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Teatro James encena

O florescer do movimento cênico no DF teve um incansável agente. Ao longo de três décadas todos os grandes artistas estiveram nos palcos do admirável James Fensterseifer

JAMES ENCENA

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Por Morillo Carvalho Fotos JP Rodrigues

Numa dessas traduções que se faz ao Google, “fensterseifer” significa “soluço da janela”. Como não há muito sentido nisso, vamos ignorar a literalidade e os adjetivos e falar sobre janelas, portanto. Uma canção da banda baiana Scambo diz que “a janela forma a tela e o mundo todo, dentro dela, é pequeno pra mim”, e compara a vida passando pela janela como que estar passivo diante de uma televisão, enquanto se troca os canais. Daí o refrão: “não quero ver TV nessa janela”. Essa divagação toda foi porque o cara sobre o qual você vai ler agora é James Fensterseifer. O homem que ofereceu, por mais de 30 anos, à capital federal, uma janela permanente sobre cenas temporárias.

À frente do Jogo de Cena, evento que começou semanal, passou a ser quinzenal, depois mensal e, por fim, bimestral, ele convocava artistas de Brasília a apresentarem cenas de suas produções em cartaz. Para o público, era a oportunidade de abrir a visão sobre a produção brasiliense, já que eram exibidas cenas de peças, de espetáculos de dança, trechos de óperas e musicais, enquanto um artista plástico pintava, ao vivo, uma tela – algumas delas, inclusive, ilustram essa reportagem.

O Jogo de Cena esteve no teatro Galpãozinho, na Escola Parque, no Sesc Garagem, no Teatro Nacional, mas se consagrou na Caixa Cultural. Em muitos dos espetáculos apresentados, era ele próprio, James, quem dirigia ou assinava a luz, pois não foi apenas o catalizador da arte cênica brasiliense: é também um realizador. E se você precisa da memória do teatro da capital federal, pode saber: é bem provável que, entre as malas, caixas, sacolas e prateleiras da sala comercial que ele conserva no final da Asa Norte, esteja o que você procura. Foi este, também, o cenário de nossa conversa. Nascido em Porto Alegre, James veio parar em Brasília em 1984, quando concluiu o ensino médio. O pai, funcionário da Receita, recebeu uma oferta de transferência e, dentre os benefícios de viver na capital estavam um apartamento funcional, na 108 Norte, e a matrícula de James na Universidade de Brasília (UnB). Primeiro, estranhou a vida na Superquadra. “Parecia uma prisão”, diz. Depois, ao procurar fazer amigos, acabou picado pelo mosquitinho do teatro, pois o pessoal que conheceu era do meio. Foi o que o fez abandonar a faculdade de Administração.

“Amigos que fiz na UnB e mais ligados à arte me chamaram pra fazer o Presépio Vivo do Conjunto Nacional. Lá eu conheci tanta gente que você nem imagina: Iain Semple, Léo Neiva – o criador do Jogo de Cena, já falecido – e vários artistas da cidade que faziam aquele ‘bico’ porque era um jeito de ganhar um dinheiro perto do Natal.

O Sérgio Peçanha, que montava o Presépio, acabou me chamando para atuar no espetáculo Com o céu entre os dentes, em que fiz um par romântico com a Ana Paula

Padrão, em uma cena. Então, comecei a conhecer muita gente pela arte, e muito rápido”, lembra James. O resultado já foi dito: adeus, universidade.

Todavia, houve um porém, um “antes”: James fez o desenho da luz desta peça, também a convite de Peçanha. Tempos depois, estava na plateia da Feira de Música, que semanalmente ocupava o teatro

Galpão, e que era uma mostra dos shows que ocorreriam na cidade. Foi quando ouviu o convite de

Néio Lúcio para que quem quisesse fazer a luz do evento o procurassem. Ele quis. Iluminou quatro edições da Feira, suficientes para receber o convite para ser o iluminador do Jogo de Cena – evento concebido para ter o mesmo formato da Feira de

Música, porém aplicado às artes cênicas.

“O Luiz Humberto era o diretor da então Fundação Cultural – hoje Secretaria de Cultura e Economia Criativa – e estava muito empolgado e implementando tudo. E participei das primeiras reuniões de formatação do Jogo de

Cena. O Luiz estava vindo do Rio, onde participou do Circo Voador, numa época em que se mesclava Paralamas do Sucesso com apresentação do Asdrúbal Trouxe o Trombone (famoso grupo teatral que tinha nomes como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Deborah Bloch e Evandro Mesquita) e tinha essa cabeça”, conta.

Fundador do Jogo de Cena, James também é iluminador e fotógrafo de peças e festivais James fala de situações que ocorreram há mais de 35 anos como se fossem ontem. A memória, portanto, é invejável, mas a sala feita para abrigar as lembranças e de onde ele dá a entrevista é reveladora sobre o porquê dela ser tão boa: é exercitada a cada foto que ele puxa de um montinho, enquanto conta uma das histórias. Ou com as camisetas de todas as incontáveis edições do Jogo de Cena, cuidadosamente guardadas. Ou, ainda, quando saca uma espada feita em serralheria, concebida por ele próprio para ser usada em espetáculos.

Entretanto, foi a luz o que sempre o guiou ao teatro. Trabalhou com Robson Graia – que era chamado de “príncipe do entretenimento do DF” – em Homem Não Chora. “Em seguida, fui chamado para realizar a iluminação de Crepe Suzette 2, de Alexandre Ribondi, e passei a fazer muitas produções. Fiz No Verão de 62, de Ribondi também, em que a luz participava do espetáculo como personagem”. Com Graia, aliás, esteve pela primeira vez no palco como ator. E última. Ao se ver no VHS daquela peça, desgostou da própria interpretação. Já estava montando dois outros espetáculos, como ator, e convenceu seus diretores a sair dos elencos e voltar para aquilo que já sabia que gostava muito: a iluminação. Não foi na velocidade da luz, mas foi assim que, rapidamente, criou laços com boa parte dos diretores de Brasília. Viajou o País e o mundo para levar luz aos espetáculos. Em 1988, por exemplo, esteve em Londres com a AntiStatusQuo Companhia de Dança, de Luciana Lara.

Em paralelo à luz, foi fotógrafo de inúmeras companhias – e suas imagens compõem grande parte de seu acervo – produtor de outras como A Culpa é da Mãe – hoje, Melhores do Mundo –, G7 e Anônimos da Silva, e abriu as próprias companhias de teatro: a Brasilienses, que faz a releitura de clássicos da dramaturgia, e a Fictícia, já mais dedicada à comédia. Ministra oficina de escrita de textos teatrais, que resultaram no livro Dramaturgia em Isolamento, lançado ano passado. Por falar em livros, também é autor de Carne Viva e do mais recente, lançado em 2021: O Labirinto sem Fio de Dédalo.

Essa história de devoção, entrega, catalogação e envolvimento com a arte cênica do DF teria um ano comemorativo em 2020: seriam cinco edições do Jogo de Cena para celebrar os 35 anos da existência do projeto. Nem é preciso dizer o que impediu que acontecesse, mas agora a expectativa é realizá-lo em 2022. Se a pandemia nos fechou as janelas para a arte, basta que ela passe para que saibamos quem é que há de abri-las novamente: James Fensterseifer.

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