Revista Arandu # 54

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N 011 - ISS 10-Jan./2 0 2 ./ z e D ov.N潞 54 -N Ano 13 -

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ENTREVISTA

Cl贸vis de Oliveira ap贸s 35 anos de jornalismo inova com o lan莽amento do site DouraNews



nicanorcoelho@gmail.com

Dourados

Ano 13 - No 54

Pรกgs. 1-88

Nov.-Dez./2010-Jan./2011


[ CARO LEITOR

OCARO

LEITOR

jornalismo volta a ser o tema central da Revista Arandu, que nesta edição apresenta uma entrevista com o jornalista Clóvis de Oliveira, atuante há trinta e cinco anos na mídia regional e que agora inova com o lançamento do DouraNews, um portal de notícias que promete fazer a diferença. No rol de discussões sobre a mídia temos o artigo “24 horas de jornalista on-line: Sobre as fontes dos sites de Dourados”, escrito pelo pesquisador Helton Costa e o trabalho da professora do curso de jornalismo da Unigran Érika Patrícia Batista, que fala sobre “O menino e a árvore: uma análise da fotografia por meio do percurso gerativo do sentido na manifestação visual”. Ainda nesta edição temos os artigos “Memórias de um Sargento de Milícias: uma narrativa rueira”, escrito por Alfredo lima e Ivete Walty, ambos da PUC Minas; “Público e privado em As Meninas, de Lygia Fagundes Telles”, do professor da UFGD Rogério Silva Pereira; “A Historiografia e o Ensino da História”, escrito pelo filósofo Sidiclei Roque Deparis, e finalmente, o cientista social Rogério Fernandes Lemes escreveu o texto “O Juizado Especial Criminal da Comarca de Dourados: Um estudo sobre o perfil social dos casos”. Desta forma, a Revista Arandu cumpre o seu papel social de difusor da produção científica brasileira com a publicação de excelentes textos que, sem sombra de dúvida, são resultado do árduo trabalho de pesquisadores e intelectuais que contribuem com a ciência nacional.

Ano 13 • No 54 • Nov.-Dez./2010-Jan./2011 ISSN 1415-482X

Editor NICANOR COELHO nicanorcoelho@gmail.com Conselho Editorial Consultivo ÉLVIO LOPES, GICELMA DA FONSECA CHACAROSQUI e LUIZ CARLOS LUCIANO Conselho Científico ANDRÉ MARTINS BARBOSA, CARLOS MAGNO MIERES AMARILHA, LUCIANO SERAFIM, MARIA JOSÉ MARTINELLI SILVA CALIXTO, MARIO VITO COMAR, NICANOR COELHO e PAULO SÉRGIO NOLASCO DOS SANTOS Coordenadora desta edição ROSANA CRISTINA ZANELATTO SANTOS Editor de Arte LUCIANO SERAFIM PUBLICAÇÃO DO

EDITADO POR

Rua Mato Grosso, 1831, 10 Andar, Sl. 01 Tel.: (67) 3423-0020 / 9238-0022 Dourados, MS CEP 79804-970 Caixa Postal 475 CNPJ 06.115.732/0001-03

Revista Arandu: Informação, Arte, Ciência, Literatura / Grupo Literário Arandu - No 54 (Nov.Dez./2010-Jan./2011). Dourados: Nicanor Coelho Editor, 2011. Trimestral ISSN 1415-482X

Nicanor Coelho Editor

1. Informação - Periódicos; 2. Arte - Periódicos; 3. Ciência - Periódicos; 4. Literatura - Periódicos; 5. Grupo Literário Arandu


Ano 13 • No 54 • Nov.-Dez./2010-Jan./2011

[ SUMÁRIO

Entrevista: Clóvis de Oliveira ................................................................................................ 5 24 horas de jornalista on-line: Sobre as fontes dos sites de Dourados ..................................................... 11 Helton Costa O menino e a árvore: uma análise da fotografia por meio do percurso gerativo do sentido na manifestação visual ..................................................................................... 28 Érika Patrícia Batista Memórias de um Sargento de Milícias: uma narrativa rueira ........... 43 Alfredo Lima Ivete Walty Público e privado em As Meninas, de Lygia Fagundes Telles ............ 55 Rogério Silva Pereira A Historiografia e o Ensino da História .................................................. 68 Sidiclei Roque Deparis O Juizado Especial Criminal da Comarca de Dourados: Um estudo sobre o perfil social dos casos ............................................... 73 Rogério Fernandes Lemes

INDEXAÇÃO •

CAPES - Classificada na Lista Qualis www.capes.gov.br

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• ISSN - International Standard Serial Number • Latindex - www.latindex.org • GeoDados - www.geodados.uem.br



ENTREVISTA

Clรณvis de Oliveira Nicanor Coelho

apรณs 35 anos de jornalismo, inova com o lanรงamento do site DouraNews

O jornalista Clรณvis de Oliveira em frente ao escritรณrio do DouradosNews.


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epois de três décadas e meia de árduo trabalho o jornalista Clóvis de Oliveira inova com o lançamento do portal de notícias DouraNews com a intenção de ocupar os espaços ainda vazios na mídia regional e proporcionar uma nova visão do fazer jornalístico. Nesta entrevista exclusiva a Revista Arandu, Clóvis fala da sua carreira, da importância da formação universitária para o exercício da profissão e faz uma análise da imprensa regional desde á época das linotipos até o advento da internet. Para Clóvis “evoluíram, dialeticamente, conceitos e formas de se praticar a carreira. Precisamos mudar, urgentemente, o tratamento que se era dado aos princípios da formação de quem atua nessa área” O jornalista acredita que “acabou a exclusividade da notícia, e é justamente isso que muitos ainda não se aperceberam. É chegado o momento da responsabilidade social e do compromisso com o velho e bom princípio que vem do berço”. Clóvis acrescenta que “enquanto não nos apoderarmos do que existe de mais evoluído nas relações interinstitucionais, e exercitar a independência da informação desatrelada da ‘independência’ hipocritamente alardeada por alguns, ainda vamos viver esse dilema, onde o fator econômico acaba ditando pautas”. Sobre o DouraNews o jornalista afirma que vê “essa nova proposta para a qual fui convidado como colaborador como a síntese da persistência. O mesmo ideal que marcou um nome — Primo Fioravante Vicente, o septuagenário fundador do DouradosNews, e quem me convidou a descortinar o desconhecido do novato

jornalismo on line na década de 90 — move a nascente caminhada do Douranews, hoje assimilando lições e exemplos colhidos ao longo do tempo”. Por fim ele analisa que “exercer a carreira, seja nas redações ou nos escritórios de comando, deve ser um exercício de aprendizado constante, especialmente quando se tem a necessária compreensão do nosso tamanho diante da grandeza do que ainda está por vir”. REVISTA ARANDU: Em seus mais de trinta anos de jornalismo em Dourados como você analisa o comportamento da mídia neste período? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Penso que devemos analisar essas três décadas e meia de atuação — para ser mais exato — sob três eixos. Inicialmente, fazer jornal lá no começo da carreira podia ser considerado como apenas a conquista de um emprego. Aliás, tantos hoje ainda não vêem o jornalismo como pura e simplesmente emprego! Da metade da carreira em diante, percebe-se um maior grau de comprometimento, até porque começam a se constituir ‘fontes’ e, até em respeito a elas, o trabalhador da Comunicação vê-se movido a prestar contas pelo emprego que conquistou. No estágio atual, predomina o gosto, o amor, o apego, pela carreira. O desafio de, a cada dia, conquistar um novo espaço e emprestar a sua contribuição, como agente responsá-vel pelas transformações, para a constru-ção de uma nova mentalidade. A Mídia, no contexto global, deixou de ser o berço da paixão acalorada dos iniciantes para se transformar, lamentavelmente, na trin-


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Ao longo de mais de três décadas de jornalismo, Clóvis de Oliveira atuou em diversas mídias

cheira de quem briga pelo melhor marketing, e não o melhor produto. REVISTA ARANDU: O que evoluiu e o que precisa ser mudado? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Evoluíram, dialeticamente, conceitos e formas de se praticar a carreira. Precisamos mudar, urgentemente, o tratamento que se era dado aos princípios da formação de quem atua nessa área. Se lá no começo, saudosismos à parte, havia a preocupação com o emprego e depois o amor pela atividade, hoje devemos combater o comodismo que começa a tomar conta de quem já se julga ‘no limite’ e, paradoxalmente, o ímpeto daqueles que estão chegando e acham que vão reinventar a ‘revolução mundial’. A inexigibilidade do diploma profissional vem delimitar esse novo tempo. Daqui pra frente, resumidamente, só devem prevalecer os bons, no sentido da capacidade técnica aliada ao talento natural inerente à atividade. REVISTA ARANDU: Das antigas máquinas de linotipo com chumbo quente

até a era da internet, o que mudou no fazer jornalismo em Dourados? CLÓVIS DE OLIVEIRA: É preciso admitir o empobrecimento da busca pela notícia. Esse é o ‘pecado’ da internet. Se nos tempos do chumbão havia a corrida pela notícia quente, literalmente, sem a pressa em concluir a reportagem, hoje o “control-C/control-V” abrevia a cobertura jornalística e encurta a competência, de modo que os bons trabalhos de conteúdo acabam sendo recortados de acordo com o imediatismo do dia seguinte, quando não movidos pelo interesse comercial/ cumplicitário, inclusive nos jornalões que se apropriaram das modernas técnicas para “fechar mais cedo”. Acabou a exclusividade da notícia, e é justamente isso que muitos ainda não se aperceberam. É chegado o momento da responsabilidade social e do compromisso com o velho e bom princípio que vem do berço. REVISTA ARANDU: Qual a contribuição do curso de Jornalismo da Unigran neste contexto?


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CLÓVIS DE OLIVEIRA: A formação profissional sempre deve ser exaltada. Ainda que não se exija mais o diploma — e nós já antevíamos o final desse filme antes mesmo de reivindicar às universidades locais a criação do curso — o Jornalismo da Unigran alia a teoria com o que se pode apreender da boa prática. E só por esses fatores já é um importante aliado da qualificação mínima que se requer para quem deseja ingressar na carreira. REVISTA ARANDU: A relação dos órgãos de comunicação com o poder municipal e estadual é igual em qualquer lugar, ou Dourados é um caso a parte? CLÓVIS DE OLIVEIRA: A tendência das chamadas cidades do interior do Brasil, especificamente, é de nutrir um apego relativamente mais arraigado com as famosas verbas públicas. E, embora Dourados já esteja ultrapassando o conceito de cidade de médio porte, ainda não conseguiu superar os limites do interiorano. O fator cultural é decisivo nesse sentido. Enquanto não nos apoderarmos do que existe de mais evoluído nas relações interinstitucionais, e exercitar a independência da informação desatrelada da ‘independência’ hipocritamente alardeada por alguns, ainda vamos viver esse dilema, onde o fator econômico acaba ditando pautas... REVISTA ARANDU: O jornalismo impresso está chegando ao fim? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Da mesma forma que se dizia que o surgimento dos canais de TV e a rádioweb marcariam o

sepultamento da radiodifusão pura e simples, pelas tradicionais ondas magnéticas, penso que o impresso ainda tem uma boa sobrevida pela frente. Afinal, quando começamos todos a manipular o computador, até imaginávamos que seria possível economizar mais papel e o que vemos é justamente o contrário; salvamos o arquivo e, por via das dúvidas, ainda imprimimos o original, às vezes em mais de uma cópia! REVISTA ARANDU: O que se aprendeu com o jornalismo feito na internet? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Aos internautas — leitor da notícia feita na internet — possibilitou-se a comodidade de só ler a notícia, ou parte dela, de maneira mais ágil e dinâmica. Ou seja, só vou abrir o arquivo que me interessar! Já os fazedores da notícia, estes sim ainda têm que aprender a conviver com links, hiperlinks, hipertextos, infográficos e outras modernidades, em que pese os vinte anos de história da Internet brasileira. Mas, sem dúvida, estamos todos diante de um gostoso desafio, na busca pelo novo. E, se soubermos otimizar as ferramentas oferecidas, haverá uma saudável interação entre as partes. REVISTA ARANDU: O avanço da tecnologia, a criação de nova mídia e a sociedade do descartável prejudica o bom jornalismo? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Penso que aqui reside o novo, e vantajoso, diferencial para quem deseja iniciar ou mesmo permanecer na carreira. Ou nos adaptemos às inovações, absorvendo o que se


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produz em termos de acrescentar o ‘algo mais’ no resultado final de um trabalho, ou seremos nós os descartáveis. Afinal, historicamente, sempre haverá a sociedade do descartável, porque é ela que impulsiona a nova criação, a sagacidade da busca pelo novo e a produção com mais qualidade, empenho, dedicação, seriedade... REVISTA ARANDU: Você acha que a profissão de jornalista, a exemplo dos jornais impressos, corre perigo? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Se você partir do pressuposto de que a profissão está sendo, simploriamente, entendida como emprego, provavelmente estamos a caminho do desconhecido. Mas, entendendo o jornalismo como carreira, a partir do talento natural e da capacidade de agir como escritor narrador dos fatos, sempre haverá uma engrenagem a girar a história do mundo e, por conseguinte, a nossa história e as nossas histórias. REVISTA ARANDU: Depois de passar pelas redações dos mais importantes jornais impressos de Dourados, você embarcou no jornalismo on line através do DouradosNews. Como você encarou esta transição? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Com o mesmo espírito ávido a desafios que sempre moveram a minha trajetória. É verdade que substituir a notícia do jornalismo factual, do dia seguinte — pois nos impressos o que acontece hoje só é levado ao público amanhã — pelo imediato e o ineditismo do agora, em tempo real, exige um pouco mais de sincronismo,

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poder de síntese até e mesmo a necessidade de apurar os fatos desse momento com sobriedade para que o mundo — essa é a distinção entre o jornal impresso de alcance delimitado pelos veículos on line que se expandem pela rede mundial de computadores — não venha nos crucificar também em tempo real. REVISTA ARANDU: Agora com o lançamento do mais novo empreendimento midiático de Dourados, o Douranews, quais são seus planos? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Vejo essa nova proposta para a qual fui convidado como colaborador como a síntese da persistência. O mesmo ideal que marcou um nome — Primo Fioravante Vicente, o septuagenário fundador do DouradosNews, e quem me convidou a descortinar o desconhecido do novato jornalismo on line na década de 90 — move a nascente caminhada do Douranews, hoje assimilando lições e exemplos colhidos ao longo do tempo. Aqui é possível comparar a notícia com o comentário, distinguir o jornalismo do agora com a opinião de quem participa desse momento e, na exata proporção desse novo tempo, contribuir para a descoberta de novas formas de se fazer jornalismo na internet. REVISTA ARANDU: O que representa o Douranews para o jornalismo de Dourados e Mato Grosso do Sul? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Um novo conceito em termos de formatação e de postagem do conteúdo. Além da interatividade proposta através de canais voltados à participação cada vez mais ativa


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e intervencionista do internauta, o Douranews oferece atrativos de navegação capazes de prender o leitor por muito mais tempo no site. A cada notícia lida, existe um chamamento a outras editorias, com um colorido baseado nas formas mais atuais de diagramação do jornalismo on line. Isso tudo aliado ao compromisso com o abrandamento do conteúdo local e regional, buscando, sobretudo, realçar a proposta de informação focada na verdade, ou seja, já que não existe mais a notícia com exclusividade como alguns ainda insistem em perseguir, no Douranews existe o compromisso com a isenção e a publicação do conteúdo somente após a máxima verificação das informações recebidas. REVISTA ARANDU: Como jornalista concursado da Prefeitura de Dourados, pretende continuar no serviço público? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Antigamente, costumava-se dizer que aprovação em concurso público era a certeza de uma aposentadoria garantida. Depois, concurso passou a sinônimo de acomodação na função, transformando esses concursados em figuras lendárias e ‘imexíveis’. Por isso mesmo, sempre defendi o critério de competência, seja qual for a profissão ou carreira escolhida. E entendo, também, que o fato de possuir um cargo aparentemente estável não deve servir de escora

para tais tipos de servidores. Assim, à medida que julgar tenha dado minha contribuição ao Serviço Público, com lisura, lealdade, retidão e comprometimento, não teria nenhum óbice em abdicar desse concurso. REVISTA ARANDU: Qual a mensagem que você deixa para a nova geração de jornalistas e para os futuros empresários do setor? CLÓVIS DE OLIVEIRA: Jamais se permita deixar de ousar e acreditar. Quando busquei ser repórter de rádio e depois jornalista de vários veículos impressos, nem se cogitava a possibilidade da invenção do celular, do computador e muito menos da máquina elétrica de datilografia. Esses recursos foram chegando, se estabelecendo e sendo superados pela internet, os note e os net books, a transmissão por fibra ótica, a uma velocidade cada vez mais aceleradas. Hoje, nós somos a notícia, cotidianamente, reféns de pautas não menos celeremente vencidas pelos fatos novos que se sucedem. É preciso estar preparado, adquirir estrutura e, muito mais que isso, saber assimilar as inovações que brotam por todos os poros. Exercer a carreira, seja nas redações ou nos escritórios de comando, deve ser um exercício de aprendizado constante, especialmente quando se tem a necessária compreensão do nosso tamanho diante da grandeza do que ainda está por vir.


24 HORAS DE JORNALISMO ON-LINE: SOBRE AS FONTES DOS SITES DE DOURADOS-MS1 Helton COSTA2

RESUMO Nesta pesquisa, descrevemos e analisamos quais os veículos de comunicação que servem como fontes nos web jornais ou sites de jornalismo on-line (expressão que será utilizada para nos referirmos ao jornalismo praticado na Internet), na cidade de Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil. A partir de análise quantitativa, verificaremos se os jornais têm se dedicado produzir conteúdo próprio nos locais onde estão inseridos, ou a reproduzir notícias. A hipótese na qual este trabalho se baseia é a de que os jornais não estão se esforçando para produzir esse conteúdo, deixando de lado o papel do jornalismo enquanto construtor de pautas e transformando a profissão em mero reprodutor de conteúdos alheios. Palavras-chave: Jornalismo on-line – Dourados – Brasil – Mato Grosso do Sul ABSTRACT In this study, we describe and analyze what the media outlets that serve as sources in newspapers or web sites for online journalism (a term that is used to refer to journalism practiced on the Internet) in the city of Dourados, Mato Grosso do Sul, Brazil. From quantitative analysis, we verify that the newspapers have dedicated themselves to produce their own content in places where they fit, or reproducing news. The hypothesis on which this work is based is that newspapers are not striving to produce that content, leaving aside the role of journalism as a builder of staves and turning the profession into a mere player of unrelated content. Keywords: Online Journalism - Dourados - Brazil - Mato Grosso do Sul

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Trabalho apresentado como pesquisa quantitativa para futuras publicações em revistas e jornais de Comunicação. 2 Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo e pós-graduado em Estudos da Linguagem pelo Centro Universitário da Grande Dourados – Unigran e mestrando pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – UNESP. E-mail: h_costa@hotmail.com


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INTRODUÇÃO Este artigo busca analisar de que maneira o jornalismo on-line vem sendo praticado na região de Dourados, Mato Grosso do Sul, investigando através de análise quantitativa o número de notícias que são produzidas pelas próprias empresas de comunicação do setor instaladas na cidade. O tema foi escolhido porque ainda há poucos estudos na área de comunicação e jornalismo de Internet nessa linha em Dourados, uma vez que poucos autores escreveram sobre o tema. Assim, o trabalho partirá da análise sobre o que vem a ser jornalismo on-line, passando depois por uma breve conceituação de jornalismo regional, Dourados e finalizando a interpretação dos dados quantitativos. 1. NOTICIABILIDADE NA ERA DO JORNALISMO DIGITAL EM DOURADOS 1.1 Notícia e noticiabilidade dos fatos MOREIRA (2006) explica que notícia é quando um “fato deixa o cotidiano da vida para ingressar no universo simbólico”, e que ao transformar os fatos em notícia, a atividade jornalística diz o que deve e o que não deve ser de conhecimento da coletividade. (MOREIRA, 2006:08). Quem tem o papel de definir o que é noticia e que não é, são os “os proprietários dos veículos, que definem a política editorial de acordo com os objetivos ideológicos e econômicos; os jornalistas e as fontes / promotores de noticia e o público”. (MOREIRA, 2006:09).

De maneira simplista pode-se definir o processo de produção da notícia da seguinte maneira segundo TORQUATO (2006). Veja o diagrama Processo de produção da notícia, na página 13. Para SHOEMAKER, os critérios de noticiabilidade que deveriam ser seguidos por quem produz a notícia seriam “oportunidade, proximidade, importância, impacto ou conseqüência, interesse, conflito ou controvérsia, negatividade, freqüência, dramatização, crise, desvio, sensacionalismo, proeminência das pessoas envolvidas, novidade, excentricidade e singularidade (algo pouco casual)”. (apud SOUSA, 2002:96). MOREIRA (2006) explica como são produzidas as notícias de um modo geral, dizendo que toda notícia em certo ponto depende da visão do jornalista sobre o assunto e dos interesses envolvidos. Concebemos a notícia como uma construção social (Paradigma Construcionista), isto é, como resultado de um processo, o jornalismo tem uma autonomia relativa em relação a outros campos, como a política e a economia. Isso significa que, na relação das notícias, ora os jornalistas agem sob a influência de uma cultura e identidade próprias — que dizem o que é e também o que não é notícia — ora agem segundo seus interesses externos ao campo e arbitrariedades do poder. (Moreira,2006:14)

Já VIZEU(2006) diz que a notícia é um espelho e a construção social da realidade.


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PROCESSO DE PRODUÇÃO DA NOTÍCIA Fato surpreendente

Jornalista

Abdução

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Observação Inferência

Explicação

Construção de ícone hipotético mais plausível

Pauta

Apuração da informação

Redação da Notícia

Fonte: TORQUATO (2006)

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De uma maneira geral, sem a preocupação de aprofundarmos o tema, podemos resumir as definições de jornalismo e notícia a partir de dois grandes grupos: os que defendem a notícia como um espelho da realidade e aqueles que concebem a notícia como uma construção social da realidade. ( VIZEU, Alfredo. 2006:01)

Tuchman (1993) defende que “a notícia não espelha a realidade. Para a autora, a notícia ajuda a constituí-la como um fenômeno social compartilhado, uma vez que no processo de definir um acontecimento a notícia define e dá forma a este acontecimento. Ou seja, a notícia está permanentemente definindo e redefinindo, constituindo e reconstituindo fenômenos sociais”. (VIZEU, 2003:01) É VIZEU quem vê o trabalho jornalístico como algo mais que somente escrever, ele fala que a tarefa é muito maior. Entendemos que a construção da notícia não se reduz a uma mera técnica, a simples mobilização de regras e normas fornecidas pelos manuais de redação ou aprendidas no desempenho da atividade profissional. Acreditamos que tal ponto de vista desconhece a dimensão simbólica do trabalho jornalístico. ”(VIZEU, 2003:02)

Neste trabalho será levada em conta a interpretação que VIZEU faz uso sobre o que é notícia, uma vez que também acreditamos que “o trabalho jornalístico é concebido sempre a partir de mensagens que ganham forma de matérias segundo economias específicas a cada sistema e/ou veículo de comunicação, que produzem

dimensões classificatórias da realidade”, e que a notícia atua como fonte de memória.”(VIZEU, 2003:06). “Jornalismo é informar. Jornalismo é, antes de tudo, informação bem entendido de fatos atuais, correntes, que mereçam o interesse público, porque, informar sobre fatos passados, é fazer história e o jornalismo, como assinala Rafael Mainar, “é a história que passa”. (BELTRÃO, 1992, p. 65)

Outro autor, MOREIRA (2006) analisa no livro “Teorias del periodismo —Como se forma el presente”, de 1991, explica como são feitas as seleções das notícias e seus conceitos. Ele diz que “fatos jornalísticos são unidades independentes em que a realidade se fragmenta e através das quais ela pode ser captada”, logo, completa o autor, “as notícias nada mais são do que os fatos elaborados, redigidos e comunicados”. (MOREIRA, 2006:23). Assim a notícia muito mais que um amontoado de palavras ligadas por verbos e preposições, é na verdade um espelho da realidade presente, de modo que um fato noticiado por um veículo de comunicação ganha forma e deixa de ser algo impalpável, para tornar-se algo crível e um relato fidedigno ou não da realidade que é formado pelo jornalista de forma consciente ou não e que acaba certas vezes por interferir na realidade da sociedade. (POSADA, 1992:123) 1.2 O sujeito e o jornalista no discurso Jornalístico O discurso jornalístico o sujeito (fonte) pode se apresentar de várias maneira


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para ser transformado em ator dos fatos, que depois de trabalhados como dissemos acima se transformarão em notícias. Segundo MACHADO & JACKS (2006), o sujeito deve ser o narrador dos fatos e cabe ao jornalista dar voz a ele, no entanto, em meio às matérias que produz o jornalista deixa transparecer muitas vezes sua própria opinião até chegar a um ponto que ele tem a certeza de que o sujeito realmente foi o interlocutor daquilo que ele escreveu, quando na verdade o que está escrito é a opinião do jornalista e não da fonte que está presente no texto. (MACHADO & JACKS, 2006:4) O jornalista como formador da notícia pode ainda apagar o sujeito da notícia, através de um processo de esquecimento que intencionalmente ou não tenta apagar o direito à fala que pertence ao sujeito. No segundo tipo de esquecimento, o sujeito apaga a noção de que seu discurso nada mais é do que a escolha de determinadas estratégias de expressão. É o chamado processo de denegação. Escolho uma forma, em detrimento de outra. Dou lugar a um dito, recusando um não-dito. Tudo que é dito de um modo poderia ser dito de outro, senão oposto, ao menos distinto. O sujeito esquece que fez uma escolha, mas poderia ter feito outra. Esse apagamento também é necessário à sobrevivência psíquica do indivíduo, e sua evidência permanente seria imobilizadora. O esquecimento é parte constitutiva da ação discursiva do sujeito e confirma a noção de que todo discurso é o encontro de muitas vozes — não apenas as que falam em nome do sujeito, mas também, e muitas ve-

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zes especialmente, as que não falam. O silêncio, diz Eni Orlandi, é essencial à formação dos sentidos. (MACHADO & JACKS, 2006:5)

Durante a produção de matérias o jornalista tem ainda como escrever para diferentes públicos o mesmo texto, que dependendo da maneira como o sujeito é encaixado na matéria, pode ser elevado ou rebaixado no contexto de importância. “Há um leitor virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituído no próprio ato da escrita. Em termos do que denominamos ‘formações imaginárias’ em análise de discurso, trata-se aqui do leitor imaginário, aquele que o autor imagina (destina) para seu texto e para quem ele se dirige. Tanto pode ser um seu ‘cúmplice’ quanto um seu ‘adversário’” (ORLANDI, 1193, p. 9).

Este público leitor dependendo da abordagem que recebe o sujeito da matéria por parte do jornalista tende a estabelecer uma relação de “amor e ódio” com o jornalista. É interessante observar que o leitor “real” também tem que se relacionar com esse leitor virtual inscrito no texto. O leitor estabelece com os jornalistas uma relação de confiança ou desconfiança, admiração ou desprezo. Pode ser, como diz Orlandi, um cúmplice ou um adversário. Além disso, estabelece com aquele leitor imaginado, residente no texto, uma relação de identificação ou não. Se o texto é muito hermético ou excessivamente especializado, o leitor pode desistir dele


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por não se identificar com “aquele leitor para quem aquele texto foi produzido” (MACHADO & JACKS, 2006:7)

Ao produzir a matéria para o leitor, o jornalista passa a idéia de que aquilo que ele escreve é algo verossímil e é exatamente por isso que no processo de produção da matéria a abordagem que o jornalista dá aos fatos deve ser cuidadosa. Lemos as notícias acreditando que elas são um índice do real; lemos as notícias acreditando que os profissionais do campo jornalístico não irão transgredir a fronteira que separa o real da ficção. E é a existência de um ‘acordo de cavalheiros’ entre jornalistas e leitores pelo respeito dessa fronteira que torna possível a leitura das notícias enquanto índice do real e, igualmente, condena qualquer transgressão como ‘crime’. (TRAQUINA, 1993:168)

1.3 Breve histórico sobre o Jornalismo Digital O conceito de Internet é uma tecnologia aparentemente nova. O site www.aisa.com.br, diz que os “primeiros registros de interações sociais que poderiam ser realizadas através de redes foi uma série de memorandos escritos por J.C.R. Licklider, do MIT - Massachussets Institute of Technology, em agosto de 1962, discutindo o conceito da ‘Rede Galáxica’”. A idéia de interligar computadores era antiga e em 1962, baseados neste conceitos os estudos na área foram avançando.

Leonard Kleinrock, do MIT, publicou o primeiro trabalho sobre a teoria de trocas de pacotes em julho de 1961 e o primeiro livro sobre o assunto em 1964. Kleinrock convenceu Roberts da possibilidade teórica das comunicações usando pacotes ao invés de circuitos, o que representou um grande passo para tornar possíveis as redes de computadores. O outro grande passo foi fazer os computadores se conversarem.”(site Aisa, 2006)

“Em 65, Roberts e Thomas Merrill conseguiram conectar um computador TX-2 em Massachussets com um Q-32 na Califórnia com uma linha discada de baixa velocidade, criando assim o primeiro computador de rede do mundo”, uma prévia do que hoje conhecemos como Internet. (Aisa, 2006) O primeiro sistema que reunia computadores de um mesmo grupo foram adicionados a um servidor único, chamado ARPANET, que em 1972 foi bem recebida no meio cientifico após uma demonstração de sucesso. Em julho do mesmo ano, o que conhecemos hoje como e-mail foi aperfeiçoado com estudos que possibilitaram “um programa para listar, ler seletivamente, arquivar, encaminhar e responder a mensagens”. (Aisa, 2006). Depois os estudos foram avançando até chegarmos ao atual patamar de desenvolvimento. MÜLLER fala um pouco sobre como estes avanços estão afetando o jornalismo. O acesso às informações de outros locais ficou mais fácil para as pessoas que têm a possibilidade de se conectarem à Internet. Quando é feita essa conexão,


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os leitores têm acesso a veículos de qualquer lugar do mundo. Isto não seria possível sem a ajuda da Internet, pois para que isso pudesse acontecer, alguém teria que ir até este país buscar o jornal para que ele pudesse ser lido, ou dependeria dos serviços de correios internacionais aéreos. Com isto, demoraria muito tempo e faria com que a informação chegasse às mãos do indivíduo, ultrapassada. Quem navega na Internet pode observar que alguns jornais internacionais disponibilizam notícias em vários idiomas, primeiramente inglês e espanhol.(MÜLLER, 2006:02)

Segundo MÜLLER “o boom dos diários digitais foi entre 1995 e 1996”. (MÜLLER, 2006:02) Em Dourados, esse “boom” foi de 2000 a 2004, sendo o Dourados News, o primeiro a ser fundado nos moldes dos grandes portais do país. No mundo, segundo MÜLLER, alguns dos primeiros jornais digitais são o The Nando Times (1994) e o The San Jose Mercury Center, disponibilizado na web no início de 1995, ambos dos Estados Unidos. “A iniciativa foi de um grupo de empresários que teve a idéia de distribuir notícias na Internet, por causa da rapidez de difusão da informação. (QUADROS, 2002:07)

O Jornal do Brasil foi o primeiro a fazer uma cobertura completa no espaço virtual no país em 1995. Ele foi disponibilizado integralmente na web em 28 de maio, seguido por Zero Hora, do grupo RBS, em junho do mesmo ano“. (MÜLLER, 2006:05).

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1.4 Jornalismo on-line: função e características Para PÁLACIOS e MACHADO é cada vez mais a função do jornalismo on-line resgatar a “Memória Histórica” da sociedade. Eles até dão como uma idéia para que no futuro seja feita a digitalização de periódicos, programas de rádio e TV e outros, como forma de preservar a história. Eles citam os exemplos dos jornais New York Times, nos Estados Unidos e O Estado de São Paulo. (MACHADO & PALACIOS, 2006:27) O jornalismo on-line, que estaria agora passando por uma terceira fase de evolução conforme explica PÁLACIOS (2003). A primeira fase teria sido o da reprodução de partes dos grandes jornais impressos na Internet (MACHADO, 2003: 49). Na segunda geração ainda segundo a autora, o modelo tradicional ainda foi mantido mas com alguns implementos específicos do Jornalismo On-line, como ferramentas interativas “e-mail, para comunicação entre jornalista e leitor; fóruns de debates; surgem as seções como últimas Notícias” (MACHADO, 2003: 49) Agora na terceira geração é PÁLACIOS (2006) quem define o “new journalism online”, onde os sites “ultrapassam a idéia de uma versão para a web de um veículo já existente e empresas jornalísticas são criadas não mais em decorrência de uma tradição do jornalismo impresso” (TORQUATO, 2006:33) “Aparecem recursos como “som e imagens em movimento, recursos de interatividade, como os chats com a participação de personalidades públicas, enquetes, fóruns de discussões;


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opções para configuração dos produtos de acordo com os interesses do usuário; utilização do hipertexto não apenas como recurso de organização do site, mas “como possibilidade na narrativa jornalística de fatos”, e por último, mas não menos importante, a atualização contínua do jornal e não apenas na seção últimas notícias”. (TORQUATO, 2006:33)

Este novo jornalismo tem que ser feito para leitores apressados. “A orientação do autor para quem escreve material para a web é evitar textos longos, com mais de duas telas, e se possível quebrar a história em tópicos criando um texto em camadas (links), permitindo assim uma leitura não linear da notícia. Estes textos devem ter até quatro blocos com 75 palavras cada, em média. (Torquato,2006:45). Moretzsohn (2000) explica que devido à alta velocidade do cotidiano das pessoas causado pelo capitalismo e pelas ferramentas tecnológicas, e entre elas o computador, o sujeito tende a ter um ritmo também acelerado e leva isso para todos os seus campos de vida, inclusive para a busca de informações, e por isso quando ele acessa um site ele quer que o conteúdo seja direto e conciso. Assim “os jornais aumentam o número de erros tipográficos no momento que implantam processos computadorizados de produção de jornal” (SERVA, 2002, p. 105). É por isso que o jornalista se apressa em atender seu leitor, mas isso segundo MORETZOHN (2002) aponta alguns possíveis problemas na transmissão de informação que esta pressa pode causar dentro do conteúdo produzido nas redações de jornalismo on-line. Ele explica que a pressa,

“Obriga o repórter a divulgar informações sobre os quais não tem certeza, reduz, quando não anula, a possibilidade de reflexão no processo de produção da notícia, o que não apenas aumenta a probabilidade de erro como, principalmente e mais grave, limita a possibilidade de matérias com ângulos diferenciados de abordagem, capazes de provocar questionamentos no leitor; e talvez mais importante, praticamente impossibilita a ampliação do repertório de fontes, que poderiam proporcionar essa diversidade”. MORETZOHN (2002).

Para completar a pressão de ter que produzir matérias com rapidez para um público apressado, MACIEL (2006) cita ainda outros fatores que podem colaborar para possíveis equívocos durante a produção de matérias. “As pressões que o jornalista recebe para a produção dos textos; a falta de profissionais que tenham condições de estabelecer uma leitura crítica da realidade e até mesmo os péssimos salários da área e o comprometimento das empresas jornalísticas com diversas áreas de interesse econômico”. (MACIEL, 2006)

O perfil do leitor é de alguém que não chega a ler um título inteiro sequer e só abre uma notícia na página quando isso realmente o chama atenção, mas quando abrem, lêem até o final. Logo o jornalismo on-line deve obedecer a uma série de pré-requisitos que segundo o Grupo de Pesquisas em Jornalismo On-line da Universidade Federal da Bahia são características básicas do web jornalismo.


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Interactividade

Glocalidade

Hipermédia

JORNALISM O ON-LINE Apetência pela profundidade através da navegabilidade

Personalização

Instantaneidade

Para explicar este diagrama, TORQUATO (2006) usa os seguintes argumentos:

• “Interatividade que é a possibilidade de o receptor participar e interagir com o jornal e até de noticiar e funcionar como fonte de informação; deste modo, assiste-se a um nivelamento do jornalista com o leitor; • Hipertexto, ou seja, a possibilidade de se estabelecerem sucessivamente ligações entre textos e outros registos, o que torna o consumo informativo individualizado;

Hipertexto

Hipermédia, que é a união num único suporte de conteúdos escritos, sonoros e imagéticos, sejam as imagens fixas ou animadas; • Glocalidade, ou seja, fabrico local mas alcance mundial; • Personalização, ou seja, a possibilidade de o leitor interagir sobre a forma e o conteúdo do jornal, para consumir unicamente o que quer e como quer, dentro dos condicionalismos do software; os alertas noticiosos, o recebimento de um jornal a la carte, o recebimento de newsletters, etc. podem incluir-se na personalização;


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Instantaneidade, ou seja, a possibilidade de as notícias serem transmitidas no momento em que são finalizadas ou em directo; • Apetência pela profundidade através da navegabilidade, ou seja, a possibilidade de o utilizador aprofundar a informação consumida navegando pela Internet de site em site e de página em página, usando hiperligações.” (TORQUATO, 2006: 45).

SOUZA (2006) descreve que o jornalismo on-line possibilitou a segmentação das informações e o uso das novas ferramentas que a Internet oferece facilitou ao jornalista praticar sua profissão com o uso de ferramentas que possibilitam aprofundar os assuntos e contextualizálos. (SOUZA, 2006:1-2) O jornalismo também encontrou na Internet uma nova fonte de informações e uma ferramenta de investigação e de interatividade com fontes e receptores. Mas a Rede das Redes gera fenômenos para-jornalísticos (como o dos weblogs) e está, igualmente, a reconfigurar o espaço público e a roubar ao jornalista o seu quase monopólio de seletor da informação que passa e não passa para o público. A Internet potenciou, ainda, o problema da sobre-informação e levantou novos problemas, entre os quais os problemas ligados à credibilidade e identidade das fontes, à defesa das línguas e das culturas, aos direitos de autor e à defesa e segurança dos próprios cidadãos, das sociedades, dos estados e da comunidade internacional. A Internet tem também aumentado a tendência para

a segmentação da informação, já notada noutros meios, e permite consumos personalizados de conteúdos (informação a la carte). Porém, a passagem de um modelo de comunicação massiva para um modelo de comunicação essencialmente segmentada, personalizada, não se está a desenvolver tão rapidamente como os académicos, há vinte anos (Tofler, 1984) ou mesmo há menos de dez anos atrás (Negroponte, 1996), julgavam que poderia acontecer. (SOUZA, Jorge Pedro, 2006:1-2)

Para facilitar o acesso dos internautas TORQUATO (2006) afirma que o site noticioso deve ser de simples acesso, ter botões e links específicos para que o lietor se sinta à vontade em navegar e buscar a “informação rápida” que necessita O link deve ainda acessar diretamente a notícia detalhada: uma foto de um festival, deve linkar com a notícia do festival, e não com a editoria onde está incluída aquela notícia. Os links devem ainda ser fáceis de visualizar, sem instruções como “clique aqui” ou palavras genéricas como “outras informações ou mais” no final da lista. Outra dica é não usar a palavra link para indicar um link, a palavra mais significativa da frase deve ser usada como link e estar diferenciada das demais. (TORQUATO, 2006:44)

1.5 Jornalismo on-line em Dourados e acesso à Internet Dourados é a segunda maior cidade do Estado de Mato Grosso do Sul, sua


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população passa hoje, segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, de 196mil habitantes. Está localizada no sul do Estado a 260 km da capital Campo Grande, e o jornalismo online existe há pouco mais de sete anos. Na região de Dourados, a prática do jornalismo on-line só chegou entre 2000 e 2004 e continua se expandindo, com sites criados até em 2009. No interior do Mato Grosso do Sul, o Dourados News, foi o primeiro a ser fundado nos moldes dos grandes portais que já existiam no país. (COSTA, 2007, p.24) Por falta de números precisos quanto ao acesso à Internet na cidade, utilizamos aqui as estatísticas do IBGE3 que informam que o Brasil chegou a 73 milhões de internautas em maio de 2010, dos quais, 6,1% seriam da Região Centro-oeste, onde está Dourados. No Brasil, segundo dados da pesquisa “Hábitos de Informação e Formação de Opinião da População Brasileira4 “, da Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência da República, 47,7% dos internautas disseram se informar pela web e 6,5% consideram as informações da Internet o meio de comunicação mais confiável de todas as mídias. 2. ANÁLISE Para realização da análise, foi utilizado um método quantitativo baseado em Marques de Melo (1987). Na época, para analisar quanto de espaço era destinado a determinado assunto em um veículo de

3 4

Disponível em http://migre.me/WLVG Disponível em http://migre.me/WLVG

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comunicação (jornal impresso), o pesquisador propunha a observação dos resultados pela centimetragem, medindo centímetro à centímetro quanto de espaço o assunto estudado recebia nas editorias. (MARQUES DE MELO, 1972, p. 87.). Em uma análise na Internet esse método não seria possível, por isso o método utilizado neste trabalho foi adaptado e avalia quanto de espaço as principais fontes de notícias dos sites dispuseram para inserir suas matérias. Foram escolhidas para exemplificarem as fontes de notícias, as contribuilções das assessorias de imprensa, do site Campo Grande News (w w w.campograndenews.com.br), Mídiamax News (www.midiamax.com.br), G1 (g1.com.br), Folha de São Paulo (folhaonline.com.br), Uol (uol.com.br), Produções próprias dos jornais e outros sites que foram usados como fontes.. Assim como Marques de Melo (1972) fez, foi escolhido um dia qualquer, aleatoriamente, para a análise. O dia escolhido para esta análise está dentro do mês de novembro de 2010, no caso em questão, o dia 30, uma terça-feira. Com as notícias publicadas entre 00h01 e 23h59 desse dia, primeiramente foi feita a análise quantitativa das notícias disponibilizadas nos sites da cidade, 21 no total. A partir daí, o material analisado norteou as interpretações de quais são as fontes do jornalismo douradense. Não será feita uma análise qualitativa dos assuntos, pois, o objetivo do trabalho é apontar quais sites foram mais utilizados como fontes nos jornais da cidade de Dourados, por


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meio de levantamentos numéricos, quantitativos. 2.1 Levantamento Foram analisadas 457 matérias dos sites: Dourados News, Dourados Agora, Dourados Informa, MS Já, Mídia Flex, Meu MS, Folha do MS, Folha de Dourados, Exportiva, Notícias da Hora, Fato News, Agora MS, Gazeta Popular MS, Gazeta MS, Conesul Esportes, O Progresso, Diário MS, 180 Graus, Quarta Coluna, Douranews e Dourados Manchete, todos com sede em Dourados. Após análise, chegou-se à conclusão que as assessorias de imprensa são as maiores fontes dos jornais douradenses (177 notícias;38,7%), seguidos por outros sites do país que colaboram com 131 (aproximadamente 28,6%) notícias e pela produção própria dos veículos (65 notícias;14,2%). O quadro completo com as interpretações pode ser verificado no Anexo 1 (página 23). Se comparadas somente a produção própria dos jornais versus o conteúdo copiado de outras fontes, a contagem ficaria com 392 notícias copiadas e postadas contra 65 produzidas pelos próprios sites. CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, é possível dizer com bases nos dados coletados, que as assessorias de imprensa, principalmente do Poder Público, são as fontes principais do jornalismo em Dourados. Outro fato interessante, é que a maioria das produções próprias dos jornais se referem à Boletins de Ocorrência modificados e transformados em notícia. Por

conta das assessorias de imprensa serem tão influentes, é possível dizer que os sites estão se tornando cada vez mais vitrines onde políticos e empresas inserem suas ideologias, trazendo à tona um jornalismo de mercado, que está mais preocupado em se manter, do que em cumprir seu papel social, ainda que em alguns casos os releases dos jornais sejam de prestação de serviço público, havendo ainda matérias de auto-promoção, disfarçadas de prestação de contas. Peruzzo (2002), já dizia que tais características poderiam ser encontradas com facilidade em jornais do interior, e esse trabalho acabou por confirmar tal hipótese. Para ela, três aspectos do jornalismo regional chamam a atenção, quanto às especificidades que os meios de comunicação do interior do país apresentam. A pesquisadora analisa veículos impressos, mas, os pontos são perfeitamente aplicáveis também ao jornalismo on-line: a) Tendência de alinhamentos de forças políticas no exercício do poder; b) Em geral muitas redações de jornais do interior sofrem com a falta de profissionais qualificados, inclusive jornalistas práticos sem formação acadêmica; c) Característica predominantemente de mercado, ou seja, em sua maioria os órgãos informativos tendem a ser rentáveis. Em muitos casos, ocupa a maior parte do espaço impresso em relação ao número de notícias publicadas, acarretando uma cobertura inexpressiva de alguns assuntos. (PERUZZO, 2002, p. 19-20)

Seguindo o raciocínio da autora, é possível notar que em Dourados não foi


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diferente dos demais “interiores do Brasil”, porém, não é por isso que esses jornais deixam de ser importantes, afinal, do seu jeito, transmitem informações, ainda que de outras fontes, para a população que vive na área de influência dos jornais. Como cita Peruzzo, eles são “meios de comunicação que ao longo dos anos vem persistindo na função de portadores da informação local, mesmo expressando algumas contradições”. (PERUZZO, 2002, p. 73). Ainda em tempo, é preciso dizer que foram encontrados sites que aparentavam ser jornalísticos, mas, que na verdade serviam aparentemente, para justificar pagamentos, uma vez que além de não produzirem, ostentavam banners de campanhas

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publicitárias de órgãos públicos. Cabe análise futura, ao porque órgãos públicos investem dinheiro do contribuinte em sites aparentemente irrelevantes quanto à número de acessos e reconhecimento público. Fica a hipótese de que alguém estaria sendo beneficiado nesse processo. Fica, portanto, essa análise quantitativa, como um recorte temporal e local do quadro apresentado pelos sites de Dourados, para que novos estudos sobre o que motiva o descaso com a produção própria possam ser investigados mais à fundo no futuro, deixando em aberto o campo para estudos também qualitativos de como o público recebe esse tipo de jornalismo produzido.

ANEXOS Anexo 1 Site 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 Total

Assessoria 41 * 17 08 13 ** *** 14 #

CGNews

Midiamax 01 * 10

G1 02 * 02 01

Folha 09 * 02

Uol 07 * 04

** *** 05 #

** *** 05 #

** *** 07 #

** *** 03 #

** ***

* 05 01

< >

### 08 14 < >

08 ### 10 04 < >

Total 88 * 84 34 17 ** *** 57 # 05 ## 85 06 12 ### 33 36 < >

& % 15

& % 131

& % 65

& % 457

#

## 46 02 04 ### 15 17 < >

## 03

## 02 01

## 02

## 08

## 01 03

###

###

###

###

###

01 < >

< >

< >

< >

& % 177

& % 15

& % 19

& % 14

& % 22

Outros 13 * 26 16 04 ** *** 22 # 05 ## 23

Própria 15 * 18 09 ** *** 01 # ## 00


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1. Dourados News 2. Dourados Agora 3. Dourados Informa 4. MS Já 5. Mídia Flex 6. Meu MS 7. Folha do MS 8. Folha de Dourados 9. Exportiva 10. Notícias da Hora 11. Fato News 12. Agora MS 13. Gazeta Popular MS 14. Gazeta MS 15. Conesul Esportes 16. O Progresso 17. Diário MS 18. 180 Graus 19. Quarta Coluna 20. Douranews 21. Dourados Manchete

Observações:

*2 – Sem ferramenta de busca; 35 espaços, porém, sem busca de notícias. Cinco próprias e 3 colunas. **6 – Mesmo fora do ar, para testes, tinha 37 espaços, todos copiados, sendo 09 de assessorias ***Fora do ar #9 – Sem ferramenta de busca. De 40 notícias, 9 eram da prefeitura. ##Sem ferramenta de busca, de 15 notícias todas eram copiadas ### Fora do ar <Fora do ar >Fora do ar & Sem ferramenta de busca, dos 33 espaços, oito eram da prefeitura. % Sem ferramenta de busca. Dos 12 espaços e da lista imensa que possui sem data, todas eram copiadas de alguma fonte exterior.

Anexo 2: Lista de patrocinadores do Poder Público SITE 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21

PREFEITURA N S N S N N N N N N N S S N N N S N N S N

CÂMARA N S N N N N N N N N S S N N N N S N N N N

TOTAL Zero 02 Zero Zero Zero Zero Zero Zero Zero Zero Zero 02 01 Zero Zero Zero 02 Zero Zero 01 Zero

Legenda S: Sim N: Não


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O MENINO E A ÁRVORE: UMA ANÁLISE DA FOTOGRAFIA POR MEIO DO PERCURSO GERATIVO DO SENTIDO NA MANIFESTAÇÃO VISUAL Érika Patrícia BATISTA1 RESUMO O objetivo deste artigo é analisar, a partir da Semiótica Visual Daviliana, a linguagem fotográfica apreendida da produção de Sebastião Salgado, na obra Êxodos. A fotografia foi escolhida por apresentar uma mensagem sugestiva à contemplação e à reflexão, rica em sequências a serem decodificadas. Desse modo, a teoria semiótica da Figuratividade Visual — especificamente o Percurso Gerativo do Sentido na Manifestação Visual — será um importante instrumento no comando à nossa pesquisa por permitir a articulação do sentido no interior do texto, desnudando elementos como: rimas plásticas, rimas poético-míticas, isotopias, síncopa, projeções paradigmáticas, entre outros, cuja elucidação concebemos como pertinente e operatória no decifrar dos códigos que arquiteturam a significação visual. Elaboraremos, dessa forma, uma análise semiótica da relação entre os elementos que compõem a fotografia. Palavras-chave: semiótica; imagem; isotopia; sincopa; análise. ABSTRACT The aim of this paper is to analyze, from the Visual Semiotics Daviliana, the photographic language withdrawn from the production of Sebastião Salgado, Migrations in the work. The photograph was chosen because display a message suggesting to contemplation and reflection, to be rich sequences decoded. Thus, the semiotic theory of figuration Visual — specifically Generative route of Meaning in Visual Expression — will be instrumental in command to allow our search for the articulation of meaning within the text, stripping elements such as plastic rhymes, rhyming poetic-mythic, isotopies, syncopation, paradigmatic projections, among others, the elucidation of which we conceive as relevant and operative in deciphering codes in architecture to visual

1 Jornalista formada pela Universidade de Marília, especialista em Assessoria em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás. Mestre em Comunicação Social pela Universidade de Marília (Unimar) - SP


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signification. We will prepare in this way, an analysis semiotic relationship between the elements that compose the shot. Keywords: semiotics; Image; isotopies; syncopation; nalysis.

INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é analisar, a partir da Semiótica Greimasiana e da Teoria Daviliana, a linguagem visual da fotografia produzida por Sebastião Salgado, na obra Êxodos. As fotografias que compõem esse trabalho de Salgado foram produzidas ao longo de sete anos, em 41 países. Uma das propostas era mostrar os milhões de refugiados, migrantes e destituídos do mundo, em busca de melhores condições de vida. Um forte motivador a esses acontecimentos, segundo ele, é a inovação tecnológica que acarreta o desemprego gerando as ondas de migração que movem 120 milhões de pessoas por ano. O trabalho crítico, que revela as muitas faces do submundo, mostra uma realidade triste que suscita reflexão quanto às ações sócio-econômicas do cenário mundial. A escolha do tema abordado neste artigo se configura pela forma com que o fotógrafo utiliza a fotografia para retratar questões sociais. Ao mesmo tempo em que ele se coloca como um fotógrafo reconhecido mundialmente por mostrar bastante expressividade em suas obras, ele se mostra um crítico dos problemas sociais de inúmeros países.

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A imagem escolhida foi produzida entre 1984 e 1985 em Sahel, na África, onde Salgado fotografou as vítimas da fome entre outras situações. A foto mostra um garoto esquelético parado em um local onde existia o lago Faguibin, o maior da África Ocidental, extinto pela sequidão. Ao fundo uma árvore morta, com galhos secos. A fotografia foi escolhida por apresentar uma seqüência de mensagens não perceptivas em primeira instância, mas que poderão ser decodificadas por meio da teoria Greimasiana e/ou Daviliana. Dessa forma, construiremos uma análise semiótica da relação entre os elementos que compõem a fotografia. A Teoria Semiótica da Figuratividade, especificamente o Percurso Gerativo do Sentido na Manifestação Visual será um importante comando a nossa pesquisa. Para análise nos embasaremos na semiótica, no estudo das significâncias. D’Ávila1 diz que: É necessário termos conhecimento de importantes elementos que constituem parte introdutória dessas teorias destinadas à apreensão do sentido, suas metodologias para posterior articulação por meio do uso de estratégias na aplicação. Estas são diferenciadas de

O asterisco que acompanha o sobrenome D’Ávila indica elucidações recebidas em sala de aula ou em orientações na disciplina. Unimar 2007/2008


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conformidade com cada linguagem colocada frente à abordagem semiótica, cujo instrumental demonstre ter propriedades específicas de valorização que o torne credível e diferenciado segundo suas possibilidades de uso relacionadas à natureza das linguagens em análise (D‘ÁVILA. 2008. p 01).

Este será o tema abordado no próximo item. Porém, é importante salientar que, neste trabalho será pesquisado somente o figural da fotografia, utilizando então os preceitos da Semiótica Visual que compreende o figural e o figurativo, o caráter viso-estático, como telas, fotos, cerâmicas, esculturas, planilhas etc, conforme descreve D’Ávila. 1. COMUNICAÇÃO VISUAL: A APLICAÇÃO DA TEORIA SEMIÓTICA DA FIGURATIVIDADE VISUAL OU TEORIA DAVILIANA A linguagem está imbuída em vários patamares capazes de desenvolver uma comunicação entre elementos de distintas consciências. Melhor dizendo, na forma de expressar está intrínseca a decodificação da linguagem que pode ser verbal, não verbal e sincrética. Porém, neste trabalho analisaremos apenas o discurso não verbal. As mensagens visuais não apreendidas sem que se faça uso de métodos específicos para

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decodificá-las, quando manifestadas numa fotografia para se ter uma interpretação mais aprofundada necessária se faz uma teorização científica. Para tal, a Teoria Daviliana mostrou-se eficaz, na construção e reconstrução do sentido no discurso. Embasada na de Greimas, vista como a Teoria da Significação, a Semiótica Daviliana vale-se da metodologia descritiva que se destina a interpretação, exploração desconstrução e reconstrução do sentido. A citada teoria nos remete à manifestação visual ponto de partida para que analisemos imagens como; telas, figuras, esculturas, fotografias, enfim, com elementos que necessitem ser interpretados através de exame visual minucioso para a captura dos detalhes inerentes ao objeto analisado. Esta Teoria se configura como Semiótica da Figuratividade Visual2, possibilitando decodificar sentidos mais profundos e buscando descrever e analisar os elementos que geram os percursos que o sentido desenvolve em relação a níveis de estruturação. Segundo Cláudia Mara Piloto da Silva Parolisi3 a Teoria Semiótica da Figuratividade Visual ou Teoria Daviliana, elaborada pela professora e pesquisadora Dra. Nícia Ribas D’Ávila, teve início em meados dos anos 80-90, sintetizada no Percurso Gerativo do Sentido na Manifestação Visual. ...cientificamente inspirada no Percurso Gerativo do Sentido, de Greimas,

O Asterisco * acompanhando termos identifica sua pertença à teoria Semiótica Daviliana. Cláudia Mara Piloto da Silva Parolisi desenvolveu o trabalho A Teoria Semiótica da Figuratividade na Comercialização de Produtos Turísticos, disponível no site: C:\Documents and Settings\ Administrador\Desktop\nicia\MÔNICA LISA – TEORIA SEMIÓTICA DA FIGURATIVIDADE VISUAL, E O MULTILETRAMENTO.htm

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esta teoria foi elaborada para analisar as manifestações imagéticas, pois dentro dos conceitos que a permeiam a arte é vista como linguagem e o objeto de arte como texto. A imagem enquanto texto é uma unidade de significação (PAROLISI, apud D’Ávila, 2006 )

Ainda seguindo o raciocínio de Nícia D’Ávila, iremos nos valer de suas considerações acerca do modo de significação no que tange a substância do conteúdo. Se, de um lado, a Linguística encarregava-se do estudo de significante (fonética/fonologia), poucos estudos foram outrora realizados no nível do significado em semântica textual visando a elaboração de uma gramática de conteúdo. Essa foi a grande lacuna que, com a existência das teorias de grandes semioticistas, destacando-se, dentre outros, Greimas e Coquet — expoentes máximos no mister da desconstrução do sentido —, hoje con-

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templarmos sua plena evolução desenvolvida por seus discípulos e seguidores, já não mais constituiu o vazio de outrora. Este, porém, encontra-se em pleno rigor na analise dos conteúdos e significação. Se greimas, com sua teoria objetal ou do descontinuo, preocupava-se mais com o texto em si (enunciado) e a FORMA (da expressão e do conteúdo) do que com a substancia (de ambos), Coquet, em sua teoria subjetval ou do continuo, deu especial atenção aos discursos (enunciação/enunciada), às identidades enunciativo-enunciva do actante sujeito em suas instâncias de produção do sentido e às suas substancias e formas do significante e do significado saussurianos (D’ÁVILA, 2007).

Para melhor compreendemos a Teoria Semiótica da Figuratividade Visual nos embasaremos na definição de D’Ávila referente aos componentes básicos e estruturais dessa teoria; aos componentes responsáveis pelos patamares da produção do sentido visual ora figural, ora figurativa.

Componentes básicos estruturais


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Produção do sentido figural mais figurativo em seis etapas 1) FIGURAL I (nuclear) elasticidade (pré/pós) — Nebulosa como esboço, ou arcabouço da forma. Esboço da forma, como um pré-objeto, extraída do bosquejo, do croqui, quando pressupomos o objeto posto. Arcabouço, no objeto posto, quando dele retemos impressões de cor, transparência, textura; na nebulosa ou esboço da forma primitiva. Ambos postos, reais. Num objeto posto, conseguimos antever o pré-recuperar o seu pré-objeto. 2) ZONA INTERMEDIÁRIA — a) classema-a (clas-a); manchas, traços esboçados ou borrões diversos. Um Figural autêntico, uma substância com qualidades não quantificáveis, um figurema; 3) FIGURAL 2 (Classemático b) classema-b (clas-b): básicos designativos de primitivos figurativos tais como: círculo triângulo e suas derivadas figuras geométricas. c) classema-c (clas-c): classemas comuns, específicos ao objeto em apreensão, servindo para identificá-lo (Ex.: caricaturas; um gato = 2 triângulos sobre uma circunferência). Cada componente comporta instâncias intermediárias. Na organização da forma, o clas-b é usualmente sucedido pelo clas-c. Ambos necessitam do clas-a — contextualizações fundamentais —, dele dependendo para suas atualizações e realizações. Essas últimas são apreendidas por meio dos acréscimos e decréscimos manifestados que comporão ou decomporão a forma do objeto em questão, tanto na captação e incorporação de

classemas que permitirão ao olhar desenvolver o percurso compositivo do pré-objeto? objeto (motivado pelo meta-querer do destinatário), quanto na supressão e distorção de classemas colhidos no percurso decompositivo pós-objeto ? objeto. 4) NÚCLEO TENSIVO DAS AMBIGUIDADES: Em primeira instância, o pré-objeto que será nomeado encontra-se situado, nesse momento tensivo de espera, no percurso espaço-temporal entre a busca e o encontro do figurativo, efetuados pelos acréscimos de classemas que semantizarão o objeto transformando-o em figurador 1, isto é, em objeto nomeado, designado por correspondência no mundo natural. Em segunda instância, a busca de um objeto novo, criativo, poético como os decréscimos/acréscimos de classemas que dessemantizarão e ressemantizarão o objeto figurativo posto (ou pressuposto), rompendo com o estereótipo e produzindo o “diferente”. 5) FIGURADOR 1 Vertente do logos — O objeto figurativo, nomeado no mundo natural, representativo e semisimbólico. 6) FIGURADOR 2 — FONTE do mythós - O objeto figurativo que se expande e se acrescenta diante da sensibilidade e criatividade humanas, recendo configurações novas, em função deste notório repertório. Nesta instância detectamos a participação dos (s) referente (s) externo (s) termo assim designado em teoria pirceana. (D’ÁVILA. 2008)

Portanto, é preciso compreender os elementos que constituem o visual para


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entender as particularidades e peculiaridades a fim de interpretar o que se camufla numa foto, ao primeiro olhar; ela esconde muito mais do que mostra. 2. O PERCURSO GERATIVO DO SENTIDO NAANIFESTAÇÃO NÃO-VERBAL Ao apontar o percurso do sentido na manifestação não-verbal (visual) como importante fonte de compreensão da significância, a pesquisadora Nícia D’Ávila reuniu elementos importantes para a desconstrução/reconstrução do sentido no texto imagético. Entre eles, no nível do conteúdo, ou seja, do significado extraído do texto visual, agregou à substância do conteúdo (que é variável quanto sua representatividade) e à forma do conteúdo (que é invariável), contribuições indispensáveis ao encenamento da transformação do figural em figurativo. Para melhor compreendermos esta concepção mostraremos o Percurso Gerativo do Sentido na Manifestação Visual mais à frente. Os semas visuais também são imprescindíveis na leitura de uma imagem. De acordo com a Teoria Daviliana, como diz Rozuila Neves Lima (2007), os possíveis semas contextuais a serem detectados, são: a) O punctuema é a unidade mínima significativa da construção do traço. A iteratividade dos tracemas (semas classificatórios do traço), comporá a parcialidade do desenho, conduzindonos à isotopia (reiteração simples, classemática). As isotopias serão identificadas quando um caráter formal for predominante ou reiterado na totalidade ou parte do desenho, defi-

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nindo, também, o sema nuclear. “O punctuema, sema classificatório do punctum (ponto) é observado como unidade absoluta detentora e geradora de qualidades e de quantidades. E’ concomitantemente punctual (aspectos incoativo e terminativo), de conformidade com caráter fenomenal (aparência espácio-temporalizada) ; e durativo, de conformidade com sua essência ou natureza esférica do “continuum”. Gera o tracema, que poderá apresentar-se como retilíneo, curvilíneo, longitudinal, transversal, diagonal, da coloração, da textura, etc.” b) Os texturemas, termo utilizado pelo GROUPE μ (1992 : 197), aqui definidos como semas contextuais da textura, são gerados pela sobreposição de camadas, propiciando a apreensão da profundidade plástica “palpável”. c) Os densiremas são os traços cerrados, compactos, carregados, contíguos, sem intervalos entre si, apreendidos a partir dos traços demarcatórios da espacialização de volumes, do peso e do equilíbrio das massas formando a densidade do objeto plástico. d) Os larguremas são traços largos ou estreitos obtidos a partir da largura, ou seja, a distância visualizada lado a lado de um volume ou de uma superfície plana. e) Os extensiremas são traços longos ou curtos, extraídos do comprimento. Na Representação, temos o desenho representativo, denominado figurador I, do lógos. Lógos faz-se referencializar pelo lexema “palavra”, que desde 1880 passa a designar o estudo dos significados nas línguas. É por meio da palavra que o destinatário decodifica, da


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imagem figurativa, sua denominação, seu figurador I. Assim, é estabelecida entre a imagem e a palavra uma rela-

ção metafórica (D’ÁVILA apud LIMA).

Quadro 1: Percurso Gerativo do Sentido na Manifestação Não-Verbal NÍVEL do CONTEÚDO (O SIGNIFICADO) EXTRAÍDO DO TEXTO VISUAL SUBSTÂNCIA DO CONTEÚDO (Variável) + FORMA DO CONTEÚDO (Invariável) SUBSTÂNCIA Sim bólica (denotativa) Presentificação (Figural 2) Arte abstrata e variantes ************** Semi-simbólicas Representação (conotativa) Figurador I Aquilo que a imagem esta representando; a história retratada com fidelidade ao figurativo e implicação com o sem antismo verbal. Re-representação (conotativa) Figurador 2 (do ). A representação do objeto é acrescida da subjetividade interpretativa do analista cujos acréscimos fundam enta-se no seu repertório e na criatividade.

FORMA (nível superficial) Denotação –form em as Ritmo e Aspecto – O Ritmo dos espaços (=proxêmica): englobante x englobado simétrico x assimétrico Planos, p1, p2, etc. Espaços: e1, e2; e2’, e2’’, etc. (contorno x contornado) Perspectiva (superficiais e volum es), proporcionalidade, dim ensão/posição/orientação rimas plásticas sim ples e com plexas determ inantes da natureza dos classem as. Projeções sintagmáticas Planos isotópicos Função de síncopa (figural) Form em a total/parcial (ft/fp) ************* Conotação Im plicação verbal=rim as Poético-miticas e funções de síncopa no figurativo

FORMA (nível profundo) Denotação – sem as Os sem as responsáveis pela qualificação e quantificação da imagem , os ‘punctuem a’ ‘tracem a’, ‘colorema’, ‘crom em a’, ‘texturem a’, ‘densirema’, ‘largurem a, ‘saturem a’,‘form em a’, ‘sincopem a’, etc., Em articulação nos Quadrados Semióticos para determinação da Forma, abstrata, sistêmica, paradigmática extraída de sem as superfícies, volum es e proporcionalidade. Isotopias pelos tracem as Projeções paradigmáticas Por extrapolação da forma da cor Suprassegm entação, ou do pseudo movim ento Esta é determinante do Caráter figural, arcabouço de um figurativo qualquer.

Estruturas Discursivas – Figural 1 – Nuclear propulsor da Substância do Conteúdo NÍVEL da EXPRESSÃO (Significante) no Texto Visual Forma (Invariável) Substância (Variável) Os sistem as: viso-plásticos Físico- ótico – química (Ora figulra) (Ora figurativo) Percurso Gerativo do Sentido na Manifestação Não-Verbal


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3. ANÁLISE DA FOTOGRAFIA

4. SUBSTÂNCIA DO CONTEÚDO

Partindo o Percurso Gerativo do Sentido Visual a fotografia analisada faz parte da obra Êxodos, de Sebastião Salgado. Um fotógrafo consagrado em todo o mundo por produzir fotografias capazes de expressar o contexto sócio-econômico de vários países. Com imagens, ele consegue despertar olhar das autoridades governamentais e do cidadão comum sobre fatos que ocorrem em todo o mundo, mas que poucos têm conhecimento. A fotografia foi produzida entre os anos de 1984 e 1985, na África, em Sahel. Salgado retratou um menino migrando em busca de trabalho.

4.1. Representação Figurador I “do lógos”.

Figura 1

Foto de Sebastião Salgado Fonte: http://preciosaiguaria.blogspot.com/ 2009/09/sebastiao-salgado-seca-no-mali1985.html

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Em primeira instância trata-se de uma substância representativa, pois é um “ver representado”, ou um “ser representado”, portanto uma “representação”, quando encontra-se aglomerados em visão única os elementos que compõem a foto. Ao aprofundarmos nossa análise percebemos que se trata de uma fotografia semi-simbólica, conotativa do figurador 1, do lógos, pois está representando a fidelidade à história de um rapaz muito magro, com os ossos à mostra pela sua deficiência física, pela desnutrição. Com os tracemas visuais configura-se a Isotopia da desnutrição, pela interatividade de categorias sêmicas. A totalidade A e B, representa o local onde o menino está inserido; logo esses espaços conversam, interagem. Assim como a árvore está seca, mas ainda em pé, como se esperasse que a vida lhe fosse devolvida, também o menino se encontra na mesma situação, à espera de algo. Para analisar a imagem com mais precisão é necessário apontar os elementos que constituem a fotografia. Inicialmente a totalidade AB será divida em dois lados. Lado A e lado B. O lado A fica na imparcialidade, retratando o elemento árvore que fica ao fundo. Já o Lado B se mostra parcial representando o elemento de mais destaque na imagem, o menino. Porém, quando um determinado espaço é fixado visualmente no discurso, a totalidade AB é desorganizada, projetando e condensando no olhar do observador no espaço B, momento em que


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estabelece intimamente, neste local conjunturas, fundamentada em rimas plásticas da “ossificação corporal”, gerando metáforas internas localizadas e compensadas no enunciado.

Figura 2

4.2. A função de Síncopa A função de Síncopa no figurativo é obtida ao analisarmos e compararmos a magreza do menino e a sequidão da árvore. Quando ao observar a foto ocorre um estranhamento, o leitor se fixa num determinado espaço deste discurso visual e desorganiza a totalidade AB. “A quebra de uma reta ou distorção de uma curva que interrompe a continuidade do olhar”, ou seja, a ausência de continuidade do real pretendido pelo olhar do observador quanto a linearidade que até então se desenvolvia. Esta linearidade se desfaz formando assim o não contínuo, a síncopa, a ausência do real esperado.O estranhamento quebra toda a continuidade, por desorganização da totalidade AB. Neste momento ocorre a ruptura, a interrupção, a desorganização da continuidade até então percebida. Ao analisar a foto o leitor é atraído pelo vazio entre as pernas do menino, é puxado para aquele espaço, ou seja, condensa seu olhar no espaço dirigindo-o ao núcleo de tensão marcado no círculo. Assim o leitor é projetado para uma zona de questionamento. E através do surgimento da isotopia da semicircularidade diagonalizada retorna ao texto a totalidade AB, reorganizando-o e cumprindo assim as cinco etapas que compõem a Função de Síncopa: desorganização, projeção, condensação, expansão e reorganização.

Totalidade A B Fonte: http://preciosaiguaria.blogspot.com/ 2009/09/sebastiao-salgado-seca-no-mali1985.html

4.3. Re-representação Figurador 2 “do mythós” A fotografia tem a conotação de um povo que esquecido, vivendo sem perspectiva de melhoria de vida, sem possibilidades concretas, busca oportunidades para garantir um futuro menos sofrido. A imagem retrata, então, a história de milhares de pessoas que vivem em condições subumanas, porém ainda lançam um olhar prospectivo. Isso é visto quando o menino olha para a sua direita, o lado positivo, que se mostra confiante, esperançoso, diferente da sua esquerda que retrata as perdas e a falta de esperança.


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Figura 3

Figura 4

Figurador 2 do “mythós” Fonte: http://preciosaiguaria.blogspot.com/ 2009/09/sebastiao-salgado-seca-no-mali1985.html

Síncopa Fonte: http://preciosaiguaria.blogspot.com/ 2009/09/sebastiao-salgado-seca-no-mali1985.html

5. PROJEÇÕES SINTAGMÁTICAS Quando se trata da reorganização do discurso não verbal é necessário trabalhar as projeções Sintagmáticas, rimas plásticas e também o ALOP que vem a ser : - Agregação: os elementos punctuais (pixels), por exemplo que se agregam formando cores, formas, linhas, figuras, imagem, etc.; - Luminância: a presença da luz na composição; sem luz não há foto, nem imagens. - Orientação: como os elementos se orientam depois de ligados. - Proxêmica: o posicionamento das imagens e figuras, dos objetos e dos seres a simetria, a roupa, o sorriso, tudo que compõe a atmosfera do espaço temporal da imagem.

A proxêmica está ligada com a natureza vegetal em equilíbrio na igualdade de condições com a natureza humana por assimetria ritmica. A fotografia analisada encontra-se numa retangularidade englobante, pois temos parcialidades em espaços construídos assimétricos. Já os planos, podemos classificá-los da seguinte forma: P0 é o plano de fundo. P1 está configurando o plano em que árvore se encontra. P2 — onde se configura o cajado que o menino segura. Já P3 é o corpo do garoto e P4 retrata o saco que o menino leva na mão esquerda.


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Figura 05

Figura 6

Planos Fonte: http://preciosaiguaria.blogspot.com/ 2009/09/sebastiao-salgado-seca-no-mali1985.html

Espaços do discurso visual Fonte: http://preciosaiguaria.blogspot.com/ 2009/09/sebastiao-salgado-seca-no-mali1985.html

Os espaços se condensam nas duas imagens destacadas, na árvore eles aparecem da seguinte forma: e1 parte superior da árvore, e2 o encontro entre os galhos, e3 a parte inferior da árvore. Os espaços encontrados no menino: cabeça e4, corpo e5, e pernas e6.

Já a perspectiva configura-se sob uma direção ascendente com diminuição de elementos nos dois destaques. Ela mostra aquilo que se perde e aquilo que se ganha, pela proporcionalidade da zona imagética em destaque: o menino, como se a foto dissesse eu perco o vegetal, mas ganho a vida. Essa proporcionalidade que retrata as massas e os volumes faz com que tratemos da correlação entre um menino e um galho. A intenção é retratar o espaço preenchido entre as massas. Ou seja, o fotógrafo rompeu o espaço com um volumema* deixando apenas 10% ou 15% da totalidade que lhe pertencia. A dimensão mostra as tonalidades, as nuanças das projeções entre os tons. O menino apresenta mais tons de escuro do que de claro, chamando mais atenção a


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ele no que se refere à totalidade da fotografia que se apresenta em um plano de menos densirema* , em um plano mais claro e suave. Quanto à projeção e a orientação, teremos um resultado diferente do que o apresentado ao analisar a posição da cabeça. Examinando o contexto, posição e orientação estão voltadas para as perdas, sem expectativas, sem amanhã, sem nada. As rimas plásticas são projeções sintagmáticas colhidas das vértebras (costelas, pernas, nas angularidades, perna mais galho invertidas). O início da angularidade bem pronunciada na função das pernas levemente diagonalizadas, assim como a diagonalidade do bastão representado conjuntamente um psdeudo-movimento, denotam projeções paradgmáticas* (ou rimas poético-míticas*), da quase retilineidade diagonalizadas* extrapolação da forma, da cor (nuanças nos coloremas*, formemas*) e do movimento. Comparando os dois objetos semióticos teremos uma semicircularidade disfarçada, quase se transformando em retilineidade diagonalizada. O Crânio pertence à isotopia da semicircularidade esmaecida, configurando uma pseudo-retilineidade. Isto também é percebido entre os vazios das pernas. A ausência de traços, de volume, ou seja, os volumemas*, os tracemas*, os punctuemas* etc. Assim, temos a isotopia da pseudo-circularidade*, diagonalizada em côncavo e convexo, mostrando-nos que aquilo que ainda quer viver, ter força e movimento. Os nós, assim como no joelho e na árvore, são junções que alimentam apresentando-se como rimas poéticas.

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Figura 7

Pseudo-circularidade e pseudo-retilineidade Fonte: http://preciosaiguaria.blogspot.com/ 2009/09/sebastiao-salgado-seca-no-mali1985.html

A rima poético-mítica é aquela que não existe total identidade formal apenas parcial. Não é, por exemplo, uma mão como a outra. Neste caso a árvore e o menino se assemelham pela sequidão. São da mesma espécie viva, mas não da mesma espécie vegetal. Ao visualizarmos os espaços constatamos ainda uma rima poética formada pela parte inferior do galho que parece a tíbia do menino. Ao analisarmos os pés percebemos uma rima plástica entre eles, embora conotada pela deficiência física do garoto que deformou os seus pés, desproporcionando-os sob metamorfose de redução.


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Figura 8

Rimas Plásticas Fonte: http://preciosaiguaria.blogspot.com/ 2009/09/sebastiao-salgado-seca-no-mali1985.html

Os semas são responsáveis pelas qualificações e quantificações das imagens. Na fotografia de Salgado encontramse séries de punctuemas que originam tracemas, em função do ALOP. Temos então incidências de claros e escuros entre massas e volumes. Nota-se também uma luminância entre a tíbia e a zona lombar torácica. Entre os claros e os escuros aparecem os coloremas com tons acinzentados formando também os cromemas, nas nuances de cinzas. Por fim, todas estas oposições semânticas entre o “ser seca” e “parecer seca” e o “não ser seca” e o “não parecer seca” se explicam nos tracemas apreendidos no decorrer da análise. Assim, podemos configurá-los desta maneira.

QUADRADO SEMIÓTICO DA MANIFESTAÇÃO SINCRÉTICA

SECA

Verticalidade diagonalizada quase semi-circular “menino”

Semi-circularizada Diagonalizada “o galho” segredo

Não verticalidade diagonalizada não quase semi-circular

Não semi-circularidade diagonalizada

NÃO SECA


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No nível do segredo o resultado apresentado pelo Quadrado Semiótico é a recuperação da vida dada do vegetal para o ganho da vida humana. Finalizando esta análise embora sem esgotá-la, pois a Teoria da Figuratividade nos permite ir muito além, percebermos que a fotografia é PB (preto e branco), o que nos permite entender a essência da obra. O preto e branco nos revela melhor o semas, as isotopias, as formas, os conteúdos, entre outros.

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para a perpetuação da espécie. A isotopia é voltada para as perdas, ou seja da semi-circularidade esmaecida, ou uma pseudo-retilineidade formadas em diagonalidades interrompidas. Esta isotopia está clara nos espaços e1 e e2 no vegetal, já no menino se configura nos espaços ab, em que se nota o vazio entre suas pernas que se reproduz em projeção paradigmática espectral*. Figura 10

CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo sabendo que a Teoria Semiótica nos ampara de maneira enriquecedora quando necessitamos analisar discursos, sejam verbais ou não verbais, semioticistas J. A. Greimas e D’Ávila disponibilizam teorias que nos possibilitam explorar elementos que desconstroem e reconstroem o verdadeiro sentido da comunicação nas linguagens que as imagens e as palavras conseguem transmitir. Dessa forma, a imagem de Sebastião Salgado, conhecida como o menino e a árvore, após análise, concluímos que, a fotografia numa rima poético-mítica ligando o menino ao galho, trata da ligação do seco com o vegetal em que ambos luscando pela vida mostram o 1º dependendo do 2º

Fonte: http://preciosaiguaria.blogspot.com/ 2009/09/sebastiao-salgado-seca-no-mali1985.html

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS D’ÁVILA, Nícia. Renart e Chanteclerc — Por uma abordagem semiótica do estatuto do actante-sujeito /RENART/ - conforme teoria de J.-C.COQUET. In: Leopoldianum Revista de Estudos e Comunicações - Unisantos vol. XVIII (n°52). Santos: Ed. da Unisantos, 1992, p. 65-76. _______. Semiótica Sincrética Aplicada. Novas tendências. Org e orientação dos traba-


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MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS: UMA NARRATIVA RUEIRA Alfredo LIMA1 Ivete WALTY2

RESUMO Em prefácio à edição da Melhoramentos do livro de Manuel Antônio de Almeida (s/ d), Memórias de um sargento de Milícias, Jamil Almansur Haddad refere-se ao que chama uma dimensão rueira do livro. É justamente o desdobramento do adjetivo “rueira” que queremos explorar na leitura que ora fazemos do livro, considerando que, na narrativa, a rua, caracterizada em sua mobilidade, vai se configurando de modo a se tornar ela própria personagem em uma relação metonímica e metafórica com aqueles que a percorrem ou a cruzam. Mais do que isso, a rua faz-se palco conferindo à narrativa a mesma configuração; o romance é palco a exibir cenas e contra-cenas, a ribalta e os bastidores de uma história que não é apenas dos Leonardos, mas da vida políticosocial da época e da própria literatura brasileira. Palavras-chave: Literatura brasileira; Manuel Antônio de Almeida; Memórias de um sargento de Milícias. ABSTRACT In his preface to the Melhoramentos edition of Manuel Antônio de Almeida’s Memórias de um sargento de milícias (s.d) Memoirs of a Militia Sergeant - (n.d.), Jamil Almansur Haddad remarks that the book has a dimension which he calls ‘rueira’ [‘rueiro’, feminine ‘rueira’, means ‘relating to or inherent to the street (rua)’, and ‘fond of going out’]. It is precisely the unfolding of the adjective ‘rueira’ I intend to explore in my reading of the book, considering that the street, portrayed in all its mobility in the narrative, configures itself until it becomes a character in a metonymic and metaphorical relation with those who move along or across its space. In addition, the street also becomes a stage and imparts the same configuration to the story; the novel becomes a stage for scenes and counter-scenes, a proscenium and backstage for a story not only of the Leonardos, but of the political and social life of that time and of Brazilian literature as well. Keywors: Brazilian literatury; Manuel Antônio de Almeida; Memórias de um sargento de Milícias. 1

Mestrando em Letras na área de Literaturas de Língua Portuguesa na PUC Minas cuja contribuição se dá principalmente no que se refere aos aspectos teatrais da narrativa. 2 Professora do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas, pesquisadora do CNPq.


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m prefácio à edição da Melhoramen tos do livro de Manuel Antônio de Almeida (s/d), Memórias de um sargento de Milícias, Jamil Almansur Haddad refere-se ao que chama uma dimensão rueira do livro. Assim se expressa o autor, discorrendo sobre o papel do curandeiro na narrativa: Este abandono da vestuta ciência de Hipócrates ou Galena pela ilusão (muitas vezes curativa) do curandeiro é de uma grande autenticidade num livro desta natureza. É um sintoma a mais da formação rueira, quase proletária do livro. (p.7)

É justamente o desdobramento do adjetivo “rueira” que queremos explorar na leitura que ora fazemos do livro, considerando que a rua aí se apresenta como cenário e/ou como protagonista da narrativa. Não por acaso a história começa com a referência a ruas e esquinas, o que se repete durante toda a narrativa. Veja-se a descrição do canto dos meirinhos: “uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente” (ALMEIDA, 2007, p.65)3, parte de uma equação cuja “quantidade constante” era o Leonardo Pataca (p.67). A rua, caracterizada em sua mobilidade, vai se configurando na narrativa de modo a se tornar ela própria personagem em uma relação metonímica e metafórica com aqueles que a percorrem ou a cruzam. O verbo cruzar não é fortuito já que as esquinas, os cruzamentos são marca forte dessa história de rituais coletivos, relatos miúdos, bisbilhotices e fofocas. Por 3

isso mesmo as portas, janelas e rótulas são outras imagens a pontuar a narrativa que se dá a espiar e a escutar como as fofocas que sugerem. Quer-se dizer com isso que a narrativa se constrói como as histórias que aí se inserem, de forma a envolver o leitor em uma rede de relatos, costurados pelos eventos da vida de Leonardo, em seu eterno escapulir para a rua, seja fugindo do pai, do padrinho ou do Vidigal. Desde a infância, o protagonista gostava de vadiar e isso se confirma na primeira parte da narrativa, no momento em que Leonardo, despistando-se do compadre, acompanha a Via Sacra: Vinha aproximando-se o acompanhamento, e o menino palpitava de prazer. Chegou mesmo defronte da porta; teve ele então um pensamento que o fez estremecer; tornou-se a lembrar das palavras do padrinho: “farte-se de travessuras”; espiou para dentro da loja, viu-o entretido, deu um salto do lugar onde estava, misturou-se com a multidão, e lá foi correndo com suas gargalhadas e seus gritos para aumentar a vozeria. Era um prazer febril que ele sentia; esqueceu-se de tudo, pulou, saltou, gritou, rezou, cantou, e só não fez daquilo o que não estava em suas forças. (2007, p.85)

Há que se considerar nesse trecho dois elementos dignos da atenção do leitor. O primeiro refere-se ao jogo dentro/fora da loja. O espaço interior da barbearia estava marcado pelas decisões do padrinho, evidenciadas no título do capítulo: Despedida às travessuras. O segundo direciona o

Todas as citações seguidas de número de páginas se referem a esta edição.


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leitor para o lado de fora — a rua — que nesse excerto vai trazer a imagem da multidão na procissão. O coletivo em cena acolhe o garoto, sua voz e suas ações, propiciando-lhe prazer. A sequência de verbos: “pulou, saltou, gritou, rezou, cantou” indicia continuidade e reiteração da ação. Em função desse tipo de movimento, Antonio Candido, em crítica sobre o romance, usou a expressão “romance em moto contínuo” ( 2007). A narrativa se desdobra por meio das ações de Leonardo, ao mesmo tempo em que espelha condutas sociais do tempo. Por isso mesmo, é composta de rituais coletivos como a Via Sacra, a Procissão dos Ourives, a Festa do Divino, e os Fogos no Campo de Santana. Tanto tais rituais como os atos das personagens inserem-se em um jogo de espelhamento, como já mostramos em trabalho anterior4: Leonardo Pataca e Leonardo Filho, as três comadres, Luizinha e Vidinha, Leonardo e José Manuel, Vidigal e o mestre-de-cerimônias, entre outras personagens refletem-se ou refratam-se umas nas outras. Em função desse espelhamento, dá-se um outro, que ora nos interessa: entre o privado e o público, o dentro e o fora, metaforizados no vestir e no despir que marca as figuras sociais e as instituições que representam: a família, a igreja, a polícia, o reinado. Nesse sentido, a rua faz-se palco conferindo à narrativa a mesma configuração; o romance é palco a exibir cenas e contracenas, a ribalta e os bastidores de uma história que não é apenas dos Leonardos, mas da vida político-social da época. Vários crí-

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ticos, como Jarouche (2007, p.54), apontam a composição do texto em quadros ou sketchs, No entanto, mais do que buscar elementos de ligações entre tais quadros, interessa-nos ressaltá-los como cenário, um forte indício do caráter teatralizado da narrativa, já também apontado por vários estudiosos, muitas vezes associado à tendência biográfica do autor. Da extensa lista de acepções da palavra cena, optamos por eleger aquela que a mostra como “cada uma das unidades de ação de uma peça, que se destacam como tal pela entrada e saída, no palco, dos intérpretes, alterando-se ou não os cenários” (Houaiss). A escolha dessa face da palavra legitima o aspecto teatral e possibilita ao leitor compreender melhor a organização dos capítulos bem como o movimento das personagens no livro. Senão vejamos: Toda esta cena que acabamos de descrever passou-se de manhã. À tardinha Leonardo entrou pela loja do compadre, aflito e triste. O pequeno estremeceu no banco em que se achava sentado, lembrando-se do passeio aéreo que o pontapé de seu pai lhe fizera dar de manhã. (p.18 — grifos crescentados).

Interessante perceber que uma cena contém outra com o mesmo teor de dramaticidade. Na linha do texto teatral, à medida que os atos vão sendo interpretados, isto é, o desenrolar da história, vão se desdobrando também as funções do narrador. É o que se verifica, por exem-

4 Cf. WALTY, Ivete. Implicações sociais do elemento picaresco nas Memórias de um sargento de milícias, dissertação de mestrado defendida na FALE/UFMG em 1980.


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plo, no episódio em que o narrador relata as aventuras de Leonardo Pataca em sua conquista da cigana. Mostrando o desvalimento do meirinho em busca de “fortuna”, o narrador tece comentários sobre o figurino ridículo da personagem, “em hábitos de Adão no paraíso”, coberto “com um manto imundo” (p.89). A cena da entrada na casa do “caboclo velho” é assim descrita: A sala estava com um aparato ridiculamente sinistro, que não nos cansaremos em descrever; entre outras coisas, cuja significação só conheciam os iniciados nos mistérios do caboclo, havia no meio uma pequena fogueira. (p.89)

A descrição da cena que se segue reforça a sensação de ridículo que acompanha os atos da personagem em torno da fogueira, sobretudo quando reduplicados forçadamente com a chegada do Vidigal. Tal ridículo se reforça na ida de Leonardo Pataca para a “casa da guarda”, onde ficaria “exposto à vistoria dos curiosos” (p.92). Esse tipo de descrição, marcada por termos do campo semântico do olhar, como o verbo expor e o substantivo vistoria, reforça o aspecto de cenário atribuído à narrativa, um discurso digno do diretor de teatro armado diante de olhos diversos. A reiteração de tais situações, como no caso da revelação pública dos amores da cigana pelo Mestre de Cerimônias ou naquele em que Leonardo busca reconquistar a cigana, imprimem no texto a natureza de algo a ser visto, ou mais do que isso, um aspecto interativo de que participam não só os personagens, mas também o leitor/ espectador

Todas estas cenas, desempenhadas por aquela figura do Leonardo, alto, corpulento, avermelhado, vestido de casaca, calção e chapéu armado, eram tão cômicas, que toda a vizinhança se divertiu com elas por alguns dias. Alguns imprudentes começaram, conversando das janelas, a atirar indiretas à cigana; esta picou-se com isso, e foi essa a fortuna do Leonardo. (p.160 — grifos acrescentados)

Ao se apropriar desse discurso, seja no emprego da rubrica, seja na direção do texto, o narrador exibe os bastidores da criação. E a plateia é, então, a vizinhança e o leitor. O espetáculo está montado: o diálogo entre as personagens, a rua e a narrativa como palco se exibem ao público leitor. Curioso, pois, observar que o relato sobre as mímicas do Teotônio faz-se metonímia do jogo narrativo. Assim como este “sabia com rara perfeição fazer uma variedade infinita de caretas que ninguém era capaz de imitar” (p.211), o narrador, ocupando o mesmo lugar, imita os agentes da história que conta. O autor, por sua vez, montou o texto como o palco onde um mímico caricaturiza tipos sociais diversos em suas relações com as instituições que representam. Lembrando o conceito de cena enunciativa, a partir de Benveniste (1986) e Bakhtin (1981), podemos justamente perceber o texto literário em uma de suas características mais significativas: a exibição do aspecto de encenação da linguagem (Cf. Paulino e Walty, 2005). Dessa forma, a questão aponta para o que é narrado e para o modo de narrar, dado que a


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relação do narrador com o diretor resulta num caráter metalingüístico; não somente as personagens estão em cena, mas também a linguagem literária. Veja-se o exemplo da comadre no quiprocó em que envolveu José Manuel: “A comadre, vendo estas boas disposições, aproveitava-se delas para fazer melhor o seu papel (...) (p.214 — grifos acrescentados). Interessante notar, pois, a multiplicidade de papéis desempenhados por essa personagem, ora como madrinha e enredeira de histórias, ora como parteira, sempre tendo ressaltado seu caráter de persona, em um processo de mise-enabyme entre o enunciado e a enunciação, entre o roteiro e sua representação. Não é sem razão que o capítulo dedicado à Comadre começa ressaltando seu caráter de personagem: Cumpre-nos agora dizer alguma coisa a respeito de uma personagem que representará no correr desta história um importante papel, e que o leitor apenas conhece, porque nela tocamos de passagem no primeiro capítulo: é a comadre, a parteira que, como dissemos, servira de madrinha ao nosso memorando. (p.104-grifos acrescentados)

A designação de Leonardo como “nosso memorando” faz-se dado expressivo da condição de escrita que o acompanha: memorando é o que deve ser lembrado; se de um lado é algo memorável, de outro é anotação e até pequeno caderno de notas. Daí a relação cena, representação, papel. Depois do relato do parto da filha de Chiquinha e Leonardo Pataca, por exem-

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plo, assim se expressa o narrador: Como esta cena que acabamos de pintar, tinha a comadre muitas outras todos os dias, porque era uma das parteiras mais procuradas da cidade; gozava grande reputação de muito entendida, e ainda nos casos mais graves era sempre a escolhida com seus milagrosos bentinhos, a palma benta, a medida de Nossa Senhora, a garrafa soprada, e com a invocação de todas as legiões de santos, de serafins e de anjos livrava-se ela dos maiores apertos. (p.207 — grifos acrescentados)

Ao evidenciar o processo de escrita, ressalta-se a consciência narrativa, se assim podemos dizer, fazendo fundir a figura do narrador à do autor, o que se torna mais evidente em partes específicas do texto, como na referência irônica aos ultraromânticos no caso da história de amor de Leonardo com Vidinha ou Luisinha: Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve (...) ela era uma formidável namoradeira, como hoje se diz, para não dizer lambeta, como se dizia naquele tempo. Portanto não foram de modo algum mal recebidas as primeiras finezas de Leonardo, que desta vez se tornou mais desembaraçado, quer porque já o negócio com Luisinha o tivesse desasnado, quer porque agora fosse a paixão mais forte, embora esta última hipótese vá de encontro à opinião dos ultra-românticos, que põem todos os bofes pela boca, pelo tal — primeiro amor: no exemplo que nos dá Leonardo aprendam o que ele tem


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de duradouro. (p.258)

A história sai dos trilhos para atingir outro público e ironicamente inclui no alvo de suas críticas os autores de romances açucarados da época do próprio escritor. O uso da forma verbal no subjuntivo “aprendam” cutuca os colegas romancistas, deflagrando uma possível discussão entre pares. Outro aspecto pode ratificar essa percepção. A narrativa, povoada de fofocas, disse-que-disse, constrói-se ela própria como uma fofoca, um contar entre rótulas e mantilhas, cooptando o leitor para conhecer os malfeitos de cada um e de todos. Vejamos como isso se dá. Já na primeira parte do livro, ao se referir à traição dos pais do protagonista, o narrador descreve com detalhes a cena e comenta as atitudes das personagens envolvidas: Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônia, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado.” (p.72).

Nesse desencontro do casal, o narrador toma o partido de Leonardo Pataca como se vê na expressão “e tinha razão”, deixando-se revelar como fofoqueiro, ao contar para o público leitor a traição da saloia, mãe de Leonardo e as conseqüentes reações de seu pai. Havia alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olha-

res curiosos através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade. (...) Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu. (p.72).

Tem-se a impressão de que, como Leonardo espia a mulher, o narrador está ali acompanhando, através das rótulas, a vida de cada personagem, não deixando escapar os detalhes. É como se fizesse um aceno ao leitor para que esse também pudesse espiar pela greta da porta essas imagens. A rótula está tão perto da pessoa observada, que a fala da personagem se mistura ao discurso do narrador, como quando se antecipa, já na Despida às travessuras, a parte “O — Arranjei-me — do compadre”, para agarrar a atenção dos leitores. Conclui-se, pois, que, em seus diversos movimentos no enredo, o narrador, dentro ou fora das casas, vai trazer “novidades” aos seguidores da narrativa. O espaço da barbearia configura-se como um núcleo de fofocas, “todo barbeiro é tagarela, e principalmente quando tem pouco o que fazer” (p.115). A loja do compadre é um importante observatório que nos ajuda a entender melhor as cenas que vão se desenrolando no cenário da rua. Assim como Leonardo olhava, ora para o interior da loja, ora para a rua, também o padrinho acompanhava o cotidiano a partir desse espaço. Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das


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casas, era naquele tempo coisa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje, depois de passados tantos anos, restam grandes vestígios desse belo hábito. Sentado pois no fundo da loja, afiando por disfarce os instrumentos do ofício, o Compadre presenciara os passeios do sargento por perto da rótula de Leonardo, as visitas extemporâneas do colega deste, e finalmente os intentos do capitão do navio. Por isso contava ele mais dia menos dia com o que acabava de suceder. (p.75 — grifos acrescentados)

O leitor vai se deparar em vários momentos com outros personagens, que assim como o compadre, bisbilhotavam a vida de outrem: Tudo daí em diante foi burburinho, que depressa passou à gritaria, e ainda mais depressa à algazarra, e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando viam-se passar através das rótulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam que o Vidigal andava perto. (p.14)

O emprego da palavra rótula é, pois, recorrente nesse exercício. Da greta, do canto da porta, observa-se tudo. Como mecanismo de leitura, diríamos que funciona quase como uma câmera oculta. No espaço da igreja, ao descrever as vestimentas femininas, o narrador desloca o recurso de bisbilhotice: “Mas a mantilha era o traje mais conveniente aos costumes da época, sendo as ações dos outros o principal cuidado de quase todos, era necessário ver sem ser visto” (p.105). Usadas pelas mulheres nas cerimônias re-

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ligiosas ou em situações diversas eram, pois, uma extensão das rótulas das janelas e das portas, “eram o observatório da vida alheia” (p.105). A rótula e a mantilha são, então, mecanismos que confirmam a construção de uma narrativa de espiadelas e burburinhos: “(...) a igreja se enchia daqueles vultos negros, que se uniam uns aos outros, que se inclinavam cochichando a cada momento” (p.105). Ainda nesse universo feminino, vale mencionar a figura da vizinha “dos familiares do protagonista”, que xeretava todos os passos do garoto e, de mantilha, será flagrada pela madrinha fazendo fofocas sobre a vida íntima dos Pataca: — É o que lhe digo: a saloiazinha era da pele do tinhoso! — E parecia uma santinha... e o Leonardo o que lhe fez? — Ora, desancou-a de murros, e foi o que fez com que ela abalasse mais depressa com o capitão... pois olhe, não teve razão; o Leonardo é um rapagão; ganhava boas patacas, e tratava dela como de uma senhora!... — E o filho... que assim mesmo pequeno era um malcriadão... — O padrinho tomou conta dele; querlhe um bem extraordinário... está maluco o coitado do homem, diz que o menino há de por força ser padre... mas qual padre, se ele é um endiabrado!... (p.106)

Espiar, segundo o dicionário eletrônico Houaiss é “observar secretamente, com o intuito de obter informações; espionar; olhar às escondidas; esperar, aguardar (ocasião); espreitar; dar uma espiadela”. A esse respeito, vale recorrer ao artigo de


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Célia Pedrosa (2004) sobre Drummond quando acentua que espiar associa-se a espelhar, o que une duas pontas de nossa reflexão: “(...) a etimologia nos confirma que, desde sua origem indo-europeia, espiar remete tanto a especular quanto a examinar, tanto a pensar quanto a ver, portanto, e ao mesmo tempo de perto e de longe. Espiar e especular, enquanto modos de ver e pensar, são simultaneamente experiência do dentro e do fora, em que o homem se constitui como objeto, porque vê, porque se vê vendo, porque sua visão do outro é também sua visibilidade a outrem. Espiar e especular são assim, e semelhantemente, modos de reflexão — de refletir, ver, ver-se — e dividem não por acaso a mesma origem com specullum/espelho, lugar por excelência da imagem enquanto apreensão simultânea da semelhança e da diversidade, do dentro e do fora, em que todos os seres tem identificada sua forma/espécies e junto com ela seus espectros (Pedrosa, 2004, p. 57)4.

Não é sem razão que Manuel Antônio de Almeida constrói um narrador fofoqueiro, que espia e faz espiar, trocando o seu papel, ao mesmo tempo, com as personagens e com o leitor. Várias são as cenas em que o tom confidencial do narrador, sempre em cumplicidade com o leitor, confirma tal hipótese: “Agora que o nosso Leonardo está instalado em quartel seguro, vamos ocupar-nos de alguma coi-

sa de importante que havíamos deixado suspensa.” (p.160). Mais de uma vez, párase a história para ser depois retomá-la: “Agora informemos ao leitor que tudo que se acabava de passar tinha sido com efeito obra do mestre de reza.” (p.165). Levando o leitor pela mão, o narrador o faz ver e ouvir o que se passa nos espaço privados: “Deixemos o Leonardo seguindo seu destino acompanhado do Major Vidigal, e vamos ver o que se passou na ucharia depois de sua prisão.” (p.299) No mesmo jogo de quem conta um segredo, dizendo não querer partilhá-lo, o narrador, ora nega seu próprio poder, reservando-se o direito de ficar calado, ora é capaz de penetrar nos pensamento das personagens. Confiram-se as duas situações que se seguem: O que eles de diziam não posso dizêlo ao leitor, porque o não sei; sem dúvida a rapariga consolava o rapaz da perda que acabava de sofrer na pessoa do seu amado padrinho.” (p.228) Lendo na intimidade do pensamento da velha, com a nossa liberdade de contador de histórias, diremos ao leitor, que o não tiver adivinhado, que aquele — ela — referia-se à moça do caldo. (p.296)

Assim, em um momento percebe-se o pacto romanesco em que se conta para obtenção do efeito de real (Cf. Barthes, 1988), em outro desvenda-se a cena enunciativa como construída, montada como no teatro. Daí a referência ao pró-

4 A respeito das etimologias e significados associados ao olhar na cultura ocidental, a teórica menciona o livro “Janela da alma, espelho do mundo”, de Marilena Chauí.


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prio jogo de cena, de encenação, evidenciado “em alguns capítulos desta história” (p.129). Corrobora essa leitura, a conclusão do romance quando de sua publicação no jornal Correio Mercantil, em forma de folhetim, depois retirada para publicação em livro, como mostra Jarouche: O autor não tem gênio para tratar dessas coisas (tristes), e, por isso dá fim pedindo aos leitores que esqueçam seu trabalho, não lhe façam carga de seus defeitos, porque foi apenas um ensaio. Se alguém disser que é mau costume querer o barbeiro novo aprender na barba do freguês tolo, ele observará que os leitores e só eles se hão de aproveitar de algum fruto bom que porventura este ensaio possa dar, e que portanto tenham paciência com quem principia/FIM. (2007, p. 46, grifos acrescentados)

Aqui o autor destitui o narrador e assume o exercício da escrita, mais uma vez dialogando com seus pares. A comparação do escritor com o barbeiro não é, pois, fortuita já que reforça o espelhamento entre o narrador, as personagens e o escritor. Cumpre-nos mostrar mais detidamente como tais aspectos se evidenciam na construção do gênero: romance folhetim. Para isso recorremos, mais uma vez a Jarouche (2006) quando, mostrando como se inseriam os capítulos na seção “Pacotilha”, do Jornal Correio Mercantil, evidencia sua homologia com o “Escritório da Pacotilha”, subseção em que se publicavam críticas diretas a comportamentos: Ali, o gerente, ‘Carijó’, recebia queixas

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(‘remessas’), por escrito ou pessoalmente, sobre assuntos como vadiagem, agressões a escravos, maus-tratos a brasileiros por parte dos patrões portugueses, adultérios, recrutamentos injustos, funcionários públicos relapsos, padres festeiros e imorais, violência e incapacidade policial etc. etc. (Jarouche, 2006, p.20).

Ora, tal homologia acentua o caráter misto do texto de Manuel Antônio de Almeida, tão bem definido por ele como ensaio, não só no sentido de exercício, de experimentação, mas também, de forma relativa, no sentido de escrita em processo (cf. Adorno, 2003). Sabemos dos riscos de relacionar um texto ficcional do século XIX àquilo que Adorno chamou ensaio, tratando de teorias e conceitos. Ressaltamos, no entanto, o aspecto da recusa ao dogmático e da valorização da experiência presentes no texto de Almeida. Além disso, o fato de o texto evidenciar seu caráter de linguagem sem deixar de apontar para a ordem social nos parece uma outra característica do seu aspecto ensaístico. Diz Adorno: O ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada; ele encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas; e não ao aplainar a realidade fraturada. (...) a descontinuidade é essencial ao ensaio; seu assunto é sempre um conflito suspenso.” (p.35)

Assim, o gênero folhetim, no caso, tem os dois sentidos a ele em geral conferidos, o de texto ficcional publicado em capítulos em jornais, ou o de crônica, tratando


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de assuntos do cotidiano (cf. Jarouche, 2006, p.28). É bom lembrar, com Cecília de Lara (1978), que o próprio texto do romance se confundia com os demais textos de seção em que circulava, já que não se assinalava fortemente limites gráficos. Não é por acaso que a narrativa acolhe discursos diversos — histórico, o jornalístico, o folclórico, o musical — e dicções várias — a cômica, a caricatural, a satírica, a teatral, a metalinguística. Tudo isso em um texto móvel como suas personagens sempre em trânsito pelas ruas e praças da cidade. Móvel também é seu lugar na história da literatura brasileira, como se pode constatar na dificuldade dos críticos em enquadrá-lo em ou associá-lo a gêneros e estilos: romance de costumes (Veríssimo, 1978 e outros), novela picaresca (Montello, 1969; Andrade, 1978), romance realista e/ou naturalista (Veríssimo, idem), narrativa social urbana (Castello, 2004), romance malandro (Candido, 1978), entre outros. Assim, é curioso observar que Mario de Andrade já afirmava que “As memórias de um sargento de milícias são um desses livros que de vez em quando aparecem mesmo, por assim dizer, à margem das literaturas5 ” (1978, p.312-313). Ora, margem liga-se à mobilidade, marca maior da narrativa tanto em seu enredo como em sua constituição textual. Por isso mesmo, Mario de Andrade, ressaltando a “possibilidade de intercalar histórias independentes no entrecho”, usa as expressões ‘chicoteio’ e ‘arremedo’ “dos diversos aspectos da vida” (p.313). O mesmo crítico alude às veias pictural, teatral, musical do roman-

ce, e à formação rueira do autor além de sua vocação de puxar a língua de um sargento veterano que “contava ao Maneco Almeida casos do tempo do rei velho”. (p.306). Nesse sentido vale lembrar um conceito do próprio autor de Macunaíma, o de sabença, saber marcado pela mobilidade. Relacionando a narrativa com o contexto político da época da publicação do romance em folhetins, marcado pelas divergências entre conservadores e liberais, Jarouche afirma que “tudo o que se publicava na “Pacotilha” era visto como estratégia política — ou, como se dizia, ‘futrica pacotilheira’” (2007, p.33). A expressão futrica reforça nossa percepção de que a narrativa se constrói com fofocas e de fofocas, apresentando-se não apenas como romance de costumes, mas também como um relato a propagar o contar miúdo das esquinas. Cada capítulo se configura como uma dessas esquinas e seus freqüentadores ou os que simplesmente passavam por ali. No fim de cada segmento o narrador fofoqueiro vai brecar, em algumas situações, os boatos para manter o público preso à sua história: “Entretanto vamos satisfazer ao leitor, que há de talvez ter curiosidade de saber onde se meteu o pequeno”. (2008, p.34). As condições de produção do folhetim nesse caso funcionam como um espelho para o leitor ao acompanhar o movimento desse narrador pelas ruas do Rio de Janeiro daqueles tempos: o do tempo do narrador, “o tempo do rei”, e o do tempo do escritor e seu exercício de uma escrita atenta e crítica.

5 Antonio Candido, em seu primeiro ensaio sobre o livro, assinala como este está “meio em desacordo com os padrões e o tom do momento e o inclui no rol das obras de ficção “excêntricas” “em relação à corrente formadas pelas outras (do romantismo) (2007, p.531).


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Literários. Universidade Federal de Juiz de Fora v.8, n.1, jan/jun 2004 e n.2, jul/dez 2004. VERÍSSIMO, José. Memórias de um sargento de milícias e a crítica. In: ALMEIDA, Manuel Antônio. Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978 (Edição crítica de Cecília de Lara), p.292-302. WALTY, Ivete L. C. Implicações sociais do elemento picaresco nas Memórias de um Sargento de Milícias. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 1980 (Dissertação de Mestrado)


PÚBLICO E PRIVADO EM AS MENINAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES Rogério Silva PEREIRA1

RESUMO O romance “As Meninas” (1973), de Lygia Fagundes Telles, publicado no auge da repressão do regime militar, pode ser lido como configuração romanesca de um discurso amoroso (BARTHES) e, ao mesmo tempo, como estilização de gêneros privados e públicos (BAKHTIN) evidenciando a tensão entre luta política clandestina, vida privada e vida pública (ARENDT), no referido contexto político-histórico. Palavras-chave: discurso amoroso, gêneros, política, vida privada, vida publica ABSTRACT The novel “As Meninas” (1973) by Lygia Fagundes Telles, published in the peak of the repression of the military regime, can be read as a romanesque configuration of a loving speech (BARTHES) and, at the same time, as stylization of private and public genres (BAKHTIN) evidencing the tension among clandestine political fight, private life and public life (ARENDT),concerning political-historical context. Keywords: loving speeches, genres, politics, private life, public life

I. Quem é e o que pensa a jovem universitária, ali pelos idos do pós-68? A pergunta parece presidir a fatura de As Meninas de Lygia Fagundes Telles, romance publicado em 1973, que aborda três jovens estudantes, as meninas do título, na São Paulo do final dos anos 60 e começos 1

dos anos 70. Trata-se de romance publicado 19 anos depois daquilo que foi considerada a maturidade literária da autora (Cf. CANDIDO, 2000, p.206) — na verdade, seu primeiro romance que é Ciranda de Pedra, de 1954. Alfredo Bosi inscreve Telles na literatura contemporânea como sendo escritora de “invulgar penetração psicológica”

Graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996), Mestre em Literaturas de lingua portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1999) e Doutor em Literaturas de língua portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004). Professor da UFGD/Facale. Email: rogeriospereira@uol.com.br


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(BOSI, 1997, p. 437). Diz ainda que a autora é especialista em tratar “do clima saturado de certas famílias paulistas cujos descendentes já não têm norte” (BOSI, 1997, p. 474). Esses dois aspectos se cruzam de modo inventivo em AM. No romance, uma das protagonistas, Lorena, é a típica filha de família rica paulistana que parece perplexa diante da triste novidade da vida brasileira dos anos 60 e 70. Disso resulta aquilo que o próprio Bosi vai chamar de “romance de tensão interiorizada” (BOSI, 1997, p. 442). Nesse sentido, em AM, Lygia mantém seu estilo, aquilo que podemos ver em outros romances, como p.ex., o já citado Ciranda de pedra. De fato, no romance, diante das enormes dificuldades da nova vida brasileira dos anos 70 que se descortinam para essas meninas, o que se vê é a solução típica de alguns dos principais romances da autora. As heroínas não se dispõem “a enfrentar a antinomia eu/ mundo pela ação”. Elas, por assim dizer, evadem-se para dentro de si mesmas, subjetivando o conflito (BOSI, 1997, p. 442). O mundo interior dessas heroínas, seus pensamentos, memórias e desejos são objeto do romance. Assim, como já aludido, em As meninas, o leitor tem sob olhos a Lygia afeita a abordar as questões existenciais, psicológicas e afetivas, quase sempre enfocando mulheres, concernentes a certa classe média brasileira. Mas aqui há uma Lygia também preocupada, como os de sua geração, com os problemas da realidade político-social brasileira. O pano de fundo histórico de As Meninas é o regime militar brasileiro do AI-5: a guerrilha urbana, a repressão policial, as-

pectos da contracultura e da vida dos jovens, e as transformações sociais oriundas da modernização-americanização da sociedade brasileira sob o influxo do projeto de internacionalização do regime militar. O enfoque da vida dessas meninas é feito pelo fluxo de consciência. O romance expõe para o leitor as consciências das três jovens, fazendo-as figurar como narradoras que, contudo, não sabem que narram. O leitor abre o livro e já se depara com Lorena, estudante de Direito da USP, pensativa em seu quarto. As palavras que o leitor lê são a representação da consciência da personagem. Aos poucos vê as principais questões que a afligem naquele instante mesmo em que o romance as expõe. Ali estão seus problemas familiares e amorosos, sua relação com as duas amigas-colegas, com quem convive num pensionato, dentre outros. No mesmo capítulo, algumas páginas depois, o romance nos expõe a consciência de Lia, a segunda protagonista. Com questões semelhantes, Lia também está às voltas com problemas amorosos, que se deixam mesclar por questões políticas e sociais. Lia é estudante de sociologia. Também nos seus pensamentos, incidem suas preocupações com as amigas-colegas do pensionato. No capítulo seguinte, por fim, o romance nos apresenta a consciência de Ana Clara, uma estudante de psicologia. Tal consciência também é atravessada por questões amorosas e pela presença das outras duas amigas-colegas do pensionato. As três visões se completam na tentativa da estratégia romanesca de responder à pergunta que propusemos no início: como pensa a jovem universitária. O entrecho se passa em um período de exceção. A universidade onde estudam


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essas jovens está aparentemente em greve. No período em que transcorre essa greve, se desenrola a estória. Terminada a greve, o romance também cessa: algumas poucas semanas, em que não são explicitadas quaisquer coordenadas cronológicas. Não há datas que possam servir de referencia, mas há coordenadas históricas dispersas que acabam situando o leitor. Exemplo disso é a situação de Miguel, namorado de Lia, guerrilheiro, que é preso pela repressão e lá pelo meio do romance é solto. Sabemos que ele figura entre um grupo de presos políticos soltos sob exigência de guerrilheiros que haviam seqüestrado um embaixador (Cf. AM, p. 131 e p. 138)1 , e agora o trocam pelos guerrilheiros presos. O leitor se situa: o entrecho se passa nos anos 19691970, em que tais seqüestros foram promovidos no Brasil. Daí que podemos estender a noção de exceção para o conjunto do romance. O período histórico em que transcorre também é de exceção: o auge dos desdobramentos do AI-5: prisão, tortura, sumiço e morte dos adversários do regime militar. Período de exceção também quanto aos amores das protagonistas: duas delas vivem esse período longe de seus namorados-amantes. O romance transcorre no período em que o namorado de Lia, Miguel, está preso pelo regime militar. Solto Miguel, o romance também se encaminha para o fim. Se os tempos histórico e cronológico estão turvados, o espaço objetivo também o está. De fato, o romance situa seu entrecho na São Paulo desse período. Mas

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acaba dando poucas coordenadas espaciais ao leitor. Isso parece deliberado. O mundo externo objetivo pouco interessa ao romance que, praticamente, se passa dentro do quarto — ou de quartos. O principal desses quartos: o da protagonista Lorena, localizado num pensionato próximo a uma grande universidade paulistana, possivelmente a USP. Nesse quarto, deitada na cama, de pernas para o ar, Lorena pedala uma bicicleta imaginária — a pretexto de fazer exercícios físicos — sem sair do lugar. Nesse quarto, está bem aprovisionada: chá, whisky, biscoitos, sais de banhos, revistas, livros. Nele, recebe uma ínfima parcela do mundo que lhe diz respeito: as amigas-colegas do pensionato (Lia e Ana Clara), uma ou outra freira do pensionato, alguns amigos. Pouco saberá o leitor sobre a vida de Lorena fora desse quarto. Nos momentos em que está fora do quarto, pouco é abordada pelo romance. Não se pode falar desse quarto como parte da casa, ou do lar — que é o que a etimologia “quarto” da palavra evoca. Trata-se de um quarto intransitivo, sem complemento: quarto solto, quarto de solteiro. Um simples quarto de pensionato com pouca conjugação, suspenso sobre uma garagem, longe do prédio principal do pensionato. A esse quarto, as protagonistas comparecem para exibir ao leitor a intimidade de suas vidas que é dada, como dissemos, pela técnica romanesca do fluxo de consciência. Na verdade, não parece haver vida fora do âmbito do quarto. No romance há outros quartos: onde Ana Clara se encontra com o namorado Max, e onde se encon-

A referências ao romance serão feitas usando-se a sigla AM.


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trará com um amante furtivo; onde Lia e um “companheiro” se encontram, o “aparelho” da organização guerrilheira, improvisado em alcova de amantes; onde Lia conversa com “Mãezinha”, a mãe de Lorena, de quem ouve longa confissão. Todos esses quartos acabam sendo metáforas e desdobramento de uma concepção de mundo privado e interiorizado. Um tal mundo privado deixa claro o desinteresse do romance pelo mundo externo, pelo mundo dito objetivo e pelo mundo público. De fato, hierarquizando drasticamente a realidade, o romance diz ao leitor que o que importa é a vida privada e subjetiva. O mundo objetivo e público, ainda que exista, está vedado à pesquisa romanesca em As meninas. Renunciando a esse mundo como espaço de suas pesquisas, o romance prefere sondar a intimidade de suas protagonistas. Daí o quarto, e nele o divã. É na cama que a verdade parece se manifestar. É na horizontal, no repouso, e na sondagem de uma certa consciência que o mundo parece se tornar palpável. Lorena está sempre na cama, pensando. Lia, ouve “verdades” de Mãezinha enquanto esta está deitada, como se estivessem numa seção de psicanálise. Ana Clara, sempre drogada ou bêbada, também nos dá seus pensamentos quando a vemos, deitada, no quarto com o namorado, Max, com quem tem pouco a conversar (Este, também drogado ou bêbado, sempre está dormindo enquanto o romance nos apresenta, páginas e páginas, a consciência de Ana Clara). Assim, o romance parece dizer que a única realidade palpável é a que se descortina dessa situação: uma consciência privada, ou privatizada, que media o mundo para leitor. Respondendo à per-

gunta “como essas jovens vêem o mundo?”, o romance acaba por nos dar uma crítica dessa forma de ver o mundo, ao mesmo tempo em que nos dá uma visão possível, verossímil, desse mundo. Uma crítica: o romance deixa que o mundo que configura seja avaliado pelo leitor. Nesse sentido, dá pouca opinião sobre essa visão de mundo, limitando-se a expô-lo. Ainda assim, seu título dá pistas sobre a opinião de L. F. Telles, a essa altura com 50 anos, sobre as jovens de seu tempo: são “meninas”. As personagens, todas com idades próximas dos 20 anos, não são tratadas como jovens. São biologicamente e sexualmente mulheres; são universitárias, têm namorados, etc, mas são reputadas como “meninas” no título do romance. A crítica é velada: seus anseios e veleidades são tênues como os de crianças que não sabem o que querem. Exemplo disso é Lia que, envolvida nas questões sócio-políticas do seu cotidiano, se dispõe a fugir do Brasil em busca do seu namorado, Miguel, tão logo este seja libertado. Seu empenho político e social se mostra tênue tão logo a possibilidade de felicidade amorosa com o namorado lhe acena. Telles, nesse sentido, parece propor no título um modo de avaliar essas consciências: são consciências infantis, apesar de serem as consciências das jovens universitárias, portanto adultas, daquele período. Uma visão verossímil: Ali, pelos idos de 73, momento da publicação do romance, a privatização da vida brasileira aparece já clara para a consciência da romancista. O regime militar parece levar a vida nos anos 70 para níveis de privatização insuspeitados, sobretudo na luta política, que passa a ser travada de modo privado


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por grupos que pleiteiam a hegemonia, seja à esquerda seja à direita. É daí que surgem os grupo de luta política clandestina, como as organizações de esquerda (MR8, VRP, etc), ou os órgãos que praticam o seqüestro e a tortura nos porões do próprio regime — com ou sem a anuência deste. Tudo isso se dá pela limitação das formas de ação política imposta pelo regime via AI-5. Por outro lado, na vida econômica e social, o que se vê é a privatização da vida, conseqüência de sua americanização e do individualismo da sociedade de massas que começa a se consolidar exatamente naquele período. A vida configurada em As meninas afirma o romance como gênero da solidão (Cf. BENJAMIN, 1993). A vida familiar, comunitária e pública desaparece em As meninas. A solidão, o desencontro e privatização da vida são seu tema. Tudo isso corresponde à retração do espaço público e a essa crise da vida tradicional e comunitária imposta pela modernização a que o regime militar vinha levando a cabo. Ali se configura uma vida em que as relações interpessoais parecem ceder lugar ao isolamento de consciências que não interagem; em que, na ausência de vida pública, os indivíduos recorrem ao vasto coração, à vida subjetiva e à interioridade. O produto assim é uma verossímil representação da vida, interiorizada e privatizada, por assim dizer — não só das protagonistas, mas da própria vida brasileira de então. Exemplo dessa interiorização, de fuga para o mundo da intimidade, de desistência do mundo público, é a decisão da personagem Lia (dentre as três e de longe aquela com maior compreensão da importância da participação pública), de rasgar os manuscritos de um ro-

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mance que escrevia e passar a escrever um diário. Sinal ostensivo: troca um gênero público (o romance) por um gênero eminentemente íntimo (o diário). II. Essa configuração de mundo privado ganha reforço num ponto agudo. Tratase da presença recorrente do discurso amoroso (BARTHES, 1991) estruturando as consciências das narradoras. As três frequentemente encetam monólogos cujo interlocutor presumido é um amante. Lia conversa com um distante e detido Miguel; Lorena conversa com um ausente e M. N., de quem espera um telefonema; Ana Clara conversa com seu também “ausente” Max (como vimos, sempre bêbado, drogado ou adormecido — nesse sentido, próximo e distante ao mesmo tempo). O leitor se intromete nessa intimidade amorosa. Vê sucederem-se as tópicas desse discurso amoroso. Ali está o eu enamorado que conversa com um tu. Ali como sugerimos está o monólogo, a espera, a ausência, dentre outras figuras do discurso amoroso, como proposto por Barthes; ali está esse discurso todo ele relegado à intimidade e que, como diz Barthes, ninguém mais sustenta — um discurso que está fora do poder e de seus mecanismos (Cf. BARTHES, 1991). O discurso de Lorena é nesses termos o melhor exemplo. O leitor a vê ali devaneando, no seu quarto. Espera um telefonema de M. N., homem mais velho com quem iniciou um romance que não se consuma: ela, virgem, espera que ele (casado e com filhos) inicie-a no amor — mas a situação claudica. Vive esse amor como uma espécie de doença (BARTHES, 1991,


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p.4) da qual convalesce em retiro e solitária — daí talvez o quarto como lugar de convalescimento — compartilhando só com Lia seu padecimento. E espera: está ansiosa esperando um telefonema de M.N. que sinalizaria o recomeço do amor, que, no momento em que o romance transcorre, está interrompido. M. N. está ausente: leitor e narradora devem à ausência de M.N. o discurso sobre a sua ausência (BARTHES, 1991, p.27). Houve um tempo em que M.N. estava presente. O discurso amoroso é um preenchimento dessa ausência. Mas esse discurso amoroso ali configurado é pouco crítico de si. Como gênero público, As Meninas promove uma exteriorização, uma publicação, daquilo que é privado (Cf. BAKHTIN, 2002). Neste caso, a exteriorização das consciências das protagonistas. Como gênero dialógico (Cf. BAKHTIN, 2002), lida com os diversos discursos e vozes sociais que são retomadas e criticadas dentro do romance. Dito isso, entretanto, é preciso assinalar que as próprias vozes das consciências das protagonistas pouco se deixam criticar e examinar por si mesmas. As consciências representadas no romance não são críticas; pouco se pensam. Seu objeto é o mundo — e quase nunca elas próprias vistas como consciências, ou como discursos. De fato, o que é dado ao leitor ver é a superfície das sensações, a sucessão das imagens do presente ou da memória. A técnica é a do ato falho ou do chiste: certa palavra ou certa imagem evocam outras e, na sucessão, é dado curso à narrativa. Assim, por exemplo, o leitor vê Ana Clara se lembrando de um dentista por quem possivelmente foi molestada na infância.

Lembra-se do consultório. Em seguida se lembra da “ponte” (a prótese dentária) colocada para suprir a falta de um dente. A palavra “ponte”, da esfera da odontologia, faz a consciência de Ana Clara evocar um refrão infantil: “fui passando pela ponte a ponte estremeceu, água tem veneno maninha, quem bebeu morreu” (AM, p.35). De repente o significante ganha novo significado. A palavra “ponte” já não se refere mais a prótese dentária, e sim a seu significado mais comum: a construção que se estende sobre os rios. Nessa lógica produzem-se consciências que se mostram pouco reflexivas. São consciências poéticas, por assim dizer. Estão presas aos significantes (aos sons, às semelhanças das palavras, às imagens que elas evocam) que se mostram senhores dos movimentos dessas consciências. Nesse sentido, trata-se de consciências superficiais. O presente, o aqui-agora, as percepções, etc, acionam a memória involuntária das narradoras — e a mistura disso é apresentada ao leitor. O fluxo não se detém sobre esse ou aquele pensamento, segue na superfície sem se aprofundar, sem fazer prospecção. O leitor, este sim, se debruça sobre essas vidas que vivem no imediato. Vê o quanto essas meninas do romance “caminham ao sopro dos ventos”, sem lançar âncora, sem qualquer profundidade. Não que não haja profundidade em As meninas. O que não há é profundidade nessas consciências que esse romance examina. Mostrar a ausência de profundidade dessas consciências é, nesses termos, a tarefa do romance. Tudo isso leva a uma questão: quem estaria apto a ouvir as vozes dessa consciência? Quem é o leitor modelo desse romance? Difícil dizer. Mas é preciso arriscar


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um palpite: talvez seja um psicanalista, um ouvido treinado para ouvir chistes, associações de idéias e imagens; capaz de compreeder os fluxos oníricos do texto dados pela condensação e pelo deslocamento. Há um ouvido que obriga essas “meninas” a dizerem o que dizem. Como numa confissão (FOUCAULT, 1988), essas parecem dar ao leitor uma verdade que brota do interior — e tudo é dado a esse leitor por um método que parece figurar uma seção de análise. Já o dissemos: o quarto e o divã sinalizam esse tipo de interlocução: o paciente falando para um psicanalista. A psicanálise é onipresente no romance. Édipo reina. Exemplo ostensivo disso é Lorena que o evoca no recorrente “ai meu pai” (AM, p. 31; p.77), repetido compulsivamente no romance, como um refrão ambíguo, que pode ser um cacoete da pessoa religiosa que evoca Deus, mas que é, sobretudo, a marca da falta não só de seu pai, já morto, mas a falta de certa lei. De fato, são pais ou patriarcas os homens com quem as “meninas” se relacionam. Lorena e Ana Clara, com efeito, estão às voltas com homens mais velhos. Lorena ama M.N., homem grisalho, já casado e com filhos. Ana Clara, se relaciona com um homem a quem chama apenas de “Escamoso”, também mais velho, a quem não ama e a com quem vai se casar por interesse. Não se está longe de se pensar nesses homens, como sendo pais arquetípicos. E também a mãe de Lorena está às voltas com Édipo: namora um homem muito mais novo que ela, Mieux. Este, reputado por uma tia de Lorena como golpista, que se relaciona com a mãe intentando dar o “golpe do baú” (p. 70). A etimologia dos nomes dos amantes e namorados reforça essa hipótese de que

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os homens do romance são de algum modo variações da autoridade — ou da perda dela. “Miguel” (o guerrilheiro, namorado de Lia), é “o semelhante a Deus” — na origem hebraica da palavra; “Maximiliano” (o Max, namorado de Ana Clara) é “o rival superior” — na origem latina da palavra; M.N., Marcos Nemésios, (o quase amante de Lorena) tem nome do deus da cultura latina, Marte, deus da guerra, e da deusa grega que trás a justiça, Nêmesis; “Miex” (apelido francês do amante da mãe de Lorena) é o “melhor”. Todos estão no romance representando o desejo das protagonistas por homens superiores, altivos, guerreiros. Todos, contudo, são nomes irônicos. Nenhum desses homens correspondem à condição mítica que seu nome impõe. Mieux, por exemplo, é exatamente o contrário do que seu nome evoca: no romance ele é, como já ficou dito, um jovem arrivista, que se aproxima da mãe de Lorena por interesse. Essas meninas, assim, estão num ambiente em que a autoridade, representada pela figura masculina e paterna, está ausente ou é questionada. A morte do psicanalista da mãe de Lorena (AM, p. 218), fato aparentemente corriqueiro, é emblema disso. Ao mesmo tempo, há nessas meninas um anseio grande de reposição dessa autoridade. Não querem qualquer autoridade. Querem uma autoridade legítima — nesses termos o romance é um esforço consciente de configuração da estrutura política do tempo a que corresponde, tempo em que a autoridade e o poder do estado ditatorial estão sendo profundamente questionados. Isso se evidencia de modo definitivo no episódio da morte de Ana Clara por


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uma overdose de drogas (Cf. AM, p.262 e ss). Ana Clara morre no quarto de Lorena — e esta com Lia terão de se haver com o cadáver. A situação não é fácil: como explicar à polícia uma morte por overdose de drogas? Depois de medirem as conseqüências, as duas decidem não chamar a polícia. Optam por deixar o corpo numa praça, longe do pensionato. A solução se justifica. Não querem investigação: Lia, envolvida com uma organização clandestina, pronta para sair do país atrás de Miguel, o namorado, não quer se envolver com a polícia — o que a morte de Ana Clara acabaria por acarretar. O contexto assim é o da configuração de um mundo em que autoridade e poder estão em crise. As autoridades em geral (pais, polícia, etc) faltam onde deveriam estar presentes. Nesse quadro, o romance parece ser a resposta a uma questão mais complexa: o que pensam e fazem essas meninas, na ausência da autoridade do poder, do pai e da lei? Ou mais: como é a vida na ausência disso? III. É, como já vimos, uma vida com francos sinais de desagregação: solidão, privatização das relações, interioridade e intimismo radicais, dentre outros. A morte de Ana Clara, seu envolvimento com drogadas, etc, será sinal ostensivo do quanto esses fatores de desagregação aludidos acima não são positivos para essas meninas, e já alcançam o último refúgio de Lorena, que é seu quarto. Mais que a droga, a violência do regime militar é o sinal de desagregação da vida brasileira de então. Ela é o sinal da desintegração do poder e da autoridade.

Logo no início do Romance, a tortura do regime chega aos ouvidos de Lorena, mas já atingiu o namorado de Lia. Em fragmentos, essa violência vai penetrando a tessitura do romance. De repente, ela ultrapassa as barreiras da intimidade das personagens e se deixa entrever. No quarto, nas consciências intimistas, nos seus discursos amorosos, eis que os signos da violência surgem como o reprimido que retorna (Cf. AM, p. 17, p. 54), manchando a intimidade das meninas que se queria pura resguardada do mundo. Isso vai num crescendo, até que explode na descrição da tortura, no meio do romance. Trata-se da carta de um preso político relatando a sua tortura no “pau de arara” (Cf. AM, p. 146 e 147). Porém o modo mais exemplar de como a violência irrompe no discurso amoroso e intimista de As meninas está na imagem dos gêmeos irmãos de Lorena, Rômulo e Remo — nome também dos míticos fundadores de Roma. Vamos ao mito, que é esclarecedor. Ali, Rômulo mata Remo por este transgredir certa lei. Rômulo havia proposto uma linha, com força de lei, que simbolizaria um futuro muro a ser erguido, Remo transpõe essa linha desafiando Rômulo e sua lei. Por isso este o mata. Em As Meninas, o que se tem é o contrário: Remo mata Rômulo. E o faz num contexto diverso daquele proposto pelo mito: na infância brincando com uma arma que não sabia carregada, Remo atira no irmão. E morte em violência. Rômulo com o furo no peito borbulhando sangue, um furo tão pequeno que se mãezinha tapasse com um dedo, hein, mãezinha? Foi sem querer, como Remo podia adi-


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vinhar que o Diabo escondera a bala no cano da espingarda [...] não chora meu irmãozinho, ninguém é culpado, ninguém. Papai tirou as balas todas, não tirou? [...] Remo querido, passou tudo. Passou. Mas às vezes, está vendo?, preciso lembrar.” É uma tragédia familiar com grande alcance. A família de Lorena, rica e semi-aristocrática, convive do seu modo com as conseqüências dessa morte original — como trauma doloroso (AM, p.55).

Lorena revive-o. A cena infantil de morte do irmão retorna à consciência. A partir dessa lembrança, sobrevêm outras: aos poucos vemos a mãe com seu amante, a doença do pai, sua morte, dentre outros. A cena é desencadeada por elementos do presente de Lorena: as notícias de prisão e de tortura de amigos dela e de Lia. “Quer dizer que Miguel continua preso? E aquele japonês. E Gigi. E outros, estão caindo quase todos, que loucura” (AM, p. 17). Dessas notícias, por associação de idéias, a cena da morte do irmão irrompe fragmentada na memória, misturada ao presente. Trata-se do referencial de violência que Lorena pode ter. Isolada que está em seu quarto, em sua consciência, nos devaneios de amor e na espera pelo amante que nunca vem, ela recebe a notícia da prisão e morte dos amigos de Lia dali, ao invés de refletir sobre isso, põe-se a rever imagens do seu próprio passado familiar. Diante da denúncia de violência o que sobrevém é a imagem de uma cena familiar, trágica — é verdade — mas limitada. E daí, por sua vez, o drama familiar de Lorena se abre para o leitor, junto com seus devaneios amorosos. Mas isso é a

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regra. A violência não é discutida: ela aparece como coisa bruta dada em si, coisa que se constata e da qual se desvia mudando de assunto — é tema tabu. Ela penetra as consciências das narradoras como espécie de retorno do reprimido e que, aos poucos, dá lugar pela associação de idéias a outros temas. Impossível, nesse sentido, à forma do romance ir até os porões onde se tortura e se mata. Suas narradoras vivem longe daquele mundo de guerrilha e tortura. Vivem tudo à distância, como de resto a própria classe média que elas representam. Os jornais, tvs e rádios estão silenciosos sobre o tema da tortura; pouco dizem dos seqüestros, assaltos a banco, e demais ações da esquerda. A censura faz emudecer as fontes públicas de informação. A luta entre regime militar e esquerda é surda, subterrânea e clandestina. E a classe média sabe dela por fontes tortas, por ouvir dizer. Mesmo a violência de Estado feita pelos aparelhos de repressão e feita longe dos olhos do Estado, como o Congresso Nacional, e da sociedade civil (como partidos e sindicatos e associações). É um mundo subterrâneo, um mundo não público, e portanto um mundo autônomo, que está fora do controle dos poderes constituídos. Assim também no romance: a violência dos aparelhos de repressão é algo que se dá a ver só de relance, por esse ou outro membro da sociedade ou do Estado, como um inseto ou um animal subterrâneo que se deixa entrever na passagem de um vão a outro na sala de visitas. Pelas frestas do mundo limpo de classe média, se insinua a violência (nesses termos as imagens de insetos e ratos no capítulo “Dois” são muito significativas). Da mesma forma, pelas frestas da consciên-


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cia de Lorena, advém de relance uma analogia com a violência do regime: irmão mata irmão, Remo Mata Rômulo. Espécie de guerra civil instalada no Brasil pós-68 — eis a metáfora possível para inserção do mito da fundação de Roma em As meninas. Porém, há uma outra leitura para esse mito inserido assim, de modo invertido. Sabemos que Remo, transgressor da lei é, por isso, morto por Rômulo — este último figura no mito mais que um fratricida, mais que um assassino. Sua condição é a de defensor da lei. Ele é o fundador da Cidade, aquele que acha a lei mais importante do que os vínculos familiares. Se em As meninas, Rômulo, o defensor da lei está morto, é o caso de se perguntar: a lei aí não está desprotegida — no limite, não está ausente? Aqui atingimos um dos pontos centrais do romance. A se pensar no conceito de violência de Hannah Arendt, o que temos no romance é a descrição de um mundo sem lei, sem poder e sem autoridade — propício à irrupção da violência. Com efeito, sua teoria estabelece uma renovação na conceituação da violência. Para Arendt a violência foi “glorificada”, a partir do pensamento marxista, como sendo a principal base da mudança histórica (Cf. ARENDT, 1997, p. 49 e ss). Arendt critica isso: a violência não gera nada além de mais violência. Diz, além disso, que a violência foi erroneamente confundida com o vigor biológico. Para ela a violência tanto quanto o poder não são fenômenos naturais ou biológicos. Pensada assim, a violência seria uma forma natural de expandir o vigor, a força animal, que compõe a vida biológica humana. Para ela isso é perigoso. A violência pertence, isso sim,

ao âmbito político dos negócios humanos (Cf. ARENDT, 1994, p. 60). Diz ela: “Penso ser um triste reflexo do atual estado da ciência política que nossa terminologia sobre violência não distinga entre palavras-chave tais como poder [...] autoridade e violência — as quais se referem a fenômenos distintos e diferentes” (ARENDT, 1994, p. 36). Poder “corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto” (ARENDT, 1994, p. 36). Diz respeito a um grupo que em consenso decide dar poder a um governante ou um líder que age em consonância com esse grupo. Esse líder recebe o poder desse grupo e, a partir daí, se reveste de autoridade. Para Arendt, a essência da autoridade é o seu reconhecimento inquestionável pelo grupo. Desprezar uma instancia de autoridade é sinal de que o poder investido nela se perdeu. É o riso um dos meios eficazes para se questionar a autoridade (ARENDT, 1994, p. 37). É aí que freqüentemente entra a violência. Desaparecido o poder do grupo, descaracterizada a autoridade do líder ou do governante este acaba por usar a força e os meios de violência para se impor — nesse momento, como se sugere, o poder desapareceu. A violência aparece assim como o conjunto dos meios para que um ou poucos se imponham no mando de um grupo (ARENDT, 1994, p. 37). A violência é uma forma de expandir a vontade do indivíduo para submeter um determinado conjunto de pessoas. A vida configurada em As meninas é decorrência dessa violência, fruto, por sua vez, da deslegitimação do poder e da autoridade vigentes. O regime militar, na esteira do golpe e do AI-5, tenta se impor por ela ao conjunto da sociedade brasilei-


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ra nesse momento. A ausência de figuras de autoridade em As meninas é sintoma disso. No mundo do romance, como vimos, autoridade e poder estão em crise. É o mundo onde o quarto e a interioridade são os últimos refúgios. Daí a solução privada que as amigas dão para a morte de Ana Clara — não se reconhece a polícia como instrumento do poder de Estado; no romance, ela é ilegítima. Pais, mães, polícia, psicanalista, etc, todos estão ausentes porque se vive um momento de crise de autoridade na vida brasileira (Note-se de passagem que mesmo a diretora do pensionato, madre Alix, parece fraca em sua existência como diretora, madre e autoridade). Nesse mundo infantil e feminino, de filhas sem pais; onde a busca por um homem, sempre ausente, é metáfora de busca frustrada por uma segurança perdida; nesse mundo privado e privatizado, Rômulo o mítico defensor da lei está morto. IV. As meninas tenta responder, como vimos, a uma questão. Quem é a jovem universitária, na virada dos anos 60 para os 70 no Brasil? Para isso aborda três personagens, três jovens de classe média, dando ao leitor aspectos de suas consciências e de suas vidas amorosas. Configura as consciências dessas jovens a partir do olhar que elas lançam sobre si mesmas e sobre o mundo. O foco é comprometido e a realidade que resulta daí é parcial. De fato, o mundo aí configurado é, à luz do romance moderno (Cf. BENJAMIN, 1993), o mundo da solidão, burguês, privado e privatizado. As meninas leva isso às últimas conseqüências: boa parte

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do livro se passa dentro de quartos e todo o romance é configurado a partir da exposição das consciências e da intimidade dessas meninas. Tal escolha não é acidental, como vimos, ela faz homologia com uma sociedade que está em processo de privatização — que é a sociedade brasileira dos anos 70. Um discurso amoroso se desenha a partir das vozes dessas jovens que são também as narradoras do livro. Seu discurso é um monólogo de espera. Há homens ausentes, presumivelmente a origem de suas ansiedades. Um discurso pouco crítico também se desenha: ele mostra a face infantil dessas jovens. Face que é criticada pelo título do livro, “As meninas”, que tem o objetivo de situar a posição da autora: essas jovens são meninas, isto é, são infantis; estão à procura da felicidade amorosa; estão momentaneamente livres da coerção dos pais, mas carentes de autoridade; estão preocupadas mais com o vasto coração do que com a vasta realidade brasileira de seu tempo — ainda que aqui e ali, uma ou outra, entreveja os problemas dessa realidade. Nesse discurso que reputamos como superficial, há pouco auto-exame, como vimos. O discurso é romanesco no sentido que Bakhtin (2002) o postula: debruça-se sobre as várias vozes dos demais personagens, sobre outros discursos sociais, sobre o mundo como referencial — mas pouco se debruça sobre si mesmo enquanto discurso. De resto, é um discurso poético, no sentido de que importa nele mais o significante do que os conteúdos do discurso em si. Nesse mundo amoroso, intimista, infantil e privatizado, sobrevém a violência. Suas causas não são evidentes, mas é possível pensar na violência ali como mais um


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fenômeno da desintegração do poder e da autoridade a que o regime militar submete a sociedade brasileira de então. A configuração romanesca é feliz ao mostrar a vida intimista e privada das protagonistas sendo invadida pela violência. Lia trás a má notícia para o mundo do quarto de Lorena: os amigos estão sendo presos e torturados. O sinal vermelho se acende para Lorena: a imagem do irmão Rômulo morto é recorrente, conota que uma guerra fratricida está a caminho. Conota que a violência não é a doença no organismo são da sociedade: ela está nos subterrâneos da sociedade, pronta para emergir. A se pensar na psicanálise, a violência é o retorno do reprimido e está na origem mesma da vida social. A se pensar com H. Arendt, ela é o fenômeno pré-político que retorna tão logo a polis, a comunidade política, se desordena (Cf. ARENDT, 1994, p. 36 e ss). Mas ela é mais que isso: é indício de que algo está em crise. A lei está sob suspeição, pois Rômulo, o defensor da lei está morto. Reforço disso é a escolha de Lorena e Lia de não chamarem a polícia. Esta se encontra descaracterizada como instrumento de poder é mero instrumento de uma autoridade em crise, a qual as duas protagonistas não podem ou não querem reconhecer. De resto, a atitude delas em renegar a autoridade é coerente com o todo do romance que faz um trabalho meticuloso em mostrar a sociedade em que vivem essas meninas com o centro de autoridade em crise. * * * As meninas é romance coerente com a obra de Lygia Fagundes Telles. Ainda que aborde esse ou outro aspecto da vida so-

cial como em contos como “Pomba enamorada ou uma história de amor” (Cf. TELLES, 1984), ainda que proponha alegorias do regime militar como o conto “A convenção dos ratos” (Cf. TELLES, 1984), a autora segue, por regra, outra linha. Sua abordagem ficcional é existencial e psicológica quase sempre, dando ênfase à psicologia dos personagens e a seus dramas existenciais — como no romance Ciranda de Pedra (Cf. TELLES, 1984). As meninas é romance produzido a partir dessa poética que visa o psicológico e o existencial. Nesses termos, como explicar a preocupação com a “realidade brasileira” daquele período tão presente no romance? Parte disso deve ser creditada às demandas do tempo. As exigências estético-políticas das patrulhas ideológicas parecem, ao menos em parte, guiar a mão da autora. Ali pelos idos dos anos 60 e 70 os intelectuais e escritores são convidados, por vezes constrangidos, a falar dessa “realidade” — tortura, arbítrio, guerrilha, violência urbana, são temas recorrentes a partir de então. L. F. Telles “toca” nesses assuntos em As Meninas. Daí a coerência desse romance: trata-se de um romance que, falando das difíceis questões da tortura e do arbítrio, detém-se, sobretudo, nas questões da interioridade e na psicologia de mulheres de classe média e na vida dessa classe social, como ficou consagrado no estilo da autora desde sua estréia. Suas jovens universitárias são meninas verossímeis. Eis um mapa a ser considerado quando o caso é se perguntar o que é que pensa a geração que foi contemporânea dos primórdios da sociedade de consumo no Brasil, da contracultura e da repressão dos anos 60-70. A autora parece acertadamente identificar ali o surgimento do mundo


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da superficialidade contemporânea no Brasil. O romance, nesse sentido, equilibra com cuidado os dois lados da balança: o exame do mundo da classe média, com seus problemas afetivo-psicológico-existenciais, de um lado, e a crítica político-

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social, de outro. Parece ser a solução encontrada pela autora para, mantendo-se no seu estilo, ceder às exigências políticoestéticas de seu tempo a que Clarice Lispector acaba cedendo também com o seu A Hora da Estrela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1994. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. R. Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universidade, 1997. BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Trad. de Aurora Fornoni Bernardini (et. alii). São Paulo: Hucitec/editora da Unesp, 2002. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortênsia dos Santos São Paulo: Francisco Alves, 2003. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e Técnica, Arte e Política, ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras escolhidas v.1) CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000. FOUCAULT, Michel. Scientia sexualis. In: História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Builhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. p.51-71. TELLES, Lygia Fagundes. As Meninas, Rio de Janeiro: Rocco, 1998. TELLES, Lygia Fagundes. Ciranda de Pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. TELLES, Lygia Fagundes. Seminário dos ratos. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.


A HISTORIOGRAFIA E O ENSINO DE HISTÓRIA Sidiclei Roque DEPARIS1

RESUMO O presente trabalho visa discutir questões pertinentes ao ensino de história, nas escolas de formação básica. Entre outras questões, pretendemos discutir, dois grandes problemas educacionais do momento, que refletem acima de tudo no ensino de história: a deficiência de referencias teóricas, apresentada pelos educadores e os reflexos destas deficiências no trabalho educacional frente às transformações sociais produzidas pela pós-modernidade. Abordaremos também a importância da afinidade do professor com um método teórico para tornar mais eficiente o processo de ensino, acima de tudo para construirmos uma história crítica que atenda as exigências educacionais do mundo atual. Palavras-Chave: educação, historiografia, história crítica. RESUMEN Este trabajo pretende discutir cuestiones relevantes para la enseñanza de la historia, en las escuelas de formación básica. Entre otras cuestiones, estamos discutiendo, dos grandes problemas educativos del momento, que reflejan sobre todo en la enseñanza de la historia: la deficiencia de referencias teóricas, presentado por los educadores y el impacto de estos puntos débiles en la labor educativa frente social cambios producidos por post-modernidad. También la importancia de afinidad del profesor con un método teórica para hacer más eficiente proceso de educación, sobre todo para construir una historia crítica que cumple con los requisitos del mundo de hoy educativo. Palabras-Clave: la educación, la historiografía, la historia crítica.

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ensino aprendizado é um instru mento indispensável nas relações sociais, especialmente no processo da formação humana. Cada sociedade a seu

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modo transmite as gerações posteriores os hábitos, valores, conceitos, enfim, aquilo que a geração atual gostaria de deixar como herança a seus sucessores. Porém

Professor da Rede Estadual- MS, Mestre em História Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).


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os meios utilizados para que este processo aconteça, são os mais variados, e os rumos que são tomados para repassar os conhecimentos existentes, são importantes para a eficácia deste processo. Quanto mais eficientes forem os mecanismos utilizados, maior será o retorno que se produzirá posteriormente. Os meios que utilizamos são fundamentais, pois eles contribuem, para que o educando desenvolva capacidades de leitura crítica dos acontecimentos, de forma a compreender o que realmente se passa no cotidiano. Neste processo o papel a ser desempenhado pelos educadores, torna-se imprescindível, especialmente porque cabe a estes a função de encaminhar o aprendizando apontando os rumos que deverão ser seguidos posteriormente. O aluno por sua vez necessita dentro deste contexto ser instigado a construir uma gama de conceitos e leituras do mundo, capazes de oferecer perspectivas e possibilidades que o façam agente de suas escolhas, possibilitando assim diferenciar realidade e ilusão, pois isso se torna fundamental para que ele se sinta parte integrante da construção histórica social. Numa sociedade extremamente conturbada e complexa, onde diariamente se oferecem um expressivo número de informações, torna-se fundamental que as pessoas sejam capazes de distinguir situações que realmente são concretas e contribuam para sua formação; porém muito mais importante é ter a percepção de como agem os mecanismos ideológicos, que manipulam e encobrem a realidade dos fatos. Neste contexto, ao educador é delegado um papel estratégico: Dar ao aprendizando condições e motivações

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para que ele se insira num processo construtivo, elabore seus conceitos fundamentais e faça uma leitura dos acontecimentos de forma crítica, porém sem se sentir alheio aos acontecimentos. No entanto, o grande desafio se faz, principalmente na medida em que parte dos educadores enfrenta enormes dificuldades dadas às condições que lhe são postas. O problema estrutural das instituições de ensino agrava-se ainda mais, quando percebemos que o professor, em muitos casos, também se encontra muito aquém da exigência da sociedade contemporânea. O discurso do ensino crítico que normalmente se prega nas escolas produz na realidade efeitos muito abaixo do esperado, pois quase sempre é algo fragmentado e sem o embasamento teórico necessário, conhecimento este que dispõe de produção científica capaz de contribuir de maneira significativa para um melhor aprofundamento e eficácia do ensino. A sociedade pós-moderna suscitou inúmeros acontecimentos singulares na história que se tornaram os grandes desafios a serem enfrentados pela escola. Nesta nova constituição social o desafio maior recai sobre o ensino de história, uma vez que os acontecimentos atuais geralmente se reportam a retomada de questões fundamentais ligadas as minorias sociais que sempre foram sufocadas pelas elites dominantes. Ricardo Oriá, em seu trabalho, O Saber Histórico em Sala de Aula, afirma: “... a partir de meados da década de 70 e principalmente na década de 80 assistimos a emergência dos movimentos populares, mulheres, negros, índios, homossexuais etc. que, até hoje,


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reivindicam para si o alcance e o exercício de cidadania e participação política no processo decisório nacional. Esses movimentos colocam na ordem do dia o interesse pelo “resgate” de sua memória, como instrumento de luta e afirmação de sua identidade étnica e cultural”2.

Esta busca de reafirmação das identidades coloca em choque a postura do professor em sala de aula. As exigências atuais onde se busca principalmente através da escola fazer um processo de inclusão daqueles que sempre foram renegados pela sociedade, precisa ser acompanhado por um conteúdo teórico que de sustentação a esta luta. Geralmente nas pesquisas realizadas com educadores, estes demonstram a preocupação em transmitir aos alunos a história em uma perspectiva crítica, apontando os problemas sociais, e as possíveis causas; mesmo os que dizem desconhecer as concepções historiográficas, procuram não perder de vista a dimensão crítica da história. Porém esta preocupação geralmente não vem associada a nenhuma historiografia determinada. Outro fator importante a ser destacado é que por história crítica normalmente os professores entendem a relação passado, presente. Esta relação quase sempre se busca fazer porque na concepção da maioria é importante retomar o passado como forma de mostrar ao aluno a continuidade de determinados fatos no presente, e não para se compreender fatos que surgem na atualidade.

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ORIÁ. Ricardo. Memória e ensino de história.

Na tentativa de obter maior êxito nos trabalhos educacionais, passaram a fazer parte do cotidiano do professor os mecanismos tecnológicos, além de outras técnicas que são utilizadas como forma de tornar as aulas mais atrativas e inserir o aluno dentro de uma perspectiva crítica de leitura social. Porém, Sandra Cristina Fagundes em artigo publicado sobre o tema, salienta que, geralmente os professores entrevistados se apresentam como protagonistas de uma proposta renovada de educação, abordando assuntos do interesse cotidiano do aluno. Estes interpretam esta prática educacional como crítica e atendente das necessidades da sociedade atual, mas geralmente, mesmo com a utilização de novos recursos, se continua a praticar a velha e tradicional prática positivista, onde o factual e os acontecimentos dativos ocupam o espaço central. O livro didático utilizado, na maioria dos casos torna-se a única fonte de pesquisa para o aluno, e o único referencial do professor na preparação das aulas. O uso do livro didático reconhecidamente é um recurso importante para o ensino, segundo os professores, porém ineficiente para atender as perspectivas de um ensino crítico, não garantindo uma compreensão de como os homens atuam na realidade, fazem a história e elaboram o conhecimento. Esta visão em relação ao livro didático faz com que os professores utilizem recursos didáticos alternativos, para contribuir no sucesso do trabalho. Neste sentido para a grande maioria, os recursos alternativos são vistos como mecanismo de


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construir um ensino mais eficaz e crítico. Porém os recursos, que contribuem fundamentalmente, precisam ser utilizados dentro de uma perspectiva teórica historiográfica, ao contrário corre o risco de tornar-se um ensino fragmentado. O domínio de uma corrente historiográfica, para o educador não pode ser negligenciado, devendo ser fundamental a diferenciação entre ambas. Uma história sob o ponto de vista positivista não pode ser crítica, pois é sempre vista a partir da objetividade dos fatos, não buscando ligação nenhuma com juízo de valores ou determinação social. Nesta concepção o ensino deve apenas se ocupar na tarefa de apresentar os fatos passados, sem a interação do sujeito, onde os fatos falariam por si próprios. Tanto o Marxismo quanto a Nova História, mesmo com suas particularidades e limitações, buscam construir uma história onde o sujeito deve ser o agente capaz de caminhar por si só. Para o materialismo histórico o homem diferencia-se dos demais animais, justamente pela capacidade de construir o processo histórico. Marx e Engels afirmaram: “...a história não faz nada, não possui uma riqueza imensa, não dá combates, é o homem real e vivo que faz tudo isso e realiza combates: estejamos seguros de que não é a história que serve o homem como de um meio para atingir- como se ela fosse um personagem particular- seus próprios fins; ela não é mais que a atividade do homem que persegue os seus objetivos.3

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Dentro desta perspectiva de colocar o homem como sujeito ativo e construtor de sua própria história o materialismo desmonta a proposta mecanicista apresentada pelos positivistas, proporcionando assim a possibilidade de um conhecimento histórico crítico. Dentro das condições sociais atuais - talvez muito mais que em épocas anteriores – onde o modelo social busca padronizar nivelando todos em patamares comuns, faz eco as propostas historiográficas de vertentes críticas como o marxismo, onde o sujeito deve ocupar o centro das suas decisões, que só pode ser feita a partir de uma leitura crítica dos acontecimentos. Também merece uma análise especial a proposta educacional da nova história, que busca antes de tudo tirar a história de um passado fossilizada para torná-la história viva, tendo no presente o referencial para buscar a compreensão social e a produção do conhecimento histórico. Em lugar de fatos prontos, definidos, cristalizados, os adeptos desta corrente historiográfica propõem uma história em construção, e dentro desta construção a perspectivas de que todos somos agentes que contribuem para a formação do processo histórico. Em síntese, tanto para o Marxismo quanto para a Nova história, o conhecimento precisa ser apreendido de forma crítica, pois para estas a relação sujeito objeto se fundamenta na interação e não um apossando-se do outro. Ao professor é importante a compreensão do momento social e que alternativas podem ser introduzidas para colaborar no exercício do ensino apren-

MARX, ENGELS. La Sagrada Familia. IN. Cadernos de história.


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dizado. Porém a grande maioria dos educadores permanece alheios aos debates teóricos, muitos pelo desinteresse outros pelo distanciamento da academia com o passar dos anos e a grande maioria pela falta de oportunidades de atualização gerada pela excessiva carga de trabalho exigida pelas condições sociais atuais. A exceção de poucos, segundo Sandra Cristina, os professores não definem os pressupostos das concepções teóricas que perpassam seus discursos. Mesmo que a grande maioria trabalha dentro de uma perspectiva crítica de ensino da história, porém estas não conseguem ser situadas dentro do âmbito de nenhuma corrente historiográfica. Frente estas circunstâncias, o que se pode perceber é que o ensino de história, em várias situações, apenas reproduz o conhecimento, que chega até os professores através do livro didático.

Enquanto os professores de história não conhecerem as concepções historiográficas vigentes e não embasarem o conhecimento em conceitos fundamentados numa historiografia que realmente seja crítica, por mais que utilizem recursos diferenciados para ensinar, estarão apenas reproduzindo receitas acríticas, que não contribui para mostrar ao aluno que a história é um processo em construção que resulta da relação entre homens, do qual o aluno é parte integrante. A escola transformadora que forme pessoas capazes de enfrentar o mundo de maneira que não sejam alienados pela massificação social vigente, passa fundamentalmente pela maneira como o professor – especialmente de história – conduz o aluno no processo de aprendizado; este será eficaz se embasado em conhecimento científico seguro, que nos é oferecido pela produção historiográfica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASSO, Itacy Salgado. As concepções de história como mediadoras da prática pedagógica do professor de história. Artigo, In. Para Além dos conteúdos de história. DAVIES, Nicholas. Org. Contexto. SP: 2001. LIMA, Sandra Cristina Fagundes de. História Tradicional e História Crítica na Fala dos Professores. – Artigo. In: Cadernos de História. Nº 7. UFB. Uberlândia, MG: 1997/98. ORIÁ. Ricardo. Memória e Ensino de História. Artigo. In: O Saber Histórico na Sala de Aula. Contexto. SP: 1998. ENGELS, Friedrich e MARX, Karl. La Sagrada Família. 2ª ed., Buenos Aires, Ed. Claridad. 1971.


O JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DA COMARCA DE DOURADOS: UM ESTUDO SOBRE O PERFIL SOCIAL DOS CASOS Rogério Fernandes LEMES1 RESUMO Em um contexto mais amplo do processo contemporâneo de informalização dos procedimentos judiciais, com o intuito de uma ampliação do acesso à justiça no Brasil, fora criado através da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. A referida lei prevê agilidade no atendimento dos processos de menor potencial ofensivo, cuja pena não exceda a dois anos de detenção, tendo como princípios a celeridade na tramitação dos processos, uma justiça mais acessível e menos burocrática, um caráter despenalizante que priorize a conciliação para resolução dos litígios dessa natureza. O presente artigo é resultado de um levantamento quantitativo dos processos criminais tramitados nos Juizados Especiais Criminais da Comarca de Dourados, nos anos de 2007 e 2008 totalizando 4960 processos pesquisados. A justificativa para esse levantamento se sustentou na necessidade de se conhecer melhor o perfil social dos casos para, com isso, compreender a lógica de funcionamento dos Juizados Especiais Criminais no Brasil. Palavras-Chave: Juizados Especiais Criminais; Acesso à Justiça; Informalização da Justiça. ABSTRACT In a broader context of the contemporary process of informality of the proceedings, with the aim of broadening access to justice in Brazil, was created by Act 9099 of 26 September 1995, the Special Civil and Criminal Courts. The Act provides agility in the processes of lower offensive potential, whose sentence will not exceed two years’ imprisonment, with the speed in the principles of procedures, a justice more accessible and less bureaucratic, one that focuses on character despenalizante for conciliation resolution of such disputes. This article is the result of a quantitative survey of criminal cases handled in the Special Criminal Courts of the District of Dourados, in the years 2007 and 2008 a total of 4960 cases surveyed. The rationale for this survey is held on the 1

Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Grande Dourados.


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need to better understand the social profile of the cases to thereby understand the logic of operation of the Special Criminal Courts in Brazil. Keywords: Special Criminal Courts; Access to Justice; Informalization Justice.

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esde os clássicos da Sociologia, o Di reito se destaca como um fenômeno social privilegiado. Contudo, a aproximação entre Sociologia e Direito ganhou contornos mais nítidos apenas recentemente. Segundo Santos, Foi apenas nas décadas de 60 e 70 que se consolidou um novo e vasto campo de estudos sociológicos sobre a administração da justiça, a organização dos tribunais, a formação e recrutamento dos magistrados, suas motivações para as sentenças e ideologias políticas e profissionais, custo da justiça, bloqueamento dos processos e o ritmo do seu andamento em suas várias fases. As condições teóricas para essa consolidação se sustentaram no desenvolvimento de três áreas de conhecimento: a Sociologia das Organizações, especialmente o interesse específico pela organização judiciária e pelos tribunais; a Ciência Política, pelo reconhecimento dos tribunais enquanto instância de decisão e de poder político; e a Antropologia do Direito, pela substituição da ênfase nas normas pela ênfase nos comportamentos e nas representações (SANTOS, apud FAISTING, 2009: 17-18).

Em linhas gerais, pode-se dizer que são três os temas centrais que ocupam as produções na área da Sociologia do Direito: o

acesso à justiça, a administração da justiça e os mecanismos de resolução dos conflitos sociais. A ampliação do acesso à justiça, juntamente com a questão da morosidade no andamento dos processos, constitui a base do que se convencionou chamar de “crise do Judiciário”, o que repercutiu no interesse de cientistas sociais pelo estudo do sistema de justiça. Com efeito, o acesso à justiça é o tema que mais diretamente equaciona as relações entre igualdade formal e desigualdade social, pois a crença de que todos são iguais perante a lei significa uma igualdade meramente formal, já que a isonomia, nesse caso, decorre da norma jurídica e não da realidade social. Para Cappelletti e Garth (1988:31-73), o movimento de acesso à justiça no Estado moderno se desenvolveu a partir de três fases: a assistência judiciária como meio de superar as barreiras existentes; as reformas necessárias para a defesa dos interesses difusos; e, as transformações no processo visando abertura das necessárias vias de acesso. Nesta última fase, onde o objetivo é tornar os procedimentos mais céleres, informais e econômicos para determinadas demandas sociais, a justiça “informal” tem sido o principal instrumento utilizado, pois busca uma justiça rápida, menos burocrática e sem a necessidade de formalismos (FAISTING, 2009:13). É nesse contexto do processo contemporâneo de informalização da justiça que


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foram surgindo, paralelamente à justiça comum e formal, novos mecanismos de resolução de conflitos a partir de instituições ágeis e mais ou menos profissionalizadas, de forma a ampliar o acesso e diminuir a morosidade judicial. Na esfera criminal, esse movimento de informalização também busca alternativas de controle mais eficazes e menos dispendiosas do que o sistema penal tradicional, conferindo ao acusado uma gama de alternativas como, por exemplo, a aplicação da pena de multa ou prestação de serviço à comunidade. Ainda como característica desse movimento incorpora-se a participação efetiva da vítima para o encaminhamento da questão nas chamadas “soluções conciliatórias”, que visam promover a interação facea-face entre vítima e acusado, como forma de superar o conflito (AZEVEDO, 1999). Tendo como pano de fundo esse contexto mais amplo do processo contemporâneo de informalização da justiça e a forma como ele se institucionalizou no sistema de justiça brasileiro, o presente artigo é reflexo de uma pesquisa quantitativa na qual se procurou compreender, a partir de um estudo de caso desenvolvido em uma Comarca de porte médio do interior do Estado de Mato Grosso do Sul, o perfil social dos casos que chegam aos Juizados Especiais Criminais, base na qual, opera a justiça informal criminal no Brasil. Inicialmente, serão apresentadas as contribuições teóricas relativas ao acesso à justiça bem como, e dentro dele, do movimento de informalização da justiça, mostrando as principais características desse processo. Em seguida, será apresnetado o resultado da pesquisa realizada na Comarca de Dourados.

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ACESSO À JUSTIÇA E AS “PEQUENAS CAUSAS” NO PODER JUDICIÁRIO De acordo com Friedman (1984:5859), nos Estados Unidos, em 1913, especificamente na cidade de Cleveland, surge a Poor Man’s Court (Corte dos Homens Pobres), um órgão jurisdicional especial para cuidar das “pequenas causas”, sendo muito bem recebida pelos americanos que, segundo Carneiro (1985), o período de 1912 a 1916 estruturou essas cortes em várias regiões americanas. Destaque para a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, que fortaleceu ainda mais a adoção dessa forma especializada de justiça, com julgamentos de causas inferiores a cinquenta dólares americanos. Tratar do processo contemporâneo de informalização da justiça é, sobretudo, tratar da questão do acesso à justiça. Para Cappelletti e Garth (1988:09), os chamados estados liberais burgueses dos séculos XVIII e XIX caracterizavam-se por sua filosofia individualista dos direitos. Teoricamente, o acesso à justiça era concebido como um direito natural, anterior mesmo, ao próprio Estado e de forma igualitária para todos. Contudo, efetivamente, não era o que acontecia e o Estado permanecia passivo quanto às necessidades de seus indivíduos. Assim, a justiça tinha seu alto preço e acessá-la pressupunha ter condições para tal. O sistema formal e normativo garantia um acesso equitativo, porém não efetivo. Estudiosos do Direito e o próprio sistema judiciário não percebiam que a desigualdade econômica entre as partes litigantes, resultava em um problema que


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poderia interferir diretamente no resultado final dos processos, contrapondo-se ao princípio formal do acesso igualitário para todos. Assim, todo e qualquer avanço no sentido de garantir o acesso a uma justiça para todos era sugerido não a partir da realidade das partes, mas do procedimento jurídico, configurando-se em uma justiça distante dos interesses da maioria da população. Na medida em que os direitos civis, políticos e sociais (MARSHALL, 1963) foram se consolidando a partir do século XVIII observou-se que a intervenção do Estado era fundamental para assegurar os direitos básicos à população. As mudanças do welfare state conferem direitos substantivos aos indivíduos e o acesso à justiça tornara-se requisito primordial para a efetiva garantia de um sistema jurídico que assegurasse a igualdade de direitos. Essa nova concepção do acesso à justiça iria requerer dos juristas algumas mudanças de mentalidade, a saber: a) o reconhecimento de que as técnicas processuais devem servir às questões sociais, levando em consideração a realidade das partes litigantes; b) que a corte não é o único lugar para a resolução de conflitos e; c) qualquer regulamentação processual tem efeito importante sobre a forma como opera a lei, a frequência de sua execução, a quem realmente beneficiará e seus impactos na sociedade (Cappelletti e Garth, 1988:13). Apesar disso, os obstáculos de acesso à justiça persistiram. Segundo os autores, apesar de haver nas sociedades modernas uma crescente aceitação do acesso à justiça como um direito social básico, sua efetivação para o atendimento das demandas da maioria da população ainda é algo

vago. Destaca-se entre os principais obstáculos do acesso à justiça o alto custo do processo associado à morosidade no andamento dos mesmos. Os honorários advocatícios normalmente inviabilizam o acionamento do sistema jurídico e se tornam a principal despesa individual para os litigantes na grande maioria dos países. Segundo Cappelletti e Garth (1988:17), na Alemanha os valores pelo trabalho dos advogados estão previamente definidos de acordo com o valor da causa, permitindo, dessa forma, que as partes envolvidas na ação tenham uma previsão de suas despesas com advogados, diferente de outros países onde é impossível prever os custos com o processo. Portanto, os autores concluem que os altos custos dos processos constituem uma importante barreira para o acesso à justiça. Se o fator econômico pode se constituir em um dos principais obstáculos econômicos ao acesso à justiça, o problema se agrava ainda mais quando se trata das causas de menor valor, que são as mais prejudicadas pelos altos custos. O Projeto de Florença, desenvolvido por Cappelletti e Garth na década de 1970, demonstrou que o custo da ação judicial cresce à medida que se reduz o valor da causa. Daí nosso interesse em estudar os crimes de menor potencial ofensivo que, no Brasil, são normalmente considerados de menor importância, inclusive por parte de muitos operadores do Direito. O tempo é outra dificuldade que precisa ser tratada com especial atenção na questão do acesso à justiça. Por exemplo, se a demora da ação judicial for combinada, em alguns países, com a oscilação inflacionária, segundo Cappelletti e Garth os resultados podem ser “devastadores”.


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A Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais reconhece, em seu texto, que uma justiça só será acessível se cumprir suas funções dentro de um “prazo razoável”. No Brasil, o acesso à justiça, é um tema relativamente recente e somente na década de 80 iniciam-se as pesquisas sociológicas sobre o assunto. Segundo o texto Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo, de Eliane Botelho Junqueira, o tema abrange as investigações sobre o Poder Judiciário e sobre as formas alternativas de resolução de conflitos. No entanto, vale destacar que a discussão sobre o acesso à justiça no Brasil não se deu da mesma forma que nos países centrais, onde a motivação estava diretamente ligada à crise do Estado do bem estar social. Aqui, segundo Junqueira, havia a necessidade da expansão dos direitos básicos à população como saúde e moradia, que em sua maioria não tinha acesso à justiça devido a um ordenamento jurídico liberal-individualista ou da marginalização socioeconômica. Basta dizer que o Brasil não foi incluído no Florence Project, pesquisa internacional coordenada Cappelletti e Garth na década de 70. Em âmbito nacional, ainda segundo Junqueira, o tema do acesso à justiça é compreendido sob dois eixos principais: o acesso coletivo à justiça em meados dos anos 80 e as investigações sobre as formas estatais e não-estatais de resolução de conflitos, destacando os novos mecanismos informais incorporados pelos Juizados Especiais de Pequenas Causas criados nesse período. A pesquisa desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos na década de 70, na favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro, influenciaria profundamente na com-

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preensão desses dois eixos citados. Teoricamente, segundo a autora, o tema do acesso à justiça no Brasil está ligado às investigações a partir do tema do “pluralismo jurídico”. As invasões urbanas, desencadeadas no início dos anos 80 no Recife, também contribuíram para o fortalecimento do conceito de representação coletiva. Impedidos de acionarem o Poder Judiciário, os movimentos acabaram ganhando destaque em outros locais, informais, paralelos e ilegais, o que fez com que alguns magistrados percebessem a necessidade de um “tratamento diferenciado para classes de baixa renda e prevalência de moradia sobre o direito de propriedade”. Devido ao fato do Poder Judiciário da época ser incapaz de resolver aqueles conflitos coletivos, para Moura (1990:37) uma ampliação do acesso à justiça seria necessária através da atualização do Poder Judiciário e do aperfeiçoamento democrático dos processos decisórios do Poder Executivo. Concluiu-se, com o trabalho de Carvalho (1991), que as formas não legais das soluções dos conflitos sociais no Rio de Janeiro e no Recife indicavam a existência de um sistema legal de justiça não acessível. Como já sugerido anteriormente, compreender a importância do acesso à justiça como um direito social básico inclui, também, compreender a importância das chamadas “pequenas causas”. Mas de onde parte o olhar que concebe os litígios sociais como pequenos? São pequenos para quem? Sem compreender a lógica do discurso que domina o conceito de pequenas causas e o que de fato ele tem a nos dizer, pouco se poderá avançar no debate sobre o acesso à justiça no Bra-


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sil. Para Ferraretto, “o que é irrelevante para um é essencial para outro”, ou seja, as causas não são grandes nem pequenas pelo seu valor econômico, mas pela condição econômica dos usuários do sistema de justiça. Nos Estados Unidos, por exemplo, entende-se por pequenas causas os prejuízos materiais não superiores a mil dólares americanos e na Suécia, mil e cem dólares, sendo que os litígios não são aqueles que envolvem a família. No Brasil, a Lei 7.244, de 1984 criou o Juizado Especial de Pequenas Causas para atuar em causas cíveis com valor de até 20 salários mínimos, devendo se orientar por critérios de simplicidade, rapidez, informalidade e economia processual. Mais tarde, a Constituição de 1988 atribui ao Estado brasileiro a criação de “Juizados Especiais” com juízes togados ou leigos competentes para mediarem às causas cíveis de menor complexidade e as infrações penais de menor potencial ofensivo. Finalmente, em 1995 é criado, através da Lei 9.099/95, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. A concepção dos Juizados Especiais no Brasil surge em um contexto internacional de informalização da justiça, no qual se constatou que, na sociedade moderna, a repressão não era capaz de resolver determinados conflitos sociais. Além disso, acreditava-se que as demandas oriundas dos delitos da vida cotidiana como a violência conjugal, brigas de vizinhos ou de trânsito, por serem consideradas menos relevantes precisavam ser retiradas do Poder Judiciário. Na área criminal, a referida lei foi saudada, por muitos estudiosos do sistema de justiça, como um dos maiores avanços na legislação brasileira, justamente por sua proposta despenali-

zante que introduziu a aplicação de pena não privativa de liberdade a certos delitos definidos como de menor potencial ofensivo. Prevê ainda a lei que as causas atendidas por esses juizados não podem exceder a quarenta vezes o salário mínimo. No entanto, para um efetivo cumprimento de suas propostas de acesso à justiça, afirmam Weber Martins e Luiz Fux (1997): Não resta dúvida de que, posto que a Lei nº 9.099/95 constitua valioso instrumento para a administração da Justiça, a sua efetividade dependerá, enormemente da atuação política dos governantes, que deverão viabilizar a implantação dos JECC; dos advogados, que deverão utilizar essa nova ferramenta com responsabilidade e consciência; e dos magistrados, de todas as instâncias, que deverão assumir suas novas responsabilidades com coragem e afinco, contribuindo para o bom funcionamento da Justiça, valor que estimula a perseverar na luta pelos mais altos objetivos da vida e de esperança.

A criação da lei supramenciona pode ser entendida como um importante mecanismo de acionamento da justiça, ante um sistema jurídico, cujas portas principais de acesso estão trancadas, ainda, para grande parte da população brasileira desprovida de recursos econômicos. Destacamos os artigos 1º, 2º e 62 da Lei 9.099/95, que dizem o seguinte: Art. 1º Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, órgãos da Justiça Ordinária, serão criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para conciliação, processo,


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julgamento e execução, nas causas de sua competência. Art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.

Tendo como referência esse processo mais amplo de informalização da justiça, consideramos importante compreender melhor o perfil social dos casos que são tratados nos Juizados Especiais Criminais. Tal importância justifica-se pelo fato de que quando se conhece a natureza dos conflitos, suas origens, as partes envolvidas, seus representantes legais, quem decide o resultado final, a distância social entre as partes, e entre elas e os agentes, os interesses que representam etc., temse maior condição de compreender as razões dos tratamentos dos casos. ANÁLISE QUALITATIVA DOS DADOS LEVANTADOS Elevado à categoria de município em 1935, Dourados conta com uma população de aproximadamente 191.638 habitantes, de acordo com dados do senso de 2010, realizado pelo IBGE. Sua área territorial é de 4.086 km2 e, além do quadrilátero central, abrange mais de duzentos e cinquenta bairros, oito distritos rurais e duas reservas indígena. Foi colonizada por famílias

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vindas de vários Estados e regiões do país, além de imigrantes paraguaios e de países da Ásia e Europa, que hoje compartilham a terra com os índios das tribos Terena e Guarani/Kaiowá. A Comarca de Dourados está classificada como Entrância Especial e possui onze Varas de Justiça, sendo sete cíveis, três criminais e uma da infância e juventude. Possui treze Promotorias Públicas, sendo três cíveis, cinco criminais, três especializadas nas questões de infância e juventude, direitos do consumidor e meio ambiente, além de duas promotorias ligadas aos Juizados Especiais. Conta ainda com duas Varas da Justiça Federal e uma unidade do Ministério Público Federal, com juízes e procuradores que atuam em questões de competência federal como, por exemplo, questões ligadas às demandas da população indígena. Com relação aos advogados, de acordo com a OAB-MS, dos 9.271 profissionais credenciados, até a data de produção deste artigo, 947 atuam na Comarca de Dourados. Há, ainda, advogados e acadêmicos que atuam, respectivamente, como defensores públicos e estagiários pela Defensoria Pública do Estado. O sistema policial de Dourados, além das Delegacias da Polícia Federal e da Receita Federal, agrega o 3º Batalhão da Polícia Militar e a Delegacia Regional de Polícia Civil, contando com quatro unidades, sendo dois distritos comuns, uma Delegacia Especializada da Defesa da Mulher e outra da Infância, Juventude e Idosos. Está sediado em Dourados a Penitenciária Harry Amorim Costa, considerada a maior do Estado de Mato Grosso do Sul, com capacidade para 718 internos e, atualmente, com 1242 detentos.


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O presente trabalho teve como objetivo levantar e compreender o perfil social dos casos tratados do Juizado Especial Criminal da Comarca de Dourados. Para tanto, além da revisão bibliográfica sobre o assunto, partiu-se do levantamento e análise de dados quantitativos de todos os processos tramitados nos dois Juizados da Comarca nos anos de 2007 e 2008, o que representou um total 4960 (quatro mil novecentos e sessenta) processos pesquisa-dos. Para cada um desses processos foram levantadas as seguintes variáveis: data da audiência, número do boletim de ocorrência, data do boletim de ocorrência, natureza das causas (tipo do crime), bairro e tipo de local onde ocorreu o conflito, sexo, idade, estado civil e ocupação de vítimas e autores, resultado final do processo e data de arquivamento. Por se tratar de uma pesquisa quantitativa, em um universo de quase cinco mil processos, com vinte e uma variáveis coletadas, neste artigo trataremos apenas das seguintes variáveis: perfil social das vítimas e autores (sexo, faixa etária, estado civil e gênero), o local onde ocorreram os conflitos, a natureza das causas e o resultado final dos processos. A justificativa para escolha destas variáveis se sustenta na ne-

cessidade de compreender melhor o perfil social dos casos para, com isso, compreender também a própria lógica do funcionamento dos Juizados. Como já enfatizamos, quando se conhece quem são as partes litigantes, bem como em que contexto se deu o conflito, compreender-se-á melhor a dinâmica de funcionamento desses juizados. Tal compreensão se deu a partir do instante em que começamos a cruzar as informações do perfil social das partes litigantes com o local de origem dos delitos. Na tabela 1 (nesta página) apresentamos os dados relativos à distribuição dos processos nos dois Juizados Especiais da Comarca de Dourados. A primeira constatação importante, a partir dessa distribuição, é a diminuição do número de processos tramitados no Juizado Especial Criminal da Comarca de Dourados de 2007 para 2008, principalmente na 1ª Vara Criminal. De acordo com alguns operadores do Direito, essa diminuição explica-se, sobretudo, pelo caráter preventivo das audiências preliminares de conciliação, que contribuem para que novas demandas não ocorram e, assim, diminuindo o número de processos. Outra hipótese para esse

Tabela 1: Distribuição dos processos nos Juizados da Comarca de Dourados, nos anos de 2007 e 2008.

Ano 1ª Vara (Juizados) 2ª Vara (Juizados) Total de Processos Fonte: Juizado Especial Criminal

2007 1783 1301 3084

2007 725 1151 1876

Total 2508 2452 4960


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decréscimo no número de processos nos Juizados nesse período pode ter relação com a instituição, em agosto de 2006, da Lei Maria da Penha, que retirou dos Juizados a competência para julgar os crimes de violência doméstica. Com relação ao perfil social das partes litigantes contatou-se que, em um universo de 4960 processos, os autores (acusados) são predominantemente homens, com 69,88% dos registros. Isso não significa, contudo, que as mulheres constituem a maioria das vítimas, pois os homens também representam a maioria nessa categoria 43,29%, contra 37,76% das mulheres. Já os casos em que o Estado foi vítima, destacamos o Desacato, a Resistência, a Desobediência ou aquelas tipificações penais contra a coletividade, como é o caso da Perturbação da Tranquilidade ou Perturbação do Trabalho e do Sossego Alheios, representando 18,53%. A categoria Outros (esta categoria contempla variáveis onde aparece como vítimas ou autores, pessoas jurídicas) representou 0,6% dos processos. Outra informação significativa apresentada pela pesquisa é a variável Não Informado (NI) correspondendo a 1,31% dos casos e aparecendo em praticamente todos os recortes da pesquisa. No que se refere à faixa etária das vítimas constatou-se que, em ambos os sexos, a maioria são relativamente jovens, especialmente na faixa que vai dos 18 aos 35 anos (40,73%). Além disso, embora as vítimas do sexo masculino representem uma pequena maioria em todas as faixas etárias, constata-se que esse equilíbrio entre os sexos das vítimas é maior justamente para os mais jovens, ou seja, até 35 anos (49,19%).

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Quando focamos a distribuição do Estado Civil e da Faixa Etária das vítimas do Sexo Feminino com idades de maior frequência (18-45 anos), as mulheres mais jovens (18-25 anos) e solteiras foram as que mais se envolveram em ocorrências de menor potencial ofensivo (29,67%) dos casos, sem levarmos em consideração a variável NI, que representou 37,76% dos 1332 processos para essa faixa etária. Para as idades entre 26-35 anos, solteiras e casadas aparecem praticamente com a mesma frequência (19,06%). Contudo, mulheres casadas com idade entre 36-45 anos (14,35%) são mais vítimas do que as mulheres solteiras de mesma idade (6,63%). Na distribuição do Estado Civil e da Faixa Etária das vítimas do Sexo Masculino, assim como ocorreu com as mulheres, sem levarmos em consideração a variável NI, que os homens solteiros e mais jovens (18-25 anos), em um universo de 1002 processos, também são a maioria entre as vítimas (25,05%). Igualmente ao índice das mulheres, os casados com idade entre 26-45 anos (18,96%) e os solteiros (17,66%) com idades entre 26-35 anos possuem praticamente a mesma frequência enquanto vítimas. Destaca-se, contudo, uma maior diferença para a faixa etária que vai dos 36 aos 45 anos, havendo uma maior frequência de casados (18,96%) em relação aos solteiros (5,79%). Se os dados relativos ao sexo e à faixa etária das vítimas refletiram certo equilíbrio entre os sexos apresentados anteriormente, com pequenas variações, a distribuição do Sexo e da Faixa Etária dos Acusados do sexo Feminino e Masculino mostrou que, para os acusados, não há esse equilíbrio, ou seja, os homens acusados não apenas aparece com


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maior frequência em todas as faixas etárias, diferença significativa se comparada com a situação das vítimas nesta mesma situação. Contudo, da mesma forma que as vítimas, os acusados também se constituem em pessoas mais jovens, especialmente na faixa dos 18-25 anos (21,19%), seguido da faixa etária dos 26-35 anos (19,29%) e dos 36 aos 45 anos (13,67%). Entre as mulheres acusadas, há uma maior frequência na faixa etária que vai dos 26 aos 35 anos (8,75%), seguida da faixa etária dos 18 aos 25 anos (6,89%). Já a distribuição do Estado Civil e a Faixa Etária das autoras, sem levar em consideração os 670 casos da variável NI (50,49%) dos 1327 registros, especialmente para as idades de 36-45 anos (30,44%), a pesquisa revelou que as acusadas dos processos são, em sua maioria, solteiras e com idade entre 18-35 anos (26,33%). As acusadas casadas que mais se destacam são as com idade entre 26-35 anos (17,35%). A distribuição do Estado Civil e da Faixa Etária dos acusados do Sexo Masculino indicou que são, predominantemente, solteiros e com idades entre 18-35 anos (36,46%), em universo de 2621 processos (excluída a variável NI responsável por 31,37%), ao contrário dos casados, que estão entre a faixa etária dos 26 aos 35 (13,46%) e dos 36 aos 45 anos (14,35%). Após as análises do perfil de vítimas e acusados, em um universo de 2768 casos para a faixa etária de 18-45 anos, representando 55,81% do universo total da pesquisa, identificamos três locais com maior frequência dos casos, somando 1747 registros: a Área Central de Dourados com (60,33%), o bairro Jardim Água Boa (33,43%) e a Reserva Indígena (Aldeias

Jaguapiru e Bororó) (6,24%). Escolhemos a Reserva Indígena não pelo quantitativo estatístico em relação aos outros bairros de Dourados, mas por se tratar de uma comunidade étnica “afastada” geográfica e culturalmente da cidade. No entanto, ao analisarmos os números quantitativos percebemos uma realidade bem próxima dos registros na área urbana da cidade, ou seja, os maiores índices de ocorrências na Reserva Indígena se dão em ambiente familiar (91,74% dos casos), tendo como motivações as ameaças e lesões corporais. Na Área Central de Dourados, quando analisamos a faixa etária supra mencionada pelo recorte dos “autores” (masculinos e femininos), a maior incidência se deu em Via Pública (57,77% dos casos), tendo como natureza das causas as Lesões Corporais envolvendo ocorrências de trânsito (28,70%), seguida de Vias de Fato (10,27%) e Ameaça (6,34%). Para as “vítimas” (masculinos e femininos) também se envolveram em ocorrências na Via Pública (56,34%), tendo como motivação as Lesões Corporais envolvendo ocorrências de trânsito (38,01%), seguida de Ameaça (8,49%), Desacato e Desobediência (7,75%) categorias estas onde o Estado aparece como vítima. No Bairro Jardim Água Boa, a maior frequência das ocorrências envolvendo os “autores” se deu em Residências (44,98%), tendo como principal natureza das causas a Ameaça (23,74%) e as Vias de Fato (15,11%). Já as ocorrências desse bairro, envolvendo as “vítimas”, também ocorreram no âmbito familiar (43,27%), sendo as principais causas a Ameaça (19,33%) e a Lesão Corporal (14,29%). Há, nesse caso, indícios de se tratar de violência doméstica mesmo sendo os dados relativos aos


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anos de 2007 e 2008, portanto após a efetivação da Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que tem como característica principal a especificação do crime de Violência Doméstica. A referida lei retirou dos Juizados Especiais Criminais a competência para tratamento desses crimes. Quando analisamos as ocorrências das “vítimas” da Reserva Indígena abrangendo as aldeias Jaguapiru e Bororó, também evidenciamos a frequência de ocorrência nas Residências (89,13%), tendo como natureza das causas a Ameaça e a Lesão Corporal, com mesmos índices, 21,95% dos casos. Para as ocorrências envolvendo os “autores”, de igual forma, a pesquisa apontou para a Residência como principal local dos registros, 93,65%, tendo a Ameaça (25,42%) e a Lesão Corporal (20,34%) como motivação do delito. Um dado interessante foi que, ao contrário do que paira no imaginário das pessoas, os registros de embriaguez e porte de drogas somaram 8,47%, ou seja, desconstruindo o discurso estereotipado de que os ameríndios douradenses estão todos envolvidos com drogas e o álcool. No que se refere ao Resultado Final dos Processos, assim foram arquivados: 38,58% por ter decorrido o prazo decadencial; 23,13% pelo cumprimento integral da transação penal objeto da sentença; 20,38% por falta de elementos para dar suporte à ação penal; 17% tendo em vista a renúncia da vítima; 0,5% tendo em vista o óbito do autor; e 0,40% tendo em vista o acordo entre as partes. Portanto, para os três locais com maior incidência dos registros de ocorrência, destaque para os arquivamentos devido à prescrição do período de seis meses após a tentativa de

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conciliação entre as partes litigantes. Vale lembrar que por se tratar de crimes de ordem privada, há a necessidade da representação pela parte ofendida. Não havendo tal representação nesse período, o magistrado arquiva o processo. Para o total de processos tramitados nos dois Juizados Especiais Criminais da Comarca de Dourados, foram os seguintes resultados: 41,92% por ter decorrido o prazo decadencial; 19,82% por falta de elementos para dar suporte à ação penal; 18,85% pelo cumprimento integral da transação penal objeto da sentença; 18,73% tendo em vista a renúncia da vítima; 0,38% tendo em vista o óbito do autor; 0,28% tendo em vista o acordo entre as partes; e 0,02% encaminhado à Justiça Pública a pedido do Ministério Público. Observase, portanto, que não há diferença significativa entre o resultado final do total de processos e os processos relativos aos três locais analisados de maior frequência das ocorrências. Foram arquivados mais processos tendo em vista ter decorrido o prazo decadencial, que é de seis meses, do que acordos entre as partes nos dois anos da realização da pesquisa. Foram 14 registros de acordos, isso significa 0,28% dos casos atendidos. Outro índice que chama a atenção é o das vítimas que renunciaram, totalizando 18,73%. Esta pesquisa, de natureza quantitativa, não consegue identificar códigos sociais apenas pelos números absolutos, dificultando a análise dessa variável renúncia, que pode ser, dependendo da dinâmica ritualística das audiências, uma forma de acordo ou conciliação. Para FAISTING (2009:19-20), apesar de haver uma tendência à informalização da justiça pautada por uma lógica de conciliação, os juízes encon-


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tram dificuldades para atuarem como conciliadores, devido a sua formação que valoriza o poder de decisão, acabando, muitas vezes, reproduzindo nessa instância da justiça os mesmos procedimentos típicos da justiça comum. Assim, os 929 casos de renúncia das vítimas poderiam estar diretamente ligados à variável acordo entre as partes. No entanto, haveria a necessidade de uma etnografia das audiências para se afirmar com propriedade. De acordo com os registros apresentados pela pesquisa, os Juizados Especiais Criminais da Comarca estudada tratam principalmente dos delitos que ocorrem no espaço doméstico. Dos 4960 registros pesquisados de acordo o Tipo de Local, os casos ocorridos nas residências aparecem com 41,67%, seguido de 34,13% registrados em vias públicas e 24,19% para a variável Outros (essa variável representa as instituições públicas e privadas, hospitais, comércio, escolas, hotéis, propriedades rurais, terrenos baldios, boates e pequenos distritos), agregando as instituições públicas, estabelecimentos comerciais e zona rural. O alto índice das ocorrências em residências aqui registradas demonstra que o espaço privado está deixando de ser privado, mesmo que os arquivamentos apontem para a renúncia posterior das vítimas e a decorrência de seis meses. As ocorrências relacionadas ao trânsito, que acontecem em via pública, têm como causas principais, os acidentes de trânsito com vítima; dirigir veículo automotor em via pública, sem a devida permissão para dirigir ou habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano; e, o condutor ter se afastado do local do acidente para fugir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como resultado de uma pesquisa de natureza quantitativa pretendeu-se, neste artigo, oferecer uma pequena contribuição para a compreensão do processo de informalização da justiça no Brasil, através do levantamento do perfil social das partes litigantes, os tipos mais frequentes de delitos, o local onde tiveram origem e, sobre tudo, o resultado final dos processos. Nesse sentido, acreditamos que o objetivo tenha sido alcançado, pois através dos dados levantados foi possível se chegar a conclusões que, embora parciais, apontem caminhos para novas reflexões. Mesmo delimitado pela “frieza” dos números, foi possível identificar quais os locais de maior incidência das ocorrências que dão origem aos processos tramitados nos Juizados, bem como se estes ocorreram em espaços públicos ou privados. Também identificamos as principais motivações quanto à natureza das causas delituosas, como por exemplo, no caso dos registros em residências, as ofensas à honra por meios verbais e as lesões corporais. Tal indicativo nos leva a pensar, entre outras questões, sobre o tratamento da violência doméstica no Brasil, já que mesmo depois da criação da Lei Maria da Penha, a violência doméstica ainda continua, em muitos casos, sendo tratada nos Juizados Especiais Criminais. Outra constatação diz respeito à lógica da conciliação. Mesmo se levarmos em consideração a renúncia das vítimas como uma possível forma de acordo, ainda assim, face ao elevado número de arquivamentos pela prescrição do tempo de seis meses, fica o questionamento quanto ao


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efetivo cumprimento do papel conciliatório dos Juizados. Apenas 14 processos foram arquivados tendo em vista o acordo entre as partes envolvidas. Mas teria havido acordos entre as partes nos processos arquivados no período de seis meses e por tal motivo deixaram de acessar a justiça? E quanto aos arquivamentos por falta de elementos para dar suporte à ação penal? Foram eles conciliados pelos Juizados? São questionamentos que surgem a partir do conhecimento do perfil social dos casos analisados.

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Tendo em vista o amplo conjunto de informações resultantes desta pesquisa, muitos outros estudos e análises poderão se realizar a partir dessa base de dados e, com isso, novos olhares, de natureza sociológica ou de outras áreas do saber, poderão se desenvolver. Em nosso caso, e para concluir, podemos afirmar serem os Juizados Especiais Criminais uma instância da justiça que, apesar de sua proposta de informalização dos procedimentos judiciais, frequentemente acaba por reproduzir os procedimentos da justiça comum e formal.

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lificação e a instituição a que pertence; notas finais, eliminando-se os recursos das notas; referências bibliográficas, segundo as normas da ABNT. b) Os trabalhos deverão ser encaminhados dentro da seguinte formatação: uma cópia em Compact Disc, editor Word For Windows 6.0 ou superior; duas cópias impressas, com texto elaborado em português e rigorosamente corrigido e revisado, devendo ser uma delas sem identificação de autoria; limite aproximado de cinco a 12 laudas para artigos; cinco laudas para resenhas; dez laudas para entrevistas e quinze laudas para traduções; a fonte utilizada deve ser Arial Naroow, corpo 12, espaço entrelinha um e meio. 5) Eventuais ilustrações e tabelas com respectivas legendas devem ser apresentadas já inseridas no próprio texto. Todo Material fotográfico deverá ser em preto e branco. 6) Ao autor de trabalhos aprovado e publicado serão fornecidos, gratuitamente cinco exemplares do número correspondente da Revista Arandu. 7) Uma vez publicados os trabalhos, a Revista Arandu se reserva todos os direitos autorais, inclusive os de tradução, permitindo, entretanto a sua posterior reprodução como transcrição e com a devida citação da fonte. 8) Os trabalhos representam o ponto de vista dos seus autores e não a posição oficial da Revista, do Grupo Literário Arandu ou de Nicanor Coelho-Editor.



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