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TRANSGRESSÃO Nº14
TRANSGRESSÃO Nº14/ MURRO#07 POR/ NEOMISIA SILVESTRE
FLÁVIO DE CARVALHO O ARTISTA CONTROVERSO
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Embora não tenha participado da efervescente Semana de Arte Moderna de 1922, o artista inquieto é tido como ativista dos anos 1930 e um dos fundadores do Salão de Maio, em 1937, que ajudou a consolidar a arte moderna no país
TALVEZ NÃO FOSSE INTENCIONAL atrair tanta atenção e muito menos despertar a fúria de alguns que o estudante de têxtil e moda Vitor Pereira, 20 anos, decidiu ir à aula to por se sentir mais à vontade. Fato é que a atitude desencadeou uma série de ofensas gratuitas nas redes sociais do aluno da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, na zona leste, em maio passado, e também manifestações em forma de “saiaço”, organizado por universitários a favor da causa.
Premeditada, uma situação parecida aconteceu em outubro de 1956, quando o artista Flávio de Carvalho (1899-1973) caminhou de saia pelo centro de São Paulo: era a sugestão de um “New Look” para “o novo homem dos trópicos”. A “Experiência nº 3”, como foi nomeada por ele, representava seu pensamento de que a roupa é o fator que mais mais perto do seu corpo e o seu corpo continua sempre sendo a parte do mundo que mais interessa ao homem”. A composição de saia cor-de-rosa plissada acima dos joelhos, camisa verde de mangas curtas, meia arrastão e sandália de couro cru indicavam uma explícita e pioneira intenção performática.
Inspirado em obras de pensadores como Charles Darwin, Freud e Nietzsche, Flávio publicamente o (ul)traje, com o propósito de defender uma nova concepção de roupa de verão para os homens, levando em consideração as transformações sofridas nas vestimentas com o passar dos anos. Defendia uma revolução estética como “fenômeno de turbulência, com polarização de forças anímicas básicas”.
Inquieto e vanguardista, o carioca Flávio de Rezende Carvalho foi um homem multifacetado: era arquiteto, engenheiro, cenógrafo, co. Capaz de transitar com genialidade entre todas essas linguagens artísticas, não é à toa que é lembrado como um dos nomes de destaque da geração modernista brasileira.
O caráter experimental que fugia à regra é expresso nas formas de lidar com essas vertentes das artes. Para isso, Flávio sempre ia à direção contrária. Prova literal disso é a chamada “Experiência nº 2”, em que atraves Corpus Christi usando um chapéu verde musgo e olhando maliciosamente para as devotas. A intervenção numa tarde de domingo, em junho de 1931, no centro de São Paulo, era para estudo da reação e psicologia das massas que, tamanho o tumulto gerado, quase lhe rendeu o linchamento por parte dos católicos. A experiência foi registrada e ilustrada por ele em um ensaio sobre os limites da tolerância e a agressividade de uma multidão religiosa.
Ainda na década de 1930, o interesse em captar aspectos emotivos e psicológicos é representado em nus e retratos, pintados por ele, com uma fusão de estilos por meio de traços surrealistas, cubistas e expressionistas. “No retrato, há um mundo a se descobrir e a se aperfeiçoar; não só no que se refere à dialética pura da pintura como no que toca à importância humana do personagem”, dizia. Entre eles, um retrato dos poetas Oswald de Andrade e Julieta Bárbara e outro de Mário de Andrade. As obras somam cem telas a óleo e cerca de mil desenhos.
Segundo o arquiteto e historiador de arte Rui Moreira Leite, as ilustrações e caricaturas marcam a fase inicial da obra do artista, que se encerra com a primeira exposição individual em 1934, fechada pela polícia e com cinco quadros apreendidos. “Os nus a caneta tendem a captar e sugerir movimento dos corpos mesmo em poses estáticas, traindo o ilustrador no registro dos espetáculos de dança. Da mesma forma, a acentuação de pormenores expressivos, característica da caricatura, é nota marcante nos retratos”, explica o autor de : o Artista Total e curador da mostra retrospectiva no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em abril de 2010 e outra na Bienal de 1983.
Em 1947, o artista realiza a intrigante , composta por nove desenhos em carvão sobre papel, na qual registra a agonia da própria mãe morrendo. Ophélia Crissiúma de Carvalho padecia de um cân a captação instantânea do momento em que a vida se despedia do corpo. Fato que novamente chocou o público. Hoje, os desenhos são parte da coleção do Museu de Arte Contemporânea, da USP.
Embora não tenha participado da efervescente de 1922, o artista inquieto é tido como ativista dos anos 1930 e um dos fundadores do , em 1937, em São Paulo, que ajudou a consolidar a arte moderna no país. Foi um dos primeiros a trazer as obras de artistas europeus, norte-americanos e latino-americanos ao Brasil. Nascido em uma família de muitas posses, teve o privilégio de estudar na França (1911-1914) e na Inglaterra, onde se formou engenheiro civil e estudou Belas Artes. Durante sua trajetória, expôs trabalhos em mostras individuais e coletivas na Argentina, Itália, Escócia, Alemanha, Áustria, Espanha, Portugal e Holanda.
Entre 1924 e 1926, ingressou no escritório de arquitetura de Ramos de Azevedo (18511928), responsável por projetar o Mercado e o Theatro Municipal de São Paulo. Participa de diversos concursos públicos de arquitetura idealizar o Palácio do Governo do Estado de São Paulo (1927), mas, mesmo sem sucesso em nenhum deles, teve projetos considerados marcos para a arquitetura modernista brasileira; tanto, que até o franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), em vinda ao Brasil, o chamou de “revolucionário romântico”. “Essa série de concursos representa um primeiro momento dele como artista que está desa de ele ser um arquiteto de vanguarda, era um calculista de estruturas de engenharia em São Paulo”, explica Rui.
Construída em Valinhos, na Fazenda Capuava, a casa modernista é considerada o maior projeto arquitetônico de Flávio, não só pela ousadia do desenho minimalista e da decoração, mas pelos jantares e festas à beira da piscina com importantes artistas e intelectuais da época. Lá, o artista passou os últimos anos de sua vida. Morreu em junho de 1973, aos 74 anos.