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Justiça Guardiã dos direitos do povo

À frente do TCU, a ministra Ana Arraes deixará legado na corte: humanização e paridade nos cargos. A herança política em favor dos pobres tornou-se sua identidade

GUARDIÃ DOS DIREITOS DO POVO

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Por Daniel Cardozo Fotos JP Rodrigues

A preocupação com os mais pobres fez Ana Lúcia Arraes de Alencar, 74 anos, seguir a tradição familiar e ingressar na política. O exemplo de como fazer política estava bem perto, já que o pai, Miguel Arraes, e o filho, Eduardo Campos, foram governadores de Pernambuco e lembrados pelas realizações no estado. Hoje, mais conhecida como Ana Arraes, presidente do Tribunal de Contas da União, a ministra está prestes a se aposentar. O legado à frente da corte responsável por fiscalizar os gastos públicos tem a ver com a responsabilidade com o dinheiro do contribuinte e a assistência aos pequenos municípios.

Ana Arraes tomou posse como presidente do TCU em dezembro de 2020 e foi reconduzida ao cargo por mais um ano, no fim de 2021. Embora já fosse sabido que ela se aposentaria compulsoriamente assim que completasse 75 anos, em julho deste ano, como determina a lei, os colegas a reelegeram, talvez como forma homenageá-la por seus inúmeros méritos.

A fala da ministra é lenta e suave. A presidente do TCU é descrita pelos assessores como uma pessoa tímida, apesar da vivência na vida pública. Entretanto, bastaram poucos minutos de conversa para que ela se soltasse e desse até algumas gargalhadas. Ana Arraes é a segunda mulher na história do tribunal a exercer o cargo de ministra. A primeira delas foi Élvia Castello Branco, entre 1987 e 1995. Ao descrever a composição da equipe, conta que fez uma escolha consciente. “Todo o meu gabinete é de mulheres, com exceção do Henrique”, disse enquanto apontava aos risos para um dos assessores que acompanhava a entrevista. Foi sob a gestão de Ana Arraes que o TCU adotou a paridade nos cargos de gestão. Os dados mostram que o quadro de servidores tem cerca de 30% de mulheres. A presidente decidiu, então, que um terço dos cargos de chefia deveriam ser ocupados por elas. Essa foi uma forma de privilegiar as lideranças femininas. “Eu acho que falta incentivo. Às vezes as mulheres são muito capacitadas, mas não conseguem ascender. Não é por falta de capacitação. Temos muitas mulheres inteligentes e bem informadas”, opina.

Durante a pandemia, veio a decisão de fixar residência em Brasília, para evitar os deslocamentos e, assim, proteger-se da Covid-19. A ministra gosta de Brasília. “Tudo aqui é muito bonito, né? Único”. Foi inevitável ficar um pouco mais reclusa, até por fazer parte do grupo de risco. “Não tive Covid. Tomei três doses da vacina e incentivei muita gente a se vacinar”, contou. A preocupação com a doença motivou os protocolos dentro da sede do Tribunal de Contas da União. Só entra no prédio quem apresenta comprovante de vacina. O trabalho remoto foi instituído e a corte não parou.

O pai, Miguel Arraes, e o filho Eduardo Campos, ambos falecidos, são a força e a referência da ministra Ana

A situação da saúde pública no Brasil também acendeu um alerta no TCU. Foram abertos mais de cem processos para apurar suspeitas de mau uso do dinheiro público. Mas a tática não foi apenas baseada na repressão e punição dos gestores que teriam agido inadequadamente. O tribunal lançou o programa TCU + Cidades, que aposta na capacitação de prefeitos e ordenadores de despesas. O diagnóstico era que uma parte considerável das irregularidades tinha a ver com falta de gestores qualificados, principalmente nas prefeituras das cidades pequenas.

Apesar de todo o trabalho de fiscalização, a presidente do TCU reconhece que as consequências trazidas pela pandemia foram mais profundas para a faixa mais carente da população. “A gente está sempre atento ao que acontece, para que o povo brasileiro tenha os direitos preservados, principalmente os mais pobres, porque nessa pandemia muita gente ficou sem emprego. Sempre os afetados são os mais fracos e, não, os mais poderosos”, analisou. Antes de ser ministra, ela foi eleita deputada federal por Pernambuco nos anos de 2006 e 2010. Na primeira eleição que disputou, obteve 178 mil votos, o que lhe garantiu o terceiro lugar. Quatro anos mais tarde, o resultado foi ainda melhor: 387 mil votos, a mais bem votada do estado, com 8% dos votos válidos. Foi escolhida pela Câmara dos Deputados para assumir uma cadeira no TCU em outubro de 2011. Como política, teve contato com a pobreza extrema. “Certa vez, eu descia uma ladeira e uma senhora me chamou. Entrei na casa e lá havia três meninas abaixadas, apertando a barriga com o joelho. A mulher me perguntou ‘a senhora sabe o que a gente comeu hoje? Água’. As lágrimas vieram na hora. Chamei um ajudante e disse ‘vai lá e compra comida para esse povo’. Eu não queria saber se era crime eleitoral ou se não é. Não estou matando ninguém (risos)”, contou. Foi enquanto falava do pai, Miguel, e do filho, Eduardo, que Ana Arraes demonstrou empolgação e carinho. Ela lembra com carinho das gestões deles no Palácio do Campo das Princesas, sede do Governo de Pernambuco. Segundo a ministra, o pai, eleito por três mandatos, é reconhecido como um governante que privilegiou os pobres e confrontou interesses de poderosos.

A reação da ministra quando começou a falar do filho foi uma sequência de emoções. No princípio, pausa e respiração profunda, já que a partida foi uma ferida na família. Mas bastou pouco tempo para virem as lembranças agradáveis. Eduardo começou a fazer política cedo e atuou como chefe de gabinete do avô. “Quando ele era jovem, andava com o papai o tempo inteiro. E papai quando saía dizia ‘vamo, Eduardo’”, relembra. O aprendizado surtiu efeito. Eduardo Campos exerceu o cargo de governador de Pernambuco entre os anos de 2003 e 2010. Quatro anos mais tarde, morreu aos 49 anos em um acidente de avião durante a campanha para Presidência da República.

O legado político da família é representado atualmente pelo neto de Ana Arraes, João Campos, prefeito de Recife e filho de Eduardo. A sobrinha, Marília Arraes, é deputada federal por Pernambuco. O irmão de João, Pedro, deve ser candidato neste ano.

Se vai voltar ou não a participar da política partidária, a presidente do TCU não parece ter uma opinião firme. Mas os planos para aposentadoria incluem continuar ajudando as pessoas. “Vou continuar trabalhando. Não aqui, pois já dei minha contribuição. Quero fazer algo que tenha repercussão nas vidas das pessoas. Talvez trabalho voluntário, já que o analfabetismo é alto no Nordeste. Ainda vou pensar no que vou fazer”. Independentemente da decisão que tomar, o que está claro é que Ana Arraes deixou sua marca entre os pernambucanos e à frente do Tribunal de Contas da União.

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