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Cinema Repertório de experiências humanas
REPERTÓRIO DE EXPERIÊNCIAS HUMANAS
Egresso da frutífera geração 80 da UnB, José Eduardo Belmonte é nome que orgulha o cidadão brasiliense. Ávido em suas produções, intenso ao criar, perspicaz ao dirigir. Aguardem, 2022 só vai dar Belmonte nas telas
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Por Morillo Carvalho Fotos Bob Wolfenson
Ele é o diretor artístico da TV Globo, coleciona cerca de vinte projetos audiovisuais em uma carreira com pouco mais de 25 anos. Ele procura uma reinvenção tão constante que faz com que leve sua assinatura para projetos sempre muito distintos. Aos 52 anos, formado na Universidade de Brasília (UnB), onde foi aluno de Nelson Pereira dos Santos, precursor do Cinema Novo, o cineasta José Eduardo Belmonte coleciona histórias que vão de clipes dos Raimundos a Alemão 2, que acaba de estrear nas salas de cinema de todo o País. Num cálculo rápido, dá para perceber que vinte projetos audiovisuais em 25 anos significam uma média de quase um por ano. Pois só em 2022, deve lançar ainda As Verdades, O Pastor e o Guerrilheiro, uma comédia baseada em contos de Ariano Suassuna para a televisão.
“Quando eu comecei, tinha a preocupação de construir uma carreira. Vi uma entrevista do Scorcese em que ele dizia: ‘O problema não é fazer um filme, fazer um filme é fácil. O difícil é construir uma carreira’”, recorda o diretor. “Outra frase que guardei comigo veio de um colega de faculdade, que falava que existem dois tipos de cineastas: aqueles que demoram muito a fazer um filme, lançando os projetos em longos intervalos, como o Kubrick, e os que preferem produzir um filme atrás do outro, como o John Houston, o caminho que decidi seguir”. Bom... Deu certo, né?
O prognóstico, porém, parecia desfavorável, como ele próprio conta: “Quando entrei na UnB, Brasília produzia apenas um longa a cada cinco anos e eu resolvi fazer cinema justamente quando o Collor acabou com a Embrafilme, ou seja, parecia a pior escolha no pior momento, mas por outro lado a minha turma tinha apenas quatro alunos e as aulas eram praticamente particulares”. E com professores incríveis: além do já citado Nelson Pereira dos Santos, aprendeu tudo sobre montagem com Armando Bulcão – documentarista que assina, entre outros, Hollywood do Cerrado e Alma Palavra Alma.
Nascido em São José dos Campos (SP), mas criado na capital federal, Belmonte não teve influência familiar nas escolhas profissionais, já que seu lar não era afeito à arte. Porém, como bom adolescente brasiliense, queria ser músico e chegou a montar bandas de rock e de jazz, acompanhando a verve da cidade nos anos 80, em suas Legiões, Capitais e Plebes. O desvio de rota teve como cenário o Cine Brasília, onde acompanhou uma mostra de cinema fantástico.
Assistir Pasolini e Tarkovski na adolescência abriu nele a percepção de que estava diante do que faria pelo resto da vida. Aproveitou que, no colégio em que estudava, havia uma câmera de VHS e uma ilha de edição aberta aos alunos. Assim iniciou seus primeiros experimentos: bingo, em 1988, começava o curso na UnB. “O cinema para mim é uma experiência humana e, por incrível que pareça, o cinema comercial teve um quê de experimental, assim como as minhas videoartes, os clipes e os filmes independentes”, define.
Alemão 2
É impossível desassociar este filme de clássicos brasileiros do período chamado de Retomada (o cinema brasileiro pós-1995), com Cidade de Deus e Tropa de Elite. Mas não se engane: Alemão 2 tem espaço próprio entre os filmes ambientados nas comunidades do Rio. A trama dá sequência a Alemão, de 2014, porém pouco do elenco segue aqui, e sem dúvida o enorme destaque se dá para Mariana, personagem de Mariana Nunes. Agora ela é mãe de Cavi, apelido de Carlos Vinicius (Lucas Sapucahy), fruto da relação com Playboy, o traficante que, no primeiro filme, foi vivido por Cauã Reymond. Agora o Complexo do Alemão é dominado por outro traficante, Soldado (Digão Ribeiro). Alemão é o nome de uma das 14 comunidades que, juntas, formam o conhecido Complexo do Alemão, hoje com mais de 180 mil habitantes e considerada uma das mais violentas do Rio de Janeiro. Em 2014, quando do primeiro filme, o local era alvo do projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que deram a tônica da trama. O abandono do projeto, a corrupção policial e os interesses políticos na manutenção da “guerra às drogas” dão o fio condutor do novo longa.
Em tom documental, cenas reais de noticiários lembram a intervenção das Forças Armadas nas comunidades cariocas em 2017 e suas justificativas que não se sustentaram. Há também cenas da vitória de políticos que se apoiaram em redutos eleitorais dominados pelo tráfico e as milícias, em 2018. Há cuidado estético nas imagens de realidade e de ficção: as jornalísticas são borradas e há tarjas sobre os olhos das figuras públicas. “Nem faria sentido se imagem real fosse confundida com ficção, a ideia não era promover essa mistura na cabeça do espectador. Ao contrário, tem que ficar claro o que é fato e o que é ficção”, explica Belmonte.
Cena do filme Alemão 2
O diretor em ação
O longa de 2014 teve elenco de protagonistas brancos vivendo histórias do lado “do bem” – os policiais que viviam infiltrados no Complexo – para desarticular o lado “do mal”, os traficantes, composto por negros. A crítica foi implacável quanto ao reforço dos estereótipos e também pela pouca presença feminina. Em Alemão 2, nota-se o acolhimento à crítica e sua correção: a chefe do comando policial é uma mulher negra, Amanda (Aline Borges). O roteiro tem como premissa apresentar uma operação que seja capaz de desarticular o comando de Soldado, mas com o uso da inteligência e sem que se dê sem um único tiro. O insucesso da iniciativa tem como causa policiais corruptos e articulados com o próprio tráfico. A apresentação de dados reais corrobora: o percentual de investimentos em inteligência na Polícia Civil do Rio foi de apenas 1,2% do total de recursos dedicados ao setor.
O acolhimento às críticas também é revelado na presença de Zezé Motta, que dá vida a uma enfermeira que perdeu o próprio filho em operação policial e que tem falas fortes como “nem toda mulher negra vestida de branco é vendedora de cuscuz”. O elenco conta ainda com Leandra Leal e Gabriel Leone.
“Em toda a minha formação, pensava em fazer cinema sobre questões existenciais, não sobre grandes temas. Mas acabou sendo inevitável entrar neles, depois de Carcereiros”, revela Belmonte, diretor da série do Globoplay. De fato, os temas existenciais marcaram suas primeiras grandes produções, como A Concepção, de 2005, marco do cinema brasiliense, e Se Nada Mais Der Certo, de 2008.
“Filmei em abril de 2019, mas tinha dois filmes ainda pra rodar, nos meses seguintes. Pela pandemia, tive o privilégio de poder montar em três, quatro meses, o que é o dobro do tempo em que se monta hoje um filme”, revela Belmonte. Outra curiosidade é sobre as cenas sanguinolentas, com armas e tiros. Inevitável tocar no assunto após o acidente no set de Rust, em Hollywood, em que o ator Alec Baldwin acabou matando a diretora de fotografia Halyna Hutchins, em outubro de 2021. “Nossos técnicos no Brasil não usam armas com festin, como foi o caso lá. São dispositivos a gás aqui. Festin é perigoso, pode machucar e até matar, como matou, e nem consigo entender porque este recurso ainda é usado. Fora isso, muitos dos efeitos são executados na pós-produção”, conta o diretor.
Belmonte parece estar satisfeito com a vida, ao colocar o feito de Alemão 2 em perspectiva com a carreira que construiu. “Havia uma grande indefinição sobre se eu conseguiria viver de cinema. Graças a Deus, tenho conseguido nestes 52 anos de vida, e acho que ainda conseguirei um bocado mais”, diz. Certamente que sim.