Pode dar certo! Proposta de Reforma Universitária do governo Lula é uma oportunidade para abrir de vez a universidade aos setores de excluídos históricos do país Já é óbvio enfatizar os impasses que, após um ano e meio da posse, o Governo Lula está enfrentando. A situação é até paradoxal: ninguém pode ver a emergência de uma proposta de "oposição" (a menos que uma pessoa sensata veja algo de novo na Senadora Heloisa Helena comemorando a "derrota" do governo de mãos dadas com o ACM). O fato é que a oposição é interna ao próprio PT e, de uma certa maneira, ela atravessa aquela que era sua base intelectual (seus "intelectuais orgânicos" diria o velho Gramsci) e parece cindir o próprio governo, naquilo que a imprensa define como confronto entre "financistas" e "nacional-desenvolvimentistas" (poderíamos caricaturar ainda mais, dizendo que se defrontam Palocci-Mereilles, de um lado, e Lessa-Maria da Conceição Tavares, do outro!). Acima de todos, o FMI! Já tivemos ocasião de dizer que a política global do governo Lula representava, justamente em face desses impasses, uma inovação. E continua sendo, embora precise se reforçar na dinâmica dos movimentos, em particular para fazer com que – por exemplo – as relações com a Argentina de Kirchner não fiquem hipotecadas pelos interesses conservadores de algumas cadeias produtivas e possam se abrir, ao contrário, à circulação dos homens e dos movimentos. Agora, o que está acontecendo, no âmbito nacional, no que diz respeito à área de educação, mostra que há um enorme espaço de ação que independe do FMI e que o confronto entre "financistas" e "desenvolvimentistas" só se constitui num impasse porque se trata de uma falsa alternativa. Por intermédio do novo ministro da educação, o governo Lula está se lançando num projeto de reforma universitária que pode constituir uma real e radical mudança de prioridades: projeto ambicioso de expansão das vagas de alunos; eliminação do vestibular; introdução de critérios de ação afirmativa; constituição de novas formas de financiamento das universidades públicas; definição de políticas públicas ativas vis-àvis as universidades particulares, que põem fim à hipocrisia que consistia em deixálas se desenvolver graças ao não funcionamento do sistema público. Enfim, o ministro Tarso Genro está tentando mobilizar a sociedade para que um reduto de qualidade (a universidade brasileira) deixe de ser um instrumento de reprodução da elite para se tornar um recurso fundamental de integração social e, assim, de desenvolvimento, com redução das desigualdades sociais e raciais que assolam nosso país. Aí que o impasse surge com uma outra cor: a maior oposição que o governo vai enfrentar nessa reforma é por parte da chamada esquerda "universitária" que, como sabemos, com uma retórica radical, defende os interesses corporativos. Na questão universitária, o abraço entre Heloísa Helena e os piores interesses oligárquicos e neoescravagistas não se reduz a mais uma triste imagem de nossa democracia tupiniquim: trata-se de uma real aliança entre interesses ultra-conservadores. Em face dessa aliança, são os movimentos que devem se apropriar do espaço aberto pelo governo e praticar a mudança. A dinâmica do novo movimento docente da UFRJ – com o Fórum Universidade Aberta – é exemplar: depois da derrota do corporativismo sindical em ocasião da reforma da previdência (em 2003), o movimento docente da maior federal do País conseguiu, em julho e agosto de 2004, afirmar-se como referente para a negociação salarial – aceitando a proposta do Governo – e invertendo definitivamente a pauta universitária: não mais greves corporativas, mas mobilização para abrir a universidade à sociedade, tornando-a realmente pública. Os números da assembléia de 4 de agosto de 2004 no Centro de Ciências da Saúde (CCS) são emblemáticos: 104 professores votaram a favor da proposta salarial do governo (54 contra); 177 professores votaram contra a greve (29 a favor). Por que essa diferença de votos e de quorum? Porque nosso sindicalismo radical é anti-democrático, simpático aos métodos fascistas e pelegos: com a ilusão de ganhar, dividiram a assembléia entre filiados e não filiados e, atribuindo a cada categoria uma cor (verde para os não-filiados e amarelo para os filiados), impediram os "verdes” de votar sobre a política salarial! Só que, como os cartões amarelos se esgotaram, tiveram que entregar cartões azuis: a cor da assembléia ficou próxima à do arco íris da democracia! Seção 1 GLOBAL
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Comitê Editorial e Coordenação Executiva Alexandre do Nascimento Barbara Szaniecki Caio Márcio Silveira Ecio de Salles Ericson Pires Fábio Malini Francisco Guimarães Gerardo Silva Giuseppe Cocco Ivana Bentes Leonora Corsini Maria José Barbosa Patricia Fagundes Daros Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Peter Pál Pelbart Ronald Duarte Tatiana Roque Conexões Globais Antonio Negri (Itália), F. Ingrassia (Argentina) Javier Toret (Espanha) Luca Casarini (Itália) Marco Bascetta (Itália) Michael Hardt (Estados Unidos) Nicolás Sguiglia (Espanha) Raul Sanchez (Espanha). Conselho Editorial Adriano Pilatti Alexandre Vogler Ana Monteiro André Basseres André Urani Charles Feitosa Emanuele Landi Eugênio Fonseca Fernando Santoro Hermano Viana João Almeida Sobrinho Joel Birman Jô Gondar Kiko Neto Leonardo Palma Lorenzo Macagno Luis Andrade Luiz Camillo Osório Mauro Sá Rego Costa Simone Sampaio Suely Rolnik Revisão dos Textos Fábio Goveia Fábio Malini Leonora Corsini Design Do Lar Design Ltda Barbara Szaniecki / Mercedes Louge Pesquisa de Imagem Ronald Duarte
GLOBAL. 2 Sumário
Capa Amor viciado de Marcos Cardoso, guimbas sobre isopor. Foto Eduardo Câmara Banquete Antropofágico de Lygia Pape, Participaram deste número / Textos Adriano Pilatti Alexandre do Nascimento Ava Patrya Yndia Yracema Gaitán Rocha Cecília Cotrim Étienne Balibar Gerardo Silva Giuseppe Cocco Hamilton Garcia Ivana Bentes Michael Hardt Nilson Primitivo Norman Solomon Osvaldo Saidón Raúl Sanchez Romaric Sulger Büel Simone Michelin Tatiana Roque Participaram deste número / Imagens Alunos do CEASM Angelo Ferreira de Souza Arquivo rés-do-chão Associação Ya Basta Cédric Vernay Cildo Meireles Eduardo Câmara Eduardo Coimbra Edson Barrus Guga Ferraz Hérico Ramos da Silva Marcelo Corrêa Marcia Baldissara Marcos Cardoso Pojucan Ronald Duarte Tempo Glauber The Jewish Museum, Prague Quadrinhos Tarja Preta / Leonardo Colaboração Zé Colmeia
Trânsitos
Dossiê Pasolini
Conexões Globais
Quadrinhos
Jornalista responsável Fábio Luiz Malini de Lima GLOBAL Brasil é uma publicação da Rede Universidade Nômade e da Editora DP&A Rua Joaquim Silva 98 - 2o andar 20241-110 Rio de Janeiro - RJ Tel 55 21 2232 1768 global.al@terra.com.br GLOBAL Brasil é a edição brasileira associada ao GLOBAL PROJECT www.globalmagazine.org Distribuidor exclusivo para todo o Brasil: Fernando Chináglia Distribuidora S/A Rua Teodoro da Silva, nº 907 - Vila Izabel Cep 20563-900 - Rio de Janeiro/RJ Tel (21) 21953200
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brasil
G L O BA L (01) Editorial
(04) As razões do dissenso petista Hamilton Garcia (06) Entre a fuga e a escravidão Adriano Pilatti (08) A nova cidade partida Romaric Sulger Büel (10) “Os direitos humanos não nos farão abençoar o capitalismo!” Giuseppe Cocco (14) A arte de governar Tatiana Roque (16) Intelectuais orgânicos Ronald Duarte
(20) Exposição Pasolini e a carne Michael Hardt (25) Hierarquia Pier Paolo Pasolini (28) O filme “Dramática” Ava Patrya Yndia Iracema Gaitán Rocha (29) “Kryzto não mora na kruz” Ivana Bentes
(32) No rastro do “efeito Zapatero” Raúl Sanchez (34) “Arbeit Macht Frei” Gerardo Silva (36) Universalidade da Causa Palestina Étienne Balibar (40) Uso e abuso - De Attica a Abu Ghrai Norman Solomon
(42) Balada Perdida Tarja Preta/Leonardo
(44) Reforma universitária: a proposta do MEC e algumas questões Alexandre do Nascimento (46) Pelo fim do velho corporativismo Giuseppe Cocco
(48) Encontro de esquizoanálise Osvaldo Saidón (50) Cinema Crime Nilson Primitivo (52) Nós contemporâneos rés-do-chão açúcar invertido Cecília Cotrim (54) O efêmero que se prolonga Simone Michelin Sumário 3 GLOBAL
O PT felizmente submete o socialismo à democracia e acaba se reinventando Hamilton Garcia
Ação de Hérico Ramos da Silva, sem título, Macapá, 2001
O PT amadureceu e, claro, sofreu defecções. Trata-se de duas faces de um mesmo movimento: amadurecer é aperfeiçoar-se eliminando elementos que, outrora, desempenharam funções vitais, mas que esgotaram as possibilidades de dar frutos. Pode parecer duro dizer isto, mas esta é a verdade da lei do crescimento humano. Não por coincidência, o amadurecimento do PT está sincronizado com o amadurecimento de seus principais protagonistas, outrora sindicalistas radicais e guerrilheiros. O sonho da sociedade justa, que se imporia pela superioridade moral, esvaiu-se numa história dramaticamente vivida por estes personagens e que merece ser mais discutida pelos historiadores. Após longa e romântica trajetória de lutas – tal como já havia ocorrido aos comunistas do PCB – os petistas, enfim, entenderam que as possibilidades objetivas para mudanças revo-
lucionárias no Brasil tornaram-se remotas depois do "milagre brasileiro". De nada adiantaria ao PT manter-se preso aos ideais socialistas dos primeiros dois terços do século XX se este ideal perdera não só seu significado revolucionário, como ainda a própria aderência à realidade. Todos aqueles que se colocam no campo do que poderíamos chamar de "socialismo científico" não poderiam deixar de reconhecer que um atraso já superado pela democracia e pela industrialização não pode ser ressuscitado apenas para satisfazer necessidades ético-políticas. Para esses, naturalmente, o mais sábio, diante do esvaziamento do socialismo, é a busca de alternativas tendo por base o lastro histórico das iniciativas socialistas escandinavas e comunistas italianas e, mais recentemente, dos esforços renovadores de chineses, vietnamitas, angolanos e cubanos.
As razões do
Ressentidos Este não parece ser o caso dos intelectuais e parlamentares que dissentiram do PT. Esta esquerda, que por causa disto designarei “utópica” (filosofia) por oposição a “científica” (economia política), continua, de uma forma mais explícita ou dissimulada, aferrada ao velho socialismo revolucionário, embora desprezando sua herança burocrático-bolchevista. Do contrário, ao invés de propor que o movimento socialista institua uma pressão de fora capaz de mudar a política econômica no sentido da ruptura com o mundo capitalista, buscariam alternativas econômicas que não gerassem ingovernabilidade.
Centro do debate O ponto nodal do dissenso, portanto, por mais que se regateie, retorna sempre à velha opção pelo socialismo em detrimento da democracia. Sendo assim, tentemos agora entender as razões que levaram o PT a inverter a equação histórica e passar a subordinar, tal como o antigo PCB, o socialismo à democracia, o que, na prática, significa a total reinvenção do socialismo tal como praticado no século passado. O amadurecimento de Lula e de seu grupo foi o coroamento de uma longa e árdua trajetória rumo ao governo, marcada por sucessivas e inapeláveis derrotas eleitorais no plano nacional que produziram, por assim dizer, choques sucessivos de realidade nos experimentados dirigentes petistas, forçando-os a maior compreensão acerca do significado político do recente ciclo de reconstituição do Estado democrático brasileiro.
dissenso petista “tentemos agora entender as razões que levaram o PT a inverter a equação histórica e passar a subordinar o socialismo à democracia, o que, na prática, significa a total reinvenção do socialismo tal como praticado no século passado”.
A crítica que fazem ao governo, na verdade, é apenas a forma que a crítica ao capitalismo deve assumir para transitar do terreno do abstrato ao concreto, como aliás é clássico na literatura marxista. Os impasses reais na política econômica são mobilizados pelo discurso utopista, não para produzir uma solução em si – o que seria desejável – mas para resolver, via crise, as iniqüidades do sistema burguês.
Este texto foi publicado, na íntegra, na revista Gramsci e o Brasil (http://www.artnet.com.br/grmsci/arquiv319.htm)
Dezoito anos depois da resistência à participação no Colégio Eleitoral do regime militar, treze anos transcorridos do rechaço ao apoio de Ulisses Guimarães no segundo turno das eleições de 1989 e onze anos após a recusa em formar no governo de coalizão pós-Collor, o PT, enfim, curvou-se à realidade nacional e aceitou compor com correntes políticas democráticas que habitavam o centro do espectro político ou seu entorno. A adesão do PT à democracia No transcurso deste longo trajeto, o enquadramento das tendências socialistas "ortodoxas" nos anos 90 foi um marco. Os petistas, em grande parte criados e formados na perspectiva economicista do sindicalismo, na crença igualitarista das pastorais católicas e na prática vanguardista dos dissidentes comunistas, foram assimilando a gestão do Estado democrático como um elemento da nova ordem social postulada. Sábia assimilação pois, do contrário, estariam fadados ao papel secundário do oposicionismo sistêmico ainda praticado por partidos comunistas restantes. Numa sociedade
majoritariamente moderna e hostil aos projetos ditatoriais, de direita ou de esquerda e que, superando grande parte dos obstáculos históricos à modernidade (indústria), não enxerga nenhuma vantagem adicional no advento do socialismo, isto equivaleria à desistência de disputar o poder com as classes tradicionalmente dominantes. Aqui temos a primeira razão substancial para a dissidência anunciada pelos setores radicalizados da esquerda petista. Os militantes que se mantêm fiéis à teoria da necessidade da mudança do tipo de Estado para consumar a transformação social não podem aceitar, nem em termos táticos, uma forma tão enfática de adesão ao Estado democrático que fecha definitivamente as portas para um programa partidário de tipo socialista clássico. Preferem pagar o preço do isolamento, para manterem-se coerentes, a terem que admitir que o ciclo de ocidentalização (democratização) do Estado brasileiro completou-se com Lula, inviabilizando a superação revolucionária de um aparato de poder que se tornou nacional, ao invés de meramente burguês. Não obstante a predominância liberal dos últimos 18 anos, sob variadas combinações, nenhum arranjo político moderado foi capaz de atender à pauta transformadora que tensionou o longo processo de transição do país do autoritarismo à democracia. Em outras palavras: os petistas não se furtaram a completar o ciclo de ocidentalização que se afigurava como a condição necessária para sua ascensão ao governo. A inflexão do impedimento e o significado da formação da coalizão próItamar, no que significavam de ultrapassagem do liberalismo histórico brasileiro, só agora foi plenamente assimilado pelo PT. Esgotaram-se as possibilidades de postergar a agenda sócio-econômica aberta pela redemocratização, que soava como um gesto suicida aos ouvidos dos liberais históricos – presos que estavam, e ainda estão, à herança do longo domínio da dominação oligárquica no país – e o PT, felizmente, desistiu de ver o cavalo passar de novo selado à sua frente tendo preso aos pés a bola de ferro dos utopistas. Trânsitos 5 GLOBAL
Tecn ocra cia bras ileir a se em esfo trib de d rça u t i a nhe r re mas iros m essa aind dos o av s aé e anç mig tími o do r ado da e trab s, mc alho ontr escr olar avo no p aís. Adr iano Pila tti
entr ea fuga ea escr avid ão Deu n'O Globo: segundo o Banco Central, os quase dois milhões de brasileiros que trabalham no exterior deverão remeter cerca de US$ 2,5 bilhões para o Brasil neste ano. Trabalhadores de classe média e "média baixa" em sua maioria (segundo a Unicamp), eles já remeteram US$ 6 bilhões nos últimos três anos. Enquanto a contribuição do trabalho para o balanço de pagamentos do País não chegava a US$ 300 milhões por ano na década de 1980, a média mensal em 2002 chegou a US$ 200 milhões. Esses dados parecem fortalecer a hipótese de aceleração do êxodo dos trabalhadores nesta era "imperial" e a conseqüente necessidade de pensarmos em novas formas e escalas de luta no campo da liberação do trabalho. Em 2003, as remessas dos trabalhadores brasileiros emigrados chegaram a US$ 2,2 bilhões. Superaram as divisas obtidas com exportação de açúcar (US$ 2,1 bilhões), aviões (US$ 1,9 bilhão) e café (US$ 1,5 bilhão). Representaram mais de 1/4 das divisas provenientes da exportação do "complexo soja" (US$ 8,1 bilhões), a
GLOBAL 6 Trânsitos
mais nova vedete do ufanismo com que o vetusto latifúndio monocultor e exportador encobre a predação social, econômica e ambiental que vem realizando, secular e impunemente, entre nós. Os números falam por si: já não se trata de cantar emotivamente a saga das "formiguinhas" que emigram, produzem riqueza e remetem aos familiares a poupança resultante de sacrifícios inimagináveis. Já não se trata sequer de comparar essa epopéia com a atitude de uma elite predadora de "empresários nacionais" que remete para (outros) paraísos fiscais os bilhões obtidos às custas da exploração do trabalho e da especulação financeira. Trata-se de reconhecer a importância econômica dos esforços realizados pelos que fogem da servidão a que o trabalho continua submetido no "País do Futuro", e inserir este dado nas reflexões sobre as lutas globais de liberação. Pois a verdade é que, enquanto isto, no País do Cangaço, o trabalho escravo tout court continua a grassar. É "coisa nossa".
Escravidão Deu na Folha de São Paulo: relatórios de fiscalizações realizadas pelo Ministério do Trabalho entre janeiro de 2000 e dezembro de 2003 revelam que "o trabalho escravo acompanha o avanço das fronteiras agrícolas e da pecuária e está presente em grandes empreendimentos agrícolas para a exportação e em modernas fazendas de criação de gado que estão no topo da vanguarda tecnológica. É a face obscura de parcela do agronegócio, uma cicatriz escondida em meio à riqueza." Segundo dados do Ministério, de janeiro de 1995 até o início de julho de 2004, foram resgatados 11.969 trabalhadores rurais escravizados. Resgates foram feitos inclusive em fazendas equipadas "com pista de pouso para aviões de médio porte e sedes suntuosas, mas que alojavam os trabalhadores temporários nos currais ou em barracas de plástico, sem paredes, escondidas na mata."
Árvore do dinheiro de Cildo Meireles. 100 cédulas de um cruzeiro dobradas, presas por dois elásticos cruzados, colocadas sobre plinto tradicional para escultura.
Entre a situação dos peões escravizados pelo agrobusiness e a contribuição dos emigrados para o equilíbrio das contas externas, um oceano de reflexões precisa ser percorrido. Com efeito, esses dois extremos caracterizam a complexidade dos desafios que as lutas pela liberação da potência produtiva da multidão apresentam nesta bella e misera porção do planeta, e as conexões que podem ser solidariamente estabelecidas com o conjunto de lutas que atravessa o Império. Está claro que o Governo nacional encontra limites em sua atuação em ambos os pólos. Mas exatamente por isto os movimentos de liberação precisam, entre outras coisas, pressionar
o que resta do Estado nacional brasileiro para que esgote o campo do possível, com a utilização dos instrumentos disponíveis, seja para combater o banditismo disfarçado em agronegócio, seja para proteger, apoiar e amparar os trabalhadores que se lançam rumo ao êxodo. No primeiro caso, o Governo Lula parece ter intensificado os esforços repressivos, o que é necessário mas insuficiente, pois pouco se avança no campo do Direito à Reapropriação; no segundo caso, o máximo que se tem feito é pressionar pela redução das taxas cobradas pelos bancos sobre os recursos remetidos para o Brasil. Segundo o mesmo O Globo, essas taxas chegam, em alguns bancos, a cerca de 10% do
valor da remessa! – o dízimo que a Banca cobra para, possível e pornograficamente, remeter lucros para fora... É claro que é preciso mais: é preciso um esforço consistente, por parte dos governos populares e dos movimentos sociais, em favor da construção de um regime efetivo de liberdade de trabalho em nível mundial (green card para todos!), base necessária para a construção do Direito à Cidadania Global. Se a riqueza produzida e repatriada pelas formiguinhas supera os ingressos oriundos dos canaviais e cafezais subsidiados, é urgente que a tecnocracia recém-conversa à ideologia do equilíbrio de contas dedique, aos que recusaram a Senzala, o mesmo carinho que tem dedicado aos mudernos sinhozinhos da agroindústria – nome novo para o Engenho e a Casa-Grande velhos de guerra. Trânsitos 7 GLOBAL
a nova cidade
Senhoras e Senhores, Caros Amigos, o meu título de cidadão de honra do Rio de Janeiro e a minha nova nacionalidade brasileira me dão uma responsabilidade. Esta responsabilidade, eu pretendo usá-Ia agora. Tenho a rara e extraordinária oportunidade de poder me dirigir a todos vocês, responsáveis políticos, atores da vida social, econômica e cultural da cidade maravilhosa. O Rio de Janeiro atual é em parte o resultado de um problema institucional e político mal resolvido. Uma vez decidida a transferência da capital federal GLOBAL. 8 Trânsitos
do Rio para Brasília, faltaram energia, imaginação e previsão das conseqüências deste ato fundamental para o país. Na efervescência, na exaltação do acontecimento de uma realização histórica, o futuro e a viabilidade econômica e social da Cidade Maravilhosa passaram ao segundo plano. Com certeza não era na época a prioridade. O resultado é que, contrariando a história territorial da Nação, foi criado um novo e pequeno Estado. Hoje é flagrante que esta entidade territorial não nasceu bem. Tirar da cidade – que nunca foi o equivalente a Bonn (pequena capital pro-
visória da Alemanha Ocidental) – a administração, as embaixadas, os órgãos financeiros ligados à União e todas as empresas e profissões que tinham ligação direta com o poder, deixou o Rio de Janeiro enfraquecido. Cabeça gigante de um estado anão, sem verdadeiro "hinterland", o Rio virou uma anomalia. Não tem outra situação semelhante na União inteira, de um tão pequeno estado com uma capital de 6 milhões de habitantes (11 a 12 contando o grande Rio), verdadeira realidade urbana da cidade de hoje. Aqui o poder estadual e o poder municipal não podem se desen-
parvolver em harmonia. O açude para dois monstros marinhos é pequeno demais. Ao risco de ser chamado de Cassandra, eu afirmo que os problemas do Rio só começaram e que a questão central a ser resolvida é a sua dimensão metropolitana. Quem pode hoje aceitar que o Rio seja só o município do Rio? Com certeza, os municípios que constituem o Grande Rio têm que conservar as suas especificidades e as suas almas. Mas não existe no mundo uma conurbação do tamanho da do Rio que não seja, em parte, administrada por uma associação ou sindicato. Existem problemas comuns (tratamento do lixo, transporte, saúde, habitação etc.) que poderiam ser examinados, estudados em conjunto, pelo bem da população e pela busca de economia de escala. Achar que o Rio é só a ficção dos seus limites antigos e das suas novas conquistas na direção do Sul consiste em uma falta de visão grave, que compromete ainda mais o equilíbrio e o futuro das cidades. Os problemas não param nas fronteiras bem pouco materializadas do município! Existem, posso afirmar, soluções já pensadas e rapidamente realizáveis, a um investimento também razoável. Veja-se o caso dos tranportes. Como se sabe, o maior custo para implantar o metrô é a construção dos trilhos. Existe um projeto (que dorme) de transformar a rede ferroviária da Leopoldina em metrô a um custo baixo! Isto permitiria que todos os bairros da Zona Norte fossem "irrigados"' a curto prazo. Nesses bairros, que compõem uma zona aonde moram 42% dos cariocas, encontram-se ainda 40% das indústrias e 35% do comércio do município. Da mesma forma, o metrô poderia alcançar a Zona Oeste (Campo Grande, Santa Cruz) e a Baixada Fluminense (Caxias, Nova 1guaçu, Mesquita, Nilópolis, São João de Meriti, etc.). Sabe-se que todas essas Zonas do Rio mais a sua periferia representam 70% da população metropolitana! Este projeto deveria ser uma das urgentes prioridades para os municípios do Grande Rio. Enquanto isto, alguns poucos sonham em aumentar o desequilíbrio entre a Zona Norte e a Zona Sul, sem, portanto, resolver os problemas do Centro, ou da
Políticas urbanas no Rio valorizam cada vez mais a Barra da Tijuca, reinventando uma nova divisão da cidade. Romaric Sulger Büel Zona Oeste! Fala-se e escreve-se, por vozes e mãos autorizadas, que de 70% a 80% dos 8 bilhões de dólares previstos no orçamento (sendo que no Rio só se fala em dólares) para conseguir a realização dos Jogos Pan-Americanos, serão destinados à Barra. Os jogos PanAmericanos representam com certeza uma oportunidade para o Rio. Muitos países e cidades no mundo aproveitaram deste tipo de evento para desenvolver novas políticas de urbanismo e reequilibrar zonas abandonadas ou excluídas. É verdade que esse fantástico pretexto pode permitir a redefinição de políticas urbanas, turísticas, sociais e de uma maneira mais ampla definir novas políticas econômicas no Rio. Mas, privilegiar sistematicamente a Barra é perder uma rara possibilidade de tentar reverter uma situação de exclusão, de fato, da Zona Norte. Nunca haverá dinheiro suficiente para construir infraestruturas essenciais na Barra, sem se correr o risco de deixar o restante da cidade abandonado. Cuidado! O que se passa nas grandes cidades do mundo é exatamente o contrário, quando todas entraram num processo radical de revalorização de seus Centros e do seu patrimônio construído, inclusive São Paulo. O Rio encontra-se ainda num processo destrutivo. Não podemos sonhar em transferir a "centralidade" para as áreas em expansão. Poderia talvez interessar ao capital imobiliário e aos grandes proprietários, convencidos de que o futuro encontra-se fora de uma zona que eles abandonaram? Mas o futuro do Rio só é possível com a reabilitação sistemática do Centro, com a volta da moradia no Centro e com o equilíbrio entre as Zonas Sul, Oeste e Norte. Não ter essa visão, ou disfarçar o fato
tida de não tê-la, satisfazendo-se com operações espetaculares no Centro consiste em um grande erro, fatal para o futuro das novas gerações. Parece que hoje tudo gira em torno da busca do fortalecimento da Barra como se ela fosse a única zona atrativa possível. Só se fala em metrô, Jogos Olímpicos, saneamento, construção de edifícios residenciais... para a Barra. Não diria, porém, que a Barra não precisa de infraestrutura. Mas parece que nossa elite, talvez achando-se incapaz de reverter situações difíceis no Centro, na Zona Oeste e na Zona Norte, com exceção de medidas "cosméticas", prefere disfarçar as suas verdadeiras intenções, pensando numa fuga ilusória para a Barra. Mais uma vez, a Barra, menos segura, como já acontece, menos na moda e ainda sem orientação precisa da parte da Federação, do estado ou da cidade, é incapaz de reunir e de se unir para pensar o bem geral da população. Quem serão os próximos privilegiados? Sepetiba? Acho que chegou a hora de nos sensibilizarmos às nossas responsabilidades de cidadãos, de políticos e de empresários. Trata-se de fazer hoje o dia de amanhã. Temos que encontrar a energia, a coragem para conseguir ultrapassar nosso egoísmo, os nossos interesses particulares, não somente revertendo uma situação grave, mas também entendendo que nossa conscientização significa o futuro dos nossos filhos e netos; caso contrário, eles serão vítimas da nossa culposa falta de visão e da nossa mesquinha paixão por facilidades, acomodações e outros "jeitinhos". Um dia, não tão longe, a exclusão, a desigualdade e a nossa incapacidade de construir o futuro, farão com que paguemos um preço bem caro.
Muito obrigado! Trecho do discurso proferido na câmara de vereadores RJ em 6 de novembro de 2003.
Alex de Marcos Cardoso. Colagem em plástico, 2004. Trânsitos 9 GLOBAL
“Os direitos humanos não nos farão abençoar o capitalismo!” Uma entrevista imaginária com os filósofos Félix Guattari e Gilles Deleuze
Giuseppe Cocco GLOBAL. 10 Trânsitos
Uma imagem, terrível: o cadáver de um homem jovem negro e anônimo sendo transportado seminu, de bruços e já desengonçado pela rigidez post mortem num carrinho de mão por alguns policiais que descem a favela da Rocinha no Rio de Janeiro: a vida nua massacrada pela vida política. Os policiais olham para o fotógrafo como se "aquilo" que carregam não fosse um homem. Por que será que, diante da crescente amplificação do discurso sobre direitos humanos, não pára de crescer o número de homens sem direitos? A partir dos textos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, simulamos uma entrevista em que eles falam o que pensam dessa impossibilidade de se universalizar os direitos humanos.
GLOBAL: O que os Senhores pensam desse paradoxo do peso crescente do discurso dos "direitos humanos" em face do número cada vez maior de homens sem direitos ? Deleuze e Guattari: Cremos que, apesar do sonho da filosofia alemã, não existe um Estado democrático universal. GLOBAL: Por quê ? Deleuze e Guattari: Porque, no capitalismo, a única coisa que é universal é o mercado. GLOBAL: Os Senhores querem dizer que, nesse contexto, os modelos políticos podem ser diferentes, mas o mercado mundial encontra sempre um compromisso com cada um deles ? Deleuze e Guattari: Os modelos de realização podem ser democráticos, ditatoriais, totalitários etc. etc. Mas, por diferentes que sejam, são sempre análogos ao mercado
mundial. É por isso que os Estados democráticos são tão ligados, e até comprometidos, com os Estados ditatoriais. É necessário então que a defesa dos direitos humanos passe pela crítica interna de cada tipo de democracia. GLOBAL: Isso não significa colocar "todos no mesmo saco" e, no final das contas, dizer que somos todos responsáveis, negando qualquer perspectiva crítica, de mudança ? Deleuze e Guattari: Nada disso! Primo Levi dizia: não nos obrigarão a transformar as vítimas em carrascos. Mas o que o nazismo e os campos nos inspiram é, diz ele, muito mais ou muito menos: a vergonha de ser um homem, pois também os sobreviventes tiveram que pactuar, se comprometer… Agora, não sentiremos vergonha de sermos homens apenas nas situações extremas descritas por Primo Levi, mas também nas situações insignificantes, frente à baixaria e a vulgaridade de existência que ameaça as democracias, diante da propagação desses modos de existência e pensamentopara-o-mercado. Trânsitos 11 GLOBAL
GLOBAL: Mas então, mais uma vez, todo o mundo é responsável? Deleuze e Guattari: Sim, no sentido de que não se trata apenas dos Estados, mas de cada um de nós, de cada democracia que, se não é diretamente responsável pelo nazismo, é sujada por ele. As insuficientes possibilidades de vida que nos são oferecidas surgem de dentro. Nós não somos externos a nossa época. Pelo contrário, não cessamos de estabelecer com ela compromissos vergonhosos. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante das vítimas.
GLOBAL. 12 Trânsitos
GLOBAL: E os direitos humanos são, então, o fato dessa ignomínia dos compromissos estabelecidos em torno da desigualdade? Deleuze e Guattari: O fato é que – no mercado – os direitos humanos coexistem, por exemplo, com a segurança da propriedade que, ao contrário, ignora-os ou até os nega: quem pode segurar e gerir a miséria das favelas senão polícias e exércitos potentes que coexistem com a democracia? Os direitos humanos não nos farão abençoar o capitalismo! Os direitos humanos não dizem nada sobre os modos de existência (imanentes) do homem dotado de direitos.
GLOBAL: Isso significa que, à moral dos direitos humanos (ou seja de princípios abstratos separados das condições materiais de sua aplicação) se opõe à ética dos homens dotados de direitos (ou seja de homens que produzem materialmente seus direitos)? Deleuze e Guattari: Não precisamos de mais comunicação, ao contrário temos comunicação demais. O que nos faz falta é criação. O que nos faz falta é resistência ao presente. A criação (de conceitos) baseia-se nela mesma, numa forma futura: ela chama uma nova terra e um povo que ainda não existe. A europeização não constitui um devir, ela apenas constitui a história do capitalismo que impede o devir dos povos subordinados. A arte e a filosofia se juntam nesse ponto, a constituição de uma terra e de um povo que faltam, como correlato da criação. Resistir é criar, resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente.
As imagens acima fazem parte de uma oficina de fotografia com câmeras furo de agulha oferecida pela ong CEASM-Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré e desenvolvida por Tatiana Altberg. Os alunos participantes são crianças e jovens de 11 a 15 anos de escolas municipais. A fotografia “pinhole”, como é mais conhecida, é um processo que permite a fabricação das cameras pelos próprios alunos usando apenas uma lata. As atividades propostas têm como objetivo dar instrumentos para que as crianças possam expressar-se e desenvolver um olhar critico sobre o mundo em que vivem. Participaram dessa oficina: Angélica Paulo, Daniel Gomes da Silva, Deyvid Ferrreira (páginas 10 e 11), Felipe Aprigio, Felipe Oliveira de Lima, Isabella Ramos da Silva, Janine Faria da Cruz, Jordanna Tavares da Cunha (páginas 10 e 11), Mariana Fernandes, Pâmela da Silva, Renato Nascimento. Trânsitos 13 GLOBAL
Tatiana Roque
A arte de
Poemas visuais de Ângelo Ferreira de Souza
GLOBAL. 14 Trânsitos
Para escapar do dualismo Mercado ou Estado, novos movimentos sociais devem avaliar o momento que se deve ser a favor de um deles.
governar Volta e meia vem à tona, nos comentários sobre o governo Lula, a sua ambigüidade. Fala-se de sua divisão entre os projetos financista e desenvolvimentista, como se estivesse em jogo uma disputa de forças que pudesse ser vencida por um dos dois lados, sendo o primeiro, por ora, o vencedor. A detecção de uma disputa deste tipo sofre ataques, ao mesmo tempo, de correntes tidas como de direita e de grupos reconhecidos como de esquerda. Os críticos à esquerda, nos quais estão incluídos atuais e antigos petistas, consideram ser necessário derrotar o projeto econômico que estaria vendendo o país aos interesses internacionais, como se o fortalecimento do Estado nacional fosse capaz de vencer as forças imperialistas representadas pelo FMI. Os outros, como aqueles que governaram o país durante oito anos, denunciam o fato de o atual governo não acreditar nos avanços que o livre comércio pode propiciar, como se vivêssemos em um mercado global realmente igualitário em oportunidades e possibilidades de negociações comerciais. De um lado o Estado, de outro o Mercado (com M maiúsculo).
Falso dilema Trata-se de uma verdadeira questão ética, que não se confunde com o moralismo embutido em críticas a indícios de corrupção, mal intrínseco à democracia representativa. Uma questão ética parecida com o dilema enfrentado por grande parte dos artistas. Como criar espaços para a produção de algo novo que, justamente por ser novo, não está sendo esperado,
Agradar a direita ou a esquerda (nacional ou internacional) é um falso dilema que impede, muitas vezes, que este governo invista no que ele tem de realmente inédito: localizar-se em cheio na encruzilhada contemporânea entre a falência de ambos os modelos – o do Estado e o do mercado.
Ainda que haja nuances entre estes dois pólos, há poucas diferenças qualitativas no conteúdo das críticas. Fica claro, no entanto, que nenhum dos dois discursos é suficientemente convincente para mobilizar a maioria, constituída por aqueles que não se enquadram, ou não mais se reconhecem, em nenhum dos dois grupos – nem na direita neoliberal, nem na esquerda tradicional nacionalista. Este deveria ser o público alvo deste governo. Aqueles que não fazem parte de organizações sociais baseadas na representação, mas estão em vias de constituir novos movimentos, com estruturas mais abertas e menos centralizadoras. Aqueles que ainda não fazem parte da casta de “formadores de opinião”, mas se mobilizam para ingressar na universidade estatal, tornando-a realmente pública. Aqueles que esbanjam criatividade, mas que ainda não detêm os meios de produção cultural para incrementar este que é o único setor da economia capaz de uma verdadeira expansão no mundo contemporâneo. Aqueles que se habituaram, há muito, seja por necessidade ou por descrença, a um certo pragmatismo em suas ações que aproximam, muitas vezes, seus dilemas daqueles que estão sendo enfrentados pelo próprio governo, possibilitando um entendimento de tipo novo. Ou seja, qualquer governo deveria governar para as pessoas comuns, no melhor sentido do termo.
nem pode ser absorvido pelo mercado? É necessário então adaptar o produto às demandas do consumo? Que compositor atual não se defrontou com esta dúvida: fazer a música exigida pelo mercado para aumentar seu público ou compor sem restrições da criatividade correndo o risco do isolamento? Esta aparente oposição passa ao largo de um problema bem mais complexo, pois não existe um público à espera de uma obra de arte, seja ela uma música, um quadro, um vídeo ou uma instalação. Cada trabalho artístico inventa o seu próprio público. Cada obra de arte inventa um gosto novo cuja inexistência torná-la-ia completamente abstrata. Mas este gosto também a trai, incluindo, ao seu bel prazer, a obra na vida. Os desdobramentos deste problema, para a arte, são muitos, e nos afastariam do objetivo deste artigo que é apenas o de se servir desta comparação para entender o dilema enfrentado pelo governo Lula em sua relação com o público. Agradar a direita ou a esquerda (nacional ou internacional) é um falso dilema que impede, muitas vezes, que este governo invista no que ele tem de realmente inédito: localizar-se em cheio na encruzilhada contemporânea entre a falência de ambos os modelos – o do Estado e o do mercado. Do lado do governo, seria preciso estar mais atento aos novos movimentos que se desenrolam na sociedade e que não podem ser avaliados pelos parâmetros tradicionais, nem os da representação nem os da ideologia. Do lado dos movimentos, não se trata de estar “a favor” ou “contra” o governo, mas de saber identificar o momento em que o governo está a nosso favor. Sim, um tipo de pragmatismo que é atravessado pela ética, uma ética que não se confunde com uma moral, uma vez que não se baseia no dever, mas no devir. Usar todas as armas a favor da construção de um mundo por vir, de um mundo sem governo. Trânsitos 15 GLOBAL
Ronald Marco Bascetta
GLOBAL. 16 Trânsitos
Tradução Gerardo Silva
Intelectuais Org창nicos, de Ronald Duarte / Fotos Marcia Baldissara
Tr창nsitos 17 GLOBAL
asolin
Dossier
GLOBAL 20 DossiĂŞ Pasolini
Quando há um só mundo,
Exposição
Pasolini e a carne
aonde vão as viagens?
Michael Hardt
A crucificação
Para Giorgio Agamben
Maurício Rocha
“Os lugares do pensamento são as zonas tropicais, freqüentadas pelo homem tropical. Não as zonas temperadas, nem o homem moral, metódico ou moderado” Gilles Deleuze, Nietzsche e a filosofia (1962).
Mas nós professamos o Cristo crucificado: escândalo para os Judeus, loucura para os Gentios. Paulo, Carta aos Coríntios. Todas as chagas estão ao sol e Ele morre diante dos olhos de todos: até a mãe sob o peito, o ventre, os joelhos, olha Seu corpo padecer. O amanhecer e o entardecer Lhe lançam luz sobre os braços abertos e o Abril enternece o Seu exibir a morte a olhares que o queimam Por que Cristo foi EXPOSTO na Cruz? Oh estremecimento do coração no corpo nú do jovem ... atroz ofensa ao seu pudor cru ... O sol e os olhares! A voz extrema pediu a Deus perdão com um soluço de rubra vergonha em um céu sem som, entre pupilas frescas e d’Ele entediadas: morte, sexo e zombaria. É preciso expor-se (isto ensina o pobre Cristo pregado?), a clareza do coração é digna de cada escárnio, de cada pecado de cada mais nua paixão ... (isto quer dizer o Crucifixo? sacrificar cada dia à doação renunciar cada dia ao perdão lançar-se, ingênuos, sobre o abismo).
Nesta página e nas seguintes, Forró dos sentidos. Ensaio fotográfico de Marcelo Corrêa
Foto Bel Pedrosa
Nós seremos oferecidos na cruz, à zombaria, entre as pupilas límpidas de feroz alegria, desvelando à ironia as gotas de sangue, do peito aos joelhos, suaves, ridículos, tremendo de intelecto e de paixão no jogo do coração queimado pelo seu fogo, para testemunhar o escândalo.
I. Encarnação O apóstolo Paulo escreve de sua cela aos Filipeus: Tenham, uns com os outros, em suas relações mútuas, a mesma atitude que encontramos em Cristo. Apesar de viver na forma de Deus, ele não via esta identidade divina como um bem precioso a ser explorado. Ao contrário, ele esvaziou-se de sua divindade tornando-se escravo, nascendo como outros seres humanos. E assumindo sua existência humana, ele se tornou humilde e obediente até à morte, mesmo a morte na cruz.
Abandonai-me! Encarnação tem tudo a ver com abandono – abandono à carne. Paulo diz que, ao tornar-se carne, Cristo abandona a forma de Deus; ele se esvazia e assume uma materialidade limitada. Este autoesvaziamento é exposição da carne. É um tipo de escravidão que pareceu a Paulo na prisão uma forma de libertação. E o que exatamente Cristo abandona ao esvaziar-se? Certamente não abandona a divindade enquanto tal; ao contrário, ele esvazia a forma transcendente da divindade, reconduzindo-a à materialidade da carne. Este ser abandonado pode parecer precário, sem esteio, lançado em um abismo, mas seu abandono, na realidade, atesta a plenitude da superfície do ser. O auto-esvaziamento ou kenosis de Cristo, a evacuação do transcendente é a afirmação da plenitude da matéria, da completude da carne. A encarnação é, antes de mais nada, uma metáfora da tese de que essência e existência do ser são uma única e mesma coisa. Não existe uma essência ontológica que se encontre além do mundo, assim como nenhum ser Dossiê Pasolini 21 GLOBAL
vivo, Deus ou a natureza estão fora da existência; ao contrário, tudo é plenamente realizado, tudo se expressa completamente na carne. A encarnação significa que a unicidade absoluta do ser, essa unicidade infinita e eterna, coincide com o constante devir de todas as modalidades da existência. A figura de Cristo tem sido interpretada como um ponto de mediação da relação exterior entre uma essência divina e uma existência terrena. Mas, a encarnação, o auto-esvaziamento de Cristo, nega qualquer possível exterioridade e, portanto, qualquer necessidade de mediação. Uma substância transcendente imaginada separada do mundo é meramente uma casca oca, uma forma vazia de vida. Ou melhor dizendo, o transcendente é melhor compreendido dentro do plano imanente, é uma potencialidade que vive no coração do imanente1. Transcendência, a condição de possibilidade do ser, não deve ser imaginada estando acima ou abaixo do material – ela reside, precisamente, na superfície mesma do material. A encarnação é a reivindicação de que não existe relação de antagonismo, não havendo portanto necessidade de mediação entre o transcendente e o imanente, mas uma estreita complementaridade. Esta transcendência imanente é a mais íntima exterioridade do ser, ulterior potencialidade da carne. A encarnação é também uma proposição teológica: a plenitude da matéria, a completude da existência é divina. Mas por que falaríamos de divindade, já que a forma de Deus foi completamente esvaziada, abandonada? Porque a divindade perpassa a vitalidade essencial da existência. A superfície do mundo é investida de uma poderosa intensidade. A divindade reside precisamente nas fronteiras, no limiar, no limite das coisas apaixonadas e expostas, como uma auréola que as envolve. A encarnação deixa de lado qualquer noção de um Deus oculto, qualquer idéia transcendente de uma divindade que permanece “pura”, fora da exposição da matéria. São essas as boas novas que nos assopram os “anjos impuros” que Pasolini tanto ama. Na encarnação, o divino torna-se carne com uma vitalidade elétrica; e os nossos membros tornam-se divinos, “con le carni brucianti / di splendidi sorrisi” (com a carne incandescente de esplêndidos sorrisos) (Pasolini, “Carne e cielo”, 341). Finalmente, a encarnação é uma injunção ética: esvazia-te, torna-te carne! Esta é a lição que o pobre Cristo pregado na cruz nos ensina. (Quão pouco entendemos nosso corpo. Sequer sabemos o quanto pode um corpo!). Encarnação é uma opção de alegria e amor. E a maior expressão do amor é precisamente a crença neste mundo, assim como ele como é2. Então, que seja. (O que mais quereria dizer Spinoza com o amor de Deus?). E nossa crença não pode ter outro objeto que não a carne: tornar-se carne será a nossa alegria. A vida carnal de Cristo é a representação desse drama. O esvaziamento metafísico que acontece na encarnação, no início da vida terrena de Cristo, é perfeitamente contrabalançado pelo reconhecimento, no final de sua vida, do abandono na cruz. Ou melhor, o nascimento de Cristo é apenas uma encarnação formal, um abandono nominal a este mundo. A encarnação de verdade acontece no Calvário. Somente ao ser cruxificado é que Cristo realiza a carne. Quando o corpo nu exposto na cruz lança seu último lamenGLOBAL 22 Dossiê Pasolini
to “Por que me abandonaste?”, a pergunta é apenas retórica. Na verdade, o abandono já tinha acontecido muito tempo antes, a encarnação do nascimento é emblemática do esvaziamento de qualquer possibilidade de interlocução. O que acontece na cruz é que Cristo realiza plenamente este abandono na carne. Cristo é abandonado à divindade da carne, no amor e alegria. II. Exposição Tomai-me agora! Pasolini é totalmente fascinado pelo oferecimento sem pudor do corpo de Cristo na cruz. Suas feridas abertas, seu corpo inteiro – peito, ventre, sexo, joelhos – ardendo ante o olhar da multidão e dos elementos. Até a morte, Cristo é totalmente corpo, um pedaço aberto de carne, abandonado, exposto. É neste momento que a divindade esvaziada de Cristo em sua face radiante resplandesce mais intensamente. A exposição da carne é erótica. A carga divina que circula pela superfície do ser cria esta intensidade, esta excitação. Erotismo, na perspectiva de Georges Bataille, é consentir com a vida até à morte. A encarnação de Cristo é a pura afirmação da vida, mesmo até o ponto de morrer na cruz. A morte aqui não é algo que exerce uma atração, tampouco é um instinto ou impulso vital; a morte funciona simplesmente como um limite negativo que contrasta, ilumina e ressalta a afirmação da vida. O erótico nos conduz através da continuidade vital que percorre a superfície do ser. Ele rompe ou dissolve a fragmentação, a auto-possessão, a descontinuidade que existe entre indivíduos e coisas. Ele desnuda, esvazia e coloca tudo o que existe num plano comum. O erotismo é então um estado de comunicação que confirma a nossa luta em busca de uma possível continuidade do ser, para além do aprisionamento do self 3. Os limites ou fronteiras dos indivíduos transformam-se em aberturas onde se experimentam os prazeres, como ondas – que sobem e descem – de fluxos e intensidades. A exposição erótica, paradoxalmente, não envolve ver e ser visto. Na verdade, a exposição subverte um certo regime de visão. A carne exposta não revela um self secreto que estava escondido, mas, ao contrário, dissolve qualquer possibilidade de um self que possa ser apreendido. Nós não somente não temos nada mais para esconder, deixamos de
apresentar qualquer imagem distinta que os olhos possam capturar. Tornamo-nos imperceptíveis. No erótico nos perdemos, ou melhor, abandonamos nossa descontinuidade, numa comunhão desnuda e divina. O corpo cruxificado de Cristo é emblemático deste erotismo. Para Pasolini, no entanto, em contraste com Bataille, o erótico não é tributário de qualquer forma de transgressão. A transgressão sempre funciona em relação a (ou em cumplicidade com) uma norma ou tabu, negando os ditames da norma e, paradoxalmente, reforçando seus efeitos. O ato transgressor não apenas recusa a norma, mas a nega, a transcende e a completa. Ele ultrapassa um limite, mas ao ultrapassar, confirma o próprio limite. A transgressão sempre opera através de uma dialética negativa. Se as normas fossem porventura destruídas, a transgressão perderia qualquer razão de ser. O erotismo de Pasolini, ao contrário, não depende da transgressão, mas da exposição. Não há norma ou tabu constituindo uma fundação negativa, assim como não há síntese dialética transcendendo esta oposição. Em lugar disso, a exposição opera por uma lógica positiva de emanação. Envolve abrir mão, ou melhor, esvaziar-se de tudo que é exterior à existência material, dessa maneira intensificando a materialidade. Aquilo que se expõe e se oferece é a carne nua, imanência absoluta, pura afirmação. A carne exposta não é transgressão e sim escândalo. Em outras palavras, a exposição de fato se opõe e nega as regras de propriedade, mas seu efeito não depende desta oposição como suporte. A violação da regra não antecede a exposição; a negação da norma é secundária, uma idéia que surge depois, um acidente. Virar as costas à norma é que constitui a grande ofensa. A exposição opera ignorando a norma, levando-a assim – da única maneira possível – à destruição real. O corpo de Cristo confirma o escândalo, o escândalo da cruz.
III. Cruxificação No ato da encarnação, Cristo assume a forma de um corpoescravo e renuncia a qualquer distinção divina, não como demonstração de uma recusa ascética, mas como busca de continuidade da vida e da comunhão. Existir em comum é uma maneira de escapar da prisão. Nesse sentido, o sacrifício do dom divino é uma opção de alegria. Mas, expor-se como escravo, de uma forma que todos compartilhamos, implica também a possibilidade de sofrer os mais horríveis tormentos e suplícios, até a tortura na cruz. O efeito da tortura é sempre de separação e descontinuidade, mesmo em situações de extrema proximidade e intimidade. Geralmente não podemos sequer reconhecer nossos torturadores como seres humanos: eles são irremediavelmente outros para nós. (Tendemos a pensar neles como cães ou bestas quando, na verdade, os animais jamais poderiam separar-se de si mesmos desta maneira!) E, ao mesmo tempo, a tortura impossibilita o reconhecimento da continuidade de nossas próprias vidas. Não sou eu que ele está fodendo, não sou eu que ele queima com este ferro em brasa – ele só pode tocar superficialmente o meu corpo. A tortura nos empurra para fora da carne, forçando-nos a nos separar de nossos corpos, transformando-nos em outros para nós mesmos. A experiência da tortura é uma forma de exílio, nos níveis mais íntimos do ser – um exílio da vida. A tortura torna impossível a exposição da carne, até mesmo quando, paradoxalmente, nossos torturadores nos deixam nús. O milagre de Cristo é recuperar a carne dos soldados do império que o pregaram na cruz. Até em seu tormento Cristo vive a carne em toda a sua intensidade. Criticar a tortura não implica que se tenha que viver de maneira a evitar toda violência e toda a dor – esta seria uma vida sem intensidade, completamente isolada da violência da experiência. Ao contrário, devemos recusar a separação da carne que a tortura implica: viver a violência da experiência na carne, Dossiê Pasolini 23 GLOBAL
fazer da nossa dor um modo de intensidade e alegria. Este é o milagre que Pasolini vê na cruxificação. A dor da cruz não recua à linguagem de uma individualidade isolada, mas ao contrário, abre para uma linguagem comum. Precisamente no momento em que criam esta linguagem comum e compartilhada da experiência da carne, dor e violência podem ser eróticas, porque o erotismo nada mais é do que a intensidade compartilhada de nossa experiência, a eletricidade que percorre nosso corpo. Consideremos, por exemplo, o modo como autores como o Marquês de Sade ou Leopold von Sacher-Masoch construíram uma espécie de violência ritualizada em várias instituições e contratos, numa tentativa de reinventar linguagens comuns da carne. Seus rituais e dramas imaginários protagonizados por algozes e vítimas buscam ultrapassar ou eliminar a separação que caracteriza nossa tortura cotidiana. Esta violência então aponta para uma continuidade erótica, uma afirmação da vida. A idéia de exposição de Pasolini tem em comum com os projetos de Sade e Masoch a descoberta de um antídoto para a tortura e a separação, mas sem criar um plano imaginário ou um teatro de representações. A representação, ela mesma, implica ainda mais separação. A exposição, neste caso, não recria a cena da tortura, ao contrário, procura dissolver suas fronteiras e seus efeitos de descontinuidade. A violência da carne exposta não cria uma separação entre papéis passivo e ativo, as duas dimensões movimentam-se unidas na afirmação erótica. Na exposição, a violência torna-se novamente nossa, como uma linguagem comum, um poder vital de criação, força da vida. IV. Carne O abandono à carne é uma forma de liberdade. Expostas, as paixões da carne libertam-se de qualquer estrutura normativa ou funcionamento orgânico. É este o chamado contínuo de Pasolini para a utopia da juventude eterna: “Allora la carne era senza freni” (Então a carne não tinha freios). (“La religione del mio tempo”, 492). O devir carne é uma forma de esquecimento – esquecimento do self, de qualquer sentimento de possessão, descontinuidade. A carnalidade impura, ou melhor, a exposição do divino no corpo encarna esta lógica própria das paixões. É este abandono que Pasolini enxerga como alegria no exemplo do Cristo na cruz. In un debole lezzo di macello vedo l'immagine del mio corpo: seminudo, ignorato, quasi morto. E'cosi che mi volevo crocifisso, Con una vampa di tenero orrore, da bambino, gia automa del moi amore. No leve fedor de um abadetouro Vejo a imagem do meu corpo: seminú, esquecido, quase morto. É como eu sempre quis ser cruxificado, com um lampejo de suave horror, desde criança, já um autômato do meu amor. (“L’ex vita”, 400) GLOBAL 24 Dossiê Pasolini
O corpo abandonado é posto em liberdade, libertado do aprisionamento da separação, imerso na impureza deste mundo, ou melhor, no amor maníaco deste mundo, sob a forma de um escravo, um autômato do amor. Até o termo “corpo” parece muitas vezes insuficiente para Pasolini. Ele está por demais aprisionado pela descontinuidade e funcionamento hierárquico de vários órgãos, muito apartado de outros corpos e coisas, muito mergulhado nos pares dialéticos da consciência. Qualquer resíduo de dualismo mente/corpo fica totalmente deslocado aqui. Até a idéia de nos referirmos a nós mesmos como portadores de um corpo parece muito presa a este paradigma, como se pudéssemos imaginar um espírito, uma mente potencialmente separada da nossa corporeidade, de modo que agora temos de insistir nessa unidade com a matéria. Pasolini prefere pensar em “membros” (membra) ou simplesmente “carne”. A carne é a materialidade vital da existência, A carne certamente refere-se à matéria, a uma matéria carregada de uma intensidade apaixonada, ao mesmo tempo que é igualmente intelectual. Ela não se opõe nem está excluída do pensamento ou da consciência. Ao contrário, os caminhos do pensamento e da existência são todos traçados e inscritos na carne4. A carne subentende a existência; é a sua própria potencialidade. A carne é a condição de possibilidade das qualidades do mundo, mas nunca pode ser contida ou definida por estas suas qualidades. Neste sentido, ela é a fundação superficial ou a transcendência imanente – alheia a qualquer dialética entre realidade e aparência, profundidade e superfície. A carne embaralha todas essas antinomias. Carne é profundidade superficial, aparência real da existência. Que o mundo existe, como o mundo existe, precisamente como ele existe, está exposto perfeita e irremediavelmente na carne. (Não seria isto o que quis dizer Spinoza ao propor que realidade e perfeição são a mesma coisa?) A exposição da carne é, de fato, o mistério da vida, ou melhor, o milagre do mundo. E como amamos com a carne? Qual é o desejo da carne? Na exposição erótica, os limites ou descontinuidades entre o si e o outro são ultrapassados e dissolvidos em uma forma aberta de comunicação ou comunhão. Este amor não pode, na realidade, ser concebido como um encontro com o outro porque o self já foi completamente esvaziado, abandonado. Da mesma maneira, o desejo não pode ser concebido como o devir-outro do self porque isso também depende fundamentalmente de descontinuidades estáveis, implicando, no final, um retorno ao self. Somente somos capazes de amar ao nos abandonarmos à carne5. Na carne eu perco a noção do que é teu braço, tua perna, minha perna, no emaranhamento de pernas e membros. Tomai-me! A exposição é anônima. Ela porta tanto a intensificação da experiência quando a indiferenciação da matéria. Ela coloca em movimento uma selvagem multiplicação de zonas erógenas e modos de intensidade que se alastram pela superfície da carne (a quentura dos teus lábios, a sutil vibração da minha língua) e, ao mesmo tempo, carrega em si uma tendência à unificação e à comunhão. Daí o êxtase da exposição. Tradução de Leonora Corsini
Referências AGAMBEN, Giorgio. The Coming Community. Trad. Michael Hardt. Minneapolis: Un. of Minnesota Press, 1993. ARTAUD, Antonin. Oeuvres complètes. Vol. 1. Paris: Gallimard, 1970. _____. Selected Writings. Trad. Helen Weaver. Berkeley: Un. of California Press, 1988. BATAILLE, Georges. L’Érotisme. Vol 10. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1987. ______. Erotism. Trad. Mary Dalwood. San Francisco: City Lights, 1986. DELEUZE, Gilles. Cinéma 2: L’Image-temps. Paris: Minuit, 1985. Cinema 2: The TimeImage. Trad. Hugh Tomlinson e Robert Galeta: Minneapolis: Un. of Minnesota Press, 1989. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix, Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980. A Thousand Plateaus. Trad. Brian Massumi. Minneapolis: Un. of Minnesota Press, 1987. PASOLINI, Pier Paolo. Bestemmia: Tutte le poesie. Vol 1. Graziella Charcossi e Walter Siti (eds.). Milão: Garzanti, 1993. 1 “O transcendente não é uma entidade suprema que se coloca acima de todas as coisas; ao invés disso, a pura transcendência é o acontecimento de tudo o que existe” (Agambem, p.14) 2 “Seule la croyance au monde peut relier l'homme à ce qu'il voit et entend. Il faut que le cinéma filme, non pas le monde, mais la croyance à ce monde, notre seul lien. Chrétiens ou athées, dans notre universelle schizophrénie nous avons besoin de raisons de croire en ce monde”. (Apenas a crença neste mundo pode reconectar o homem com aquilo que ele vê e ouve. O cinema deve filmar não o mundo, mas a crença neste mundo, nosso único ponto de contato... Cristãos ou ateus, em nossa esquizofrenia universal, necessitamos de razões para acreditar neste mundo.) (Deleuze, 1985, 223/ 1989, 172). 3 “Le passage de l'état normal à celui de désir érotique suppose en nous la dissolution relative de l'être constitué dans l'ordre discontinu. C'est un état de communication, qui révèle la quête d'une continuité possible de l'être audelà du repli sur soi” (Bataille, 1987, p. 23 e 1986, p. 17). 4 “Il y a des cris intellectuels, des cris qui proviennent de la finesse des moelles. C'est cela, moi, que j'appelle la Chair. Je ne sépare pas ma pensée de ma vie. Je refais à chacune des vibrations de ma langue tous les chemins de ma pensée dans ma chair”. (Existem os gritos intelectuais, gritos gerados na finura da medula. É a isso que chamo Carne. Não separo meu pensamento da minha vida. A cada vibração da minha língua, eu reinscrevo todos os caminhos do meu pensamento no meu corpo”) (Artaud, « Positions de la chair », 1970, 351/”Situations of the Flesh”, 1988, 110). 5 “Je suis devenu capable d'aimer en abandonnant l'amour et le moi” (Tornei-me capaz de amar ao abandonar o amor e o self) (Deleuze et Guattari, 1980, 244)
HIERARQUIA Pier Paolo Pasolini, 1971 no Rio de Janeiro
Se chego numa cidade Além do oceano Chego muitas vezes numa cidade nova, transportada pela dúvida. Convertido de um dia pro outro em peregrino De uma fé na qual não creio; representante de uma mercadoria há muito depreciada, mas é grande, sempre, uma estranha esperança – Desço do avião com o andar do culpado, O rabo entre as pernas, e uma necessidade eterna de mijar, Que me faz caminhar um tanto vergado com um sorriso incerto – Safar-se da alfândega e, muitas vezes, dos fotógrafos: administração de rotina que cada um trata como exceção. Depois o desconhecido. Quem passeia às quatro da tarde ao longo dos canteiros cheios de árvores e pelos bulevares de uma cidade desesperada onde europeus pobres vieram recriar um mundo à imagem e semelhança do deles, forçados pela pobreza a fazer de um exílio a vida? De olho no meu trabalho, nos meus deveres – Depois, nas horas vagas, Começa minha busca, como se também ela fosse uma culpa – A hierarquia está porém bem clara na minha cabeça. Não há oceano que resista. Dessa hierarquia os últimos são os velhos. Sim, os velhos, a cuja categoria começo a pertencer (não falo do fotógrafo Saderman que com sua mulher amiga já da morte me acolhe sorrindo no pequeno estúdio de toda a sua vida) Sim, existem alguns velhos intelectuais que na Hierarquia se colocam à altura dos michês mais bonitos os primeiros a serem encontrados nos lugares que a gente logo descobre e que como Vergilios nos conduzem com popular delicadeza Dossiê Pasolini 25 GLOBAL
alguns velhos são dignos do Empíreo, são dignos de figurar junto ao primeiro garoto do povo que se dá por mil cruzeiros em Copacabana ambos são o meu guia que segurando-me pela mão com delicadeza, a delicadeza do intelectual e a do operário (além do mais desempregado) a descoberta da invariabilidade da vida requer inteligência e amor Vista do hotel da rua Resende Rio – A ascese precisa do sexo, do caralho – Aquela portinhola do hotel onde se paga o cubículo – se olha o Rio por dentro, numa aparência da eternidade, a noite de chuva que não refresca, e banha as ruas miseráveis e os escombros, e as ultimas cornijas do liberty dos portugueses pobres milagre sublime! E, portanto Josué Carrea é o Primeiro na Hierarquia, e com ele Harudo, que veio criança da Bahia, e Joaquim. A favela era como Cafarnaum sob o sol – Percorrida pelos regos dos esgotos barraco sobre barraco vinte mil famílias (ele na praia me pedindo cigarro como um prostituto) Não sabíamos que pouco a pouco nos revelaríamos, prudentemente, uma palavra após a outra, dita quase distraidamente: sou comunista, e sou subversivo; sou soldado numa divisão especialmente treinada para lutar contra os subversivos e torturá-los; mas eles não sabem; ninguém se dá conta de nada; só pensam em viver (me falando do subproletariado) A favela, fatalmente, nos esperava eu, grande conhecedor, ele, guia – seus pais nos acolheram, e o irmãozinho nu recém-saído de trás do oleado – pois é, invariabilidade da vida, a mãe conversou comigo como Maria Limardi, me preparando a limonada sagrada do hóspede; a mãe de cabelos brancos, mas ainda jovem de carne; envelhecida como envelhecem os pobres, embora moça; sua gentileza e a de seu companheiro, fraternal com o filho que por sua exclusiva vontade era agora como um mensageiro da Cidade – Ah, subversivos, procuro o amor e encontro vocês. Procuro a perdição e encontro a sede de justiça. Brasil, minha terra, Terra dos meus verdadeiros amigos, Que não se ocupam de nada Ou se tornam subversivos e como santos ficam cegos. No círculo mais baixo da Hierarquia de uma cidade imagem do mundo que se faz novo, coloco os velhos, os velhos burgueses, porque um velho proletário da cidade continua sempre moço GLOBAL 26 Dossiê Pasolini
não tem nada a perder – anda de calção e camiseta como o filho Joaquim. Os velhos, a minha categoria, Queiram eles ou não – Não se pode fugir ao destino de possuir o Poder, ele se coloca sózinho lenta e fatalmente na mão dos olhos mesmo que tenham as mãos furadas e sorriam humildemente como mártires sátiros – Acuso os velhos de terem apesar de tudo vivido, Acuso os velhos de terem aceitado a vida (e não podiam não aceitá-la, mas não existem vítimas inocentes) a vida se acumulando deu o que queria dar – acuso os verem de terem feito a vontade da vida. voltemos à Favela onde as pessoas ou não pensam em nada ou querem se tornar mensageiras da Cidade ali onde os velhos são filo-americanos – Dentre os jovens que jogam bola com bravura em frente a cumeeiros encantados sobre o frio Oceano, quem quer alguma coisa e sabe que quer, foi escolhido por acaso – inexperientes em imperialismo clássico em qualquer delicadeza para com o velho Império a ser desfrutado os Americanos separam uns dos outros os irmãos supersticiosos sempre aquecidos por seu sexo como bandidos por uma fogueira de sarças – É assim por puro acaso que um brasileiro é fascista e um outro subversivo; aquele que arranca os olhos pode ser tomado por aquele a quem se arrancam os olhos. Joaquim não poderia jamais se distinguir de um facínora. Por que então não amá-lo se o fosse? Também o facínora está no vértice da Hierarquia, com seus traços simples apenas esboçados com seu olho simples sem outra luz que não a da carne Assim no cume da Hierarquia encontro a ambigüidade, o nó inextricável. Ó Brasil, minha desgraçada pátria, devotada sem escolha à felicidade, (de tudo o dinheiro e carne são donos enquanto tu és assim tão poético) dentro de cada habitante teu, meu concidadão, existe um anjo que não sabe nada, sempre debruçado sobre seu sexo, e, velho ou jovem, se apressa a pegar em armas e lutar, indiferentemente pelo fascismo ou pela liberdade – Ó Brasil, minha terra natal, onde as velhas lutas – bem ou mal, já vencidas – para nós , velhos, voltam a fazer sentido – respondendo à graça dos delinqüentes ou dos soldados à graça brutal. Tradução de Michel Lahud Dossiê Pasolini 27 GLOBAL
O filme “Dramática” Ava Patrya Yndia Yracema Gaitán Rocha Século 21. Três personagens se encontram no Rio de Janeiro, cidade síntese das contradições de um país visceral e pulsante, e vivem uma experiência dramática, estimulados por um quarto personagem, o cineasta e poeta italiano Pier Paolo Pasolini. Escrever sobre um filme ainda em processo de criação é um pretexto oportuno para refletir além do próprio filme a realidade dramática do Brasil, propondo uma conexão entre os anos 70 e os primeiros anos do século 21. O filme “Dramática” nasce das inspirações provocadas por “Hierarquia” GLOBAL 28 Dossiê Pasolini
poema que Pasolini escreveu quando esteve no Rio de Janeiro em 1970, e editou no livro "Trasumanar e Organizzar", em 1971 na Itália - e de sua visão poética para lançar seu próprio olhar sobre os acontecimentos de uma cidade que se revela hoje de forma vertiginosa. No Rio, Pasolini vive os limites da cidade, seus labirintos; uma experiência direta, sensual e radical da realidade de uma cidade latinoamericana. Mesmo sendo Pasolini um estrangeiro, ele refletiu o mundo periférico de dentro de seu próprio país para além dele, entregando-se audaciosamente à cidade do Rio de Janeiro e dedicando a ela um de seus mais belos poemas. O poeta, com sua voz critica, imprime nos versos de “Hierarquia” toda sua força poética e política e evidencia um Rio não-oficial, um Rio de grandes contradições sociais que muito se assemelharia a África ou a Itália periférica daqueles tempos. A visão de Pasolini se revela extremamente atual sobre o Brasil de hoje, um país que permanece estagnado socialmente. Contra o entorpecimento social, Pasolini indica como lutar: com as armas da poesia. Libertar, anarquizar... Radicalizar! O Brasil de hoje não é muito diferente daquele dos anos 70, onde garotos pediam cigarros como prostitutos, nem daquela Itália periférica do filme “Acattone”. O Brasil ainda é o território da estética da fome, do sonho, da favela e do carnaval. O poema “Hierarquia”, na voz em off de Pasolini, é o fio condutor do filme ‘Dramática”, que retoma o percurso Pasoliniano criando um espaço onde personagens vivem um encontrodesencontro dramático. Poliana, turista dos países exteriores recémchegada ao Rio de Janeiro; Godô, líder de uma organização clandestina de resistência cultural e política que ainda acredita em lutar velhas lutas; e Joaquim, jovem negro, guia de Pasolini, prostituto de Copacabana, militante político de Godô e amante de Poliana; divagam entre o amor, a poesia e a política, e se lançam num trajeto sinuoso pelo Rio de Janeiro, revelando um encontro cívico, corporal e dramático de seus distintos e contraditórios olhares sobre o mundo e a sociedade contemporânea.
“KRYZTO NÃO MORA NA KRUZ”
A superfície da pele marcada por lanhos e cortes, a carne machucada por chicotadas, lanças perfurando o corpo, a coroa de espinhos apertando o cérebro. Por séculos, a iconografia cristã e a pintura arrebataram fiéis e estetas pela tragicidade, martírio e erotismo do seu Cristo na Cruz envolto em panos, posturas e dores, um corpo composto e decomposto em arranjos renascentistas, barrocos, cubistas, decalcado em séries pops, ou performado nas imagens do cinema. Até chegarmos a toda a iconografia comercial das santas ceias e cristos massacrados em estilo hiper-realista. Uma questão permanece: seria possível liberar as imagens do Cristo e sua mitologia do Cristianismo? De todo o sentimento cristão de culpa e dívida eterna diante daquele que “foi crucificado, morto e sepultado” para a remissão dos pecados do mundo? Do discurso do ressentimento que busca seus “assassinos”? Nietzsche deu
Ivana Bentes
uma resposta, com um personagem conceitual, Zaratustra, que inspirou a filosofia e a arte. No cinema, Pier Paolo Pasolini em O Evangelho Segundo São Mateus (1964) e Glauber Rocha em A Idade da Terra (1981) também fizeram o Cristo descer da cruz e arrancaram, como queria Nietzsche, uma crença da fé, restituindo-a ao pensamento, num dos mais belos movimentos do seu cinema. Pasolini, no Evangelho, extrai do Cristo seu devir revolucionário, sua rebeldia em estado puro, violência amorosa de um Cristo-Che, transformado num jovem belo e violento, um quase militante de maio de 68, com uma outra Bíblia debaixo do braço: ação política e desejo, crença e vontade de potência nietzschianas, saídas de um corpo totalmente encarnado e mobilizado pelas lutas do presente. O Cristo de Pasolini, rebelde, irado, sedutor, é um vento desestabilizador que varre extensões do deserto e Dossiê Pasolini 29 GLOBAL
cidades levando uma fala guerreira, língua de fogo, o discurso como arma e um “amor fati”, amor violento ao destino ou ao mundo. Quando Pasolini morreu assassinado em 1975, na Itália, Glauber Rocha no Brasil partiu do seu Evangelho para apresentar o que definia como um “Cristo do Terceiro-Mundo”, uma operação de multiplicação do Cristo, realizada no filme A Idade da Terra (1981), e desdobrado em Cristos-minorias: um Cristo-Indio, um Cristo-Negro, um Cristo-Guerrilheiro, um Cristo-Militar, expressão do pensamento de Glauber frente aos novos sujeitos do discurso que começavam a ganhar visibilidade na época. A mitologia do Cristo seria poderosa demais para ser seqüestrada pelos Cristãos, dizia Pasolini e repetia Glauber. Mas quais as implicações míticas e políticas desse “messias coletivo”? Seria menos o seu caráter catastrófico e messiânico, do que a construção de uma terra comum, com forças desestabilizadoras, uma multidão em um, que reafirmasse o caráter transformador do presente e seu devir. É o que encontramos em Pasolini (mesmo no filme Teorema) e em Glauber. A mitologia cristã seduziu militantes no mundo todo, por motivos diferentes. Por trazer a negação da idéia de progresso e continuidade histórica em nome de um apocalipse revolucionário, com toda sua violência; pelo elemento anárquico e ditatorial de “supressão” da normalidade, das regras e das proibições impostas em nome de uma futura redenção política, social, religiosa; pela idéia de passagem de uma era de corrupção e decadência, para a de redenção; pela possibilidade de construção de um “ateísmo religioso” (a expressão é de Lukács), tudo isso viria nutrir as mais diferentes tradições: do cristianismo, marxismo, anarquismo. Glauber vai potencializar, a cada filme (Barravento, Deus e o Diabo, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Cabeças Cortadas), essas relações ambíguas. A Idade da Terra é um momento de síntese com a construção do seu “Cristo do Terceiro Mundo” inspirado no Cristo revolucionário de Pier Paolo Pasolini em O Evangelho Segundo São Mateus e no sincretismo GLOBAL 30 Dossiê Pasolini
religioso brasileiro. Glauber se apropria da fé e da potência da religião no Brasil para pensar em revertê-las em potências de transformação, ganhando diferentes sentidos. O gosto pela pregação, pela profecia (Glauber sempre alimentou a imagem do artista “profético” e visionário), a leitura descondicionada da Bíblia, “sempre trabalhei diretamente com a Bíblia, sem o catecismo”, vão convergir na construção de um ateísmo religioso sincrético ou um misticismo de esquerda, como uma forma de reencantamento do mundo. Reencantamento pela crença em valores transindividuais, como movimentos coletivistas (místicos, artísticos, políticos) criadores. Essa abertura já aparecia de forma singular na temática e na estética do curtametragem Di Cavalcanti, de 1977, um “ensaio” audiovisual sobre a morte e a arte, onde a arte aparece como o lugar para uma possível redenção. “A morte é uma invenção da direita”, ironiza Glauber, politizando o trágico de uma forma singular. Reencontramos Pasolini, Nietzsche e Glauber nessa proposição. É toda uma reversão da fé cristã “Nem conformismo, nem resignação, nem submissão passiva: AMOR, nem lei, nem causa, nem finalidade: FATUM (destino)”, diz Nietzsche em Amor ao destino, que Glauber e Pasolini parecem retomar em suas obras. O pensamento é arrebatado pela exterioridade de uma crença, para fora de qualquer saber. O cinema, como discurso ou, como diz Glauber, como “materialização do inconsciente” (onde não existe morte) irrompe como poema, canto vital, redenção. Configura-se, ao final, uma experiência de êxtase cinematográfico diante da morte. Apocalipse estético. Em A Idade da Terra, essa abertura, no pensamento e na estética, é levada às ultimas consequências, o que significa dizer, é radicalizada. O tema da morte e da ressurreição, a politização do mítico ou o encantamente do político ressurgem a partir de uma releitura e torção do cristianismo. Glauber constrói uma nova mítica do Cristo, mas um Cristo “fora da cruz”, fora do cristianismo, que ressurge no Brasil tornado terra da utopia por construir e concretizar.
Se, historicamente ou materialmente, não se fez a revolução desejada por toda uma geração, Glauber monta seu apocalipse estético-revolucionáriocinematográfico e projeta o seu “Parayzo Material Dezenraizado” visão/revelação cinematográfica de uma democracia mística brasileira. Os Cristos de Glauber e Pasolini têm essa força, seus corpos gloriosos não são carne morta que irá ressuscitar por forças divinas. Nesses dois filmes, O Evangelho Segundo São Mateus e mais ainda em A Idade da Terra, a iconografia do Cristo é saqueada e apropriada em nome de um materialismo radical. A violência está relacionada ao amor ao mundo, não há mais vítimas, nem algozes do Cristo. Radicalmente diferente da retórica de um Mel Gibson em A Paixão de Cristo, que traz de volta a desgastada iconografia da Santa Ceia enquadrada em imagens duvidosas nos lares cristãos e no discurso acusatório que busca culpados e vítimas. A pele plástica do Cristo de Gibson, retalhada com excesso de realismo e sem nenhuma sutileza, faz do corpo potente uma bola de carne desfigurada e é incapaz de produzir qualquer tipo de reação que não o banal reflexo de nojo e repugnância diante da carne morta. Iconografia pobremente realista, que remete às imagens televisivas de corpos banalizados em suas violentas mortes (explosões, guerras, incêndios, terror), corpos sem glória e sem ressurreição possível – que pensamento renasceria desses corpos massacrados? A pulsão de destruição e morte que envolve a representação do corpo do Cristo de Mel Gibson é sintomática de uma retórica ortodoxa que distingue culpados e inocentes, vítimas e algozes, terroristas e cidadãos e traduz seu maniqueísmo numa estética sanguinária e destituída de sutileza. Estamos muito distantes de duas das mais belas representações do Cristo de Glauber e Pasolini, duas tentativas de tirar o Cristo da cruz e reinserí-lo nesse mundo aqui, com todas os paradoxos e do qual fazemos parte.
Desenhos de Glauber Rocha cedidos por Tempo Glauber
DossiĂŞ Pasolini 31 GLOBAL
Seção 1 GLOB(A.L.)
No rastro do
“efeito” 11-M, RESISTÊNCIA E MUDANÇA DE GOVERNO NA "PROVÍNCIA ESPANHA"
Freqüentemente – principalmente quando se trata de governos – o efeito "engole" o acontecimento do qual é originário, tornando nebulosa sua própria gênese e circunstâncias. Com relação ao chamado "efeito Zapatero" (apelido que soa melhor fora das fronteiras do que na própria Espanha), esta consideração é, a poucos meses da passagem do governo, bastante oportuna. Aqui, nesta mesma revista, Suely Rolnik escreveu sobre o "acontecimento Lula"1, e o fez com paixão laica, desentranhando a potência de dissolução da "subjetividade-lixo" – produto do biopoder pós-colonial – que esse nome permitiu encarnar na sociedade brasileira. Não há, no entanto, um "acontecimento Zapatero" que seja digno desse nome, apenas um conjunto de efeitos políticos e simbólicos incompreensíveis se não nos remetermos aos dias de março em que chegava ao fim o experimento nacionalliberal aznarista que resultou: a) nos atentados de 11 de maio, demonstração sangrenta de que a aventura belicista do governo Aznar já não podia ser julgada, como aconteceu com outras intervenções bélicas, a distância, porque dessa maneira o território espanhol se transformaria em um palco de lutas da guerra civil planetária; b) na conjunção contingente entre a máxima ilegitimidade da autoridade do governo (que atingiu o paroxismo com a mentira sistemática GLOBAL. 32 Conexões Globais
Zapatero
a respeito dos atentados de Madri), uma espiral de ativismo social contra a guerra que ultrapassou em muito o âmbito formal da esquerda antisistêmica e a iminência das eleições gerais, precipitando a rebeldia desobediente do 13 de março em praticamente todas as cidades do país2.
Foi esta tsunami global que conduziu Zapatero à presidência; poucos dias antes, nem mesmo nos momentos mais eufóricos, os líderes socialistas haviam sequer pensado em abandonar seu papel de parceiros indolentes do aznarismo em sua deriva autoritária. Zapatero era, minimamente, o candidato mais viável dentre os que haviam prometido a retirada das tropas espanholas do Iraque. O atual governo carregará por muito tempo o estigma de sua origem mas, por outro lado, o referente que eventualmente lhe permitirá fazer algo mais do que contemporizar e ajeitar os malfeitos do período aznarista surge graças à desobediência em massa – nos momentos decisivos – não da "sociedade civil", mas de uma verdadeira multidão intermitente, descontínua, imprevista e, por isso mesmo, tributária de um mandato (verdade, transparência, não-intervencionismo militar) que não pode ser constitucionalizado, que excede e abandona o mecanismo (mistificador) da soberania com base na representação, convertendo a potência das singularidades em ação em poder (potestas) governamental. Este é o aspecto mais interessante de nosso "efeito
Raúl Sanchez
Zapatero", tanto no plano da política externa quanto em termos dos destinos da forma-Estado democrático nascido com a constituição de 1978. No aspecto "externo" assistimos nesses meses as consequências da decisão de retirada das tropas espanholas, com a precipitação da crise desencadeada pela forma unilateral da guerra preventiva de Bush, enquanto é cancelada a sabotagem aznarista da Europa política e Zapatero empreende a campanha diplomática em que se apresenta como peça-chave no multilateralismo global, em especial na América Latina. No plano "interno", um governo "sustentado" por mobilizações ilegais e sem maioria absoluta no parlamento aplaca de imediato a desconfiança de seus desconhecidos eleitores – retirada das tropas, início da reforma do sistema público de rádio e TV, projeto de lei coibindo a violência contra mulheres, reforma constitucional "moderada" para fazer frente à pressão dos nacionalismos menos exaltados – e lança incansavelmente promessas de intervenção legislativa para dar conta dos precários índices de moradia (lembremos que o Estado espanhol ostenta a mais alta taxa de precariedade laboral da zona do euro, um dos maiores índices de acidentes de trabalho, está entre os últimos colocados em níveis de salário indireto e o endividamento das famílias atinge um ápice histórico na atualidade, resultado, em grande medida, do descontrole do ciclo imobiliário, principal ativo do PIB hispânico).
Paralelamente, desenha-se uma poderosa continuidade na política (duríssima) de imigração3 e na legislação de exceção que de há muito, desde os tempos dos governos socialistas de González, transformou as garantias do direito penal e político na exceção que confirma a regra. Assim, pois, podemos esperar do "efeito Zapatero" algo mais do que este bricolage movido pela urgência em "legitimar-se" como governo, exorcizando a contingência e bastardia de sua condição? Cabe esperar algo novo, que seja mais do que uma cópia piorada do original nacional-liberal, ou a repetição do populismo clientelista social-democrata? Poderá converter-se em um exemplo que reflita uma outra relação entre governos e movimentos de luta, cuja composição e referencial é pós-socialista? Nossa primeira conclusão é pessimista. Em nosso modo de ver, até o momento, o "efeito Zapatero" ainda não conseguiu colocar em cheque os axiomas centrais do workfare neoliberal (em termos de renda, fluxos migratórios, política
social européia, novos acercamentos [enclosures] do saber e da inteligência coletiva). O governo limita-se a seguir a cartilha da propaganda eleitoral européia, preconizando um "retorno à Europa", entendendo-se com isto um retorno ao desenho, insustentável a médio prazo, da atual Europa política. Entretanto, não é este o problema principal: assistimos nos últimos meses à derrocada de vários governos por obra e graça da insistência de movimentos de luta de tipo novo. Mas ainda não se vislumbram modos de concatenar a intermitência e uma certa opacidade na emergência e insistência das lutas (fenomenologia típica dos movimentos dos últimos lustros nesta província chamada Espanha) e a capacidade material e política de prescrever às elites do governo – e, por extensão, européias – novos agentes de enunciação e máquinas de luta adequadas, dando um salto em direção a uma axiomática globalista baseada no princípio de que, hoje mais do que nunca, em toda parte, "a democracia é produtiva" (e constituinte).
Tradução de Leonora Corsini 1 Suely Rolnik, "O acontecimento Lula", Revista GLOB(AL) América Latina, n. 0, jan. 2003, p. 10.
Veja-se, a esse respeito, nosso texto "Unos días de marzo: algunos consejos para desarmar un régimen de guerra global permanente", disponível emhttp://www.sindominio.net/biblioweb/ 2
3 "Acabou-se o ‘documentos para todos’", declarou recentemente a Secretária de Estado de Imigração, Consuelo Rumí, justificando o desalojamento violento de 1.500 sem documentos acampados na catedral de Barcelona em 6 de junho passado
Bush de Guga Ferraz, 2004 Impressão serigráfica sobre pano de chão.
Conexões Globais 33 GLOBAL
´ARBEIT MA Gerardo Silva ‘O trabalho torna livre’, diz a frase na entrada do museu do campo de concentração de Dachau, por onde passaram mais de 200 mil pessoas de 1933 e 1945 Quando decidi escrever este testemunho de minha passagem pelo campo de concentração nazista de Dachau, ainda não sabia da iniciativa do governo Kirchner, na Argentina, de construir um museu memorial na Escuela de Mecánica de la Armada, a famosa ESMA, onde foram mantidos prisioneiros, torturados e (provavelmente) mortos milhares de cidadãos, muitos dos quais encontram-se até hoje desaparecidos. Tomara que a sociedade argentina e o próprio presidente sejam conseqüentes com esta tão corajosa iniciativa.
GLOBAL. 34 Conexões Globais
social-democratas e os membros da A poucos quilômetros de Münich, organização Reichsbanner, que repreuma das cidades mais prósperas da sentam um perigo para a segurança Alemanha e sede de grandes empresas do Estado”. Foi o primeiro campo de globais como a BMW e Siemens, no concentração da Alemanha nazista. coração da região de Baviera, encontraOriginariamente, o se o museu do campo campo tinha capacide concentração de “Há um caminho dade para 5.000 pesDachau. Menos de 40 para a liberdade. soas. Porém, com a minutos de uma viaSeus pilares são: crescente extensão gem confortável numa obediência, aplicação, das razões que levapaisagem bucólica, honradez, ordem, vam à reclusão (princoloca-nos em frente à limpeza, sobriedade, cipalmente de judeus, mesma porta que viu veracidade, mas também de hoentrar mais de 200 mil espírito de sacrifício mossexuais, ciganos, pessoas para trabae amor à pátria” religiosos de outros lhos forçados, tortura, credos e “simpatizansimples reclusão e (escrito sobre o telhado tes”), o número aumorte entre 1933 e do prédio central à época mentou considera1945. A porta traz a sede funcionamento do campo velmente. Pouco antes guinte inscrição, forjade concentração de Dachau). da libertação, por da no ferro: “ARBEIT causa dos traslados, MACHT FREI” (o trahavia no campo mais de 67.000 pesbalho torna livre). soas. Quando as tropas norte-ameriSegundo a informação institucional canas entraram em Dachau, em 29 de disponível, o campo de Dachau foi abril de 1945, encontraram mais de construído em 1933 por iniciativa do 30.000 pessoas nas piores condições próprio Heinrich Himmler, que fora de sobrevivência, e um número não então nomeado Chefe da Polícia de Münich: “Aqui serão internados todos menos significativo de cadáveres os funcionários comunistas e, na prontos para serem enterrados ou cremedida em que seja necessário, os mados. As fotografias que acompa-
ACHT FREI´
Desenhos de crianças internadas no campo de Terezín, tiradas do livro I have not seen a butterfly around here, The Jewish Museum Prague, 1993. Irena Karpelesová, 30.12.1930 – 23.10.1944 Eva Wollsteinerová, 24.1.1931 – 23.10.1944
nham a documentação são mais do que contundentes. Dispositivos disciplinares Uma breve descrição do campo mostra a presença marcante de um prédio principal higiênico e austero como um hospital alpino (me lembra a arquitetura de alguns prédios militares de San Carlos de Bariloche, cidade em que nasci e onde recentemente foi capturado Erich Priebke, oficial nazista da Segunda Guerra Mundial. Aliás, a Argentina foi um dos destinos privilegiados na fuga de muitos dos responsáveis pelos massacres alemães daquela época). Na frente, uma grande praça (hoje comemorativa) e dois galpões onde ficavam os reclusos, recentemente reconstruídos para dar uma idéia do conjunto (na época havia 34 destas construções). Uma fossa, arame farpado, torres de vigilância e um muro completam, à primeira vista, este dispositivo de morte. No entanto, o campo de Dachau ainda esconde outros segredos do horror. Atrás do prédio principal, uma edificação comprida e singela – o “bunker” – servia como lugar de reclusão dos
“presos especiais” (entre eles Johann Georg Elser, autor material do atentado contra Hitler em Münich, morto por ordem expressa do alto comando da tropas SS dias antes da chegada dos americanos a Dachau). Uma sala de recepção, uma de tortura e outra de “emergências” médicas constituem o núcleo funcional central de dois corredores de celas. Uma espantosa coincidência com as descrições dos sobreviventes dos campos de concentração na Argentina durante a ditadura militar! Fora do campo de concentração, no campo de tiro das SS, entre outubro de 1941 e abril de 1942, foram executados milhares de prisioneiros de guerra soviéticos. Também fora estão localizados os crematórios. O primeiro e mais antigo é pequeno, quase uma cabana no meio do bosque. O segundo, uma fábrica de morte: o crematório é, na verdade, a fase final de uma cadeia de extermínio que pressupõe, entre outros cubículos funcionais, uma sala de desinfecção e uma câmara de gás. Aparentemente, a câmara de gás nunca foi utilizada, mas isso não faz muita diferença. O número oficial de mortos por experimentações, inanição,
doenças, exaustão, degradação, tortura, fuzilamentos, enforcamentos e injeções letais no campo de concentração de Dachau é de 30.000 (sem contabilizar as execuções e mortes por traslados). O mesmo número de desaparecidos na Argentina da última ditadura militar, cujos responsáveis nunca esconderam sua admiração para com o modelo original. Novamente me invade a sensação da espantosa coincidência: o campo de concentração de Dachau foi construído como modelo para os outros campos nazistas e, penso eu, para todos aqueles regimes que, em defesa do povo e do Estado-Nação, estão ainda dispostos a assumir a estratégia da “solução final”. Nesse sentido não parece haver coincidência, mas uma pavorosa identidade na configuração do poder quando se dispõe ao genocídio. Em 1997 a Secretaria de Estado para Educação Política assumiu a responsabilidade pelo Memorial do Campo de Concentração de Dachau. Naquele ano, o Conselho de Ministros da Baviera formara uma comissão para a montagem de uma nova exposição na Casa da História Bávara. A Casa da História Bávara passava assim a dividir responsabilidades e cooperar em ação conjunta com o Comitê Internacional de prisioneiros egressos do Campo de Concentração de Dachau, com o Memorial do Campo de Concentração e com a Secretaria de Estado para Educação Política. Site: www.kz-gedenkstaette-dachau.de Conexões Globais 35 GLOBAL
Universalidade da A negação da existência do povo palestino, de Nakba até o muro em construção, justificaria todas as formas de resistência, sobretudo o terrorismo? Por quais razões sustentamos que a causa palestina, aos nossos olhos, é uma das que permitem avaliar a dignidade e a responsabilidade de um discurso político? Não responderia apenas em nome próprio, mas na perspectiva de uma ampla convergência de opiniões, para além mesmo dos que se mobilizam por uma “justa paz” no Oriente Médio. Suporia a universalidade dessa causa. Mas não da sua evidência, não apenas porque não existe nada disso em história e em política, mas porque – constatando, dia após dia, que estamos muito implicados no conflito para permanecermos neutros e muito distantes para dominar todos os dados – devemos por todos os meios compreender que as dificuldades que se opõem a uma percepção “objetiva” da tragédia israelo-palestiniana fazem parte também das dificuldades da sua solução. Em termos de justiça e de direito, esse conflito não comporta demarcação absoluta; não se trata de uma guerra dos “maus” contra os “bons”, o conflito apresenta um desequilíbrio flagrante que não cessou de se acentuar. Israel – uma das grandes potências militares do mundo, estreitamente associada à hiperpotência americana e dispondo da panóplia dos meios e da guerra moderna – diz agir apenas para proteger sua população civil. Os israelenses têm razões históricas para se sentirem coletivamente ameaçados, de qualquer forma, sempre “à espera”. Mas são os palestinos que lutam atualmente pela sua sobrevivência enquanto povo. Formado por uma parte dos sobreviventes e fugitivos do maior genocídio da história moderna, GLOBAL. 36 Conexões Globais
a quem a comunidade internacional reconheceu o direito de constituir uma nação no lugar da Terra Prometida dos antigos hebreus, aos quais se acrescentou a emigração, livre ou forçada, de judeus de países árabes e de outras partes do mundo, os israelenses confrontaram-se com um ambiente hostil, onde o direito à existência era negado. Invertendo a situação, passaram da defesa à conquista. Desde a guerra de 1948 deflagrada pelos países árabes, quando os israelenses aproveitaram para proceder a uma limpeza étnica cujas dimensões só puderam ser avaliadas depois, seus vitoriosos conflitos fazem parte do conjunto das nações dominantes. Em 1967, Israel ocupou e colonizou os 22% restantes da Palestina histórica o que, contrariando o direito internacional, criou um fato consumado cada vez mais impossível de reverter. A solução lógica, reconhecida por alguns e negada por outros, seria ou a transformação dos palestinos em sujeitos
de um grande “Estado Judeu”, ou proceder a uma nova transferência massiva da população, ou a combinação das duas opções. No exílio, um terço dos palestinos vivem desde então na condição de refugiados, freqüentemente miseráveis, sem que o Estado de Israel aceite reconhecer qualquer direito em troca, tampouco que os países árabes considerem integrálos e conferir a eles direitos de cidadãos. Povo “supérfluo” que a catástrofe coletiva fez ascender à consciência nacional, esperam sempre que a comunidade internacional mantenha sua promessa de fazê-los alcançar a independência num Estado viável. Ao invés disso, foram investidos de uma Autoridade podre e são tidos como coletivamente responsáveis pelos atentados à segurança de seus vizinhos. Observadores tinham notado que a sociedade civil palestina, sob ocupação, dava provas de uma espantosa capacidade de resistência, cultivando suas terras, desenvolvendo a saúde e
Causa Palestina Étienne Balibar
do, ele paralisa, no seio da sociedade israelense, grande parte das forças que poderiam agir para reverter a política de conquista. Coloca em perigo tanto a possibilidade de acordos interinos quanto a reconciliação dos dois povos, o que, de parte a parte, não abre perspectivas que não sejam niilistas. Enfim, implanta, em uma parte da população palestina, sobretudo entre os jovens, uma concepção sacrificial de heroísmo e uma perspectiva do valor da vida humana exclusivamente referida à distinção amigo-inimigo, que todas as experiências históricas provam que se paga com a decomposição da civilidade por um longo período.
a educação, engendrando artistas e escritores, organizando a solidariedade familiar e associativa. Desde a segunda Intifada, o governo e o exército de Israel foram bem sucedidos em esgotar seus recursos, destruindo sistematicamente infra-estruturas e meios de existência, exercendo um terror do Estado assassino que visa indistintamente combatentes e simples habitantes, para li sando as admi nistrações, ocupando as terras e atomizando os territórios. Fingindo buscar um “interlocutor válido”, os israelenses sistematicamente favorecem as divisões ideológicas e as lutas entre clãs na sociedade palestina, nas quais eles não são, obviamente, os inventores. Aproxima-se o momento em que a dupla independência prevista pelos acordos internacionais será irrealizável, com conseqüências dramáticas – inclusive para Israel. A negação da própria existência do povo palestino, de Nakba até o muro em construção, justificaria todas as
formas de resistência, sobretudo o terrorismo, ao qual recorreram, contra a população civil israelense, diferentes organizações, sejam islâmicas ou não? É preciso colocar essa questão, não apenas para “responder” à argumentação de Israel e de seus defensores, mas por razões de fundo. E em termos não apenas morais, mas também políticos. O terrorismo pode ser explicado pelo desespero e pela impotência, ou por ideologia, ou pela simetria que induz o terror de Estado. É, de qualquer, forma catastrófico para a luta do povo palestino. Em primeiro lugar, corresponde exatamente à estratégia israelense de destruição da sociedade palestina, permitindo aumentar sem cessar o nível de violência exercida sobre ela, mesmo que esse aumento cobre um preço muito caro em vidas e em recursos. Não é de espantar que o governo israelense mantenha essas condições e provoque regularmente o revide pelas suas próprias ações. Em segun-
O recurso de uma parte da sociedade palestina à violência terrorista contra a violência colonial não muda nada na dissimetria da situação, do ponto de vista do direito e da justiça: não confere a Israel nenhum direito de aniquilar seu adversário sob o pretexto de proteção. Mas arrisca alongar indefinidamente a possibilidade de uma vitória sobre o ocupante ou de torná-la sem objeto. É, então, profundamente autodestrutivo. Cabe ao povo palestino resolver esse problema. Não poderíamos concluir que a comunidade internacional só tem que esperar, sem se sentir responsável, pela criação de uma nova relação de forças em que a “arma dos fracos” não apareceria mais como a única possível. Pois esses problemas mudaram completamente de natureza depois do 11 de setembro de 2001 e das guerras do Afeganistão e do Iraque. Ilustrando a
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“lei do pior”, característica da conjuntura, a colonização israelense e a resistência palestina foram capturadas em uma economia de violência mundial que tende a impor a tudo a lógica do confronto entre “as forças do Bem” e as “forças do Mal”, destruindo num só golpe a significação política própria do conflito. Daí uma nova dissimetria, na qual, paradoxalmente, cada um torna-se o espelho do outro. Israel sempre identificou a luta armada palestina como uma parte do “terrorismo internacional”, prefigurando assim a “globalização do terror” impulsionada ao mesmo tempo pelo fundamentalismo islâmico e pelos Estados Unidos. Por sua vez, os palestinos, solidários desde sempre com o mundo árabe, que, no entanto não se furtou a traí-los, são às vezes tentados a idealizar esses que eles vêem como os inimigos mais irredutíveis dos seus próprios inimigos: ontem, o Senhor Saddam Hussein, amanhã, talvez, o Senhor Osama Bin Laden, ou qualquer um que o substitua. Essa percepção se instala em um combate global entre dois mundos hostis, Oriente e Ocidente, onde o conflito israelo-palestiniano formaria apenas um nó e não poderia ser resolvido senão pelo contragolpe de uma “vitória” total, de um lado ou de outro. Os atores desse drama ficam assim privados de sua capacidade de iniciativa, a não ser para alimentar a espiral dos “contra-terrorismos” miméticos. Essa tendência, à qual muitos palestinos resistem com todas as suas forças, é desastrosa para eles, transformados em pretextos para “guerras santas” que não são as suas e em vítimas designadas por uma conflagração da região. É também muito inquietante para Israel, a menos que pudesse manter-se como uma fortaleza em permanente estado de sítio no seio do mundo árabe. Muitos dos cidadãos israelenses sentem ou até pressentem isso, mas sem dimensionar todas as conseqüências. Representa, enfim, um perigo para o mundo inteiro ver se estender o “choque das civilizações”, absorvendo e desnaturalizando todos os problemas de territórios, de soberania e de cidadania, de colonização e de descoGLOBAL. 38 Conexões Globais
“Se Israel destruir a Palestina e o povo que a habita, o reconhecimento de sua soberania será definitivamente impossível e Israel não será jamais um Estado ‘como os outros”
lonização, de riqueza e de pobreza, de rivalidades religiosas e de distância cultural, cujo cerne é o conflito israelopalestiniano. Por isso, é do interesse de todos, especialmente dos países que pertencem ao mesmo espaço geopolítico, tentar, se é que ainda há tempo, colocar em ação soluções baseadas no direito dos povos à existência e à segurança e na reparação das injustiças sofridas. Freqüentemente ouvimos dizer que o apoio à causa palestina implicaria colocar em questão a legitimidade do Estado de Israel. Da mesma forma que o uso por alguns do terrorismo como meio de resistência não anula a justiça da causa palestina, a injustiça de sua política não coloca em questão a legitimidade da existência de Israel como entidade política “soberana” – o que não prejudica em nada nem as bases territoriais dessa soberania nem os quadros locais ou regionais em que os israelenses poderiam aceitar limitá-la para assegurar as condições da existência democrática futura de seu Estado. Mas dois fatos fragilizam esta legitimidade, e mesmo arriscam colocá-la em questão aos olhos de uma grande parte do mundo. Um diz respeito à definição de Israel como “Estado Judeu”. Pois não apenas este não cessa de se expandir em detrimento dos palestinos mas, no interior de suas próprias fronteiras, impõem aos palestinos uma condição de cidadãos de segunda classe, privados de grande número de direitos e excluídos da igualdade simbólica juntos aos “verdadeiros” israelenses na possessão de sua terra comum. O outro diz respeito, jurídica e moralmente, à legitimidade de Israel como Estado Moderno que não pode estar assentada nem sobre o mito da origem sagrada, nem sobre a transformação do extermínio em massa – do qual famílias e habitantes judeus foram vítimas – em “direito soberano”, que os colocaria acima da lei das nações, e tampouco sobre a força triunfante. A legitimidade dessa causa exige o reconhecimento dos povos vizinhos e, acima de tudo, dos povos que eles “deslocaram”, em um processo de colonização de natureza bem específica.
É por isso que os israelenses precisam de uma soberania dos palestinos igual à sua, e mesmo associada à sua. É verdade que esse reconhecimento foi inicialmente recusado pelo mundo árabe e continua a ser para alguns, incluindo aí muitos palestinos. Mas, se Israel acaba por destruir a Palestina e o povo que a habita, tal reconhecimento será definitivamente impossível e Israel não será jamais um Estado “como os outros” . O que podem fazer os países estrangeiros para influir em um conflito cuja transformação numa aposta global ameaça sua própria segurança? Certamente, apenas os adversários que se enfrentam diretamente podem achar uma solução efetiva, fundada na justiça e na história. Sobre essas bases, todas as fórmulas futuras estão abertas, e nós “testemunhas” ou “amigos” estrangeiros não vamos decretar o que é reversível ou não depois de meio século de luta entre os projetos nacionais desses dois povos instalados em uma mesma terra. Seu confronto se desenrola, entretanto, cada vez menos em um espaço fechado. Por suas alianças, por seus interesses, seu reflexo ideológico, suas relações de família, de cultura ou de religião, palestinos e israelenses estão presentes no mundo exterior; e numerosos países intervêm na vida de suas respectivas sociedades, com seus programas de ajuda humanitária e militar, investimentos e cooperação científica, donativos para a população, diplomacia. Se ninguém crê que um acordo possa ser imposto do exterior, ninguém pensa também que se possa prescindir de uma mediação internacional. Ainda mais que as Nações Unidas, que jogam aí sua credibilidade histórica, dependem muito da América, da Europa e do Mundo Árabe. Não esperemos a evolução da posição americana, pois o presidente Bush acaba de lembrar e de acentuar, em companhia do senhor Sharon, o apoio à expansão israelense, achando-se à mercê dos acontecimentos dramáticos do Oriente Médio e de mudanças de política interna aleatória. A Europa ocupa uma posição-chave, não apenas por fazer valer seu ponto de vista
“É do interesse de todos, especialmente dos países que pertencem ao mesmo espaço geopolítico, tentar, se é que ainda há tempo, colocar em ação soluções baseadas no direito dos povos à existência e à segurança e na reparação das injustiças sofridas”
para além de palavras, mas também para impor a participação dos países árabes nos processos de mediação. Nenhum “itinerário” pode dispensar esse reequilíbrio democrático do qual depende a confiança dos palestinos, a implicação de toda a região e a neutralização das lógicas de “choque de civilizações”. Nenhuma mediação é possível se os “mediadores” são os protetores dos invasores. É preciso, pois, que a opinião pública se mobilize. E que o faça sobre os princípios de base, mostrando-se tão intransigente a respeito dos fatos passados e das urgências atuais quanto sobre a justiça das últimas perspectivas, o que não é evidente. É preciso para isso que ela se mostre capaz, o que é ainda menos evidente, de transformar as solidariedades comunitárias e suas identificações simbólicas em capacidade de raciocinar e de tomar iniciativas. Não se pode honestamente manter em igualdade na balança causas desiguais; mas é preciso que, no momento em que se faça ouvir uma voz poderosa convocando o mundo a vir em socorro da Palestina oprimida, se coloque essa causa no nível da universalidade. É muito tarde para chegarmos a isso? Sim, é tarde, mas não há outro caminho.
Tradução de Ivana Bentes
Fotos cedidas pela asociação Ya Basta que organizou uma “caravana” para protestar contra a contrução do muro na Palestina. www.yabasta.it
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Uso e abuso:
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Designer desconhecido, protesto pela invas찾o do Cambodja pelos EUA - Universidade de Berkeley 1970.
de Attica a Abu Ghraib Documentário sobre a revolta na prisão de Attica em 1971, em Nova York, demonstra que o sistema carcerário norte-americano ainda é classista e racista O obituário do New York Times falava, recentemente, de Frank Smith “um dos líderes da revolta da prisão de Attica em 1971, torturado pela comissão que investigou a revolta, e que passou vinte e cinco anos brigando na justiça por indenização pelas seqüelas provenientes da tortura”. Trabalhando como assistente forense após ser libertado, Smith foi o principal agente da vitória na luta por uma indenização de 12 milhões de dólares, ganhos pelos que sofreram danos no episódio. A vida de Frank Smith mudou para sempre, em 13 de setembro de 1971. Nelson Rockfeller, na época governador de Nova York, ordenou que 500 policiais invadissem a Penitenciária de Attica, onde mataram 29 prisioneiros e os 10 guardas que estavam como reféns, e feriram outras 86 pessoas. A cobertura na imprensa foi devastadora. Mentiras escandalosas nas primeiras páginas “informavam” que os prisioneiros cortaram as gargantas dos reféns quando o ataque começou. As correções, com menor destaque, foram publicadas após as autópsias não revelarem “nenhuma garganta cortada”. Muito tempo se passou até que as autoridades estaduais admitissem a verdade. Fantasmas Smith, conhecido como “Big Black” (“Negão”) é o personagem principal de um documentário transmitido na televisão pública há três anos – “Os Fantasmas de Attica” – que inclui tomadas e fotos mantidas em segredo pelas autoridades estaduais há décadas. Mostra também entrevistas
Norman Solomon
Tradução Mauro Sá Rego Costa
feitas com gente que testemunhou o episódio de todos os ângulos. Escrevi, depois de ver o filme, que “seu grande mérito é o respeito à precisão histórica dos fatos. A revolta de Attica foi provocada pelas condições execráveis em que a prisão era mantida. Começou como um problema localizado de indisciplina e cresceu em articulação e organização a partir da raiva daqueles homens que, de repente, arriscaram tudo em nome da conquista de sua dignidade”. A oportunidade para a transmissão nacional do documentário na TV do Judiciário sofreu com a proximidade do 11 de setembro – foi ao ar dois dias antes do atentado – e não houve cobertura de mídia a seu respeito. O mais impressionante no filme é a lucidez e humanidade de Smith, comentando as barbaridades de que foi vítima. Como mostra o documentário, “os guardas o torturaram durante horas seguidas com cigarros, ferros em brasa, ameaças de morte e de castração e ‘roleta russa’”. Embora a revolta possa ser qualificada como multiracial, a maioria dos 1281 prisioneiros era constituída de negros, o que reflete a população prisional como um todo. No filme, Smith declara: “Attica foi uma questão de carências e necessidades, mas foi também claramente uma questão de classe e uma questão racial”.
da a partir dos baixos salários e da cor da pele. Por isso, os jornalistas não deviam automaticamente tratar as revoltas na perspectiva de problemas da administração prisional, como costumam fazer. Há três anos, escrevi sobre o documentário: “Ao assumir refletidamente que os brancos nas posições de direção da prisão estavam sendo fiéis em seus testemunhos, os repórteres apresentaram a história de forma invertida. Esse preconceito da mídia resultou na desinformação intencional do público norte-americano”. Mas este não é um incidente isolado.
Classe e raça Apesar da mídia norte-americana raramente passar por essa área, Abu Ghraib também foi uma questão envolvendo classe e raça. Numa perspectiva global, as tropas americanas – mandadas para o Iraque pela nação mais rica do mundo – servem aos interesses das elites estadunidenses. E o racismo anti-árabe tornou mais fácil torturar prisioneiros em Abu Ghraib. De volta aos E.U.A., mais de trinta anos depois de Attica, qualquer das nossas prisões continua a representar um problema de classe e de raça. Com mais de 2 milhões atrás das grades – 63% de negros e hispânicos – a população carcerária é amplamente defini-
Abusos Todos os dias, a brutalidade é a realidade dos prisioneiros, em qualquer canto deste país. E o que acontece por trás das portas das celas e das grossas paredes de nossas prisões raramente chega à mídia. “Não encaro os abusos sexuais, torturas e humilhações dos prisioneiros iraquianos por soldados americanos como acontecimentos extraordinários”, declara Terry Kupers, psiquiatra que tem apresentado freqüentes denúncias de abusos de direitos humanos nas prisões dos E.U.A.. “O destino dos prisioneiros nos EUA não é nada diferente do dos iraquianos atacados por nossos militares. Os prisioneiros são insultados, estuprados, surrados, deixados sem alimentação, nús em celas geladas, e atacados de muitas outras formas nas penitenciárias americanas, como está documentado em várias Cortes onde esses casos estão em julgamento”. Kupers acrescenta: “Esses abusos continuam porque um grupo tem controle total sobre o outro: as vítimas sentem-se sem recursos para reagir, e os algozes confiantes de que nunca vão ser descobertos; todo o esquema é mantido em segredo”. É aí que a mídia devia intervir – para prevenir contra o segredo. Quando o público ficou sabendo dos abusos de Abu Ghraib, houve um enorme alvoroço. Mas o que acontece por trás das grades na América, hoje, não suportaria os flashes das câmeras. Conexões Globais 41 GLOBAL
GLOBAL 42 Quadrinhos
Colaboração Zé Colmeia
Tarja Preta / Leonardo
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Reforma universitária Alexandre do Nascimento
O lema ‘público, gratuito e de qualidade’ não reflete a realidade das universidades estatais, ainda fechadas aos grupos de excluídos brasileiros
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Em artigo anterior, defendi que há uma pergunta fundamental que deve ser analisada no debate da reforma universitária: a universidade estatal é pública? Pois diante da grande quantidade de movimentos que reivindicam a universalização do direito ao ensino superior, das resistências do corporativismo conservador presente na universidade pública – que é contra a reforma e não parece estar interessado em disputar uma outra reforma – a resposta parece óbvia, ou seja, a universidade estatal no Brasil não é pública. Ela possui um lado público, o do financiamento pelo conjunto da sociedade. O outro lado, o do acesso (aos serviços prestados, à produção de conhecimento e aos conhecimentos produzidos) ainda não é público. Para ser integralmente pública a nossa universidade pública precisa ser tornada comum. E tornar algo comum é fazer com que aquilo que este algo retira da sociedade a ela retorne, criando formas para que o conjunto da sociedade possa participar dos processos de construção e difusão de conhecimento. Vejam, por exemplo: as pesquisas são desenvolvidas, financiadas pelo dinheiro público e não são disponibilizadas, não são devolvidas à sociedade. Muitas se transformam em publicações com preços inacessíveis aos próprios estudantes. No debate da reforma, financiamento e autonomia são os temas que mais aparecem. Mas, do ponto de vista dos movimentos que querem quebrar as barreiras, a questão mais preocupante é o acesso e permanência, que é o que de fato tem a ver com a democratização da universidade. Será que o Programa Universidade para Todos que propõe a estatização de vagas nas universidades particulares é o que o governo
a proposta do MEC e algumas questões apresenta para resolver a questão do acesso? Fala-se que esse programa disponibilizará vagas nas instituições privadas (com recursos públicos) para pobres, negros, indígenas, portadores de deficiências e necessidades especiais, ex-presidiários e, talvez, os demais estigmatizados pela nossa sociedade racista e discriminatória. O Universidade para Todos é para resolver o problema do acesso em face da demanda e da pressão cada vez maiores, ou é para resolver os problemas do setor privado do ensino superior, que está em crise? A exclusão negra Qual é o projeto do governo para universalizar o ensino superior público? Faz parte da proposta governamental a mobilização de recursos para aumentar o número de vagas oferecidas por essas instituições? Os programas de extensão podem servir para ampliar o acesso aos conhecimentos, à medida que estejam ligados a um processo de aprendizagem produtiva que ampliem as possibilidades dos jovens que terminam o ensino médio antes de ingressar na universidade. Há, também, o projeto de cotas – fruto da luta histórica do movimento negro e não das prioridades governamentais – que é fundamental para um processo de democratização do ensino superior. Segundo pesquisa realizada na Unicamp, boa parte dos seus estudantes são oriundos de famílias com renda de até 5 salários mínimos, o que indica que está crescendo o número de estudantes de menor renda nas universidades públicas. Mesmo assim, o acesso de estudantes negros ainda possui barreiras (raciais) que mantêm a histórica desigualdade educacional entre brancos e negros,
reforçando a importância das cotas para estudantes negros. Entretanto, a política de ação afirmativa governamental deve combinar cotas (que devem se estender também aos docentes!), programa de permanência, aumento gradativo de vagas e revisão de processos internos (currículo, dinâmicas, acesso à bolsas de pesquisa etc.). Tais elementos não aparecem no projeto governamental que está tramitando no Congresso. Será que aparecerão no projeto principal de reforma universitária? É sempre bom lembrar: a promoção da igualdade é condição objetiva para um processo de democratização. Disponibilizar o conhecimento Outras questões se apresentam: faz parte da proposta governamental uma nova forma de aproveitamento de professores aposentados que não seja através da possibilidade (imoral) de prestar novo concurso, o que dificulta bastante a entrada de novos professores e permite a acumulação de cargos (anti-democrática)? Quais as propostas em relação às pesquisas? Sobre as pesquisas eu arrisco dizer que, para torná-las mais democráticas, é preciso que todas sejam obrigatoriamente disponibilizadas (sem custo adicional para a sociedade que as financia) através da tecnologia do livro eletrônico. Além disso, a sociedade deve ter meios de saber quais são os grupos de pesquisa, o que eles estão pesquisando e quanto receberam de recursos públicos. Eis aí, do meu ponto de vista, alguns desafios da reforma universitária que o governo propõe e que ainda não conhecemos. A perspectiva, entretanto, é de que a reforma que o governo apresentará à sociedade seja democrática e democratizante, uma reforma que não crie dois tipos de ensino superior (o ensino superior para negros, pobres, indígenas, deficientes, ex-presidiários e outros estigmatizados; e o ensino superior para as elites, o corporativismo e todos aqueles que não configuram uma universidade verdadeiramente pública). Isso é o que se espera que o governo do presidente Lula assuma no processo de reforma universitária.
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Sindicatos dos docentes se apoiam em discurso ideológico e mistificado para manter o status quo e injustos privilégios adquiridos
Muro de Eduardo Coimbra.
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A leitura dos jornais dos sindicatos docentes e mais em geral da autoproclamada "oposição de esquerda" é emblemática de um corporativismo extremamente conservador e de uma linha política esquizofrênica. Impossível encontrar nesse velho discurso dados sobre o ensino superior no Brasil (ou no mundo), saber quanto custa, quantos alunos forma, qual o peso do setor particular etc. Sobre elementos de avaliação qualitativa, nem se fala. Além de uma declaração geral e consensual de que "as públicas são universidades de qualidade", não se pode apreender nada na leitura desses materiais. Na realidade, o discurso sindical é insuportavelmente ideológico e mistificado. Ideológico: porque sua trama estratégica é grosseira e inadequada. De fato, tratase de uma crítica infantil do "capitalismo", visto como um demiurgo que manda na sociedade. As lutas "docentes" são vistas apenas como "momentos" específicos de uma luta geral contra o "demônio" capital e sobretudo contra o capital internacional. Mistificado: porque seu horizonte tático é miserável e corporativo. A base de massa de suas "lutas" (passivas e esvaziadas) é constituída por um corporativismo arraigado à manutenção de um conjunto de privilégios ori-
undos não da função social e pública do ensino superior, mas do próprio aparelho de domínio do Estado (capitalista!). A demonização (ideológica) do "capital" permite isentar as prolixas análises sindicais de qualquer entendimento das relações de produção e de classe que, no Brasil, sustentam o dito demônio. Com isso, os nossos docentes se colocam do lado (ou dentro) dos movimentos sociais e dos deserdados do planeta, não para mudar, mas para conservar o status quo. A total ausência de qualquer análise da composição social das classes e das forças produtivas no Brasil contemporâneo (tudo é resolvido em afirmações genéricas sobre capital, mercado, individualismo etc.) permite a nossas vanguardas arregimentar as tropas de um corporativismo tanto consensual quanto passivo. Como não encarar como o pior oportunismo, por exemplo, o acúmulo de aposentadoria e emprego (acúmulo que queima vagas de recém-doutores, aposentadorias precoces que têm como objetivo um novo emprego nas próprias universidades públicas)? Como explicar que o sindicato nunca tenha atacado a figura do "professor substituto", ou seja de um sub-emprego com salário infame para alguém que oferece as mesmas disci-
Pelo fim do velho
corporativismo Giuseppe Cocco
plinas – em termos de carga horária e tipo de disciplina – que os colegas contratados? Ao mesmo tempo, o sindicato conservador sempre tem se oposto à mobilização dos bolsistas de pós-graduação que querem exercer atividades de docência. Como explicar que o sindicato nunca fale de "expansão" das vagas de alunos – sendo sempre contra qualquer mudança dos modos atuais de entrada nas universidades públicas – e fale apenas de vagas de professor (sendo essas geradas não pelo aumento do público das universidades mas, ao contrário, pelas precoces aposentadorias e reposição das vagas)? Abre-se mão de conquistar uma posição legítima dentro do processo de universalização dos direitos (defesa das cotas, aumento das vagas) para sistematicamente defender os chamados "direitos adquiridos", independentemente do que eles representam em termos de desigualdade, injustiça e também de poder de poucos sobre muitos! Como se uma universidade pública de qualidade para poucos não funcionasse – na realidade – como um elo fundamental de reprodução daquelas relações capitalistas tão demonizadas em aparência! O resultado desse discurso sindical estatal, oportunista, conservador é, no plano material, uma dramática e continua degradação: de nossas condições de vida, de nossa inserção nos movimentos de universalização dos direitos que transformam a sociedade brasileira. Ainda pior, o resultado é a privatização
do ensino superior: o Brasil tem o maior percentual de alunos (75%) no setor particular (20% no México, 30% a 40% na Argentina) e, como se não bastasse, o menor percentual de sua juventude no ensino superior: 70% dos jovens argentinos entram no ensino superior, no Brasil apenas 15%. Agora, se alguém quer discutir a dimensão qualitativa dos investimentos quantitativos será suficiente lembrar que apenas 10% dos professores universitários argentinos têm doutorado e no Brasil chega-se a 30% (bem perto dos 40% da Grã Bretanha!). A condenação do "produtivismo" – a luta contra a GED – é emblemática da esquizofrenia teórica e política do sindicato. Por um lado, nos fatos, defende-se o status quo. Qualquer reforma é sempre uma "contra-reforma" (mesmo antes que se conheçam seus conteúdos). E o status quo é de fato marcado por uma patente e inegável inadequação das universidades públicas brasileiras à reivindicação social de acesso à educação, inclusive à educação superior. O engessamento de qualquer plano de expansão do número de alunos é o maior cúmplice – junto à legislação sobre filantropia – dos lucros que as universidades particulares realizam sobre uma demanda social legitima! Por outro lado, numa retórica supostamente radical, critica-se o "produtivismo", ou seja, critica-se – citamos o jornal da ADURFJ – "que a universidade seja instrumento de integração submissa do país ao capitalismo internacional. Que seja instrumento de aumento da produ-
tividade nacional e empresarial (…)”. (Tratar-se-ia de "individualismo (…) e darwinismo acadêmico". A esquizofrenia é total. Deixemos de lado a cegueira seletiva dos que apenas vêem darwinismo quando se trata deles mesmos, mas acham que o vestibular não o é, sem enxergar a desigualdade de classe no acesso ao ensino de qualidade médio e sem enxergar a correlação entre desempenho acadêmico e posição na brutal seleção do vestibular. Dizer que a dimensão produtiva das universidades é sempre capitalista é negar tudo o que as lutas operárias plurisseculares demoliram sistematicamente! A potência das lutas operárias foi justamente afirmar que a dinâmica produtiva da sociedade vinha da liberdade da cooperação das forças produtivas e não de sua subordinação na relação de produção com o Estado, com a empresa, etc. Como um sindicato pode condenar essa dimensão produtiva? O único modo de sair dessa retórica supostamente radical e, na realidade, conservadora é reconquistar uma verdadeira autonomia universitária. Essa autonomia não saberia ser uma soberania. Pelo contrário, ela será tanto mais forte quanto mais for socialmente legítima, ou seja, quanto mais a universidade for efetivamente pública: sendo realmente para todos e não apenas hipócritamente, como aquela frase que está escrita nos tribunais "burgueses": "a lei é igual para todos"! Universidade Nômade 47 GLOBAL
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Osvaldo Saidón
q i Es u zoAnál se
Encontro de
GLOBAL 48 Maquinações
Conversações com Deleuze e Guattari Montevideo vai sediar em agosto o I Encontro Latino-americano de Esquizoanálise Amigos, editores, alunos, terapeutas, artistas que transitam pelas linhas de trabalho indicadas por Deleuze e Guattari, vêm se reunindo em diferentes cidades latino-americanas sob a denominação de ‘esquizoanalistas’. O Primer Encontro Latino-americano de Esquizoanálise a ser realizado em Montevideo representa a culminação dessas reuniões. O pensamento de Deleuze e Guattari,
que nos anos 70 trouxe ar fresco à prisão estruturalista em que se encontravam disciplinas e certas práticas políticas, vem assumindo hoje uma potência crescente, que se expressa nos diferentes movimentos sociais e redes universitárias e extra-acadêmicas espalhadas pelo nosso continente. A vocação anti-institucional da esquizoanálise, suas diversas práticas micropolíticas, seu modo de enfrentar a produção de subjetividade social, coloca-nos frente a frente com o desafio de construir um modo de encontro próprio e singular, onde a tensão entre as linhas mais flexíveis e os segmentos mais organizados tenham possi-bilidade de expressão.
Alternativa
Revolução molecular
Na realidade, a esquizoanálise carece de uma proposta majoritária ou hegemônica, já que trata de outros modos de habitar o mundo, que fazem do minoritário uma potência, e da micropolítica sua estratégia de passagem. Com uma mínima porém necessária organização, tentaremos dar consistência às diferentes atividades articuladas em torno de quatro eixos temáticos: a clínica; a politica; a estética; e os movimentos sociais. Esperamos palestrantes, ensaístas, artistas, atores, clínicos que, nas diversas linguagens em que se expressam, possam dar conta da diversidade de iniciativas e experimentações que hoje se agrupam sob o nome de esquizoanálise. Novos desafios, entretanto, levam-nos a convergir neste encontro. A micropolítica tem dado lugar ao pensamento das multidões, que se expressa de diferentes modos, indo desde as novas relações de trabalho até os mais diversos instituintes que se relacionam com o movimento antiglobalização. A sociedade de controle obriga-nos a definir novas estratégias para enfrentar as manipulações da mídia e das máquinas químicas de captura, conduzidas por uma psiquiatria do controle social que se realiza através da difusão massiva de psicofármacos.
Propusemo-nos a fazer uma travessia geográfica pelo Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Buenos Aires, Rosario, São Paulo e outras cidades, para dar conta de uma história que – como diz a convocatória dos companheiros uruguaios – “Começou há 30 anos quando chegou a nossas praias o pensamento de Deleuze e Guattari” e que acaba assim: “A guerra, a indolência, a impunidade e a dominação econômica, militar, mediática, burocrática e acadêmica nos tempos em que vivemos já se tornaram insuportáveis. Digamos basta! Afirmemos as paixões alegres e desenvolvamos uma ética da vida, sustentando com a nossa presença o devir de uma revolução molecular que não cessa na sua vontade de afirmação”. Temos uma tarefa interessante e extensa pela frente, continuemos a percorrê-la juntos. O site do encontro é: www.encuentroesquizo.com
Imagens do livro 365 de Pojucan Maquinações 49 GLOBAL
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I R
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Jagger de Cédric Vernay
Nilson Primitivo
Estética do belo
contamina cinema brasileiro, que se torna eficiente na bilheteria e pouco inovador nas telas
GLOBAL 50 Maquinações
Na verdade, não sou intelectual nem crítico e, ainda por cima, detesto escrever. Mas, pelo menos, entendo alguma coisa do assunto e não há nada melhor que “com a mão leve e o espírito solto” depravar orelhas inocentes. Senão, vejamos. Cena1: Negão arrasta loirinha pra dentro de um prédio em construção. Corta/Cena2: violenta sexualmente a menina. Corta/Cena3: tratando-se a vítima da filha de um rico industrial, a polícia não demora a encontrar o meliante. Corta/Cena4: mesmo se utilizando de métodos científicos de investigação dos mais sofisticados, como o choque elétrico, o pau de arara e, principalmente, muita porrada, os briosos representantes da Lei e da Ordem não conseguem arrancar do autor uma confissão sincera.
Corta/Cena5: Negão é fóda! Corta/ Cena6: mas como ninguém é de plástico, depois de três dias e três noites ele resolve se render, e nosso filme chega à sua cena final: Negão manda chamar o delegado e assume finalmente toda a culpa: “Tudo bem doutor, eu caso com a moça”. Esse preâmbulo pré-cinematográfico é baseado numa piada do Plínio Marcos e serve para situar o olhar sobre outra perspectiva. Vamos aos fatos: quando do lançamento de Cidade de Deus, uma crítica recorrente era a de que o filme era alienado. Pois bem, essa crítica se referia ao fato dos personagens se colocarem algumas vezes com descontração e simpatia, e até alguma ‘bossa’. Todo o encantamento do filme/livro está nessa empatia do
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espectador com a classe operária criminal carioca (nacional), e expõe a verdade de que estamos mais próximos deles do que imaginávamos. Além do mais, ser bandido no cinema é a mais antiga das profissões. Se alguma coisa incomoda no filme é a própria linguagem estética que é a mesma da publicidade da TV, identificada com o poder, o consumo, elitizada. Falta ilegibilidade e agressividade. A crença no belo Agora entra em cartaz o preocupadíssimo documentário “Justiça”, vamos ver com interesse. Os documentários têm sido saídas menos desastrosas. A idéia de usar uma câmera na mão no Cinema Novo era, e é, uma solução arcaica com um resultado moderno para um problema eterno: equipa-
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mento caro. A redenção, no entanto, está justamente na irregularidade, na dramaticidade que caracteriza o movimento humano se opondo ao velho tédio hidráulico, sem erro, sem tempero. Hoje, anda cada vez mais em voga, junto com o steadycam, a idealização do regular, do “perfeito”, do belo, do bem, da ordem e do consumo.
A
seguido atrair produções bem mais polpudas, com filmes de títulos como “Matador” e “As bandidas”. Apesar de serem filmes, de resto, também medíocres, talvez os mexicanos estejam sendo mesmo menos ingênuos e mais liberais. E, pelo menos, a grana tem valido mais a pena.
Pior para o nosso incipiente cinema moderno renegar esse saboroso patrimônio estético nacional de barbarismos que nos foi legado. Fazer um cinema sem novidade e eficiente parece ser ainda a utopia na nossa “retomada”. Sem falar que, para um espectador europeu médio, nossas melhores produções são pateticamente pobres. E de imitação. Ao mesmo tempo, o México tem conMaquinações 51 GLOBAL
nós contemporâneos rés-do-chão açúcar invertido falar de dentro das pesquisas e vivências, com textos que são cartas, bilhetes, signos de conexão, nada ou tudo isso: mensagens trocadas na rede entre participantes e não do résdo-chão, imagens e palavras das ações, das preparações, tentativas, viagens, festas, discussões, enfim o trabalho coletivo está na pele da nós contemporâneos, na textura da barrus má impressão editora, xerox preto e branca, algumas 20 e tantas edições. são fragmentos da rede e de deslocamentos, momentos em fuga de uma gangue que se dispõe aberta [uma coagulação de pessoas afins, enunciado de barrus]. falar de dentro da nós contemporâneos nº 25. da nós contemporâneos nº 20. ---------------------------------From: "florianoromano" <florianoromano@bol.com.br> Reply-To: resdochao@yahoogrupos.com.br Date: Thu, 4 Dec 2003 23:02:23 -0 200 To: "resdochao" <resdochao@yahoogrupos.com.br> Subject: Re:[resdochao]Resumo 216 barrus, qual e o servidor dai? como nós achamos vcs pela rede? que loco acordar de madrugada com uma marisol falando espanhol "senor romãno si puede ayudar a conectar en la internet? estoy in nueva york" ----------------------------------
Rés-do-Chão como um satélite: quarentena desenvolvida em parceria com The Americas Society, no período de 1/12 de 2003 a 10/1/2004. Entrando na sala do Rés-do-Chão/RJ, de volta do Rés-do-Chão/NY, tenho a clara idéia de ‘como um satélite’, conceito este que esteve em torno dessa quarentena. […] E voltam-me à mente imagens em grande velocidade… Artur dizendo para Cecilia ‘o rés é aqui no Rio de Janeiro, lá em Nova York é que é o satélite’. Essa afirmação de Arthur Leandro está muito próxima da noção de satélite em astronomia, de corpo secundário que gravita em torno de outro, denominado principal. […]Trago aqui a figura de ‘companheiro inseparável’ que também é sentido da palavra satélite. Lembro que quando parti do Brasil, levava além da bagagem a confiança nos amigos; fiz sete cópias das chaves do Rés e as deixei na confiança da produção de uma vibração de freqüência alta que compensasse o ‘vazio’ da fundação desse território em NY. Recordo as projeções de vídeo seguidas de debates de Wael Shawky, que vive e trabalha em Alexandria; e também do projeto CZECH DREAM, dos artistas tchekos V t Klus k & Filip Remuda, organizados em parceria com o 16 beaver, grupo de artistas independentes de NY. Yann Beauvais além de fazer a performance TU SEMPRE, produziu um encontro com vídeo/cineastas e trouxe a participacão de Keith Sanborn e Bradley Eros. Das performances de Angela Freiberger e do corpo ‘em performance’ de Tato Teixeira. César e Taís vieram de Recife, Paulo de Goiânia e Babidu do Piauí. Das bicicletas sonoras do Urucum tocando bregas pelas ruas do Brooklyn, as sopas de Cecilia, nossas conversas em torno do café da manhã, como as relações foram se estabelecendo entre as pessoas e as duas vídeo-instalações The Big Slip de Cyríaco Lopes e Duas Cidades de César de Barros, projeto urbanístico para a promoção de espaços de convivência em áreas carentes com mobiliário reciclado. Mariluz, Margarita, Mark, Elizabeth, Marysol, Rene Gabrin e Ayreen, e tantos outros amigos que nos freqüentaram repetidamente até nossa despedida. Gostaria de lembrar outra noção de satélite em Anatomia: diz-se de nervo ou de veias que acompanham quase paralelamente as artérias... e somar essa noção outra de satélite de comunicações, em astronomia: satélite artificial para comunicações por ondas eletromagnéticas entre vários pontos da terra. […] A alta vibração do Rés NY, no final. Concentração, transferência material de pessoas. Este texto aberto, escrevivido por mim, não pode dar conta da totalidade do evento, pois a cada conversa com os participantes se tem mais informações que se somam à poética de transbordamento do Açúcar. […] Edson Barrus, NÓS CONTEMPORÂNEOS nº 25, Rés qui NÓS cio, Barrus MÁIMPRESSÃO editora, Macapá, fevereiro de 2004.
Montagem dos textos Cecília Cotrim, fotos arquivo rés-do-chão. [ao lado da porta do loft em williamsburg, na calçada vazia e gelada, um cartaz colado com fita crepe na parede marcava o território poético: rés-dochão. a placa do rés, a intuição da água: era o hudson, logo ali. 2 rios. depois foi o amazonas. a vivência e a tele-vivência do rés satélite pensadas em encontros e ações no campus da universidade de macapá. espaços roubados – como um beijo é roubado – da instituição. refletir sobre a quarentena em nova york atravessando eixos. rés_qui_nós_cio: participação do résdo-chão + açúcar invertido + grupo empreZa + grupo urucum + rejeitados + grupo radial + gpav da unifap + agente dupla + nep + quem vier GLOBAL 52 Maquinações
Outro exemplo de iniciativa a ser citada, baseada nesses mesmos aspectos de localidade e produtividade, seria o surgimento do Espaço Experimental Rés-do-Chão, no Centro da cidade. A rigor, um apartamento com fins residenciais. Na real, um lugar destinado à experimentação. Com agenda periódica mas nem por isso sistemática, desde o início de 2002 dedica-se a rearticular os procedimentos que norteiam o presente movimento da arte: ser centro de discussão, espaço à disposição, agregação de esforços mútuos, editora com independência gerencial – esses são alguns predicativos da proposta do Rés, que funciona ‘como estabelecimento artístico não-comercial e vem cavando um lugar autônomo no meio institucionalizado das artes’. Como o nome insinua, coisa [res] do nível da rua, do chão, – onde a validação social da empreitada se dá como decisão coletiva.[…] Luis Andrade, NÓS CONTEMPORÂNEOS nº 20.
Rés do Chão como um satélite […]O Rés-do-Chão, um espaço de convivência situado em meu apartamento no bairro da Lapa/RJ, como outras iniciativas grupais que surgiram no Brasil nos últimos dois anos, foi uma alternativa política, encontrada como forma de “Alcançar por fora” e driblar esse sistema controlador de vigilância e punição que se baseia num verdadeiro jogo de bajulações e submissão.[…] Edson Barrus. N. York, 8 de dezembro de 2003. Conferência na New York University. NÓS CONTEMPORÂNEOS nº 20, Nova York, janeiro de 2004.
----------------------------------------------------------------------From: "Anderson Rirley Almeida" <rirley@hotmail.com> Date: Mon, 01 Mar 2004 18:45:53 +0000 To: cecotrim@uol.com.br Subject: Re: RÉS'relato Anderson Rirley de Almeida Sales >From: Cecilia Cotrim >To: Arthur Leandro, Anderson Rirley Almeida >Subject: Re: RÉS'relato >Date: Fri, 27 Feb 2004 11:46:17 -0700 >>oi, anderson, não tem ironia nenhuma não, achei ótimo ter esse registro [o >relato] que vocês fizeram com tanto cuidado. >o que escrevi rapidamente, sobre "público", é que seria uma discussão >interessante para se ter..... ou se pensar .... no paradoxo que é .... >usarmos essa mesma expressão [O Público], desde os salões do século XVIII, >até hoje..... a mesma expressão.... vamos pesnar na possibilidade ou >impossibilidade de se usar esse termo, só isso.... a mesa redonda, acho que >foi bacana sim, ali no chão, várias vezes hove mesas redondas, no chão, sem >o perigo de facas no teto..... >beijos, >c. >>>on 26/2/04 4:39 PM, Arthur Leandro at arthur.leandro@unifap.br wrote: >>> Não li o relato, estou fazendo monografia e desfilando no Rancho. Quem disse >> estar very bom foi Cecilia, e acho q não é ironia. Arthur >>>> On Thu, 26 Feb 2004 19:02:06 +0000, Anderson Rirley Almeida wrote >>> Não sei se é um elogio ou tu estas sendo ironico quando dizes que o >>> relato está muito bom Sobre a questão da nomenclatura dos >>> participantes (público), penso que seja uma questão efemera, visto >>> que os objetivos forão alcançados (pelomenos alguns deles). >>> >>> Na minha turma por exemplo, tivemos um breve debate sobre tudo o que >>> aconteceu, pessoas realmente indigna das com a história da galinha. >>> Então como podes notar, com ou sem público, o RRESQUINOSCIO deu o >>> que falar, pelomenos aqui na UNIVERSIDADE, pena não termos tido >>> tempo ainda de fazer uma mesa redonda ou coisa que o valha, seria >>> bem mais proveitoso. >>>>>> abraçaõ! >>>>>> Anderson Rirley de Almeida Sales >>>>>>> From: "Arthur Leandro" >To: "EmpreZa Alexandre Pereira" ,"Grupo UNIFAP",>>rirley@hotmail.com "Kátia Meireles","Natasha", "Silvana Fonseca" >Subject: >> Fw: Re:Fw: RÉS'relato >Date: Fri, 20 Feb 2004 23:04:40 -0300 >>>---------- >> Forwarded Message ---------->From: "cecotrim" >To: arthur.leandro@unifap.br >>> Cc: silvana.fonseca@unifap.br >Sent: Fri, 20 Feb 2004 10:53:47 -0300 >>> Subject: Re:Fw: RÉS'relato >>> meninos, o relato está ótimo, e inclusive >> ac ho que daí mesmo já se pode >começar uma >pequena discussão... por >> exemplo... o que vocês acham da palavra "público" >aparecer >assim com tanta >> freqüência? ... no úlitmo dia, na cozinha, acho que, pela >falta de um lugar >>> definido, houve uma maior fluidez entre participantes e não-participantes, >>> como se aquilo >que se chama de "público" estivesse tendendo mais à >> paticipação.... não >sei.... o que vcs >acham? >beijUs, >c. >falta o relato >> da performance no trapiche, da água do lagarto na cozinha >[alexandre, manda >>> ver], do banho de dandá da costa, e a receita da sopa, que está aqui do meu >>> lado, vou >digitar e enviar a vocês. >> --------- Forwarded Message ------- >> ---- >> From: "Anderson Rirley - Aluno" >> To: "Arthur Leandro" >> Sent: >> Thu, 19 Feb 2004 19:16:36 -0300 >> Subject: RÉS'relato gt; >>> BOM ARTHUR, >> AÍ ESTA O RELATO DO QUE NÓS CONSEGUIMOS CAPITAR DO RESQUI >NOSCIO, >> VE O >> QUE PODE SER USADO. >> ABRAÇÃO! >> P.S - Está no anexo. >>>> UNIFAP - >> Universidade Federal do Amapa >> ------- End of Forwarded Message ------ >>>>>>>>>>>> -------------------------------------------------------------------- >>>>>> Clique aqui. >>> NÓS CONTEMPORÂNEOS nº 25
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Dois? vários rios. […] A situação //, móvel, dos membros do Rés, poderia sim levar a pensarmo-nos como gangues temporárias que buscam desfazer, menosprezar e recusar os limites definidos pelo circuito: limites entre os domínios da arte, da sociedade, limites das figuras delineadas pelo circuito, e enfim, limites do preconceito e do conservadorismo. Cada gangue do Rés, cada conexão interpessoal, ação, encontro, enfatiza sempre a responsabilidade de cada membro do coletivo pelo processo dinâmico de produção, recepção, circulação do trabalho de arte, dos enunciados, e da sobrevivência de suas tentativas, mas não da sua própria manutenção e perpetuação no vazio, como parece ser o caso da doença institucional no Brasil. Assim, também a aproximação com a tecnologia, presente desde o primeiro Açúcar na FUNARTE do Rio [2002], e intensificada nessa segunda quarentena em Nova York, disseminou [por tele-presença via satélite] o entrecruzamento de ações entre cidades como Tokio, Paris, Recife, Rotterdam, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Goiânia, Macapá, São Paulo, Nova York. A temperatura da máquina dá a medida da abertura de horizontes detonada pela experiência desse coletivo, criando um campo disruptivo, uma verdadeira rede de tráfico de informações, poéticas, de política e de afeto.[…] Cecilia Cotrim NÓS CONTEMPORÂNEOS nº 20. Maquinações 53 GLOBAL
Viva a periferia: o neoconcretismo, o realismo mágico do grupo Rex, a nova objetividade brasileira, a geração AI-5... saudamos e damos passagem à nova ordem de canibais autóctones!!! (como diria algum último antropófago) – Oswald !!!!!! O que foi feito da terra de Pindorama??? Mitos e Sacrifícios. Abaixo do Equador vibra o fantasma de Hélio Oiticica: “o que importa: a criação de uma linguagem: o destino de Modernidade do Brasil pede a criação desta linguagem, … E a questão brasileira é ter caráter... coni-convivência”. No atual contexto, coloco isso como pergunta: o que importa? qual é a questão brasileira? Quem paga o tempo do brasileiro criar, por exemplo, para criar o quê? A repressão atua através da dilapidação do poder aquisitivo do povo e, portanto, da possibilidade de produção de coisas e de participação social. Essa impossibilidade foi mascarada, “estetizada”, tornada suportável através de mecanismos compensatórios, como diversas situações agenciadas pela mídia. O que está em jogo aqui é “em que formas de tempo e espaço” é possível a existência daquilo que foi considerado Arte no período moderno do Ocidente. Diante da impossibilidade de recorrer à qualquer coisa conhecida – toda a filosofia, de Descartes a Wittgenstein; no projeto iluminista; na tendência “natural” do universo no sentido evolutivo; no progresso; numa possibilidade de futuro; não podendo contar com o sujeito da estética modernista, ligado à concepção da identidade privada, personalidade única, estilo único, como perguntou Jorge Mautner, em 1962, no seu Vigarista Jorge: “que mais pode fazer um jovem escritor latino-americano?” Para os dadaístas a arte era “algo efêmero” e, para fugir a qualquer forma de repressão, interpretada como “espacialização permanente”, davam aos seus eventos uma conotação de “ação revolucionária”, retornando, GLOBAL 54 Maquinações
Uma vida cada vez mais fragmentada e fortuita transforma a existência e a maneira em que se faz arte assim, à história, à eternidade, pois que acreditavam poder causar alguma mudança através de suas ações artísticas. E para os artistas pós-modernos o que é a arte? A emergência do pós-modernismo aconteceu na década de 60, afirmando-se plenamente na de 70; e é correlata ao surgimento de uma nova ordem econômica e social: pós-industrialismo ou sociedade de consumo, a sociedade da mídia e do espetáculo, ou o capitalismo multinacional. O estabelecimento da publicidade como “arte oficial do capitalismo” (Harvey) ocorrido na década de 70 promove uma troca de influências entre a arte e as estratégias publicitárias. Também foi neste período que floresceu a indústria da herança e a cultura de museu, visando a comercialização da história e de formas culturais, tendo a classe média como público-alvo. O desaparecimento de um senso de história e a transformação do significado e da própria percepção do espaço e do tempo são temas centrais do pós-modernismo. O fim da história traz consigo a busca do impacto ins-
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Simone Michelin
O efêmero que se p r o l o n
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tantâneo promovida pela ênfase contemporânea no campo da produção cultural em eventos, espetáculos, happenings e imagens da mídia, cujo efeito tende a reforçar a celebração das “qualidades transitórias” da vida moderna. Esta experiência temporal esquizofrênica, de descontinuidade, permite uma vivência muito intensa do tempo presente: perpétuo presente de isolamento e desconexão. Esta total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico é herança de parte do conceito baudelairiano de modernidade. Herdamos também do pensamento cristão, por outro lado, a noção de que o “valor” e o “sentido” não são inerentes a nenhuma ordem espacial, devendo ser evocados. Um dos aspectos mais complicados a considerar, como núcleo ou colateral pós-moderno, é a chamada “estetização da política” que acompanha os conflitos geopolíticos onde é conveniente a criação de mitologias em relação a pessoas e lugares. De que forma, poderíamos perguntar, a arte ajuda a engendrar novas mitologias? Quais são os novos paradigmas? O que ainda permanece, embora com outro nome? Quais de nossas heranças vale a pena conservar? Que antepassados honraremos? A serviço do que estamos trabalhando e trabalharemos?
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