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Colecionismo Como não amar Amador?

Excelente anfitrião, o colecionador adora receber para falar sobre gastronomia, arte e cultura

Herdeiro de pais europeus amantes do belo, o colecionador Amador Outerelo é uma das figuras mais emblemáticas da sociedade brasiliense. Vive em seu palácio vertical, onde se dedica a arte e literatura

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COMO NÃO AMAR AMADOR?

Por Marcella Oliveira Fotos JP Rodrigues

Ao imaginar um apartamento onde vive um colecionador de arte, pensei que entraria em um museu, um local intocável. Talvez haja uma distância preestabelecida entre obra de arte e ser humano, tal qual aprendemos em museus e galerias mundo afora. “Não passe da linha”, “não fotografe”, “não toque”. Mas assim que o elevador abre a porta, no sexto andar de um moderno prédio no Sudoeste, ao dar o primeiro passo antes mesmo de saber se iria para a esquerda ou para a direita, ouço: “seja bem-vinda”. De portas abertas, Amador Outerelo Fernández Junior me esperava.

No apartamento em um dos bairros mais novos da cidade mais moderna do País, em vez de se encontrar com um mobiliário de Sérgio Rodrigues e com a arte de Athos Bulcão, você se transporta para o século 16. O olhar se perde entre tantas coisas a observar. Quadros, louças e objetos presos nas paredes, mobiliário imponente, peças em porcelana, prata e cristal.

“É como estar em um museu”, brinco. Amador me leva até um prato de sobremesa em que há uma paisagem da França pintada com pincel de um fio só, de 1828. “Existem dez desses, feitos sob encomenda por Carlos X, chamados de Petites Vues de France, ou seja, Pequenas Vistas da França. Oito estão no Louvre, em Paris, um é este aqui e o outro não sei”, diz, aos risos. Ele me convida a pegar. Segurando firme com as duas mãos, fico nervosa ao imaginar o valor artístico e histórico da peça.

“Como tudo isso começou?”, pergunto. “Quando eu tinha 19 anos”, conta o colecionador, hoje com 55, carioca de coração brasiliense, filho de imigrantes – pai espanhol e mãe francesa. Amador Outerelo Fernández e Maria Vilany Outerelo pertenciam a famílias de nobres que empobreceram durante a Segunda Guerra Mundial e vieram para o Rio de Janeiro nos anos 50. Apaixonaram-se e se casaram. De lá, a família foi transferida para Brasília em 1971, quando Amador tinha quatro anos. Por um ano e meio, moraram no Brasília Palace Hotel. Depois na 202 Sul e na 316 Sul. Quando Amador pai se aposentou, dedicou-se ao Direito e a família melhorou de vida. “Até então, conhecia pouco de arte. Por mais que meu pai contasse que minha avó possuía 20 aparelhos de jantar ingleses, nunca tinha visto sequer um prato. Mas, então, com as melhores condições, eles, que cresceram com essa sofisticação, foram adquirindo itens valiosos e artísticos e fui educando meu olhar”, conta.

Foi então que participou de seu primeiro leilão de arte, acompanhando os pais. “No início, era influenciado pelo olhar deles. Na época, não havia informação nem livros. Muitas vezes, passava por algo de valor e não sabia. Foi quando comecei a desenvolver o meu próprio olhar”, lembra. Estudos e viagens o formaram. Museus, igrejas, palácios tomam horas dos dias do colecionador. “E também morei na Bélgica, na França, nos EUA e na Itália, por pouco tempo, mas períodos riquíssimos culturalmente”. Em 2007, mudou-se para o apartamento no Sudoeste em que vive hoje e fixou morada em Brasília.

A primeira obra comprada está na parede do segundo andar do duplex: um quadro de um pintor chamado Vieira, adquirido no início dos anos 80 na Galeria Costerus (no antigo mezanino do aeroporto). “ Não tem valor comercial alto, mas grande valor afetivo”, revela. “O olhar do colecionador principiante é apaixonado. Com o passar do tempo, agrega-se o conhecimento e torna-se um negócio”, completa o hoje especialista que cuida do seu próprio acervo e do de toda a família.

O apartamento-museu

São 520 metros quadrados de cultura, história e arte. Incontáveis objetos – mas todos catalogados – ocupam todos os cômodos e são um convite a uma viagem no tempo. Referências do período do Renascimento, do Barroco e do Neoclassicismo misturadas com vivências históricas e familiares de Amador compõem o acervo. Nada ali passa do ano de 1920.

Com o bilhete em mãos desse passeio histórico e artístico, é como visitar um palácio europeu e poder tocar, sentar, ver de perto. “Aqui não é museu, é uma casa viva e todos têm direito de pegar em tudo, porque acredito que a gente vê com as mãos também, sente as texturas. Tirando as peças que sirvo nos jantares, tudo está exposto. Não quero ter nada guardado no armário”, justifica. E Amador fala isso sem arrogância, cheio de paixão. É amoroso e doce. Não quer se exibir, quer nitidamente compartilhar.

Tudo foi arrematado em leilão ou herdado de sua família. “Acho que nunca comprei nada novo para esta casa”, diverte-se. Ele garante que não há um preferido. Mas não esconde a satisfação em apresentar a mesa em madeira

“A mesa é meu palco”

Sua residência é um museu vivo

jacarandá, toda decorada com paliteiros de prata organizadamente dispostos sobre ela. “Aqui é meu palco”, diz. E a origem do móvel? “Ela foi do personagem Salviano Lisboa na primeira versão da novela Pecado Capital, em 1976. Meu pai comprou do Roberto Marinho”, revela.

Ao andar pela casa, cada objeto, obra, peça ou móvel vem com uma história. “Aqui são pratos da aristocracia brasileira. Marquês de Ibirocaí, Visconde de Santa Isabel, Marquês de São Clemente”, lista. “Este móvel foi o primeiro que comprei. Da Rainha Ana, inglês, do século 18, adquirido numa feira de antiguidades que tinha no Gilberto, em 1986, de um casal mineiro de antiquários”, lembra.

Também compõem o acervo peças Tiffany & Co. e Fabergé. “Eram meu sonho comprar”. “Essa xícara herdei da minha avó, era do tipo casca de ovo, feitas com pincel de um fio só”, mostra, levantando até a luz para mostrar sua translucidez.

Além da sala de jantar, compõem ainda o andar de baixo a sala de estar, o escritório e os dois quartos. No de visitas, um jogo de quarto de 1730. No principal, outro jogo que foi do primeiro embaixador português no Brasil, quando o País se tornou independente, vindo de Portugal. Lençóis perfeitamente arrumados, armários com roupas organizadas e até um quarto de vestir. Chama atenção um punhado de papéis. “Anoto aqui as roupas para eu vestir, senão eu uso sempre a mesma”, explica. “Os castiçais eram iguais aos que têm no Palácio da Pena, de Portugal. São meissen do século 18”, conta.

O espaço entre os dois quartos abriga o que Amador chama de tesouro: sete aparelhos de jantar, faqueiros, oito jogos de copos, toalhas de banquete, peças de cristal e outras coisas para compor a mesa.

O convite é para seguir ao andar de cima. Ao chegar à sala, destaque para um piano de três quartos de cauda. É alemão, dos anos 1890, da marca Bösendorf. “Todas as peças sobre ele têm relação com a música”, explica. Um altar que é aberto e fechado diariamente mostra a devoção de Amador. “Sou muito católico”, diz. “Sou devoto de São Judas Tadeu, Santiago de Compostela, Santa Rita de Cássia e Santo Expedito”, revela.

Encanta a organização e disposição. E a limpeza? “No dia a dia, eu e minha funcionária usamos luvas para tocar nas coisas. Ela limpa e depois eu, pessoalmente, coloco tudo no lugar”. Acidentes já aconteceram com empregados ou convidados? “Sim, mas faz parte. A partir do momento que minha casa está aberta, está suscetível a isso. Eu não vou brigar com ninguém por causa de algo material que se quebre”, garante.

A arte de receber

Durante o tour, Amador contou entusiasmado sobre como funciona a dinâmica da casa ao oferecer seus famosos jantares. O colecionador tornou-se uma referência na arte de receber. “Aprendi com a minha mãe, estudei e criei o meu próprio jeito”. Ser convidado para um jantar na casa de Amador é mais que estar à mesa para uma boa refeição. É viver uma experiência.

Uma vez ao mês, Amador abre as portas de sua casa para amigos. Sempre numa sexta-feira, às 21h. O planejamento começa dias antes. Em um caderno, anota, à mão, todo o planejamento. Lista dos convidados, desenho da mesa e como se sentarão, o aparelho de jantar, jogo de copos e tudo mais que será usado, o cardápio. Os mínimos detalhes. “Fica tudo mais fácil, porque você parte de uma coisa concreta e não da sua cabeça”, explica. “E também é fotografado”.

Apenas dez pessoas. Ao chegar, o anfitrião espera o convidado na porta. Após as boas-vindas, direciona-o para a sala de estar. Por volta das 22h, o convite para sentar à mesa, convidando os presentes a ocuparem seus lugares, identificados com o placement. Tudo é pensado milimetricamente. “Duas pessoas extrovertidas não podem sentar perto nem duas caladas”, explica. Se é a primeira vez, possivelmente Amador o colocará logo ao seu lado. O menu está escrito à mão em um papel na mesa, em francês. Jantar com entrada, prato principal e sobremesa.

Em seguida, se o grupo não conhecer o apartamento, um tour. São, então, convidados a irem ao andar de cima, para o licor, ouvir uma música e conversar.

“E você curte o jantar?”, perguntei. “Só faço a digestão no dia seguinte, que vou pensar com calma em tudo e ver o que funcionou ou não”, explica. As anotações no caderno são lidas e, a lápis, ele anota o que não deu certo, algo que foi cancelado ou uma pessoa que não compareceu.

Prazer, Amador

A conversa com Amador durou quatro horas. Impossível não se apaixonar pelo seu jeito metódico, educado e formal. Não é apenas seu apartamento-museu que é um interessante contraste com a arquitetura moderna de fora. O próprio Amador é uma pessoa única, que destoa. “Fui educado de um jeito não brasileiro. Tudo meio diferente mesmo”, assume.

Entretanto, assim como sua casa não é um palácio intocável, ele também não é. Falante, é amante das boas histórias. Apesar de amar estar entre amigos, hoje é avesso ao tumulto. Que show te tiraria de casa? “Nenhum”, confessa. “Ia em todas as boates de Brasília que são da minha época. A Corte, Sunshine, Le Scalier, Zoom, Machine, Curtição”, relembra. Clássicos da época foram a trilha sonora escolhida por Amador para a nossa tarde juntos.

Formado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Amador já foi professor de Inglês da Casa Thomas Jefferson – fala quatro idiomas: português, inglês, espanhol e francês. “Fui também frade dominicano, advogado, trabalhei na Defensoria Pública. Hoje, administro o acervo artístico da família”, conta. Sua rotina é bem caseira, mesmo antes da pandemia. Três pausas diárias para leitura, cada uma com um título diferente. “E cada um em um cômodo diferente. Eu preciso aproveitar toda a casa”, diz. A mãe faleceu há dois anos e o pai e a irmã vivem no Lago Sul. Gosta de almoçar fora com amigos.

Ao final da conversa, fica claro que Amador é um carioca com espírito europeu. Nada de samba no pé nem Carnaval na Sapucaí. Do Brasil, carrega o jeito caloroso e amoroso de ser. A bem verdade é que ele parece um personagem saído dos castelos franceses, que cumpre a profecia do significado de seu nome: “o que ou aquele que gosta muito de alguma coisa; amante, apreciador, entusiasta”. “É um nome muito comum na Espanha”, justifica.

Amador é como um monarca na corte brasiliense. E vem a pergunta: por que a moderna Brasília? “Cheguei aqui aos quatro anos, em 1971, e vi a cidade se tornar realidade. Ela faz parte de mim. Quando a coisa se constrói junto com você, você vai formando seu senso estético ao mesmo tempo. Eu me sinto meio que dono de Brasília. Existe uma conexão muito forte, é minha referência de lugar. E, mesmo já tendo morado em outros países, Brasília é minha reserva emocional. Eu tenho casa no Rio e em SP, mas eu preciso viver aqui”, confessa.

Curioso pensar que entre tantos lugares no mundo onde se sentiria mais em casa, talvez andando diariamente por ruelas de Florença – uma de suas cidades preferidas – ou em prédios com arcos, abóbadas e cúpulas de Paris, o homem que gostaria de ter vivido no século 19 escolhe a cidade mais moderna do século 20 para construir um palácio vertical. Assim, a cada recepção, apresenta um pouco do mundo clássico ao mundo contemporâneo. Um contraste curioso, intrigante e apaixonante.

Amador fala com paixão sobre sua coleção de arte

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