território de um grupo étnico sem defender as leis da propriedade industrial nos moldes em que ela se manifesta hoje, principalmente depois dos acordos da OMC? Que semelhanças esse indigenismo imersivo teria com as práticas ativistas e militantes nesta virada de século? Que importância teria para o mundo a garantia de um modo de vida como o dos Kulina? Falando em Kulina, lembremos novamente de Rosa Mitô, que deu sua vida pela causa indígena, e outros como ela, pobres que são e sem terras, apesar de ricos em experiência de vida e orgulhosos de terem colaborado na conquista dos direitos indígenas. Saudemo-los, vez por outra, para, um segundo no dia, sentir a infinitude desses atos anônimos, que “inscreveram o destino a facão”, abrindo passagem no mato, desprezando o ouro, a guerra pelo ouro, a sedução do ouro que se assentava debaixo do chão que demarcavam. EIA! Maquinações 43 GLOBAL


MUSEU DA MARÉ: MEMÓRIA DA RESISTÊNCIA Dinâmica instituinte do Museu da Zona Norte carioca é resistir contra estratégias do biopoder global Gláucia Dunley Desenho de Alex Vieira.

O Museu da Maré, lançado em maio de 2006 na Casa de Cultura da Maré, com sua dinâmica própria à desmesura que rege as práxis biopolíticas ligadas ao comum, é a imagem vívida da insurreição dos saberes assujeitados há décadas na Favela da Maré (Zona Norte do Rio de Janeiro). Insurreição operada pela ONG Ceasm – Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré –, que completou dez anos de resistência contra as estratégias do biopoder global, o qual faz viver determinadas populações e deixa morrer/manda matar outras. Este deixar morrer/mandar matar concretiza-se na utilização de várias táticas cruéis: expor à morte pelo abandono; pela fome; pela doença; pela truculência policial adquirida na ditadura e que persiste; pelo poder paralelo; pelo estigma e preconceito; e tantas outras. Somam-se a essas as formas de natureza simbólica relacionadas à falta de acesso aos bens comuns – educação e cultura. Elas são dispensadas paradoxalmente aos próprios cidadãos-semcidadania de um sistema político regido pelo racismo de Estado. GLOBAL 44 Maquinações


Como podemos constatar facilmente, o Estado brasileiro é produtor, não de agora, de uma ideologia de guerra civil na qual vigora a idéia de que quanto mais se deixar morrer/fazer morrer o outro pobre e/ou negro, mais se viverá, jogando uns contra outros, na esteira da manutenção dos podres poderes de uma elite que pensa e age conforme sua paixão escravocrata. Fuga do silêncio Desafiando este estado de coisas, e mostrando que o contemporâneo é um tempo que não se restringe aos ressentimentos do pós-moderno e das injustiças sociais, o Ceasm, a partir da Rede Memória, criada em 1999 sob a coordenação de Antônio Carlos Pinto Vieira e Cláudia Rose Ribeiro, realiza uma verdadeira arqueologia dos saberes assujeitados (aos saberes oficiais, dominantes). O trabalho é mantido praticamente em silêncio, ou pelo menos sem circulação na cidade, pela multidão de mareenses, que soma aproximadamente 132.000 pessoas. Ao mesmo tempo, pratica uma genealogia desses saberespoderes performativos, tornando-os livres ao desprendê-los das discursividades locais ameaçadas pelo medo e pela pobreza, e capazes de oposição e luta, resistindo e interferindo no saber-poder uno, instituído para o usufruto das oligarquias detentoras dos saberes oficiais. Mais concretamente, são saberes moleculares da Vida sobre a memória local, sobre as tradições, o folclore, os migrantes, as lutas, as festas, a música, a resistência organizada nas parcerias com a Igreja Católica, com a Teoria da Libertação, com o PT-Maré até um certo momento. Saber molecular da Vida ainda sobre os vínculos de solidariedade no meio da violência e da adversidade perenes naquela região e, principalmente, sobre um saber que torne consciente para todos na cidade os estadosda-alma das multidões da Maré, comuns a todas as favelas do Rio: o medo, a vergonha, o sentimento de abandono, a culpa, a alegria, a esperança, a solidariedade, a abertura para o outro, o desejo de justiça e transformação. Foi sobre este pathos que a ONG Ceasm construiu seu pensamento emancipatório, estruturando sua ação solidária e comprometida com aqueles que “deixamos morrer/mandamos matar” por nossa omissão, passando a contribuir para a sua libertação e para um convívio mais justo e mais integrado à cidade do Rio de Janeiro.

Saberes locais Por saberes assujeitados compreendo uma multiplicidade de saberes locais, particulares àquele território, saberes “menores”, detentores de conteúdos históricos, míticos, religiosos, políticos que foram desqualificados, sepultados ou mascarados sob o rótulo de estarem insuficientemente elaborados, de serem populares, comunitários, atendendo com isso apenas aos ditames e critérios de uma desejada hierarquização científica do conhecimento e a seus efeitos de poder de dominação, intrínsecos ao manejo de uma elite. Seria importante destacar que um saber antecipado sobre a importância da construção da memória local como meio privilegiado de instituir a emancipação dos outros saberes populares em jogo na região da Maré a está livrando do expurgo ao qual sua história foi submetida pela história oficial ou hegemônica da cidade, valorizando-a tanto internamente para as populações da Maré, quanto fora (Prêmio Rodrigo de Mello Franco do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN /2005; Ponto de Cultura-2005; Prêmio Memória Viva 2006, Medalha do Mérito Cultural concedida à equipe da Rede Memória pelo Presidente Lula e pelo Ministro Gilberto Gil, em Brasília, 2006). Ainda em 2006, um prêmio-monumento vivo: o Museu da Maré, construído com o auxílio do Ministério da Cultura que, com isso, rendeu-se, prestando mais uma homenagem às formas de resistência produtivas e exemplares daquelas comunidades desde sempre abandonadas, mas detentoras de um outro estado-da-alma: a alegria trágica. Uma forma de alegria própria ao comum, quando ele se instala na sua desmesura como afirmação da vida com todas as suas dores. Repudiando pensamentos e afirmações radicais sobre o caráter estrutural ou constitutivo dessas mazelas no Brasil – que só nos tornam mais céticos ou mais cínicos, além de paralisados –, Derrida nos ensina, libertando-nos da inércia ou da indiferença, que “a hospitalidade precede à propriedade”. Pensador comprometido com o homem do seu tempo, ele nos fala de um além (neste mundo) da pulsão de propriedade/apoderamento/ dominação ou aniquilamento do homem em relação a outro homem, que é constitutiva do humano. Esse além seria o lugar onde estariam o dom, a amizade, a

hospitalidade, a justiça, os quais, se são impossíveis na sua radicalidade, apontam a direção onde é preciso ir e insistir. Quanto à hospitalidade, considero, à luz da rica experiência da rede Memória do Ceasm na Maré, que ela é a força (de resistência) que recebe ou é afetada por outras forças - de apropriação, aniquilamento – e que responde a elas resistindo de forma ativa, mas nem por isso à moda dos antagonismos. Ou seja, seu “tom”, desde as mais precoces experiências comunitárias de resistência empreendidas pelo grupo fundador do Ceasm, é o tom de uma resistência solidária, aberta aos agenciamentos mais variados, às parcerias de todos os tipos e níveis, tão diferentes das alianças e pactos da “pequena política”. Assim institui-se uma quase aporia: a hospitalidade da resistência ou, quem sabe, a resistência na hospitalidade. A história de resistência da Maré é, portanto, a história da hospitalidade das suas multidões, para além da pulsão de morte / destruição / aniquilamento como o sonhou Derrida, capaz de receber não reativamente seus tempos diversos (tempo da água e das palafitas, do trabalho árduo, das festas, da criança, do medo da remoção, do tráfico, da polícia com seu inacreditável Caveirão). Esta hospitalidade da resistência culmina na criação do Museu da Maré em 2006 que recebe em sua singela construção na Casa de Cultura todos esses tempos, de modo geral marcados pelo desamparo e por transformações nem sempre favoráveis. Seu surgimento deve ser considerado ato político, ético, estético de resistência, no qual a estesia de todas essas forças é transfigurada e exposta à visitação em múltiplas formas de vida ao mesmo tempo simples e sublimes, para a emoção incontida dos moradores da Maré e dos visitantes de qualquer lugar, que podem finalmente experimentar a sua história, ou essa história da Maré, como uma história comum, que nos vincula e nos surpreende, integrando a cidade. “A resistência nada mais é que esperança”, disse René Char. Ou seja, a esperança é valor inestimável no ideário de fundação do Ceasm, ocupando posição de destaque entre seus valores instituintes, norteando e submetendo por vezes as forças de resistência, regulando estratégias e táticas de luta, destituindo-as inclusive de seus excessos. Pois é preciso chegar lá. Maquinações 45 GLOBAL


GLOBAL 46 Maquinações


Análise de jornais do Rio de Janeiro mostra que a vida tem valor diferenciado: ricos e pobres morrem vítimas da violência,

“VIDAS MATÁVEIS”: O DISCURSO DO COMBATE AO TRÁFICO DE DROGAS

mas uns são notados, outros não

André Barros, Marta Peres e Pedro Bento

Matérias publicadas recentemente nos três principais jornais do Rio de Janeiro noticiam fatos relacionados à chamada “guerra ao tráfico de drogas” e servem como um interessante ponto de partida para uma discussão acerca de violência, desigualdade social e política de drogas no Brasil: • a primeira, sob a manchete do Jornal do Brasil (“Copacabana Sem Lei”, 20/06/2007), denuncia que existe uma orientação, por parte do Comando Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, para que não sejam revidados tiros em Copacabana e Ipanema, a fim de que não haja registro de bala perdida naqueles bairros, afirmação, que é, entretanto, negada pela cúpula do órgão; • a segunda, manchete do Jornal O Dia (“Ameaça do Tráfico”, 08/08/2007), relata que a polícia teria descoberto, por meio de escutas telefônicas em investigações a traficantes da Rocinha, um plano de ataque a moradores de São Conrado, sendo mencionados uma escola de elite e o nome do prefeito César Maia, morador do bairro; • a terceira, “Vitória da violência, lei do silêncio”, no jornal O Globo (25/08/2007), parte da série “Ditadura”, aborda uma suposta “lei do silêncio” imposta pelo comando do tráfico aos moradores das favelas.

Colagem de Alex Vieira.

Com relação à primeira, chama atenção o fato de que a maior preocupação citada quanto à ocorrência de tiroteios na Zona Sul seja a conseqüente desvalorização dos imóveis destes bairros, ou seja, o patrimônio parece ser priorizado em relação à vida. A segunda trata com perplexidade o fato de pessoas ilustres como o

prefeito e alunos de uma escola particular, dentre outros ricos, serem ameaçados por traficantes, sem, em nenhum momento, se mencionar o risco a que estão submetidos os muitos moradores das favelas que não trabalham no tráfico. Na terceira, que já denota alguma preocupação com os moradores das comunidades, o comando do tráfico é apontado como seu grande algoz, ignorando-se completamente a desigualdade social. Com base nesta temática controversa, propomos as seguintes questões: quem deve ser protegido pela polícia e pelo Sistema Penal? A elite branca que mora no asfalto das chamadas “zonas nobres” da cidade, em apartamentos com valor de mercado que alcançam até mais de um milhão de reais? Os turistas, hospedados em hotéis de três a cinco estrelas? Por que a orientação quanto aos tiroteios é diferente na Zona Norte? Embora lá também vivam brancos de classe média, o valor de mercado dos imóveis da Zona Norte é bastante inferior àqueles da Zona Sul, além de não existirem hotéis, nem turistas. Contudo, mesmo na Zona Norte, quando um cidadão de classe média é atingido por bala perdida ou violência brutal, ocorre, certamente, uma comoção pública maior do que quando são mortos inocentes nas favelas. Recordamos que, até as décadas de 1960/70, a “solução” do problema das favelas por meio de sua “remoção” ainda impregnava fortemente o discurso da classe média carioca. Fez parte da política do governo Carlos Lacerda (1960-1965), em especial, expulsar os moradores das favelas situadas em regiões valorizadas para a periferia da cidade. A continuidade desta política de Lacerda, durante o governo de Maquinações 47 GLOBAL


mais matáveis, situadas em seu extremo inferior, não acarreta o mesmo impacto que quanto se tratam de vidas de “cidadãos de bem”, de fato, dotadas de “cidadania”.

Negrão de Lima (1965-1971), teve como exemplo emblemático o incêndio criminoso da favela da Praia do Pinto, no Leblon, em 1969, após o qual foi construído, no mesmo local, um conjunto de edifícios de classe média, denominado Selva de Pedra. Os antigos moradores foram “removidos” para a Cidade de Deus, em Jacarepaguá, sendo que, muitos deles, resistindo à remoção, mudaram-se para a Rocinha, que então cresceu significativamente. Haveria inúmeros outros exemplos de favelas removidas de maneira semelhante. No entanto, com o aumento vertiginoso dessa população, o discurso da “remoção” tornou-se incabível na atualidade, por mais que a visão de favelas vizinhas seja indiscutivelmente “desagradável” às classes média alta e alta da Zona Sul. Ao longo destas quatro décadas, constituíram-se comunidades extremamente populosas, em situações de vida, muitas vezes, precárias, no coração de bairros de elite, cujos imóveis possuem o metro quadrado mais caro do Brasil, na lista dos mais caros do mundo: tanto a Avenida Vieira Souto quanto o morro do Pavãozinho ficam em Ipanema. Teria o discurso da “remoção”, paulatinamente, cedido lugar ao da “repressão ao tráfico de drogas”? Se as favelas não deixaram de ser, no plano simbólico, um “tumor”, para a sociedade carioca, agora que não é mais possível uma cirurgia para “extirpá-lo”, seria o “caveirão” – carro blindado da Polícia Militar – uma espécie sofisticada de “radioterapia”? A repressão ao tráfico faz parte de um conjunto de políticas com as quais o Estado lida com as favelas, legitimadas, por sua vez, pelo importante discurso ecológico, que traz a preocupação com a segurança daquela população, em termos de Defesa Civil (risco de deslizamento de barrancos), e questões de ordem militar, ou seja, o combate ao tráfico propriamente dito. Simultaneamente, em meio às constantes trocas de tiros entre policiais e bandidos, a diferença, evidenciada pelos meios de comunicação, com que se trata da vida de acordo com as condições sociais e de moradia da população, remete-nos à idéia das “vidas matáveis”, expressão utilizada por Giorgio Agamben. Haveria um prisma onde se disporiam vidas mais matáveis que outras? O assassinato de vidas GLOBAL 48 Maquinações

Colagem de Alex Vieira. revistaprego@gmail.com

Neste contexto de valores, o Poder Punitivo não poderia atuar segundo outra lógica. A fim de ilustrar que a punição aos pobres sempre foi implacável ao longo da História do Brasil, basta lembrar que, quando promulgado, foi considerado um grande avanço de direitos, o artigo do Código Criminal do Império que limitava a pena de escravos a 50 açoites, já que, antes deste código, não existia uma lei criminal brasileira, e eram aplicados de 100 a 300 açoites por pequenos crimes, muitas vezes seguidos de meses de trabalho forçado em grilhões. Nos Estados Unidos, cujo sistema penal era reconhecidamente rígido em seu protestantismo, a pena máxima, por furto de um par de botas, era de 39 açoites. O curioso é que, ao se abordar a temática da violência nos (dentro dos mesmos) e (partindo) dos morros, não se toque em nenhum momento a questão da miséria em que vivem, a ausência de direitos básicos tais como saneamento, acesso à saúde e educação. Como se fosse um fato da natureza, uma única realidade possível, a desigualdade social, não é absolutamente notada.

Se as favelas não deixaram de ser, no plano simbólico, um “tumor”, para a sociedade carioca, agora que não é mais possível uma cirurgia para “extirpá-lo”, seria o “caveirão” – carro blindado da Polícia Militar – uma espécie sofisticada de “radioterapia”?

Diante deste “discurso único”, as alternativas são as mesmas de sempre: repressão policial, combate ao tráfico, construção de mais penitenciárias, aumento das penas, diminuição da maioridade penal e tantas outras “soluções”. Por outro lado, alternativas, que começam a ser discutidas, devem avançar: a descriminalização do consumo, produção, distribuição e comércio de todas as drogas; o reconhecimento de quinhentos anos de opressão à população pobre, da riqueza de sua cultura, da dívida histórica de nosso passado escravocrata, ainda presentes no velado racismo brasileiro; a regularização fundiária dos terrenos das favelas, com investimento maciço em saneamento básico, saúde, educação e cultura. O empenho político neste sentido traria como maior benefício a tranqüilidade da própria elite, cujo imaginário é povoado (assaltado) por antigos fantasmas: “já pensou o dia em que a Rocinha descer...?”




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