Revista Arandu # 60

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X ISSN 1415-482 o-Julho/2012 • nh Ju oai M • no 15 • Nº 60 iteratura

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Maio-Junho-Julho/2012


[ CARO LEITOR CARO LEITOR s artigos desta edição da Revista

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Arandu enfocam a história regional, a literatura brasileira e a obra teatral de Nelson Rodrigues. O historiador Carlos Magno Mieres Amarilha, no artigo A conquista do Brasil na fronteira guarani: o Território FedePorã, expõe “um breve relato ral de Ponta Porã de vida de um imigrante português, Albano José de Almeida (1904-1974), chegando à região de Dourados na época da criação do Território Federal de Ponta Porã nos idos dos anos de 1940. No segundo momento como são tratados os "paraguaios e índios" na construção da memória realizadas em parte pelos merialistas da região sul de Mato Grosso do Sul”. O professor Rosicley Andrade Coimbra nos apresenta uma leitura peculiar da obra seminal de Raduan Nassar, no artigo arcaica:: Adentrando o mundo de Lavoura arcaica exposta. A intimidade familiar exposta Em Dorotéia contra a burrice de toda unanimidade, Alda Maria Inácio Barbosa unanimidade faz “uma apresentação em linhas gerais da imagem pública que o dramaturgo, jornalista e escritor Nelson Rodrigues ajudou a construir de si mesmo por meio de atitudes e declarações contraditórias acerca de si mesmo, da própria obra e de fatos ou artistas e intelectuais de seu tempo”. Tece ainda uma análise da peça teatral Dorotéia. Boa leitura! Nicanor Coelho Editor

Ano 15 • No 60 • Maio-Junho-Julho/2012 ISSN 1415-482X

Editor NICANOR COELHO nicanorcoelho@gmail.com Conselho Editorial Consultivo ÉLVIO LOPES, GICELMA DA FONSECA CHACAROSQUI e LUIZ CARLOS LUCIANO Conselho Científico ANDRÉ MARTINS BARBOSA, CARLOS MAGNO MIERES AMARILHA, CÉLIA REGINA DELÁCIO FERNANDES, LUCIANO SERAFIM, MARIA JOSÉ MARTINELLI SILVA CALIXTO, MARIO VITO COMAR, NICANOR COELHO, PAULO SÉRGIO NOLASCO DOS SANTOS e ROGÉRIO SILVA PEREIRA Editor de Arte LUCIANO SERAFIM PUBLICAÇÃO DO

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Rua Mato Grosso, 1831, 10 Andar, Sala 01 Centro • Dourados • MS CEP 79810-110 Telefones: (67) 3423-0020 e 9238-0022 Site: www.nicanorcoelho.com.br CNPJ 06.115.732/0001-03

Revista Arandu: Informação, Arte, Ciência, Literatura / Grupo Literário Arandu - Ano 15 No 60 (Maio-Junho-Julho/2012). Dourados: Nicanor Coelho Editor, 2011. Trimestral ISSN 1415-482X 1. Informação - Periódicos; 2. Arte - Periódicos; 3. Ciência - Periódicos; 4. Literatura Periódicos; 5. Grupo Literário Arandu.


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[ SUMÁRIO

A conquista do Brasil na fronteira guarani: o Território Federal de Ponta Porã ............................. 5 Carlos Magno Mieres Amarilha Adentrando o mundo de Lavoura arcaica arcaica:: A intimidade familiar exposta ............................... 25 Rosicley Andrade Coimbra Dorotéia contra a burrice de toda unanimidade ............. 40 Alda Maria Inácio Barbosa

Capa: Caraicho Barrios y Ildo (década de 1950) Foto cedida pela Profa Jane Mary Benitez Ortiz

INDEXAÇÃO •

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A CONQUISTA DO BRASIL NA FRONTEIRA GUARANI: O TERRITÓRIO FEDERAL DE PONTA PORÃ Carlos Magno Mieres AMARILHA1 RESUMO Neste artigo, faço um breve relato de vida de um imigrante português, Albano José de Almeida (1904-1974), chegando à região de Dourados na época da criação do Território Federal de Ponta Porã nos idos dos anos de 1940. No segundo momento como são tratados os “paraguaios e índios” na construção da memória realizadas em parte pelos merialistas da região sul de Mato Grosso do Sul. Questiono como são apresentados e reapresentados nas memórias oficiais e não oficiais os “índios e os paraguaios”? Os pontos e os contrapontos. Faço breves considerações sobre a fronteira seca brasileira com o Paraguai na época da implantação do Território Federal de Ponta Porã e da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) como fatores preponderantes para a efetivação de novas cidades na fronteira sul do antigo Mato Grosso e atualmente sul de Mato Grosso do Sul. Palavras-chave: Fronteira. Imigração. Identidade. Memórias.

SUMMARY In this article, do a brief account of the life of a Portuguese immigrant, José Albano de Almeida (1904-1974), reaching the region of Gold at the time of the creation of the Federal Territory of Ponta Pora in the late 1940s. In the

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Presidente de Grupo Literário Arandu. Professor de Historiografia Brasileira e Estagio Supervisionado no Curso de História Unidade de Amambai e História da Cultura no Curso de Turismo da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Membro do GT de Ensino da ANPUH-MS, Membro da comissão do II FORO DE HISTÓRIA DEL PARAGUAI. 400 annales: Homenaje a Ruiz Días de Guzman. Representación Histórica, Análisis Regional y Fronteiras.


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second stage are treated “and Paraguayan Indians” in the construction of memory held in part by merialistas of southern Mato Grosso do Sul I question how they are presented and restated in official and unofficial memories “Indians and the Paraguayans”? The points and counterpoints. I make some brief remarks on the Brazilian border with Paraguay dry at the time of implementation of the Federal Territory of Ponta Pora and the National Agricultural Colony Gold (CAND) as important factors for the realization of new towns on the southern border of the old southern Mato Grosso and currently Mato Grosso do Sul. ords: Border. Immigration. Identity. Memories. Key words

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ão abundantes as interrogações apresentadas para o profissional de história do tempo presente: Como trazer o morto ao presente? Como dar vida aos mortos? Como analisar as fontes, por intermédio de suas marcas e da sua representação? Como refletir, interpretar e decifrar os mananciais de objetividades e subjetividades das fontes? Como redigir um texto escrito? Qual é o lugar de quem escreve? Qual é o campo de legitimação? (no campo acadêmico ou no campo do grande público). Tantas perguntas? Tantas questões? Múltiplas também são as respostas, atualmente tenho a consciência de que não lido com o passado, mas com as fontes. Tenho cuidados para não cair na armadilha, da história como mestre da vida, um guia para o futuro, para a revolução utópica; ou outras funções dadas para a história como fundamental no cotidiano das pessoas; ou ainda para garantir o futuro do cidadão, da cidade, do estado, do país e salvar a humanidade do caos. Coisas do tipo: “O estudo do passado nos prepara para o futuro”. Por isso, a necessidade consecutivamente em repensar os aportes teóricos e metodológicos, já que a teoria não é receita, mas lhe dá a sustentação para entender determinados fenômenos, capacidade de lidar com a contradição, com os obstáculos, com o diferente, com o estranho, igualmente com a forma de escrita, de reescrever, de reelaborar conceitos. Alguns questionamentos consecutivamente vão se aflorando sobre o trabalho do profissional de história, como “interprete do pretérito”. A pergunta “o que estou fazendo quando escrevo história?”, formulada por Michel de Certeau; a interrogação de Jean Chesneaux sobre “se devemos fazer tá-


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bua rasa do passado?” e Remo Bodei faz a pergunta bastante enfática: “se a história tem um sentido?”. Entendo que não existe tempo bom ou tempo mal o tempo todo, a sociedade é complexa. O lugar do profissional de história contemporâneo é a prática de analisar fontes e transformar em texto, o dito e o não tido, não apenas dar “voz” ao “passado”, mas explicar porque estava em silêncio. Neste artigo, faço um breve relato de vida de um imigrante português, Albano José de Almeida (1904-1974), chegando à região de Dourados na época da criação do Território Federal de Ponta Porã nos idos dos anos de 1940 na época do governo de Getúlio Vargas, conhecido como “Estado Novo” (Ditadura). No segundo momento como são tratados os “paraguaios e índios” na construção da memória realizadas em parte pelos merialistas da região sul de Mato Grosso do Sul. Questiono como são apresentados e reapresentados nas memórias oficiais e não oficiais os “índios e os paraguaios”? Os pontos e os contrapontos. Faço breves considerações sobre a fronteira seca brasileira com o Paraguai na época da implantação do Território Federal de Ponta Porã e da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) como fatores preponderantes para a efetivação de novas cidades na fronteira sul do antigo Mato Grosso e atualmente sul de Mato Grosso do Sul.

O IMIGRANTE EUROPEU CHEGA EM DOURADOS Albano José de Almeida, nasceu no dia 07 de janeiro de 1904, na Vila Nova de Monssarros, Província de Aveiro, Portugal, cursou o primário completo e aos 19 anos veio para o Brasil. Fixou-se em Campo Grande. Ao bisbilhotar sobre as redondezas ficou sabendo das terras férteis de Dourados e resolveu mudar-se no inicio dos anos de 1940. Fez a viagem de bicicleta que duraram 23 dias. Almeida observou naquela época, que na região de Dourados, as pessoas não usavam temperos na comida, organizou uma lavoura e plantou diversas hortaliças (principalmente de alho e cebola) e tentou fazer negócios com as vendas de sua plantação. Não deu certo. Os moradores não estavam habituados a consumir este tipo de condimento, resultado, faliu. Não prosperou seu negócio. Toda a plantação foi para os porcos. João da Câmara, outro português residente na cidade, sabendo do acontecido, convidou Albano José de Almeida para trabalhar na construção da estrada de Dourados à Itahum para comandar uma equipe de trabalhadores.


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Albano argumentou não ter conhecimento sobre o assunto, mas João da Câmara insistiu. Começou então, abrindo picadas, fazendo os cálculos e comandando os índios e paraguaios que trabalhavam na obra. Era uma espécie de ‘engenheiro’ da estrada. Para comprar os suprimentos necessários aos trabalhadores acampados no trajeto, Albano ia à fazenda de Horácio Marques de Matos, na picadinha, a uns 18 quilômetros de Dourados. Lá conheceu Nohemia, 23 anos, em 1943. Escreveu uma carta ao pai da moça pedindo licença para almoçar na residência aos domingos. O namoro durou uns dois anos, boa parte alimentada pelas bem escritas cartas de Albano à namorada. Em setembro de 1945 saiu o casamento, na Igreja Imaculada Conceição. (DAL BOSCO, 1995, p. 44).

Logo que casaram Albano e Nohemia vieram para Dourados morar na casa cedida pelo sogro do qual manteve um pequeno comércio. Em 1951, compraram uma área de terras e montaram um comércio em Picadinha. Vendiam tecidos, secos e molhados, mantinham também uma pequena farmácia. Enquanto comerciante na Picadinha, Albano José de Almeida era “um pouco de tudo”, segundo sua filha Helena, conciliava as brigas, tratava os doentes, aconselhava os moradores. “Tinha um pequeno caminhão, muito usado no transporte de emergência, especialmente nas brigas, para trazer os feridos para Dourados. Meu pai gostava de política, sempre ligado à direita”. (DAL BOSCO, 1995, p. 45, grifos meus). Em 1962 manteve comércio em Itaporã e não vingou. De volta a Dourados em 1963, montou o Bar e Restaurante o Saci, na Avenida Marcelino Pires. Albano José de Almeida sempre gostou de escrever, publicava crônicas para o jornal A Voz de Portugal, de São Paulo, dirigida para os imigrantes portugueses e também em jornais de Dourados. Em 1966, torna-se redator-chefe do jornal O Progresso. Em uma de suas crônicas, “Bode Branco”, que relata as peripécias de um carro Ford 19, verde, que caiu na fossa de sua casa, o carro atolou quase por inteiro na fossa, ficando só com os para-choques de fora, no outro dia ao retirá-lo, foi lavada por crianças com prendedor de roupas no nariz, a Ford mandou publicar no The New York Times e ainda Albano José de Almeida recebeu um dinheiro pela crônica. Depois de muitas aventuras e desventuras Albano morreu em 1974 e Nohemia em 1987. O casal teve seis filhos.


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Neste breve relato de vida de Albano José de Almeida, resultados de uma série de reportagens publicadas no jornal, O Progresso, de março à novembro de 1995, num total de 41 artigos, que originou o livro, “Os Pioneiros – Viajantes da ilusão”, organizado pela jornalista Maria Goretti Dal Bosco, editado no mesmo ano. O artigo aqui narrado teve como título, “Os Almeida, uma casa portuguesa com certeza”. (DAL BOSCO, 1995. p. 44-47). Ao ponderar as fontes que tratam sobre a criação do Território Federal de Ponta Porã o que me chamou bastante atenção foi do depoimento de vida do português Albano José de Almeida, sobretudo quando foi contratado sem experiência nenhuma pelo patrício João da Câmara para comandar os “índios e paraguaios” na construção da estrada de Dourados até Itahum.

OS PARAGUAIOS NO BRASIL: DOURADOS E REGIÃO Armando da Silva Carmello, autor do hino de Dourados, publicou em 1973, o livro “Dourados, terra prometida”, que segundo Betoni para “os padrões então vigentes” a obra foi escrita por uma pessoa credenciada “que contasse a história de Dourados” (BETONI, 2002, p. 31), a primeira parte do livro foi escrita em forma de peça teatral. Na cena VII do livro, Carmello apresenta “um baile” e o cenário é uma casa de madeira, com quatro cômodos, cercada de balaústre e coberta de tabuinha, sendo o personagem principal um gaúcho: Januário Pereira de Araújo, o chefe da casa, estava de chapéu largo, bombacha, lenço no pescoço e um bom 38 na cintura; as moças são descritas de vestido simples, saia rodada, de lenço no pescoço e fita no cabelo, “tipo da cabocla” que são “alegres” e de “modo respeitoso” para com os convidados. Um Baile: A casa iluminada com candeeiros nos quatro cantos, quando um acordeón riscava as notas sonoras que iam perder-se pelas matas distantes, acompanhada por dois violões que não só acompanhavam a música como ponteavam maravilhosamente. Ia animado o baile, e, lá pela tantas da noite, quando o luar batia de cheio na casa que quase se escondia à sombra dos arvoredos, um transeunte, bem montado à cavalo, pra, observar o baile que ia animado, e resolve entrar. Era...


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Um paraguaio: Com botas, calças largas, chapéu desabado, esporas reluzentes, vai penetrando em meio aos que estavam na casa, a estas horas alegres e contentes com o acontecimento. Esse desconhecido pisa o salão, tira uma dama e começa a dançar. Dança a primeira peça, dança outra e não quer que a música pare, ordena ao músico que continue a tocar. Este não obedece a intimação do desconhecido. Pára a música e o desconhecido desafia os presentes, nada mais restava senão tirar o intruso da casa e acabar o baile. Efetivamente, as luzes se apagaram, o homem saiu, não sabemos dizer por qual porta, e, momento após, longe, muito distante um cavalo em disparada punha fim a esta aventura de um transeunte e desconhecido... Lá ia o homem com o lombo ardendo de uma grande surra que levara... (CARMELLO, 1973, p. 14).

É importante refletir como Carmello manifesta em seu livro a representação do paraguaio como: encrenqueiro, bagunceiro, incivilizado, ignorante, indisciplinado; o “desconhecido” não tem “educação”, entra no baile sem ser convidado. Por isso, mereceu apanhar, levar dos brasileiros uma grande surra e do qual saiu com o “lombo ardendo”. O livro de Carmello “teve caráter oficial”, já que foi financiado pela Prefeitura e pela Câmara Municipal de Vereadores (cf. Betoni, 2002). Já o livro “História, fatos e coisas douradenses” (1995), de João Augusto Capilé Júnior, Júlio Capilé e Maria de Lourdes da Cruz e Souza, ao relatarem sobre a fundação do atual município de Juty descrevem: “seus primeiros habitantes foram os Claro, Antônio Guri e uma porção de Paraguaios, inclusive muitas mulheres, sob o comando da Lupa”. (CAPILÉ JUNIOR e outros, 1995, p. 136, grifos meus). Este ponto é o questionamento: “e uma porção de paraguaios”, os autores tratam os paraguaios como que se não existissem na história, são apenas o “outro”; nesta crônica os paraguaios são apresentados como seres inferiores, servem apenas como ajudantes por isso, não merecem entrar na história dos “verdadeiros” fundadores da cidade. Mesmo que, havendo evidência que naquela época, os paraguaios eram a maioria, mas não são considerados por parte dos memorialistas e silenciado este ponto na historia do sul de Mato Grosso do Sul. Os paraguaios continuamente são representados como inferior, insignificante, ignorante, atrasado. Lembro que há exceções. Que tratarei mais adiante. E “inclusive muitas mulheres”,


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significa “prostitutas paraguaias”, que estariam em “comando da Lupa”. Sobre esta questão das mulheres paraguaias articulo mais adiante em detalhes de como pretendo ponderar este tema. Para finalizar este primeiro ponto que levantei do texto de Albano José de Almeida sobre os trabalhadores da região daquela época, a questão indígena. Um exemplo, a cena III do livro “Dourados, terra prometida”, de Carmello, em que apresenta os personagens João Vicente Ferreira, Dona Elizena Muzzi Ferreira e “alguns índios da região”. Índio fala com João Vicente Ferreira: — Patrão, índio quer roupa. Caiuá quer comida e fumo. João Vicente Ferreira — Muito bem. Você vai trabalhar comigo traga mais companheiros darei tudo a vocês, ouviu? Esta vendo aquela roça? Alí tem de tudo, depende só de você cuidar, não precisa você levar nada sem minha licença ouviu? (...) Vou lhe dar arma para a caçada. Traga-me caça, sempre que puder. Gosto de carne de caça. (CARMELLO, 1973, p. 10).

Neste exemplo especifico sobre a cena dos indígenas, merece uma reflexão, os índios são apresentados como “pedinte” de “roupa e fumo”, mas o “bom coração” de João Vicente Ferreira oferece “oportunidade” aos índios de poderem também “desfrutar” de sua roça, desde que tenha que trabalhar, em “troca” recebiam “roupa e fumo”. O discurso sofre uma transmutação, do explorador para o bonzinho (do bom homem, que só quer ajudar, do bonachão). João Vicente Ferreira na cena passa de vilão para o herói, aparece como o empreendedor, que “dava” o que tinha na roça e até podia chamar mais índios que não tinha problema nenhum, “traga mais companheiros darei tudo a vocês”; mas o dono da roça avisa, “não precisa você levar nada sem minha licença ouviu?”, Ou seja, fica evidente o discurso do dominador, “ouviu?”, se por um acaso o índio levar alguma coisa da roça sem avisar? Tudo leva a entender que seria uma punição severa, pelo “ouviu?” soa como uma ameaça mesmo, discurso do senhor soberano. “Traga-me caça”. Continua Carmello: “Os índios, nas horas de folga se aproximavam da casa de João Vicente Ferreira e deste recebiam presentes”. (CARMELLO, 1973, p. 10, grifos meus). Assim, percebese que os indígenas trabalhavam demasiadamente e “nas horas de folgas” recebem como “presente... o fumo...”. A ascendente de paraguaios, Eunice Benites Ortiz, em seu depoimento, no livro Vozes Guarany (ORTIZ, 2010, p. 73-85), conta que nos anos


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cinquenta em Dourados havia “separações de raça”. Ortiz afirma que em baile dos brasileiros não entravam paraguaios e no baile dos paraguaios não podia entrar brasileiros. Com alguma ressalva aos bailes dos brasileiros que convidavam só as paraguaias para irem ao baile, “porque as moças paraguaias eram muito lindas, cabelos pretos, longos, na altura da cintura, bonitos de se admirar” (ORTIZ, 2010, p. 80). A afirmação de Eunice Benites Ortiz, sobre “separações de raça”, merece estudos mais profundos, com aportes teóricos que possa questionar e ponderar este tema complexo por sim mesmo? Mas o próprio Carmello nos anos setenta do século XX, representou em sua cena no livro um paraguaio como intruso, transeunte, desconhecido, um intrometido no baile da casa de um brasileiro. Este ponto merece muita atenção. É uma separação ou meia separação? Porque só as paraguaias podiam entrar no baile? Até que ponto existe a separação de raça? De acordo com Eunice Benites Ortiz, os bailes eram aos sábados, na casa de um vizinho ou de parentes, muitas vezes, ficavam léguas e léguas2. Íamos mais ou menos de trinta a quarenta cavalos todos juntos, os cavalos dos homens eram bem arrumados, com arreios e argolas, e a peiteira era de prata e ouro. As mulheres iam montadas de lado em seu cavalo, usando uma manta muito bonita, com vestido comprido que cobria a anca do cavalo; seus cabelos compridos soltos usando uma fita com um laço. Digo as solteiras, enquanto que as casadas usavam um lenço. Essa era a diferenciação. (ORTIZ, 2010, 78).

Eunice Benites Ortiz conta que na sua juventude quando era convidada para algum baile no sábado, naquela semana trabalhava com muita disposição e alegria, porque sabiam que a diversão estava garantida. Recorda que era os pais que levavam as moças para os bailes e elas só poderiam dançar quando completassem quinze anos. Essa data era muito importante para as “debutantes” e para as famílias: Era costume se fazer um baile, convidar os amigos e lá pelas altas horas da noite, o pai vinha de braços dados com sua filha, que trajava um longo vestido branco e rosa, todo bordado, com uma

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Cada légua, 6.600 metros aproximadamente.


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tiara igual à de uma princesa nos cabelos, que eram compridos. Antigamente as mulheres não podiam cortar os cabelos, nem solteira, nem casada. O pai, vestido com seu melhor terno, apresentava a sua filha para as pessoas presentes no salão, todos batiam palmas e os músicos tocavam uma valsa. O primeiro a dançar com ela era seu pai. Na segunda música, o pai a levava para um pretendente, se tivesse; se não, oferecia ela para dançar a um cavalheiro que ele respeitasse e aí todos os convidados podiam dançar. Depois de terminada a dança, a moça se sentava ao lado de sua mãe e começava o baile novamente. Somente a partir desse dia, a moça estaria liberada para dançar nos outros bailes. (ORTIZ, 2010, p. 74).

O local da dança nas fazendas era uma área feita com ramada e de chão batido, havia espaço para os músicos e uns bancos bem compridos, onde sentavam as moças e as mães. Os rapazes só começariam a dançar no baile quando completasse 21 anos de idade, só aí poderia também usar calça comprida, bombacha, colete, camisa com manga cumprida, guaiaca, bota e chapéu; antes dessa idade suas vestes era uma bermuda até aos joelhos, camisa e suspensório. (cf. ORTIZ, 2010). Os filhos homens viveriam sobre as ordens dos pais e dos irmãos mais velhos, trabalha-se para ajuda no sustento de casa, o dinheiro ganho, era o pai que administrava, “o irmão mais velho era considerado e respeitado com a mesma obediência do pai, poderia corrigir e até tomar atitudes na ausência do pai, os irmãos mais novos pediam benção”. (ORTIZ, 2010, 77). Quando o filho completava a maioridade, “o pai o levava para conhecer um cabaré, para ficar com as mulheres, mostrar o que é a vida”. Depois deste “teste”, ele estaria pronto para a vida e para arrumar uma moça de boa família para se casar, ou sair de casa se quisesse, porque “a obrigação do pai já havia sido cumprida”. (id, 77). Nota-se a rigidez de uma família de ascendentes paraguaios que viviam em Dourados na época da implantação do Território Federal de Ponta Porã. Interessante depoimento para analises de entendimento deste momento histórico. Segundo Eunice Benites Ortiz, para as famílias paraguaias, o sexo só no casamento, antes se descoberto pela família era a “pior” coisa que acontecia, pois o pai chegava a entregar para a polícia e a fichar como prostituta.


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Mulheres separadas eram muito mal-vistas e mal-faladas, as famílias não aceitavam; elas não podiam ficar perto de mulheres casadas e solteiras. Pior acontecia com as ‘perdidas’, moças que ‘pecavam’ antes do casamento. Muitas delas ninguém nem conhecia, porque quando isso acontecia o pai levava até uma delegacia, que era a máxima autoridade, tiravam sua foto, ficava fichada na polícia como prostituta. O inspetor ou delegado as encaminhavam para a zona ou cabaré, como chamavam na época as casas de prostituição, entregando-as para as cafetinas donas dos bordéis. De lá nem saíam mais; suas chefas, as cafetinas compravam suas necessidades como roupas, calçados, maquiagens, etc. Sua moradia e comida eram cobradas mensalmente, iguais a um aluguel. A cada prostituição, a chefe tinha uma porcentagem que era manipulada por elas. Se acontecesse de elas saírem, só acompanhadas de sua cafetina. Quando isso acontecia, iam de charrete. Ao chegarem à cidade, todos corriam para nem sequer cumprimentá-las e as olhavam como se elas tivessem alguma doença contagiosa, ou fossem um ser de outro planeta. Mulheres de família não podiam passar em frente aos cabarés, não que elas proibissem, mas pelo fato de serem o que eram.

As mulheres “perdidas”, pelo depoimento de Ortiz, são as flagradas fazendo sexo antes do casamento, ou seja, a educação paraguaia era tão rígida assim, ao ponto do pai entregar a filha para a prostituição? De não aceitá-la mais na família? Ou a “severidade” do pai é só para os “nossos olhos” do tempo presente? Ponto este, que merece uma reflexão do historiador. Para Elpídio Reis os paraguaios da fronteira soube conquistar a amizade dos brasileiros graças às suas harpas, aos seus violões e as mulheres, morenas e bonitas. Reis afirma que apesar de sua mãe ser brasileira, quando era bebê ao colocá-lo no berço para dormir as músicas de ninar eram músicas paraguaias. Na fazenda de seu pai, o capataz chamado Vilhalba, tocava inúmeros instrumentos entre eles o violão, cavaquinho e a sanfona e por isso, lembra que em sua casa, volta e meia se enchia de música paraguaia. Em qualquer lugar que eu fosse, nas outras fazendas, por exemplo, paraguaios ou brasileiros, só tocavam polcas. Com dez anos fui para Ponta Porã, estudar. Na cidade, continuei ouvindo música paraguaia. Quando me decidi aprender a dançar, aprendi primeiro as polcas...


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Era natural. Aos dezesseis anos fui para Campo Grande. Ali, as duas principais sorveterias da época, a Bom Gosto e a Bom Jardim, uma a vinte metros da outra, na Rua 14, disputavam a preferência do público, procurando apresentar, cada uma delas, o melhor sorvete e, sobretudo, os últimos discos de polcas paraguaias. (REIS, 1981, p. 62).

Além das cidades da fronteira e de Campo Grande, Elpídio Reis garante que 95% das músicas que se ouvia nos municípios de Maracaju, Aquidauana, Dourados, Miranda eram as polcas paraguaias. Para o trabalho nos ervais, ninguém melhor que o trabalhador paraguaio. O paraguaio é fisicamente forte e sóbrio em alimentação. É obediente e desambicioso e têm a altivez e o bom humor de seus ancestrais, os primitivos guaranis. Gerações inteiras, avós, pais e filhos aqui viveram e aqui morreram dentro dos caatins e a eles, inegavelmente, devemos a situação econômica que desfrutamos no período ervateiro. (REIS, 1981, p. 102-103).

O trabalhador paraguaio é homenageado por ser “obediente e desambicioso” e no trabalho pesado ainda consegue manter o “bom humor”. Elpídio Reis assegura que o peão paraguaio quando de boa cepa, “era amigo incondicional do patrão, e companheiro para o que desse e viesse. Aguentava os revezes do trabalho bruto e quase desumano em que se alicerçava a economia da região fronteiriça”. (REIS, 1981, p. 105). Dos quais chamam os fazendeiros, comerciantes e chefes, carinhosamente de “chê patron” (meu patrão). A fronteira Brasil/Paraguai desde a cabeceira do Apa até o fim da fronteira Sul, fica o divisor das águas subterrâneas, na época era conhecido como “espigão seco”. O espigão sempre foi campo limpo e como tal não sofria influência proibitória da Empresa Mate Laranjeira. Havia fazendeiros com criação de gado e camponeses trabalhando na terra com pequenas roças. Portanto, o que derrubavam era pequena parte de mata ciliar e parte de cerrado. Júlio Capilé conta que o fronteiriço naquela época era normalmente trilíngue, pois se falava o português, o castelhano e o guarani. “Português mal falado, Castelhano campesino e Guarani del Pueblo”. (CAPILÉ, 2004, p. 94). Aconteciam diversas coisas na “fronteira-seca”, “entre os lugares” dos


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dois países, que era totalmente “diferente” de outros pontos do Brasil e até mesmo do Paraguai, tomados por fazendeiros e camponeses que “ocupam” as terras (em que a Empresa Mate Laranjeira não interessa), todos vão se adaptando com o “falar” da fronteira. O espigão seco, por pertencer a linha da fronteira, muitas vezes não sabia se estava no Brasil ou no Paraguai. Uma das preocupações de Melo e Silva em 1939, era sobre o “falar” da fronteira pelos próprios brasileiros que moravam na fronteira, considerava um péssimo exemplo para os filhos. É lastimável que nós, os brasileiros, nos mostremos pouco ciosos pelo emprego regular de nossa língua em toda extensão daquelas fronteiras e em nosso trato com os paraguaios. Não vemos como justificar essa insistência de um grande número utilizando vocábulos castelhanos em um criminoso esforço para o afeamento do idioma nacional. Não condenamos que se aprenda e fale a doce língua de Cervantes. Profligamos essa mistura, desnecessária e prejudicial à cultura dos dois idiomas. É vulgar entre brasileiros a saudação Buenos dias, buenas, tarde, buenas noche, adiós e outras, em uma ostentarão singularíssima, e até ridícula. Conhecemos inúmeros brasileiros, não-mestiços (porque esses em geral se identificam aos paraguaios), que empregam impieçar, enfermar, aquilar, cambiar, acostar, enojar, serventa, marchante, sobrero, etc – em vez de começar, adoecer, alugar, mudar ou trocar, deitar, enraivecer, criado, freguês e chapéu, sem perceber que, além de tudo, dão péssimo exemplo aos filhos, que por sua vez vão crescendo nessa indiferença pelo pureza da língua (MELO E SILVA, 2003, p. 82).

Para Melo e Silva na cidade de Bela Vista era o “principal império da ociosidade”, observou que os comerciantes vendiam, “em menos de três anos cerca de quatrocentos violões, ao passo que no mesmo espaço de tempo não conseguiram vender uma só enxada ou machado”. (MELO E SILVA, 2003, p. 84). Nesse sentido, o autor relata que ao contrário do que acontece com os brasileiros, especialmente o paulista e do nordestino, “que só em casos excepcionais se afastam do trabalho em dias úteis”, já em Bela Vista encontra-se em qualquer parte, a todo instante, “homens e mulheres, ordinariamente a cavalo. Agrupam-se em qualquer parte, cantando e bebendo. É comum ficarem horas a fio nas casas de negócio, cantando e tocando sanfonas, violões e violinos, a pretexto de experimentarem estes instru-


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mentos cujos estoques são sempre vultosos”. (Ibid., 2003, p. 84). O autor defende a ideia que seriam outras as condições da fronteira, “se machados, foices e enxadas tivessem a aceitação na razão de um décimo das sanfonas, violões, violinos e bandolins que lá se vendem” (Ibid., 2003, p. 84). O espaço da fronteira sempre foi preocupação do governo federal em “ocupar os espaços vazios” na região de fronteira. Estudos realizados por Jerry Roberto Marin aponta que muitos intelectuais naquela época apresentavam a fronteira do Brasil com o Paraguai como um Brasil “desnacionalizado”, isolado geograficamente, atrasado economicamente, desguarnecido militarmente, constituída de uma população bárbara e avessa a ordem e às leis nacionais. Na visão de uma parte desses intelectuais analisados por Marin a fronteira do Brasil com o Paraguai era um espaço não incorporado ao Brasil e que distanciava da modernidade dos centros mais dinâmicos da economia nacional. A posição geográfica, a extensa fronteira e a economia regional acentuavam sua “desnacionalização”. Ou seja, era preciso “nacionalizar” os espaços brasileiros. Tanto Mato Grosso como Mato Grosso do Sul, Paulo Roberto Cimó Queiroz considera “um dos mais fascinantes casos de fronteiras” da história brasileira. A fronteira como lugar do “temor” e da “esperança”, como lugar de encontro e conflitos de alteridades, dispu-ta entre Portugal e Espanha e depois entre os Estados independentes, Brasil, Paraguai, Bolívia. As regiões fronteiriças são representadas muitas vezes como paraíso e outras vezes como inferno. As fronteiras sempre como lugar de passagem, de trânsito, de idas e vindas. Mas a fronteira também é lugar do contrabando, da contravenção e do refúgio de bandidos.

INSTITUIÇÃO DO TERRITÓRIO FEDERAL DE PONTA PORÃ O governo federal ao criar Territórios, pode intervir diretamente aos interesses nacionais nas regiões de fronteiras, principalmente nas questões de arrendamento de terras, que pela Lei brasileira quem “legalizava” as terras naquela época era o “Estado”. É no período da Segunda Guerra Mundial que foi (1943-1946), aos quais passaram a compor os seguintes municípios: Ponta Porã (capital), Maracaju, Porto Murtinho, Nioaque, Bonito, Bela Vista, Dourados e Miranda. Uma faixa de terras que abrangia parte do sul de Mato Grosso, fazendo fronteira com o Paraguai cuja superfície foi calculada em 99.141 km.


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Júlio Capilé em suas crônicas: “Antigamente era Assim”, lembra que a cidade de Ponta Porã dos anos quarenta. O Brasil entrou na guerra em 1942. Houve a convocação de reservista em setembro. Apresentei-me em primeiro de outubro e vivi uma temporada em uma das cidades mais gostosas de se morar. Ponta Porã com a leva de bombachudos (nós os convocados da fazenda), aumentou seu movimento. No primeiro mês nem tanto porque estávamos arranchados, mas depois os movimentos de bares, pensões e do comércio em geral, aumentou. Nós não dependíamos dos vinte e um cruzeiros (moeda recém-criada), vencimento de recruta para nos movimentarmos. Mesmo Punta Porã, isto é, do lado do Paraguai recebeu um impulso com movimentação. Nesse tempo era Ponta Porã do lado Brasil e lado do Paraguai. (CAPILÉ, 2004, p. 91).

Em 1943, Ponta Porã, era uma das cidades mais importante do Estado de Mato Grosso, com uma abrangência econômica considerável, aliadas a uma pecuária e uma lavoura crescente, além da pujante erva-mate. Como capital Ponta Porã, era uma efervescência, vida intensa, alegria plena, segundo Capilé, chegavam de todos os municípios moços e moças para cursarem pedagogia e levarem o ensino para suas cidades e lugarejos. Foi criada a Guarda Territorial que aumentou o contingente humano na capital. Havia emprego para todo mundo. Com o aumento do efetivo tanto do 11º R.C.I. na capital (Ponta Porã), como em Bela Vista o 10.º R.C.I. Para Júlio Capilé, “a fronteira ficou bem vigiada e em paz”. (id, 91). De acordo com Almiro Pinto Sobrinho em seu livro “Amambai: Memórias e Histórias de Nossa Gente”, publicado em 2009 (309 páginas), um ponto muito importante para a fronteira foi à criação do Território Federal de Ponta Porã. Criado com a finalidade de abrasileirar nossa fronteira com o Paraguai, o Território procurou executar um programa para desenvolver todos os municípios, que estavam na jurisdição da Cia. Matte Laranjeira, com abertura de estradas, de pontes, de escolas e de segurança, tudo o que faltava para criar uma unidade nacional na fronteira. Foi o que o território fez nos três anos de sua vigência. (SOBRINHO, 2009, p. 86, grifo meu).


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O primeiro governador do Território Federal de Ponta Porã foi coronel Ramiro Noronha nomeado por Getúlio Vargas, administrou de 1943 a 1945, segundo Rosa, em sua gestão foram construídas inúmeras pontes, criou colônias agrícolas em Dourados, Caarapã e Itaporã. Criou uma escola normal e uma biblioteca pública em Ponta Porã, além de vários cursos noturnos em diferentes pontos do território, concedeu também os primeiros títulos de terras aos lavradores, na área devoluta ocupada até então pela Empresa Mate Laranjeira. O coronel Ramiro Noronha deixou a chefia do Território Federal de Ponta Porã, em novembro de 1945, devido à deposição de Getúlio Vargas. Noronha exonerou-se em data de 17 de novembro de 1945, passando o cargo ao professor Leônidas Horta, diretor da educação e cultura, e seguiu para o Rio de Janeiro. Foi nomeado para substituí-lo o major José Guiomar dos Santos, que assumiu o cargo a 24 de novembro, exercendo o mandato durante dois meses apenas, seguindo para ocupar a governança do Território do Acre, em virtude de posterior nomeação. Por designação do presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, assumiu então o cargo de governador o dr. José Alves de Albuquerque, cuja administração teve curta duração, em vista da extinção do Território. O governador dr. Albuquerque teve como seus auxiliares os seguintes serventuários: secretário-geral, dr. Valério Caldas de Magalhães; diretor de saúde, dr. Sílvio Granjeiro Ferreira de Almeida; diretor de administração, dr. João da Silva Ramos; diretor de engenharia, dr. Otávio Mendonça de Vasconcelos; consultor jurídico, dr. Mário Vasconcelos Cavalcanti; e diretor de segurança e guarda, o dr. Joaquim Diógenes (ROSA, 2004, p.65/66).

Com a extinção do Território Federal de Ponta Porã estabeleceu-se que os municípios voltassem a integrar o Estado a que pertenciam. Esse ato gerou um clima de insatisfação nos municípios que integravam o Território. A “população” reagiu nas cidades e distritos pela restauração do Território. Pedro Ângelo da Rosa menciona que nesta época Fundou-se a Liga PróRestauração do Território, sendo enviado à capital da República o “Dr. João Portela Freire, que muito trabalhou junto aos representantes da Câmara, a fim de serem atendidas as suas reivindicações, porém nada mais foi conseguido e o caso ficou definitivamente encerrado” (ROSA, 2004, P. 67).


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Para Almiro Pinto Sobrinho a região de Amambai era uma das que vinha recebendo muitos benefícios do Território, a mudança inesperada trouxe sérios problemas em todos os setores. Em Amambai houve uma manifestação pública com um discurso inflamado do Sr. Gualter Belacho, morador da cidade, pela volta do Território. Essa bandeira continuou sendo defendida, por um bom tempo, pelos getulistas. A história não é tão simples assim, exclusiva, apenas dos grandes vultos e homenagens aos governadores nomeados e dos cargos de primeiro escalão. A história não é determinista, linear, absoluta. Entendo que a história não é feita apenas de grandes vitórias ou derrotas, mas de sujeitos que construíram as cidades, vilas, distritos, fazendas, sítios, chácaras estradas, ruas, praças e avenidas, com força, suor, lágrimas e risos. Que formam as múltiplas culturas das populações das fronteiras da porção sul de Mato Grosso do Sul. As fontes até aqui pesquisadas apontam a passagem do Território Federal de Ponta Porã como um componente importante para o “abrasileiramento” da região sul de Mato Grosso do Sul. Já que até os meados dos anos 40 do século XX a região de fronteira era considerada mais “castelhana” ou “guarani” do que “brasileira” propriamente dita. Para os memorialistas estudados até o momento, a criação do Território Federal de Ponta Porã foi uma coisa muito boa que aconteceu na região, principalmente para os municípios e distritos contemplados na linha da fronteira seca entre o Brasil e o Paraguai que receberam obras de infraestrutura. Se há consenso de bom, de positivo, quais são os pontos negativos. O que está subentendido com o discurso do “progresso” e do “desenvolvimento”? O tema aqui proposto por ser um “território”, digamos que vasto, e por isso mesmo, complexo, contraditório e extremamente dinâmico, o que impede que se possa ter uma representação, consensual, homogênea, estável, linear. Não há resposta única, para esta questão. A função do historiador não é inventar alguma coisa, mas descobrir alguma coisa. Por isso, a importância deste projeto para proporcionar detalhes aparentemente marginais e irrelevantes, para esclarecimentos de pontos relevantes e de forma sistemática. Considero o tema pouco explorado pela historiografia sul-matogrossense, em minhas observações o Território Federal de Ponta Porã é reapresentado como um ícone efêmero, passageiro, temporário, tímido e


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esparsamente publicado em artigos de jornais, crônicas, textos acadêmicos, livros de memórias e didáticos. Daí a necessidade de estudos mais profundos com aportes metodológicos para analisar os depoimentos aqui elencados: O testemunho de Eunice Benites Ortiz de que em Dourados havia nos bailes, “separações de raça”, esta afirmação merece uma reflexão, ainda mais porque o próprio representante da “intelectualidade” douradense, Armando da Silva Carmello, nos anos setenta do século XX, representou em seu livro, a cena de um paraguaio como intruso, transeunte, desconhecido, um intrometido no baile na casa de um brasileiro. Até que ponto existe a separação de raça? É só no baile? Ou como foi o caso de Albano José de Almeida sem experiência nenhuma em construir estradas, foi comandar índios e paraguaios? Carmello dá uma “surra merecida” no paraguaio intruso? Quantos mais apanharam? Inclusive muitas mulheres? Qual o papel da mulher neste período? Principalmente oriundas das famílias paraguaias. As mulheres “perdidas”, pelo depoimento de Ortiz são as flagradas fazendo sexo antes do casamento? Ou as que ficaram grávidas? Com quem fica o filho? A educação paraguaia era tão rígida assim, ao ponto do pai entregar a filha para a prostituição? De não aceitá-la mais na família? Ou a “severidade” do pai é só para os “nossos olhos” do tempo presente? O mesmo pai que leva os filhos homens na “zona” para “mostrar o que é a vida”, leva a filha para ser fichada na polícia como prostituta? Andar sem “arma de fogo”, naquele tempo “era o mesmo que estar desnudado”, para os autores, João Augusto Capilé Júnior, Júlio Capilé e Maria de Lourdes da Cruz e Souza, os fuzis pertencentes ao exército brasileiro, eram considerados como uma coisa “comum” na região e nas propriedades de fazendeiros. Mesmo sendo 50 fuzis em porte de um só fazendeiro? Só os paraguaios são os bandidos? Ninguém mais? Qual a diferença de vida social de Almeida com Ortiz? Afinal, quem paga as contas? Quem ficou rico após a criação do Território e das colônias agrícolas? Por que os paraguaios que já moravam aqui não foram assentados nas terras devolutas da Empresa Mate Laranjeira? Por que os paraguaios são incluídos nos trabalhos e excluídos da posse de terras? O território foi extinto e pronto? Não, em Amambai muitas obras de infraestrutura permaneceram, por exemplo, a casa que funcionava o escritório do território ficou sendo a sede da futura Prefeitura de Amambai, 1948. O que mais ficou? Os tratores? As serrarias? As olarias? Os maquinários? Ficou com quem? Para quem?


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A conquista do Brasil na fronteira guarani não foi nada pacifica, não foi apenas um “pacote” governamental e pronto? Foi construída aos longos dos anos. Não são um ou dois casos, são inúmeros os fatores que contribuíram para a homogeneização brasileira na fronteira. Onde se cantava e se falava, buenos dias, buenas, tarde, buenas noche, adiós, vai sendo ocupado por costumes do arroz-com-feijão, do carnaval, do forró, do desfile de 7 de setembro comemorado nos distritos, vilas e cidades. Tudo indica, que a partir da criação do Estado de Mato Grosso do Sul (1977), a “cultura paraguaia” é “resgatada” como “pertencimento” da identidade sul-mato-grossense. Um exemplo, o tereré torna-se um discurso de uma bebida agradável, deliciosa, saborosa, para beber com os amigos, “fazer a roda”, já que possibilita a conversa, o diálogo e a amizade. Além de “matar a sede”. Lembro que as memórias publicadas anteriores a 1977 o “tereré” era divulgado como costumes de paraguaios no sentido pejorativo, “enrolação no serviço”. O meu tema é mostrar o lado do peão paraguaio (não só dos ervais, mas do cotidiano das fazendas e das cidades). As ponderações realizadas até aqui, sobre a importância do Território Federal de Ponta Porã em possibilitar “caminhos” para as “fronteiras agrícolas”, com fundação de novas cidades, principalmente na região do sul de Mato Grosso do Sul, atualmente cerca de 40 municípios, considerada uma área que há mais municípios brasileiros em faixa de fronteira. Com a instituição de cursos de graduação em História nas cidades de Dourados, Ponta Porã e Amambai e as muitas perguntas da criação e da efetivação do Território Federal de Ponta Porã; a falta de material sistematizado sobre esta temática, daí vem à relevância de estudar mais sobre a criação do Território Ferderal de Ponta porã.

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ADENTRANDO O MUNDO DE LAVOURA ARCAICA: A INTIMIDADE FAMILIAR EXPOSTA1 Rosicley Andrade COIMBRA2 RESUMO Este artigo pretende discutir a postura do narrador-personagem André em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. Partiremos da hipótese de que, ao fugir de casa e se refugiar em um quarto de pensão, André provoca não só um sismo na estrutura familiar, mas cria também um espaço avesso ao da família. Tal ação retira a figura paterna da segurança do lar, lançando-a num espaço aberto, para não dizer totalmente público, no qual a tessitura de seu discurso é bruscamente revirada, bem como o corpo familiar exposto. Sendo assim, sublinharemos como o narrador procede em sua exposição e qual subterfúgio usará para expor a vida familiar e, consequentemente, a ossatura do discurso patriarcal. Palavras-chave: Família; Intimidade; Exposição.

ABSTRACT This article intents to investigate the posture of narrator and character André in Lavoura arcaica by Raduan Nassar. From the hypothesis that when André runs away from home and refuges in a pension room he causes not just a shock in the familiar structure but also creates a very differente space from family. This action takes off the paternal figure from

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Este artigo é uma versão ligeiramente modificada de um capítulo da dissertação de Mestrado intitulada: “Do arcaico ao moderno: tradição e (des)continuidade em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar”, orientada pelo Prof. Dr. Rogério Silva Pereira. O autor gostaria de agradecer à CAPES pela bolsa concedida durante a pesquisa. 2 Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), na área de Literatura e Práticas Culturais. E-mail: rosicleycoimbra@yahoo.com.br.


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security of home lunching him in a opening space, not totally public, but where his discourse tessitura will be abruptly turn inside out and the familiar body will be exposed. Thus we’ll emphasize how the narrator procedures in his exposition and what kind of strategy he’ll use to expose the familiar life and consequently the structure of patriarcal discourse. Keywords: Family; Intimacy; Exposition.

INTRODUÇÃO O mundo de Lavoura arcaica (LA) pode ser caracterizado por seu fechamento. Trata-se, em primeira instância, de um mundo que podemos chamar de particular, pois concerne somente à esfera privada que é a família. A lavoura e a obediência às tradições se apresentam como imagens recorrentes da continuidade, o que cria a impressão de um movimento cíclico e auto-referencial dentro da obra. Adentrar tal mundo é trilhar caminhos incertos, para não dizer cambiantes, posto que nada é o que parece: a paciência e a calma são só aparentes, porque estão na iminência de se romperem. O patriarca busca a todo o momento manter a família afastada do mundo exterior: “o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio” (p.56)3, dirá em um de seus sermões . Por isso procura pelo equilíbrio (ou será controle?) das vontades e desejos dos membros da família. Em nome de uma “unidade maior” (p.148) há que se abandonar a individualidade, concebida como um “mundo menor” (p.148). É dessa forma que vemos os limites entre a individualidade e a coletividade serem marcados e, principalmente, os limiares entre o público e o privado definirem-se. No entanto, a fuga de André, espécie de ovelha negra, terminará por confundir tais espaços: a intimidade da família será mostrada a estranhos — no caso, o leitor. De igual maneira, as fronteiras entre o que é privado e o que é público também serão confundidas. Assim, nosso intuito será investigar essa intimidade familiar, buscando aí os indícios de uma exposição da privatividade de seus membros. Partiremos da hipótese de que ao fugir de casa e se instalar em um quarto de pensão, André fará bem mais que provocar um sismo a abalar as estruturas

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Todas as referências retiradas da obra virão marcadas apenas pelo número da página.


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familiares, interrompendo a continuidade da lavoura; ele também criará um espaço que se mostrará inteiramente diverso do mundo de onde se evadira. Trata-se de um espaço que podemos chamar de compartilhado, no qual os dramas familiares, restritos à esfera do lar, serão explicitados por meio das estratégias da narrativa.

1. A INTIMIDADE DO QUARTO DE PENSÃO Após fugir de casa, André se hospeda “numa velha pensão interiorana” (p.09), entregando-se a uma vida de excessos, contrariando as palavras do pai. Será também nesse recinto que fundará, provisoriamente, seu mundo individual, sendo perturbando somente com a chegada do irmão mais velho, Pedro, que vem com a clara intenção de devolvê-lo ao lar. Antes da chegada de Pedro a narração se mostra marcadamente lírica, confundindo as fronteiras entre prosa e poesia. Esse traço indica uma quebra no paradigma da ordenação da narrativa, que será fragmentada. A imagem criada pelo refúgio no quarto deixa entrever uma tentativa de construção de um eu-indivíduo que, separado da família, procura por liberdade. Por esse aspecto, LA tematizaria a existência de uma tensão entre a figura do indivíduo e a família. E mais, André encarnaria também o narrador romanesco, isto é, um homem que se aparta da família, destaca-se da sociedade e erra pelo mundo, não mantendo vínculos com ninguém, a não ser consigo mesmo4. Por sua vez, a família em LA se apresenta como uma verdadeira unidade consignada pela figura patriarcal, espécie de arconte, para falar com Jacques Derrida (DERRIDA, 2001, p.12), responsável pela proteção, manutenção e continuidade da tradição. Tal posição assegura ainda ao pai uma competência hermenêutica, manifesta na forma de sermões, proferidos à mesa antes de cada refeição. Contudo, a gravidade com que esse pai fala

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Aqui fazemos referência às palavras de Walter Benjamin e Theodor Adorno acerca do narrador romanesco. Enquanto o primeiro aponta a existência de um “indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1994, p.201), o segundo dirá que o narrador contemporâneo “parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom de quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar” (ADORNO, 2003, p.59).


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deixa entrever um tom sempre prescritivo em suas palavras, o que o torna, de certa maneira, autoritário, uma vez que exige uma obediência incontinenti a sua verdade. A fuga de André irá marcar uma brusca ruptura com esse mundo, pois será uma desobediência a tal autoridade. O início da narração aponta para aquilo que podemos chamar de um mergulho em si, pois vemos que há, por parte do narrador, a intenção de compor uma prosa acentuadamente lírica5, objetivando compor um mundo totalmente avesso ao do pai, no qual sua autoridade seria nula. Confirmemos tais afirmações com algumas linhas do Capítulo 1 do romance: Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; [...] minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte [...] (NASSAR, 1989, p.09, grifos nossos).

Estamos diante de um momento íntimo de alguém deitado no chão de um quarto, entregue à solidão. É abandonado a si mesmo, com os olhos perdidos no teto e em estado letárgico, que encontramos André. Trata-se de um quarto que não tem nada de importante a não ser o corpo, este sim, se mostra como um objeto digno de ser consagrado. É neste “mundo-quartocatedral” que André adquire autoridade. É onde jaz sua fortaleza “inviolável” e também onde, paradoxalmente, tem sua liberdade, estando livre da família que o oprimia. Inicialmente, o quarto se mostra como um espaço total-

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A definição de lírico aqui é retirada de T. S. Eliot, que apontou a existência de três vozes na poesia: uma primeira, na qual há a existência de um indivíduo que, sozinho, fala consigo mesmo; uma segunda, que “é a voz do poeta ao dirigir-se a uma platéia”; e a terceira, quando o poeta “tenta criar uma personagem dramática que fala em verso, quando está dizendo, não o que diria à sua própria pessoa”, mas o que diria a uma outra pessoa imaginária (ELIOT, 1990, p.122).


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mente utópico, onde André, expandindo suas dimensões espaciais, o torna infinitamente desproporcional a todo o resto: ele se transforma em “mundo”. A dimensão espacial se esvai, sendo suprimida e anulada pelo pathos do narrador, inexistindo assim a ideia de um mundo exterior. Nesse âmbito, podemos recorrer às palavras de Gaston Bachelard para compreendermos melhor tal fenômeno. Segundo o filósofo, “toda riqueza íntima aumenta ilimitadamente o espaço interior onde ela se condensa” (BACHELARD, 1990, p.40). André expande o espaço no qual está, supervalorizando o simples quarto de pensão, dilatando sua dimensão física, conferindo singularidade ao cômodo: já não se trata mais de qualquer quarto. A forma como André narra é exemplar para atestar ainda a forte presença de um mundo íntimo, no qual a linguagem lírica nos lança num labirinto de palavras, cujos significados são cada vez mais difíceis de descobrir, posto que as imagens criadas e sugeridas pelo narrador nos desnorteiam, afastando-nos de uma eventual referencialidade. A presença da prosa lírica destrói o sentido literal das palavras, suspendendo os valores referenciais de um discurso comum. Por meio dessa configuração, um novo sentido, e uma nova realidade, são trazidos à linguagem, distando de uma eventual ordenação no discurso de André. Ele procura projetar-se nesse novo mundo para aí viver intensamente sua intimidade. Sua linguagem se torna auto-referencial, causando-nos um estranhamento, contribuindo para que o foco da narrativa fique somente nele. Com relação ao quarto, pouco se sabe sobre sua realidade exígua. O que se tem são contornos incertos, todos sugeridos pelo olhar de André: é, sem dúvida alguma, um refúgio; ideia que pode ser atestada pelo despojamento de objetos físicos. Somente mais tarde, quando ouvir o ruído “sempre macio e manso” da porta (p.10), é que esse quarto se dará a ver: é quando a intimidade, duramente construída por André, será solapada pela chegada do irmão mais velho. A partir daí, o quarto começa a ganhar materialidade, já que o que até então se sabia era apenas o que o narrador dera a perceber através de suas sensações. Todavia, com a chegada de Pedro, o quarto, com sua indefinição, adquire contornos reais, ganhando paredes e móveis. Trata-se do início da desprivatização e desindividualização daquele espaço, que a partir desse momento torna-se aberto para a ação do discurso, atividade esta interindividual. A partir daqui podemos dizer que, quando Pedro chega, é a família quem chega com ele. É a presença do outro que se instala junto a André. Pedro


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cria não só uma tensão dentro do quarto, mas desperta em André as reminiscências da vida familiar. E ainda, o quarto, que há pouco se mostrava praticamente vazio, tendo somente “os objetos do corpo” (p.09), se enche de objetos reais, prestando-se a ser ordenado, ganhando assim uma aparência. Por sua vez, o André que há pouco ordenava a realidade segundo sua vontade e em acordo com os desígnios de sua intimidade, torna-se brusco faxineiro, pondo-se a ordenar os “novos” objetos do quarto que de repente avultam. Dessa forma, o quarto começa a ganhar dimensões reais, conforme a presença de Pedro e, consequentemente, da família ali se impõem. Após a chegada do irmão, André diz: [...] me vi de repente fazendo coisas, mexendo as coisas, correndo o quarto, como se meu embaraço viesse da desordem que existia a meu lado: arrumei as coisas em cima da mesa, passei um pano na superfície, esvaziei o cinzeiro no cesto, dei uma alisada no lençol da cama, dobrei a toalha na cabeceira [...] (NASSAR, 1989, p.16, grifos nossos).

A tranquilidade e a letargia do quarto são quebradas e, o que a princípio aparentava estar “vazio”, começa a ganhar outros objetos, que escondem ou tomam o lugar do corpo. Vemos surgir uma mesa, um cinzeiro (cheio) e uma cama. Tais objetos conferem mundanidade aquele quarto, dotando-o de concretude e artificialidade, servindo também como apoio para a ação dos personagens. Subitamente, André se vê arrancado de seu devaneio solitário e inserido em um mundo cheio de obras fabricadas pelo homem, que passam a atestar sua estabilidade no mundo6. O quarto é então invadido por objetos do mundo e pela “presença” da família, que passa a reger aquele espaço, ordenando-o de tal forma que podemos observar um enorme contraste com a “desordem que existia” ali antes (p.16). O abraço entre os irmãos também é significativo de uma ruptura da intimidade do quarto. Quando abraçado, André sente-se abraçado não pelo irmão, mas sim pela “força poderosa da família”, que desaba sobre ele “como um aguaceiro pesado” (p.11). Acrescentando em seguida que sentiu nos seus braços “o peso dos braços encharcados da família inteira” (p.11, grifo nosso). A imagem que tais palavras trazem torna mais grave ainda o gesto 6

A ideia de obra como produtos fabricados pelo homem é tomada aqui na acepção empregada por Hannah Arendt (ARENDT, 2010, p.170).


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do irmão Pedro em pousar as mãos sobre os ombros de André. A ideia de “braços encharcados” evoca aí não só um peso, mas também a ideia de posse e aderência da família em relação ao corpo. A essa altura o papel do irmão mais velho já se tornou totalmente explícito. Pedro pode ser visto aqui não como o irmão, mas como metonímia da própria família. Ele traz consigo todo o peso da tradição, presente em suas palavras: “nós te amamos muito, nós te amamos muito” (p.11, grifo nosso), dirá a André, evidenciando que ele traz muito mais que um simples abraço, traz também mensagens coletivas. André, por sua vez, sente o peso de tais palavras, sobretudo no pronome “nós” proferido pelo irmão. Nesse sentido, podemos ver em Pedro a imagem da continuidade da família, por extensão, da figura do pai, e o que traz consigo não são somente palavras edificadoras, mas principalmente a autoridade do patriarca. Diante da inquietação de André vemos que Pedro funciona como uma espécie de catalisador de seu discurso. Apesar de toda hesitação, é devido à insistência do irmão que a fala de André será convulsa: “Eu sou um epilético” (p.41), confessará com a cólera jorrando em cada palavra, impregnando todo o discurso a partir de então. Assim, o que era para ser uma narração na qual a intimidade daria o tom, acaba por se tornar um discurso aberto e em profundo desconcerto com o momento lírico e solitário do início do livro. Nestas condições, as falas passam a ser alternadas, misturadas e amalgamadas, dando origem a um discurso polifônico, no qual a voz de André, o narrador, é quem procurará ditar os rumos.

2. UMA VOLTA ANTECIPADA PARA CASA? Com a chegada de Pedro ao quarto de pensão, podemos dizer que André revisita a família por meio de suas memórias. No entanto, seu retorno é para a casa da infância; nos tempos em que ainda havia a boa luz da vida doméstica. Assim, a casa, “nosso canto do mundo”, “nosso primeiro universo” — segundo palavras de Bachelard (BACHELARD, 1993, p.24) — começa a ser delineada na memória do narrador. O quarto de pensão, então invadido pela presença da família, torna-se espaço compartilhado, portanto, inviável para o cultivo da intimidade. Resta a André buscar refúgio em outro lugar e para isso foge: foge “em pensamento para procurar um verdadeiro refúgio” — usando palavras de Bachelard (BACHELARD, 1993, p.48).


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A busca de refúgio, ou mesmo de escape da presença da família, sempre fora uma constante na vida de André. Desde a mais tenra idade era refugiando-se que ele se conhecia. E é assim que, passado o sobressalto da chegada do irmão, ele mergulha num mundo longe dali, um mundo infantil e distante, cujo tempo é indeterminado. Mas é um mundo que, paradoxalmente, está mais próximo de casa e da família. Podemos dizer que é uma volta antecipada ao lar. Vejamos o excerto: Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá no bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? Que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? De que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo) (NASSAR, p.13-14, grifos nossos).

Podemos destacar grandes afinidades com o aspecto maravilhoso dos contos de fadas nesse trecho: o bosque, sempre presente, surge como local propício para o desenrolar das fantasias infantis, no qual as criaturas mágicas comparecem. Contudo, em LA, esse clima feérico existe apenas na imaginação do André menino. Aqui o que temos são imagens que sobrevêm do fundo da infância, testemunhando uma pequena fuga ou um escape aos “olhos apreensivos da família”, em busca de tranquilidade. Trata-se, em primeira instância, de um regresso a uma outra morada, não totalmente nova, mas mais antiga e mais primitiva: é a morada da infância, no qual os limites são facilmente franqueáveis e os voos da imaginação se alçam com maior desenvoltura. Em sua solidão de menino André sonha, inexistindo limites. Ao envergar suas asas rumo ao imaginário, ele se transforma em planta, recolhendo-se sob a forma de um “botão vermelho” (p.13), o que nos leva a interpretar tal postura como um puro sentimento de intimidade. A ima-


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gem de uma flor encerrada em seu invólucro, protegida e aquecida pela luz do sol, pode ser tomada como um exemplo ilustrativo de intimidade. É um mundo quimérico, criado sob o olhar de uma criança, marcando a volta a um mundo mítico e paradisíaco. Mas essas fugas são bem mais que marcas de uma eventual separação entre o personagem e os demais membros da família: são também esboços de libertação. Um novo mundo se abre a André toda vez que ele foge. É um mundo infantil, mergulhado na fantasia, onde tudo que o rodeia se torna animado. Os olhos vigilantes da família e as vozes protetoras são substituídos pela vigília silenciosa e cheia de paciência dos seres fantásticos que o rodeiam: é o silêncio que André quer e procura. A família se torna estranha e aquelas criaturas ao seu redor, no meio do bosque, de repente lhe são familiares. Pode-se afirmar que seu retorno a este mundo paradisíaco reforça uma busca pelo tempo perdido, anterior a ruptura que o fez estranho aos olhos da família e em certa medida ao mundo. O ritmo das palavras nos encaminha para um momento de extrema solidão e lirismo. O que nos resta então é a sensação de que o vento é o único som que se ouve nessa descrição. As aliterações que percorrem todo o trecho também potencializam a imagem de que seria o vento zelando pelo sono da criança. Todo o bosque parece ganhar vida através dos olhos de André: os troncos e o vento tornam-se duendes e mensageiros. Até mesmo a postura do menino, aparentemente inerte, é animada pelo movimento das criaturas que o rodeiam: sua imobilidade é compensada por seres inanimados, cujos movimentos embalam o menino que dorme. Trata-se, em princípio, de um grande paradoxo. O próprio André se irmana àqueles que o cercam, tornando-se ele mesmo um vegetal — “um botão vermelho” —, tendo seu corpo consagrado pela terra úmida e pelo húmus que há por baixo das folhas secas. Ele se planta na terra recolhendo dela o sal, nutriente importante para a vida. Feito Anteu, semideus que sobrevivia do contato com a terra, André também precisa da mãe-terra e de seu consolo, que vem, sobretudo, na forma de entrega silenciosa e retirada: é a paz e a liberdade tão desejadas. Essas fugas esporádicas para o bosque podem ser comparadas a fuga de casa. Contudo, esta última é bem mais grave. Conforme já assinalamos, ela cria um hiato dentro da continuidade do mundo familiar. André foge para erigir sua própria “catedral”, cuja função beira o sacrilégio: cultuar e expor o corpo. Consagrar o corpo seria separá-lo do ordinário, elevando-o ao status de divino. Por outro lado, o sacrilégio estaria em transgredir as


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prescrições paterna. Nesse caso, o resguardo das trevas é quebrado a partir do momento em que André expõe seu corpo. Assim, o personagem busca prolongar, na reclusão do quarto de pensão, aquela intimidade que experimentava quando menino no bosque, recolhido como um botão. O quarto pode ser visto aqui como substituto do botão: estar nu dentro do quarto é estar dentro de um botão fechado e aquecido pela luz do sol. São posturas que se equivalem: quando criança, André se refugiava no bosque próximo à fazenda. Agora, adulto, arrisca fuga a lugares mais distantes. Contudo, as pancadas na porta e as vozes protetoras da família estão sempre chamando, não o deixando em paz.

3. EXPONDO A INTIMIDADE DA FAMÍLIA Como procuramos marcar, André foge em pensamento. No entanto, podemos visualizar essa “fuga” por outro prisma: na verdade vemos que a família adentra ainda mais o quarto. Isto é, a atitude do narrador acaba por trazer a vida familiar para dentro daquele recinto. A família é então retirada de seu mundo fechado e inserida ali, naquele espaço desprotegido, dando a André autoridade para narrar, questionar e até mesmo subverter a autoridade do pai. Durante a narração vemos que o excesso de vigilância se mostra como um dos principais motivos da fuga de André: ele foge da vigilância que o sufocava, que o tornou um estrangeiro no seio da própria família. E foi justamente essa vigilância cerrada, assim como o controle sobre sua vontade, que acabou por intensificar ainda mais seus desejos sobre o próprio corpo. O que percebemos é que André busca por independência justamente através de manifestações escusas do corpo. Ele procura mostrar o quão producente é o corpo. Mas, como ele faz isto? Revirando os objetos da família primeiramente. A certa altura da narração, nossos olhos se aterão aos móveis da família, que serão descerrados e revirados. André pedirá ao irmão que, quando chegar a casa, vá até o roupeiro e [...] corra ligeiro suas portas e procure os velhos lençóis de linho ali guardados com tanta aplicação, e fique atento, você verá então que esses lençóis, até eles, como tudo em nossa casa, até esses panos tão bem lavados, alvos e dobrados, tudo, Pedro, tudo em nossa casa é morbidamente impregnado da palavra do pai [...] (NASSAR, 1989, p.43, grifos nossos).


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As gavetas são abertas revelando seu conteúdo e a palavra do pai ganha uma conotação “mórbida”, como se fosse uma pestilência que se espalha através do ar, ganhando peso e densidade e impregnando tudo o que está a seu alcance. Vemos ainda que a presença do pai é constante até quando não está presente fisicamente. Sua voz ecoa por todos os cantos da casa. Ele se torna, dessa forma, onipresente, onipotente e até mesmo onisciente por meio de suas palavras. Por sua vez, o armário, com seu interior, se mostra como um “espaço de intimidade, um espaço que não se abre para qualquer um” — dirá Bachelard — acrescentando em seguida que, no armário “vive um centro de ordem que protege toda a casa contra uma desordem sem limite” (BACHELARD, 1993, p.91-92, grifos do autor). Pois é justamente o que intenta André: desestabilizar a ordem familiar abrindo as portas do armário. Em outro momento dirá ao irmão: [...] alguma vez te passou pela cabeça [Pedro], um instante curto que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas no banheiro? Alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer com cuidado cada peça ali jogada? Era o pedaço de cada um que eu trazia nelas quando afundava minhas mãos no cesto, ninguém ouviu melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas exasperadas da família deitadas no silêncio recatado das peças íntimas ali largadas, mas bastava ver, bastava suspender o tampo e afundar as mãos, bastava afundar as mãos pra conhecer a ambivalência do uso, os lenços dos homens antes estendidos como salvas pra resguardar a pureza dos lençóis, bastava afundar as mãos pra colher o sono amarrotado das camisolas e dos pijamas e descobrir nas suas dobras, ali perdido, a energia encaracolada e reprimida do mais meigo cabelo do púbis, e nem era preciso revolver muito para encontrar as manchas periódicas de nogueira no fundilho dos panos leves das mulheres ou escutar o soluço mudo que subia do escroto engomando o algodão branco e macio das cuecas, era preciso conhecer o corpo da família inteira, ter nas mãos as toalhas higiênicas cobertas de um pó vermelho como se fossem as toalhas de um assassino, conhecer os humores todos da família mofando como cheiro avinagrado e podre de varizes nas paredes frias de um cesto de roupa suja (NASSAR, 1989, p.44-45, grifos nossos).


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A alvura dos lençóis lavados de antes é agora contraposta à sujeira das roupas sujas jogadas no cesto do banheiro. O que veladamente se faz e depois se esconde é descoberto pelo menino que, acordando antes de todos, perscruta o “silêncio recatado” da família e o investiga: tem nas mãos cada peça e as analisa, procurando nas dobras das roupas íntimas um pedaço de cada um. São os indicadores do que os corpos daquelas pessoas também produzem – o labor do corpo. É dessa forma que vemos os indícios corporais serem desprivatizados, isto é, dotados de aparência e realidade, a partir do instante em que são mencionados pelo narrador. O corpo é dotado então de uma realidade, já que os desejos mais íntimos são trazidos à luz, via estratégia narrativa, adquirindo assim densidade e peso. Essa atitude de André pode ser vista também como uma metáfora: uma espécie de suspensão momentânea da autoridade do pai. Seria suspender a crença na verdade de sua palavra. Afundar as mãos nas roupas sujas equivaleria a perceber que há algo de “errado”. Seria observar o lado de dentro da família, colhendo, por fim, o fruto proibido sem receio: inicialmente seriam essas as inconsistências dos sermões paterno. As dobras dos lençóis de linho são reviradas por André, que procura mostrar o que deveras escondem. É o discurso do pai que é revirado e exposto como algo mórbido, revelando que há muitas coisas que ficam escondidas nos vincos daqueles lençóis e das roupas bem asseadas da família. Mas é um branco que está sujeito a ser manchado, podendo revelar grandes nódoas. André apresenta os discursos do pai em toda sua alvura, sujando-os em seguida, para então limpá-los à sua maneira. Ao tratar de certo “devaneio da limpeza ativa”, Bachelard destacará que, o valor de limpeza somente é alcançado com um “anti-valor” (BACHELARD, 1990, p.32). Em outras palavras, André cria uma dialética entre o limpo e o sujo. Ainda conforme Bachelard: A vontade de limpar deseja um adversário à sua altura. E, para uma imaginação material dinamizada, uma substância bem suja dá mais oportunidade à ação modificadora do que uma substância simplesmente embaciada. A sujeira é um mordente que retém o agente purificador (BACHELARD, 1990, p.32, grifo do autor).

A sujeira das roupas, apontada por André, acaba por dotá-lo de autoridade frente à alvura do discurso paterno: a ação do filho tem maior eficácia, pois uma nódoa retém mais a atenção que um encardido numa


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peça de roupa. André mostra a brancura das peças e depois as manchas das roupas como se fossem as supostas inconsistências dos sermões do pai. Sujar primeiro para só então limpar, assim sua ação teria maior eficácia sobre a mácula, seria mais incisiva. Pode-se dizer que o filho manchará as roupas e em seguida mostrará que seu recurso de limpeza — seu “antidiscurso”, chamemos assim — será mais dinâmico que o do pai. Abrir as gavetas e levantar o tampo do cesto de roupas sujas são atitudes que se correspondem. Descerrar algo que está fechado é revelar o que se esconde, é trazer a público aquilo que é segredado. Assim, abrir as gavetas e levantar o tampo do cesto de roupas sujas equivale a descobrir os segredos bem acomodados nas dobras dos tecidos. Os discursos do pai, sempre bem guardados e prontos para serem usados, se mostrariam como verdadeiros “arquivos”, constantemente consultados e retomados, tencionando manter a brancura e a transparência da família. A gaveta pode ser vista aqui como uma a metáfora, como o local onde se guardam os conceitos já classificados: “os conceitos — afirma Bachelard — são roupas de confecção que desindividualizam conhecimentos vividos”, sendo, portanto, um “pensamento morto”, uma vez que é, “por definição, um pensamento classificado” (BACHELARD, 1993, p.88). É sob a ótica das roupas bem alvejadas e guardadas que é possível observar que a ideologia do pai se mantém integrada numa ordem de fechamento, obediência, recato e cuidado em esconder e não mencionar o corpo, uma vez que ele seria o grande corruptor da alma. O pai é responsável por manter o controle sobre as vontades da família. Seus discursos são como os lençóis de linho bem alvejados e guardados em gavetas bem organizadas, podendo ser usados quando necessário. Assim, a ideologia que mantinha o controle sobre a intimidade, à custa de um discurso calcificado, é revirada por André no momento em que tais gavetas são abertas e o tampo do cesto escancarado. André compromete a ordem familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Há um ponto que não abordamos em nosso texto, mas que deve ser mencionado aqui para efeito de encerramento: trata-se das máscaras (personae) dos personagens. André, enquanto narrador romanesco, também procede a um desmascaramento, ou seja, sua postura o autoriza a arrancar as máscaras dos demais personagens, sobretudo a do pai. Sob este ponto de


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vista, André forja uma máscara que diverge, em larga medida, daquela imaginada pelo pai. Mas para distinguir-se, um pouco que seja deste e da família, esse “filho problemático” inscreve em sua persona um riso de deboche, que sutilmente o diferencia dos demais. Assim, com um mínimo de sutileza, ou “uma ponta de escárnio” (p.135), André forja sua máscara, criando uma personalidade difusa daquela esperada pelo pai, tornando-se ele mesmo um estranho, um verdadeiro estrangeiro dentro do próprio lar: “Quero te entender, meu filho, mas já não entendo nada” (NASSAR, 1989, p.165), dirá o pai a certa altura, tentando buscar em André semelhanças consigo, não as encontrando, daí o desentendimento e a estranheza. É dentro dessa perspectiva que podemos alegar a possibilidade de André ser visto como o filho que quebra um paradigma dentro da família, isto é, aquele que questiona e critica a tradição, provocando aí uma ruptura, dando início a uma nova realidade. E mais, André usará o próprio corpo como forma de libertar-se do jugo autoritário do pai. O narrador expõe-se, mas para que tal ação seja totalmente válida, é preciso que a família também seja exposta, mostrando que os corpos de seus membros também produzem7, o que poderia comprometer em muitos aspectos a ordem estabelecida pela figura paterna, posto que, desejar é (des)ordenar. Portanto, André contrapõe-se à organicidade da palavra do pai usando o desejo, fazendo com que dramas familiares extrapolem as fronteiras do privado, o que acaba por conferir-lhes uma realidade, uma vez que serão desvelados e desmascarados diante da inquietante (e impiedosa) presença do outro.

REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. Trad. e apres. de Jorge M. B. de Almeida. In: ______. Notas de literatura I. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2003.

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Tal conclusão só foi possível graças às leituras de O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, no qual os autores apontam a existência das “máquinas desejantes”, isto é, um constante processo de produção, cujo princípio imanente é o desejo, categoria ambígua (e perigosa) aos olhos da psicanálise. Os autores acusam a psicanálise de forçar esse desejo a se adaptar ao triângulo edípico pai-mãe-filho, responsabilizando a família por seu controle, tornando-o assim um pequeno drama burguês (DELEUZE & GUATTARI, 2004).


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ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad: Roberto Raposo; Rev. técnica: Adriano Correa. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993. _______. A terra e os devaneios do repouso. Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: HUCITEC/UNESP, 1990. BENJAMIN. Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, Arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Joana Moraes Varela & Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. ELIOT, T. S. As três vozes da poesia. In: ______. De poesias e poetas. Trad. e prólogo de Ivan Junqueira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3ª. ed. rev. pelo autor. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.


DOROTÉIA CONTRA A BURRICE DE TODA UNANIMIDADE Alda Maria Inácio BARBOSA1 RESUMO O artigo a seguir forma parte da Dissertação intitulada “Horror, amor e morte em Dorotéia, de Nelson Rodrigues, e La casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca”, apresentada e aprovada pelo Programa de Pós-Graduação – Mestrado – em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Trata-se de uma apresentação em linhas gerais da imagem pública que o dramaturgo, jornalista e escritor Nelson Rodrigues ajudou a construir de si mesmo por meio de atitudes e declarações contraditórias acerca de si mesmo, da própria obra e de fatos ou artistas e intelectuais de seu tempo. O presente artigo trata ainda das características definidoras do ciclo mítico do teatro rodriguiano (1946-1949), e, valendo-se de bibliografia centrada em textos de Estudos Culturais, atém-se à obra Dorotéia, quanto à diversidade de tipos humanos ali apresentados. alavr vras as-Cha -Chav Pala vr as -Cha ve: Teatro; Nelson Rodrigues; Federico García Lorca.

RESUMEN El siguiente artículo forma parte de la disertación titulada “Horror, amor y muerte en Dorotéia, de Nelson Rodrigues, y La casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca”, presentada y aprobada por el Programa de PósGraduação – Mestrado – em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Se trata de una presentación en líneas generales de la imagen pública que el dramaturgo, periodista y escritor Nelson Rodrigues ayudó a construir de sí mismo por medio de actitudes y declaraciones contradictorias acerca de sí, de la propia obra y de hechos o

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Graduada em Letras Português/Espanhol pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul UEMS Dourados e mestre em Estudos de Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.


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artistas e intelectuales de su tiempo. El artículo trata también de las características definidoras del ciclo mítico del teatro rodriguiano (1946-1949), y, valiéndose de bibliografía centrada en textos de Estudios Culturales, se ocupa de la obra Dorotéia, en cuanto a la diversidad de tipos humanos allí presentados. Palabras Clave: Teatro; Nelson Rodrigues; Federico García Lorca.

Com Vestido de noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdio para sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade. Há, simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua aceitação. Pois a partir de Álbum de família enveredei por um caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito. Que caminho será este? Respondo: de um teatro que se poderia chamar assim — “desagradável”. Numa palavra, estou fazendo um “teatro desagradável”, “peças desagradáveis”. No gênero destas, inclui (sic, devendo-se ler incluo ou incluí), desde logo, Álbum de Família, Anjo negro e a recente Senhora dos afogados. E por que “peças desagradáveis”? Segundo já se disse, porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na platéia. Nelson Rodrigues

Parque É bom mas é muito misturado Francisco Alvim

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elson Falcão Rodrigues, jornalista, escritor e, ainda hoje, espécie de verbete para “tarado” no imaginário coletivo nacional. Considerado pela crítica o mais importante dramaturgo brasileiro de todos os tempos, é também o mais polêmico. Pelo caráter desagradável de seu teatro, sobretu-


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do das peças do ciclo mítico2, Nelson Rodrigues permaneceu vários anos relegado à condição de maldito e proibido pela censura, para depois ser várias vezes “redescoberto” e, finalmente, alçado à posição de um clássico da dramaturgia nacional. Parece ser ponto pacífico entre a crítica teatral e a literária que a ele se deve a “fundação” do moderno teatro no Brasil, ocorrida em 1943 com a já histórica encenação de Vestido de noiva, sob a direção do polonês recém-chegado ao Rio de Janeiro, Zbigniew Ziembinski. A vida do escritor recifense é marcada por passagens tão (ou mais) trágicas quanto as de sua produção ficcional: tuberculoso, foi por duas vezes interno do Sanatorinho de Campos do Jordão; aos 17 anos assistiu o assassinato a queima roupa do irmão Roberto Rodrigues; durante a Revolução de 1930 viu o empastelamento do jornal de sua família (A crítica); perdeu outro irmão (Paulo Rodrigues) no desmoronamento do prédio em que este vivia, teve uma filha cega, e, em meio a tudo isto fez seu importante e magistral teatro. Nelson sempre atuou na imprensa, primeiro como repórter policial, ainda na adolescência em A crítica, e mais tarde como cronista e consultor sentimental, sob o pseudônimo de Myrna, e ainda como romancista melodramático sob a pele de Suzana Flag. Suas dezessete peças foram escritas em casa, à noite, após o expediente. Além de tipos recorrentes como adúlteros, assassinos a primeira vista insuspeitos, incestuosos, vizinhos futriqueiros, ninfetas maquiavélicas de aparência cândida ou velhas mentalmente perturbadas, talvez a mais contraditória de suas personagens seja aquela que ao longo de seus anos foi construindo e alimentando dia após dia: ele mesmo, Nelson Rodrigues. Que dizer, por exemplo do contraste entre suas declarações à imprensa de absoluta indiferença ao sucesso ou fracasso de qualquer de suas obras, — além das conhecidas frases de efeito “como o público é que mata o teatro”3 ou “os teóricos só têm feito mal ao teatro, a começar pelo malfeitor Aristóteles”4 —

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Em meados dos anos 1980 Sábato Magaldi divide o teatro rodrigueano em três grupos: peças psicológicas: A mulher sem pecado (1941), Vestido de Noiva (1943), Valsa nº 6 (1951), Viúva, porém honesta (1957) e Anti-Nelson Rodrigues (1973); peças míticas: Álbum de família (1946), Anjo Negro (1947), Dorotéia (1949) e Senhora dos afogados (1947); tragédias cariocas: A falecida (1953), Perdoame por me traíres (1957), Os sete gatinhos (1958), Boca de ouro (1959), O beijo no asfalto (1960), Otto Lara Resende ou Bonitinha mas ordinária (1962), Toda nudez será castigada (1965) e A serpente (1978). 3 RODRIGUES. Entrevista a Otto Lara Resende, Revista O comício. 4 RODRIGUES. Entrevista a Otto Lara Resende, Revista O comício.


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e a afeição a elogios públicos ou a subida ao palco após a estréia de Senhora dos afogados para gritar “Burros! Burros!”5 à parte da platéia que vaiava o espetáculo; ou ainda a recepção no aeroporto ao crítico Sábato Magaldi, um dos seus “amigos para além da vida e da morte”, de volta ao Rio de Janeiro após um ano na França, para perguntar-lhe: “Você ainda gosta de Vestido de noiva? Ainda acha que eu sou bom?”6 Ainda que usasse crucifixo no pescoço, recheasse seu vocabulário cotidiano de expressões como “Deus me perdoe”, “Deus te abençoe”; acreditasse na imortalidade da alma: “É absurdo o sujeito se demitir da vida eterna, como se fosse um suicida depois da morte”7 e haja uma religiosidade intrínseca à sua obra, Nelson declarava-se anti-clerical. De qualquer modo, é bastante frequente personagens do teatro rodrigueano expressarem sentimentos de religiosidade em suas falas e movimentos, como no excerto da peça Dorotéia no qual a personagem título, uma exuberante prostituta, após a morte de seu único filho, ainda bebê, tenta ser aceita na casa de suas três primas viúvas, castas, trajadas de luto e em eterna vigília: Carmelita, Maura e Dona Flávia, espécie de líder das primeiras e mãe da adolescente Maria das Dores. DOROTÉIA — Só lhe digo que desejaria ser — horrível, juro... Ser bonita é pecado... Por causa do meu físico tenho tudo quanto é pensamento mau... (...) DOROTÉIA (passando a mão pelo próprio rosto) — Este não... (num crescendo...) Quer dizer que eu tenho que mudar de rosto? De boca, de olhos... Talvez de cabelos D. FLÁVIA — Sim... E de corpo também... então, nós te aceitaremos na família... Serás igual a nós... Igual à Dorotéia que se atirou no rio... Te sentarás à nossa mesa... Dirás as nossas orações... (baixo ao ouvido de Dorotéia) E o jarro, um jarro de flores desenhadas em relevo, não te aparecerá mais, nunca mais! DOROTÉIA — “(em êxtase) — Tomara... (efusiva) Até, francamente, nem sei como agradecer... Nem esperava... Mas a providência

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CASTRO. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. p. 254. CASTRO. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. p. 387. 7 CASTRO. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. p. 330. 6


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me salvou... Fui ouvida, nos meus pedidos... (olhos para o céu, mão no peito) Pedi tanto, para sair daquela vida. D. FLÁVIA (grave) — Nós exigimos mas é para teu bem... DOROTÉIA — Sei, claro... (veemente) Eu mesma acho que a família tem o direito de exigir! (mais positiva) E de humilhar... (humilde) Não pensem que estou contra a minha humilhação... Nunca! Até quero ser humilhada... Me desfeiteiem se quiserem. (misteriosa) Estou desconfiada que a morte do meu filho já foi um aviso... D. FLÁVIA — É possível. DOROTÉIA — Era a providência me chamando para o caminho da virtude... Talvez essa morte tenha sido um bem. (com mímica de choro) Quando acaba, vocês, em vez de me destratarem, ainda me recebem... E me tratam com essa distinção... (...) D. FLÁVIA (fanática) — Tua beleza precisa ser destruída! Pensas que Deus aprova tua beleza? (furiosa) Não, nunca!... (RODRIGUES, p. 638-640)

No fragmento acima podemos perceber valores tipicamente católicos como o tratamento pecaminoso dado à vaidade, ao sexo fora do casamento e sem fins reprodutivos; a mesa como lugar sagrado das refeições, que devem ser agradecidas em oração; o sofrimento como provação; a autopenitência como meio seguro de alcançar a redenção; além de alusões a trechos bíblicos como a parábola do filho pródigo ou a um Deus que se vinga dos pais nos filhos e, nas rubricas, gestual e expressões fisionômicas próprias do fanatismo religioso. Dono de extensa bagagem literária, Nelson alardeava um terminante antiintelectualismo, agregando assim à sua imagem a idéia de gênio primitivo. No terreno político, criticava o engajamento de artistas e intelectuais, declarando-se anti-marxista; e, contraditoriamente, defendia a mesma ditadura militar que lhe censurava as peças teatrais. Por tudo isto, foi nomeado por Facina como intelectual de dissenso: “voltado para a crítica de padrões estabelecidos em geral, sejam eles políticos, estéticos, morais. E essa atividade do dissenso não necessariamente é política ou mesmo moralmente progressista”.8 8

FACINA. Santos e canalhas, p. 213.


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Essa contraposição ao que Nelson Rodrigues considerava modelos assentados é patente tanto em seu teatro quanto em suas narrativas. Nas peças, o autor que misturava os usos de tu e você e “não acreditava em brasileiro sem erro de concordância”, rompe esteticamente com o teatro dominante no Brasil até a década de 1940, valendo-se de recursos como a simultaneidade de ações em tempos distintos, uma inovação nascida em Vestido de noiva; diálogos rápidos e diretos; mescla de elementos dramáticos, trágicos e humorísticos, as vezes numa única fala ou em falas muito próximas, e ausência de literatice com direito à passagens altamente poéticas. Tome-se como exemplo as seguintes falas de Dorotéia: D. FLÁVIA — (gritando) — Leva tua história daqui... Afoga tua história no mar...; (RODRIGUES, p. 632) D. FLÁVIA — E, com o susto. Das Dores nasceu de cinco meses e morta... AS DUAS (choramingando) — Roxinha... D. FLÁVIA (também com voz de choro) — Mas eu não comuniquei nada à minha filha, nem devia... AS DUAS (choramingando) — Claro! D. FLÁVIA — Sim, porque eu podia ter dito: “Minha filha, infelizmente você nasceu morta”, etc. etc. (patética) Mas não era direito dar esta informação... Seria pecado enterrá-la sem ter conhecido nosso enjôo nupcial... (tom moderado) De forma que Das Dores foi crescendo... Pôde crescer, na ignorância da própria morte... (ao ouvido de Dorotéia) Pensa que vive, pensa que existe... (formalizando-se e com extrema naturalidade) E ajuda nos pequenos serviços da casa. (RODRIGUES, p. 635-636)

Sobre a própria linguagem, Nelson argumenta: Os críticos achavam a minha linguagem pobre. O que eles queriam era a eloquência, a subliteratura, enquanto eu partia para a palavra viva, ainda, suada de vida, suada de rua, suada de cotidiano, suada de paixão. Se não tenho outras virtudes, tenho esta e a reivindico para mim: — a de ter um diálogo extremamente teatral.”9

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Revista Bravo! jun. 2000, p. 48


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Ainda que faça uso de conceitos altamente discutíveis em nossos dias, como o de subliteratura, menosprezando-a como argumento de engrandecimento da própria escrita, é inconteste que Nelson Rodrigues faz jus ao lugar por ele requerido na fala acima. Com temas, segundo ele mesmo, “fétidos e pestilentos”, a exemplo de incesto, violência sexual, homossexualismo, prostituição, parricídio e traição, rompeu com os códigos morais da época, o que lhe rendeu a alcunha de tarado, vigente até hoje entre os desconhecedores ou ledores/espectadores estagnados na superfície de seus textos. Mas, por outro lado, se Nelson tiver mesmo razão, o que é o tarado se não uma “pessoa normal pega em flagrante”? Nos anos de 1960-1970 suas crônicas escarnecem de célebres militantes de esquerda, como dom Hélder Câmara, em várias crônicas ridicularizado na figura do “padre de passeata”. Aos que lhe chamavam reacionário, com a lentidão e a fala arrastada que lhe eram peculiares, a despeito de ordens médicas, entre uma e outra baforada no indefectível cigarro, respondia que sim, era reacionário e sua reação era contra tudo o que não prestava. Leitor desde a infância de romances lacrimogênicos, o dramaturgo nunca negou o rocambolesco, o melodrama, ou o grotesco e mesmo o mau gosto em seus escritos. Como declarou diversas vezes em entrevistas, para Nelson o “bom gosto deve ser uma virtude de grã-finas em férias, ou de cronistas sociais. Nunca, porém de um artista”10, ou: Ninguém faz nada em arte se lhe falta uma dimensão de mau gosto de Vicente Celestino. Todos nós somos um pouco o autor de O ébrio. Shakespeare viveu grandes momentos de Vicente Celestino. Ricardo 3º tem coisas de Coração materno e de Ontem eu rasguei o teu retrato.11

Mesmo contradizendo-se em outras ocasiões, a exemplo dos comentários que tece sobre a sua linguagem teatral, vale notar no texto imediatamente acima que Nelson ao comparar Ricardo III de Shakespeare com Coração materno, tem a lucidez de diluir as fronteiras que cindiriam a arte em classes como erudita, popular ou de massa.

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RODRIGUES. Entrevista a Otto Lara Resende, Revista O comício. Revista Bravo! jun. 2000, p. 48


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Aliás, seu gosto musical compartilhava desse pendor ao dramático e exageradamente sentimental. Eram presenças certas em sua vitrola pé-depalito: operetas, canções napolitanas, boleros, tangos e fados, entre seus cantores prediletos figuram donos de “vozeirões” como a já citada “Voz orgulho do Brasil”: Vicente Celestino e, talvez o primeiro pop star brasileiro, Cauby Peixoto. Sem sair do território musical, no encarte do cd Federico e Giulietta — uma homenagem ao cineasta italiano Federico Fellini e à sua esposa e estrela de alguns de seus filmes, a atriz Giulietta Masina —, Caetano Veloso observa, referindo ao casal de artistas, que “é fácil ser-se sentimental, talvez menos fácil ser-se popular, mas não é difícil ser-se popular quando se é sentimental; agora, é dificílimo ser-se sentimental, popular e um grande artista. Isso só é dado aos muito grandes.” Hoje, em paz com a crítica especializada e com o público, parece certo que Nelson Rodrigues se encaixa perfeitamente nos três requisitos da bela definição de grande artista do compositor baiano. Confirmando a popularidade de Nelson, nos últimos anos houve uma nova redescoberta do seu trabalho de dramaturgo, romancista e cronista, prova disto é o recente relançamento de toda a obra de Nelson Rodrigues pela editora Agir e as numerosas montagens de textos rodrigueanos em todo o país, ademais de encenações de suas peças no exterior. Segundo a revista Bravo! de janeiro de 2008, peças de Nelson foram levadas à cena na Inglaterra, Estados Unidos, Bélgica, Luxemburgo, Venezuela, Portugal e França com preservação do texto original aliada à técnicas cênicas contemporâneas como projeções no palco e, elenco multicultural. O que confirma a intemporalidade dos textos e sua inteligibilidade fora do local de sua produção. Então, o que, pelo menos em parte, explicaria a relativamente pequena quantidade de montagens de peças de Nelson Rodrigues em palcos internacionais, é o empecimento da língua do país periférico em que foram escritas. No Brasil, frases de Nelson, sobrepuseram-se ao autor alcançando o status de ditado popular, é o que aconteceu à “bonitinha mas ordinária”, o título de sua 14ª peça, usado indiscriminadamente, de anúncios publicitários a conversas cotidianas de pessoas que desconhecem a existência de um tal escritor chamado Nelson Rodrigues. As personagens rodrigueanas, densas por excelência, por mais que sejam moralmente degradadas apresentam falas de beleza e sensibilidades


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genuínas, técnica melodramática que agarra o espectador pela emoção, por exemplo: DOROTÉIA (feroz) — Nunca!... (crispando as mãos, na altura do peito) Eu não enterraria um filho meu... Um filho nascido de mim... (doce) Enterrar só porque morreu?... Não, isso não... (muda de tom) Vesti nele uma camisolinha de seda, toda bordada a mão, comprei três maços de vela... quando acabava uma vela, acendia outra... antes, tinha fechado tudo... Fiquei velando, não sei quantos dias, não sei quantas noites... Até que bateram na porta... tinham feito reclamação, porque não se podia suportar o cheiro que havia na casa... (feroz) Mas eu juro, dou minha palavra de mãe, que o cheiro vinha de outro quarto, não sei. De lá, não... (muda de tom) E sabe quem foi fazer a denúncia? Uma vizinha, que não se dava comigo... (doce) Levaram o anjinho. (agressivo) Mas tiveram que me amarrar, senão eu não deixava. (RODRIGUES, p. 633)

Quanto à qualidade artística de Nelson Rodrigues, Antunes Filho, à maneira de Nelson, isto é, um tanto exageradamente diz, em texto para a revista Bravo! de junho de 2000, que: Se você pegar todas as pessoas que fazem ou já fizeram teatro até hoje no Brasil — autores, diretores, atores, técnicos, maquiadores, todos os setores que compõem a categoria teatral — e juntá-los numa praça, no grupo haverá somente uma pessoa genial: Nelson Rodrigues. Ele transcendeu, ele superou a todos, ele teve paixão, ele carregou uma chama superior, ele foi o gênio. (...) Nelson Rodrigues trabalhou sempre com os arquétipos. Aparentemente são personagens estereotipadas, mas carregam em si uma visão arquetípica sempre. É isso que o distingue de todos os autores brasileiros, que ficam no raso, na aparência. (...) Foi em Vestido de noiva, que começou a surgir o teatro brasileiro, com a direção de um polonês, Ziembinski, o que prova que os arquétipos servem para todo mundo. É possível que qualquer povo faça Nelson Rodrigues, é só olhar para dentro que está tudo lá. Todos os povos carregam Nelson Rodrigues por dentro. (Revista Bravo! jun. 2000, p. 52)


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Como anuncia Antunes Filho, toda a obra de Nelson Rodrigues é perpassada pelos dois maiores mitos da sociedade ocidental: o amor e a morte, segundo Nelson “em torno desses dois mistérios gravita a vida humana”. Consoante à afirmação de Cioran de que “tudo que é realmente intenso participa do paraíso e do inferno”, as personagens de Nelson Rodrigues, em particular as do teatro mítico, levam seus afetos e fobias até últimas consequências, as ações são movidas por forças abissais, transcendendo limites de espaço ou tempo, neste teatro tudo é gigante, absoluto. O ciclo mítico inicia-se em 1946 com Álbum de família. É quando Nelson permite-se distanciar da realidade, e quando dá entrada em seu longo divórcio com a crítica e com o público de teatro. Em seguida vêm Anjo negro e Senhora dos afogados no ano de 1947, e em 1949: Dorotéia, chamada pelo autor de “farsa irresponsável em três atos”, o “maior fracasso do ocidente”, a peça que nem sua mãe gostou e o objeto deste ensaio. A “história da vida” da peça inicia-se em 1948, quando a atriz Nicete Bruno, então com 13 anos estreava no teatro em Anjo Negro, e sua mãe, a soprano lírico Eleonor Bruno a levava ao teatro e depois de volta pra casa e ainda viajava a filha para protegê-la de possíveis liberdades excessivas dos rapazes do teatro. Do que Eleonor não se deu conta imediatamente foi de que enquanto observava a filha era também observada pelo irremediável galanteador Nelson. Não demorou muito para que o autor caísse nas graças de Nonoca. Tudo isso sem diminuir as atenções a seu casamento de sete anos com Elza e sem nunca passar uma única noite longe do leito de núpcias oficial. Então, com a personagem que nomeia a peça talhada à medida de Nonoca Bruno, nasce Dorotéia. Nelson, escaldado com a interdição de suas três peças anteriores (Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos afogados), consegue burlar a censura enviando-lhe os originais de Dorotéia em nome de Walter Paíno, um cunhado de Nonoca. O estratagema funciona e em 7 de março de 1950 o texto chega ao palco ileso, e agora sim, com o nome de Nelson Rodrigues. Os tempos eram difíceis e Dorotéia teve que ser montada num esquema familiar: a estrela da peça era uma quase desconhecida do grande público, o produtor era Paschoal Bruno, irmão de Nonoca, e uma das personagens, Das Dores, a adolescente ignorante de sua condição de natimorta, coube à Dulcinha, irmã caçula de Nelson. Na biografia de Nelson Rodrigues, Ruy Castro assim descreve visualmente a estréia da peça:


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O cenário de Santa Rosa era um enorme tablado em forma de ringue, tendo ao fundo um ciclorama azul. Sua simplicidade não diminuía o impressionante efeito visual. Mas o que deixava a platéia sem fôlego era a iluminação de Ziembinski: seis refletores coloridos que seguiam a movimentação das seis mulheres em cena, com uma cor para cada uma. À medida que elas evoluíam pelo palco, as cores se cruzavam, se confundiam, se separavam. Era infernalmente lindo. O jogo de cores continuava nos figurinos, com as primas de preto, sinistras como papa-defuntos, e Dorotéia de vermelho, como uma cortesã antiga. Além disso, Nonoca pintara de fogo o cabelo e, no palco, parecia crescer vários centímetros acima do nível do mar. (CASTRO, p. 217)

Como é comum numa noite de estréia, boa parte do público era composta por convidados: jornalistas, parentes e amigos do elenco e da produção. Mais uma vez, ao término da peça, o público divide-se: metade aplaudindo sem convicção e metade no mais mortal silêncio. O que, pelo conteúdo da peça, francamente não é de se estranhar para o ano de 1950. Dorotéia se antecipava a elementos do chamado “teatro do absurdo”, gênero nascido oficialmente com A cantora careca, de Eugene Ionesco no mesmo ano de 1950 e Esperando Godot, de Samuel Beckett de 1953. Segundo afirma Patrice Pavis em seu Dicionário de teatro, A peça absurda surgiu simultaneamente como antipeça da dramaturgia clássica, do sistema épico brechtiano e do realismo do teatro popular (antiteatro). A forma preferida da dramaturgia absurda é a de uma peça sem intriga nem personagens claramente definidos: o acaso e a invenção reinam nela como senhores absolutos. A cena renuncia a todo mimetismo psicológico ou gestual, a todo efeito de ilusão, de modo que o espectador é obrigado a aceitar as convenções físicas de um novo universo ficcional. Ao centrar a fábula nos problemas da comunicação, a peça absurda transformase com frequência num discurso sobre o teatro, numa metapeça. Das pesquisas surrealistas sobre a escrita automática, o absurdo reteve a capacidade de sublimar, numa forma paradoxal, a escrita do sonho, do subconsciente e do mundo mental, e de encontrar a


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metáfora cênica para encher de imagens a paisagem interior. (PAVIS, p. 2)

Dorotéia tem início com a chegada da personagem-título à casa onde encerram-se suas três primas: D. Flávia, Carmelita e Maura, conforme dito anteriormente, viúvas enlutadas, castas e em eterna vigília. D. Flávia é a única que tem uma filha, a pubescente Maria das Dores. Tais mulheres jamais dormiram porque sabem que nos sonhos os impulsos e instintos luxuriosos são incontroláveis, por isso a ausência de quartos “nesta casa sem homens”. Além disso, todas mulheres da família possuem um defeito de visão que a impedem de verem homens, e todas elas, durante a noite de núpcias sofrem uma náusea, tradição começada pela bisavó das três primas e cultuada como uma espécie de ritual sagrado pelas gerações subsequentes. Por todas, menos por Dorotéia, uma prostituta que acaba de perder o filho, um bebê, morto vítima de convulsões. Então, disposta a integrar-se aos costumes femininos do resto da família, Dorotéia, chega à residência das primas e identifica-se como uma outra prima sua homônima, que suicidou-se por não suportar saber que por baixo das roupas seu corpo estava nu. O disfarce não funciona, pois mesmo vivendo reclusas, as primas sabem de tudo que acontece a qualquer parente por meio de “uma voz” que lhes serve de informante. Assim, Dorotéia é pressionada a confirmar sua história, que todas já conheciam. E desde que renuncie à sua beleza, contraindo chagas com Nepomuceno, o vizinho leproso das viúvas, será aceita na casa. O dia seguinte será o casamento de Das Dores, nascida de cinco meses e morta, “muito morta”. Para que possa perpetuar a tradição da náusea na noite de núpcias, a mãe, D. Flávia, não lhe informa de sua morte, e assim, Das Dores “pensa que existe”. Então, sem maiores explicações, a sogra de Das Dores traz o noivo: um par de botinas. Das Dores vai para junto do noivo receber a náusea como se recebe uma bênção, mas a náusea não vem. E Das Dores, sem o defeito de visão próprio de sua família, enxerga Eusébio, seu noivo, um par de botinas desabotoadas e entrega-se ao idílio amoroso, renegando a náusea. D. Flávia inconformada manda que a filha rogue pela náusea, mas esta se recusa, e Carmelita e Maura passam também a enxergar o par de botinas desabotoadas, o que leva D. Flávia a matá-las estranguladas, ainda que ela própria também possa vê-lo.


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Das Dores decide-se então a partir com o noivo e D. Flávia vê-se obrigada a contar-lhe que Das Dores não existe, porque nasceu morta. Então Das Dores resolve voltar ao ventre materno para ali crescer, nascer viva e tornar-se mulher. D. Flávia em vão luta com a filha dentro de si e por alguns momentos age de forma estranha, como se fosse a própria Das Dores. D. Assunta vem buscar seu filho-par de botinas desabotoadas. Dorotéia já com as chagas dá a mão a D. Flávia que por sua vez sentencia que as duas apodrecerão juntas. Desce o pano. Diferentemente da classificação que Nelson dá a Dorotéia, chamando-a de “farsa irresponsável”, para Carlo Castello Branco, tal peça é a mais realizada de suas tragédias por apresentar com maior propriedade as características trágicas do gênero. É bem verdade, que a tragédia, ainda que implicitamente, forma parte de todas as peças de Nelson Rodrigues, mas em nenhuma delas, a linguagem, ainda que fresca, como demonstrado nos excertos anteriormente citados, assume uma gravidade que indica um irremediável fim trágico das personagens quanto nas cenas-chave de Dorotéia: DOROTÉIA — Eu não merecia ser destratada... nunca ninguém me fez a despeita de me recusar... eu tinha muita sorte, muita... Basta dizer que, até nas segundas-feiras, de manhã, havia quem me quisesse... D. FLÁVIA — Nesse tempo não tinhas as chagas... DOROTÉIA — Elas chegaram tão de repente que nem as senti... Acho que nem o nascimento de uma espinha passa tão despercebido... Foi preciso que avisasses... D. FLÁVIA — E já começam a me devorar... Várias no rosto, como desejavas... eu que pensei que só fossem cinco... agora o jarro não quer me acompanhar... deve estar interessado em alguma mulher de pele boa... Eu não poderei mais ser leviana... (violenta para D. Flávia) Qual será o nosso destino? (As duas ficam juntas de frente para a platéia. Muito eretas e unidas. Fazem a fusão de suas desgraças. D. Flávia continuna segurando a máscara da filha na altura do peito. E dá à companheira a mão livre. São para sempre solidárias.) DOROTÉIA (num apelo maior) — Qual será o nosso fim?


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D. FLÁVIA (lenta) — Vamos apodrecer juntas. (p. 669-670)

Segundo Kitto, em geral uma personagem é trágica quando é movida por forças incontroláveis que inexoravelmente a levarão à ruína. É exatamente este o sentimento final das personagens D. Flávia e Dorotéia, as duas sabem que não há volta, que já não há o que fazer, o caminho que traçaram para si só poderia levá-las à própria destruição. No texto, que realmente começa com cores farsescas, todas as personagens, exceto Dorotéia, usam máscaras, inclusive o noivo: um par de botinas desabotoadas, é ele próprio uma máscara. Note-se que as máscaras mostram “faces hediondas”, como se mostrassem a alma das personagens, pois no ciclo mítico, interessa a Nelson Rodrigues mostrar o que seria o interior das personagens, aquilo que há de mais profundo e verdadeiro em cada uma delas. Quando decide voltar à barriga da mãe, Das Dores o faz tirando sua máscara e impondo-a contra o peito de D. Flávia. De sua parte, Dorotéia, conforme Sábato Magaldi, para ser acolhida na família adere também a uma máscara: as chagas que purificadoras de sua pecaminosa beleza, adquiridas com Nepomuceno. Ainda segundo Magaldi, ao optar pelo recurso plástico das máscaras, Nelson Rodrigues chega à força ancestral do arquétipo, pois elas condensam e petrificam a essência das personagens. “Sutilezas psicológicas, flutuações do sentimento, idéias cambiantes seriam supérfluas, não registrando a verdade profunda de cada uma”.12 Não faz muito sentido tentar enquadrar rigidamente em um ou outro gênero qualquer obra de um autor como Nelson Rodrigues que habilmente combina elementos os mais diversos a serviço do desnudamento do drama humano, mas em Dorotéia, seguindo o raciocínio de Castello Branco, gradativamente a farsa cede lugar à tragédia. Pouco a pouco a sensação inicial ao mesmo tempo de riso e pavor vindo das figuras assombrosas das viúvas vai cedendo espaço a uma realidade de destruição. A morte inapelavelmente reabsorve a vida. D. Flávia, o foco central de poder, pensa conseguir manipular a vida e a morte a seu prazer, tratando como viva a filha que nasceu morta. Mas

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MAGALDI. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações, p. 56.


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quando a filha volta a seu corpo para nele poder desenvolver-se, para dele nascer viva, crescer e tornar-se mulher, percebe que as contradições inerentes à vida de qualquer ser humano é maior que qualquer poder que uma pessoa possa atribuir a si mesma ou a outrem. E não há, absolutamente, como escapar do mesmo destino da mulher a quem despreza no começo: seu fim será apodrecer junto com Dorotéia. Em Dorotéia, a exemplo de outras de suas peças, mais uma vez confirma-se a máxima de Nelson Rodrigues que apregoa que “a família é o inferno de todos nós”. Há uma tensão entre o modelo tradicional de família, chefiado pelo pai e na falta deste ou de qualquer homem pela mulher mais velha personificada em D. Flávia e os desejos de individuação, pulsantes em Das Dores. Dorotéia é um lugar de encontro de vozes diversas e dissonantes. Como o é o mundo real e palpável. Feito de contrastes e contradições. Da mesma forma que a prostituta, representante legítima dos planetas sem boca de Achugar decide instalar-se na casa de beatas, o que por anos foi tachado de menor, maior amostra disto é a produção de bens culturais de países periféricos como os da América Latina em comparação as ex metrópoles européias, calcada em valores europeus criados por homens brancos e cristãos. Deste modo, a casa das viúvas pode servir-nos de metáfora de templo “imaculado” da “alta cultura”, povoado de iguais que formam mais uma das muitas “unanimidades burras” da celebérrima máxima de Nelson Rodrigues: “toda unanimidade é burra. Quem pensa como a unanimidade não precisa pensar”. Um lugar onde só se admite iguais, como se fosse possível, há mais de 500 anos de contato e miscigenação de índios, negros e brancos. Hoje a definição de América como continente essencialmente mestiço, chega mesmo a soar ingênua. Se como afirma Silviano Santiago em Uma literatura nos trópicos, a mestiçagem foi a maior contribuição da América ao mundo, atualmente a mestiçagem de etnias e culturas é a essência de todo o globo. Dorotéia atua então como mediadora do mundo real, composto por diversas gentes e do mundo imaginário da impossível pureza de D. Flávia, Carmelita e Maura: D. FLÁVIA (rápida, completando) — Fugiste com o índio... DOROTÉIA — Não era índio... Parecia índio de tão moreno... Mas era paraguaio... Mas também pouco demorou... Teve uma febre


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que nenhum doutor deu jeito... Foi quando aluguei o tal quarto, a conselho de uma vizinha de muita experiência... D. FLÁVIA (frenética) — E a náusea? DOROTÉIA (sem ouvi-la) — Comecei a me dar com soldados, embarcadiços e fiquei muito amiguinha de um rapaz que trabalhava com jóias... Porém minha preferência maior era para senhores de mais idade... (p. 632)

Não por acaso, os clientes enumerados por Dorotéia trazem a marca da diversidade: um hispano-americano de ascendência indígena: os espoliados sem direito à voz; soldados: representantes da lei (que se intitula e deveria ser) comum a todos, independente da etnia, sexo ou crenças; embarcadiços: os viajantes, que por não fixarem-se a nenhum local específico ao mesmo pertencem a todos os lugares e não são de lugar algum; um rapaz que trabalhava com jóias: os artistas/artesãos que menos que em ferramentas têm no próprio corpo e imaginário seus instrumentos de trabalho. Dorotéia, nome que etimologicamente significa “presente de Deus”, nesta passagem da peça funciona como o narrador de Benjamin, é a mulher experiente, a viajante que vem de longe, trazer a boa nova de que há vida fora dos muros e da vigilância de D. Flávia. Das Dores ao saber das várias possibilidades com que lhe acena o mundo exterior resolve ir ao encontro delas, com uma determinação que nem a sua morte ocorrida já no nascimento poderá deter. Se não tem um corpo para levá-la onde deseja, regressará ao ventre da mãe, alimentar-seá da carne e do sangue da outra para poder ser ela própria. Atitude parecida ao do artista latino-americano que cria sua própria tradição, sem abdicar de seus antecessores, mas moldando-os aos interesses de sua própria arte, como ele próprio feita de fusões de diferenças. Atitude semelhante a de Nelson Rodrigues que optou por fazer um teatro como ele bem sabia, na época em que foi produzido, fadado ao fracasso, mas soube beneficiar-se do mercado cultural com suas crônicas, romances e consultórios sentimentais, perfeitamente adequados ao gosto do leitor de então. O final, já sabemos, é a morte das 5 mulheres, as três viúvas que recusavam-se a aceitar que o mundo é múltiplo e variado, a prostituta que busca integrar-se ao mundo isolado, fechado sobre si mesmo das primas e a menina que não pôde nunca nascer viva, que condenada aos 100 anos de solidão de que nos fala o colombiano García Márquez não tem direito a uma


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nova oportunidade sobre a terra13.

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GARCÍA MÁRQUEZ, Cem anos de solidão, p. 383


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RESENDE, Otto Lara. Entrevista com Nelson Rodrigues. Revista O Comício. Disponível em: <http//:www.nelsonrodrigues.com.br> Acesso em 2002. RODRIGUES, N. Teatro completo. (Volume Único). Org. Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 1134 p. SANTIAGO, S. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: SANTIAGO. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 9-26 VELOSO, C. Omaggio a Federico e Giulietta. São Paulo: Polygram do Brasil, 1999. Acompanha livreto.




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tentação e densidade à reflexão acadêmica.

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