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ENTREVISTA

ENTREVISTA

CAPA/ MURRO#07 POR/ MÁRCIA MARQUES e NEOMISIA SILVESTRE

PÉ NA COZINHA

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raciais. A mestiçagem reúne sociedades divididas pelas místicas raciais e grupos inimigos. A mestiçagem reorganiza nações comprometidas em sua unidade e em seus destinos democráticos pelas superstições sociais”

Gilberto Freyre, 1963

“AS PESSOAS PENSAM que são brancas. lha é branca. Só no Brasil eu sou branco. Um dia eu falei que ninguém no Brasil é branco, a não ser a Xuxa. E brinquei também falando que se a Xuxa não casar com o Taffarel, vão acabar os últimos brancos [no Brasil]”. Chico Buarque, o cantor e compositor de decantada beleza, com profundos olhos azuis pelos quais muitas mulheres já suspiraram, é o autor da frase que circula em uma entrevista no Youtube com mais de cem mil acessos, postada em 2008, com quase 700 comentários, a maioria, defendendo algum ponto de vista sobre o racismo. E Chico acrescenta dizendo que brasileiro não assimila bem o fato de ser mestiço. Aceita só teoricamente, para usar como mote de piada. Assim fez nosso ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em sua campanha à presidência em 1994, quando o oponente peemedebista, Orestes Quércia, como “o candidato das mãos limpas”. Nesse momento surgiu a primeira declaração de FHC sobre sua ascendência negra: “Um candidato disse que eu tinha as mãos brancas. Eu não. Minhas mãos são mulatinhas. Eu sempre disse isso, sempre brinquei comigo mesmo. Tenho um pé na cozinha. Eu não tenho preconceito” E foi naquele mesmo ano que o candidato brasileiro, com o pé na cozinha, saiu vencedor em primeiro turno nas eleições presidenciais no Brasil. E de lá para cá (e em todos os tempos, vide tantas guerras travadas pelo mundo), as questões raciais nunca deixaram de ser assunto para discursos familiar, e, o mais recente caso, discussões jurídicas em torno de assuntos culturais e artísticos, como os editais para criadores e produtores negros lançados em novembro de 2012 pelo Ministério da Cultura, o Prêmio Funarte de Arte Negra, que divide opiniões e reacende o debate sobre racismo. Se a ideia foi reforçar positivamente a identidade dos negros, até pelos séculos de direitos cerceados, o lançamento do Edital robusteceu uma classe de artistas com direitos diferenciados e atiçou a briga pelo cobertor, sempre curto.

POR COMPACTUARMOS COM UM MUNDO QUE SEJA LIVRE DE TODO E QUALQUER PRECONCEITO, A CIA CARNE AGONIZANTE VEM A PÚBLICO INFORMAR A TODES QUE AS IMAGENS CONTIDAS NA CAPA E NO INTERIOR DESTA PUBLICAÇÃO NÃO CONDIZEM COM O PENSAMENTO DOS INTEGRANTES DO GRUPO E DOS RESPONSÁVEIS PELA REVISTA MURRO EM PONTA DE FACA. PORTANTO, FORAM RETIRADAS.

CAPA/ MURRO#07

PRÊMIO FUNARTE DE ARTE NEGRA

SANCIONADA pela atual presidente Dilma Rousseff, em memória à morte do líder dos Palmares em 1695, que lutou pela libertação dos escravos durante o período colonial no país, a Lei 12.519/2011 instituiu o 20 de Novembro como Dia Nacional de Zumbi e da tiva de promoção da igualdade racial, quando negro na sociedade brasileira. Pois foi no último dia 20 de novembro que a atual ministra da cultura, Marta Suplicy, lançou os editais para criadores e produtores negros, autodeclarados como tais, no ato da inscrição. Segundo o site do ministério, o prêmio visa “formar novos escritores; elevar o número de pesquisadores negros e de publicações de autores negros; incentivar pontos de leitura de cultura negra em todo o país; além de premiar curtas dirigidos ou produzidos por jovens negros; entre outras ações”.

Os editais lançados pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), a Fundação Biblioteca Nacional e a Secretaria do Audiovisual, em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR) e a Fundação Cultural Palmares receberam 1.929 projetos de todo o país. Um investimento de R$ 9 milhões, com recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC), destinados a premiar 33 iniciativas - nas categorias de teatro, circo, dança, música, artes visuais e preservação da memória - no Prêmio Funarte de Arte Negra; seis curtas-metragens no Edital de Apoio para Curta do Audiovisual; a coedição de 25 livros, a implantação de 30 pontos de leitura e bolsas para pesquisadores negros pela Fundação Biblioteca Nacional.

Em entrevista à Murro em Ponta de Faca, a ministra disse acreditar que a criação dos editais “é uma justa reivindicação da comunidade negra”, essa, que representa os 52% dos brasileiros denominados pretos e pardos, de acordo com o Instituto Brasileiro da classe artística, aí estava a possibilidade de ampliar a discussão acerca das questões raciais e de uma participação efetiva dos produtores, pesquisadores e criadores negros - ainda que tardiamente - no que se refere a concursos de caráter exclusivo e/ou preferencial à etnia negra, mas desencadeou uma apoiam e os que não apoiam os editais voltados exclusivamente aos negros. Em Salvador, Aracaju e São Paulo, o es capacitação para o Prêmio, em encontros organizados pelo MinC com o objetivo de divulgar o edital, orientar a inscrição, as etapas de execução do projeto e, de modo geral, sanar dúvidas dos interessados e participantes. Como se trata de algo inédito, o próprio presidente da Funarte, Antonio Grassi, enxergou a necessidade de ajuste em alguns itens, como o da condição de participação pessoa física e/ ou jurídica.

O CASO IRINEU

O projeto “Encontro de Dança AfroXplosion Brasil”, que se trata de um encontro anual para o ensino de danças africanas e afro-brasileiras tradicionais e contemporâ gal, Zimbábue, Gana e Guiné, proposto pelo dançarino e coreógrafo maranhense Irineu Nogueira, foi um dos 33 selecionados pelo representação.

Segundo a diretora do Centro de Programas Integrados (CEPIN), da Funarte, Ana Claudia Souza, o grupo foi vetado por ser representado pela Cooperativa Paulista de Dança, cujo presidente, Sandro Borelli, é branco. De acordo com o Edital, estão aptas a participar, na condição de pessoas físicas (artistas

O fato de Irineu optar ter como proponente a Cooperativa Paulista física, teria de prever no orçamento a retenção de 27,5% do Imposto de Renda, que representa R$ 41.250,00 dos R$ 150.000,00 investidos, desconto que inviabilizaria o projeto

ou produtores culturais) e pessoas jurídicas (instituições privadas) cujo representante legal, no ato da inscrição, se autodeclare negro (preto e pardo - IBGE). Em comunicado enviado ao presidente da Funarte, Borelli diz: “Venho, por meio dessa mensagem, pedir que reavalie o Edital Prêmio Funarte de Arte Negra pelos seguintes motivos: 1. Não existe branco neste país; 2. A Cultura Negra do Brasil pertence ao povo brasileiro; 3. Apesar das boas intenções da entidade, este prêmio gera uma ideia separatista entre os cidadãos; 4. Devemos lembrar que somos todos mestiços, a começar pela nossa presidente Dilma Rousseff, portanto, entendo que qualquer brasileiro está apto a concorrer ao prêmio; 5. Este edital se opõe à exuberante diversidade cultural do povo brasileiro. A Funarte deveria fomentar por meio da cultura a integração dos povos, mas este Edital do jeito que se apresenta mancha o histórico desta entidade”. A nota também foi

Em resposta a Borelli, Grassi disse que tomou conhecimento tardiamente da questão de inscrição do proponente Irineu. “Acho que você tem toda razão e a restrição se refere à Companhia realizadora. Vou orientar a Funarte para recebimento dos projetos. Como é um Edital inédito, esses detalhes serão aperfeiçoados nas próximas edições, seguramente. Obrigado pelo alerta”.

Quando questionado pela Murro em Ponta de Faca sobre o assunto e ao que poderia ser revisto no Edital, Grassi defendeu que, na verdade, não ocorreu nada a ser revisto e que a revisão é de redação, pois o Edital, como foi elaborado em conjunto com a Secretaria da Igualdade Racial, não deixava clara a questão das cooperativas. “Não houve recusa de projeto, já que ele permite a inscrição como pessoa física. Apenas corrigimos o procedimento, aceitando os projetos que tinham cooperativas como representantes. Aliás, foi normalizado imediatamente. Quanto às revisões, todos os nossos editais, e não exclusivamente esse, passam por reavaliação para aperfeiçoar os procedimentos. Como esse é inédito, certamente teremos pontos a acertar”, esclareceu Grassi. Embora solucionada a questão, o assunto ganhou notoriedade na mídia e suscitou diversas opiniões nas redes sociais e em encontros realizados pela classe artística. “Após a leitura de muitos comentários gerados em torno do meu projeto ‘aparentemente’ ter sido negado por ter como proponente a entidade que me representa e muitos dos meus parceiros pro dança, eu teria três caminhos para inscrição: por meio da Cooperativa; da empresa produtora que trabalha comigo; e eu pessoa física negra”, explica Irineu. O fato de ele optar ter como proponente a Cooperativa Paulista de pois, como pessoa física, teria de prever no orçamento a retenção de 27,5% do Imposto de Renda, que representa R$ 41.250,00 dos R$ 150.000,00 investidos, desconto que inviabilizaria o projeto. A diferença entre ser representado pela CPD ou por seu próprio é cobrada, por projeto, uma taxa de 3,5% de encargos operacionais e sobre cada cachê (dependendo do valor, também há tributação de IR) 20% são destinados ao INSS, tributo federal obrigatório que garante ao recolhedor a possibilidade de aposentadoria na velhice. Irineu acredita que o Edital foi elaborado de forma afoita, sem consultas a especialistas e por pessoas que não sabem como o meio artístico, em que o negro está inserido, opera. “Quero deixar claro que não sou contra um edital que favoreça a cultura negra Não quero que este Edital acabe ou seja suspenso. Pelo contrário, acho válida a proposta revisto pela Funarte: as condições do proponente para se inscrever, ou seja, que no caso de cooperativa, o que se deveria levar em conta é o diretor do núcleo artístico e o elenco, e não ser inviabilizado por ter um representante legal na atual gestão, que é branco”, diz Irineu, que atualmente mora em Londres e desenvolve um trabalho de resistência cultural e propagação da dança afro-brasileira pelo Brasil e exterior.

Irineu acredita que o Edital foi elaborado de forma afoita, sem consultas a especialistas e por pessoas que não sabem como o meio artístico, em que o negro está inserido, opera

CAPA/ MURRO#07

A INCLUSÃO PELA EXCLUSÃO

PARA JOÃO NASCIMENTO, presidente do Instituto Nação e diretor da companhia Treme Terra, que acompanhou a discussão, desde a publicação do edital até a manifestação de Sandro Borelli na internet, com carta a Antonio Grassi, “valorizar a cultura negra não é sinônimo de desprezar as outras diversas culturas que também são essenciais para a formação do nosso povo. É um gran em um país racista”. João defende que, enquanto o olhar estiver pautado apenas do ponto de vista da pigmentação, a utopia da democracia racial será alimentada por desejos e discursos românticos e inocentes, como uma solução de “tapar o sol com a peneira” e uma tentativa de diluir as extremidades em direção ao eixo da falsa miscigenação, com o intuito de não reconhecer a herança do pensamento escravocrata, que, infelizmente, ainda se reproduz nas práticas cotidianas das relações.

“Enquanto a arte negra continuar sendo lembrada só no dia 20 de Novembro, isso quando lembrada, a contemporaneidade brasileira cultural continuará sendo fomentada por valores eurocêntricos, que não reconhecem o desenvolvimento da arte do ponto de vista africano, que contribuiu cultura brasileira”, completa João, que também coordena o projeto Afrobase, é integrante do AFRO2, do Quinteto Abanã e do Frente 3 de Fevereiro, um grupo transdisciplinar de pesquisa e ação direta acerca do racismo na sociedade brasileira.

A bailarina Amanda Santos, membro do Dança, que também opinou na discussão criada no Facebook – atente-se aqui, gerou mais de uma centena de comentários entre artistas que discordavam e concordavam com o posicionamento de Sandro –, sublinha o fato de se tratar de uma Cooperativa Paulista de Dança, e não de uma Cooperativa de Dança do Movimento Branco, nem do Movimento Negro, nem do Movimento Indígena, tampouco do Movimento dos Orientais ou de qualquer outra etnia. E que o fato de o presidente ser branco, não é motivo aceitável como impedimento para o grupo. “Todos nós sabemos sobre a formação histórica da população brasileira e por termos essa informação, sabemos que muito raro se pode dizer sobre um brasileiro, que é branco ou negro. Somos mestiços, mulatos, mamelucos. Soa um pouco romântico uma luta pela causa negra de forma separatista”, diz.

Ela também salienta uma questão importante, a de que, historicamente, no Brasil, nem todos os artistas especializados em cultura negra têm a pele preta. “Apoio que lhidos por suas capacidades, atuações e não por suas ascendências. Não entendo como apoiar um Edital que mais do que agregar, segrega e nos põe reféns de um sistema político. É triste perceber que, mais uma vez, os movimentos culturais perdem tempo se digladiando, em lugar de focarem a luta para mos sobre o momento histórico da luta artística”, completa Amanda.

Para Ana Catarina, bailarina e diretora da Companhia Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira, é preciso uma política cultural de inclusão, não a de inclusão pela exclusão. “Pontos positivos que deveriam ser levados em consideração são tidos como negativos e pontos negativos são acentuados. Grupos que têm a continuidade e a pesquisa como foco entraram para o grupo dos excluídos. Continuidade virou um problema. Temos de lutar pelo direito de todos os interessados em se expressar através da arte. Não podemos nunca esquecer de olhar para a luta do outro e principalmente quando não conhecemos determinadas lutas”, diz.

“Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros”, Darcy Ribeiro.

João defende que, enquanto o olhar estiver pautado apenas do ponto de vista da pigmentação, a utopia da democracia racial será alimentada por desejos e discursos românticos e inocentes

“Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros”

Darcy Ribeiro

POR COMPACTUARMOS COM UM MUNDO QUE SEJA LIVRE DE TODO E QUALQUER PRECONCEITO, A CIA CARNE AGONIZANTE VEM A PÚBLICO INFORMAR A TODES QUE AS IMAGENS CONTIDAS NA CAPA E NO INTERIOR DESTA PUBLICAÇÃO NÃO CONDIZEM COM O PENSAMENTO DOS INTEGRANTES DO GRUPO E DOS RESPONSÁVEIS PELA REVISTA MURRO EM PONTA DE FACA. PORTANTO, FORAM RETIRADAS.

CAPA/ MURRO#07

A POLÍTICA DO EDITAL

PARA A PESQUISADORA Lúcia Matos, coordenadora do Programa de Pós-Graduação de Dança da Universidade Federal da Bahia e ex-diretora de Dança da Fundação Cultural do mesmo estado, o que aconteceu com o projeto de Irineu não pode ser tratado como “um detalhe a ser corrigido”, como declarou o presidente da Funarte. Para ela, é um equívoco o governo vetar a inscrição baseada na autodeclaração da cor de uma natório diante de um Estado de Direito democrático, em que a igualdade de direitos é garantida pela Constituição.

Sobre a proliferação de editais, Lúcia questiona um em especial, lançado recen “para se inscrever era necessário apresentar um atestado médico comprovando que a pes plano sua produção artística e sua proposição a ser executada”. Para a pesquisadora, a falta de acompanhamento das ações e do resultado do trabalho empreendido pelo artista “revela mais um ato de complacência do Estado do que um real fomento à produção dos artistas problemas enfrentados no campo das políticas culturais, especialmente no que se refere à dança. Segundo Lúcia, desde que foram de Nacional de Cultura, ainda não há, nos Planos de Ação do MinC, Funarte e das Secretarias de Cultura, programas voltados à Dança e para as demais áreas, com ações previstas para curto, médio e longo prazos, e que busquem apresentar diferentes estratégias para o desenvolvimento da área. “O Plano Setorial da Dança - PSD, construído pelo Colegiado de Dança, com ampla discussão com a classe, desde 2010, está disponível para consulta pública, mas não gerou até hoje no próprio Governo Federal, que promoveu a participação da classe na sua elaboração, uma mobilização para a criação de programas e políticas mais efetivas, que saiam da pontualidade dos editais e visem a um amplo desenvolvimento da Dança”, explica.

O pensamento de Lúcia vai mais longe e ela pondera que a política de editais não pode ser considerada um caminho legítimo: “Um dos grandes problemas atuais é que trocamos a ausência de políticas para a área da Dança dos anos 1990 por ações pontuais baseadas prioritariamente na distribuição de verbas, via o que equivocadamente se chama de política de editais”. A pesquisadora também reconhece alguns avanços, principalmente depois de 2000, quando as pessoas passaram a se enxergar e a se colocar mais como classe artística, como grupos e companhias, do que em suas individualidades, mas avalia que as políticas culturais no Brasil ainda permanecem regidas por uma trada preponderante no desenvolvimento blico da cultura e das leis de incentivo. “Faz-se necessário compreender que as políticas mento da cultura e dos editais, e necessitam de programas e ações estruturantes focadas nos seus diversos modos organizativos e produtivos e nas relações que são estabelecidas com a sociedade”.

Então, aqui chegamos à síntese (no ápice, talvez?) da política que se pratica atualmente no Brasil, no que se refere à cultura de modo geral e, em particular, à dança: a política dos editais. Lúcia Matos arremata a ciamento e todas as possibilidades de acesso aos recursos é uma das linhas de ação das políticas culturais, mas não pode ser colocada como a única”.

“Um dos grandes problemas atuais é que trocamos a ausência de políticas para a área da Dança dos anos 1990 por ações pontuais baseadas prioritariamente na distribuição de verbas, via o que equivocadamente se chama de política de editais”

branco, faz aulas de balé clássico e considera o legado europeu importantíssimo para sua formação, não concorda com cota em nenhuma instância, inclusive neste Edital em que está inscrita como “parda”; ela que tem “branca” cravada na certidão de nascimento

A MISCIGENAÇÃO

Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882) é autor de um dos primeiros trabalhos publicados no século XIX sobre o racismo e a eugenia [estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente]. Em seu “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”, sustenta a teoria de que o destino das civilizações é determinado pela composição racial, em que os brancos avançavam desde que estivessem livres dos pretos e amarelos, e que quanto mais o caráter racial de uma civilização se dilui por meio da miscigenação, mais provável se torna que ela perca a vitalidade e a criatividade, e mergulhe na corrupção e na imoralidade. Em 1876, em missão diplomática no Rio de Janeiro, enviado por Napoleão III, ao se deparar com uma sociedade brasileira em maioria negra, considerou que o país não tinha futuro, por julgar a raça inferior. Iniciava-se aí um processo de “embranquecimento” com o incentivo da imigração europeia.

Para Sidney Santiago Kuanza, membro fundador da Companhia de Teatro e Intervenção Urbana Os Crespos e da Rede Kultafro, a criação de editais para proponentes negros é um ato legítimo e reparatório do Estado brasileiro e se torna uma ferramenta necessária para que o acesso de artistas negros no cenário cultural, de fato, aconteça; além do acesso à verba pública. “Historicamente, os negros vivem uma relação extremamente contraditória no campo da cultura em nosso país. De um lado, temos uma identidade nacional focada em símbolos como o samba, a mulata, o futebol e a capoeira. Do outro, temos os negros completamente apartados do sistema cultural: não estão na cena, na plateia e continuam sendo retratados nas diversas dramaturgias de formas incompletas e animalescas. A produção cultural brasileira continua sendo um espaço segregacionista e age como um braço que perpetua a exclusão”, diz.

Sidney defende que a Funarte deveria entender a responsabilidade histórica deste momento e criar um edital com regras e critérios mais evidentes, com treinamento ter condições de informar os interessados e sanar problemas, ao invés de cometer equívocos que colaboram para a criação de polêmicas sem fundamentos e que “só servem para atravancar processos e corroborar com o atraso do país, incitando ainda a fúria gratuita de racistas de plantão”, diz. de mãe negra e pai branco, faz aulas de balé clássico e considera o legado europeu importantíssimo para sua formação, não concorda com cota em nenhuma instância, inclusive neste Edital em que está inscrita como “parda”; ela que tem “branca” cravada na certidão de nascimento. Para Samira, o termo “vocês brancos” é completamente racista e anacrônico, pois a pureza de raças no Brasil deixou de existir por séculos. “Resistência cultural é um movimento que deve ser feito por brasileiros de qualquer cor. O movimento musical originalmente ‘negro’, o samba, foi muito bem representado por ‘brancos’, como Noel Rosa e Ary Barroso”, relembra.

A SUSPENSÃO

DOS EDITAIS

Enquanto em São Paulo a discussão acer pelo imbróglio no projeto de dança de Irineu Nogueira, no Maranhão, uma ação popular era movida contra a Advocacia Geral da União, a Funarte e demais órgãos, pelo advogado Pedro Leonel Pinto de Carvalho sob o fundamento de que estes criaram um edital de exclusividade à etnia negra. Em decisão do Juiz José Carlos do Vale Madeira, da 5a Vara da Seção Judiciária do Maranhão, todos os editais foram suspensos no último dia 14 de maio.

O Juiz acredita que os concursos des etnias e ignoram o denso mosaico étnico-cultural que marca a sociedade brasileira, além de comprometerem os princípios da razoabilidade e da moralidade administrativa. “Esses editais acabam afastando as demais etnias e envolvem valores vultosos. Quer dizer, é um concurso voltado com exclusividade para negros. Então, isso não é proteger a etnia negra, isso é na verdade isolá-la, segregá-la, deixá-la compartimentalizada”. Leia entrevista exclusiva com o juiz na página 22.

Em entrevista à Murro em Ponta de Faca, dois dias antes da notícia de suspensão dos editais, a ministra Marta Suplicy defende que “quem faz edital para negro não tem preconceito nenhum. Pelo contrário, acho que tem de haver uma possibilidade maior de criadores e produtores. Não como alguns pensaram que ‘tem de ter a temática negra’. Não se trata disso, se trata do criador negro fazer o que ele bem entender, porque não tem possibilidade de captar pela [Lei] Rouanet. Então, a partir dessa constatação, foi feito dessa forma”.

A ministra, que assumiu o cargo em setembro de 2012, tem os editais de fomento à cultura negra como principal novidade de sua gestão. “Quando se faz um edital para negros, pode vir alguém e falar: ‘mas todo mundo no Brasil pode ter um DNA negro’. Sim, mas e daí? Tem que se autodeclarar. É como cota. Vou pedir DNA? A questão é se autodeclarar. Inclusive isso foi discutido e é implícito. Não precisa parecer negro para ser, mas se falou que é negro, assume a responsabilidade”, diz.

CAPA/ MURRO#07

PRETO, NEGRO

DESDE 1872, o Instituto Brasileiro de Geo ções de resposta: branco, preto, pardo e caboclo. Realizaram-se em 2002 e 2003 três reuniões ampliadas na Diretoria de Pesquisas e quatro seminários nas Unidades Estaduais do IBGE de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, com participação de mais de 50 pessoas, representando 15 organizações do movimento negro, 12 instituições de pesquisa, organizações não governamentais que trabalham com questões relativas às nações indígenas e secretarias estaduais, além de pesquisadores e técnicos do próprio IBGE. É importante destacar que os três estados onde foram realizados seminários comportam quase a metade dos pouco mais de 10 milhões de pessoas que se declararam de cor ou raça preta no país e dos 66 milhões que se declararam de cor ou raça parda, segundo os dados do Censo 2000.

“Conhecer a história e a cultura é fundamental, por isso esses editais são importantes, porque colocam em cena esses setores que nunca tiveram essa oportunidade. Essa suspensão anunciada por uma avaliação de um juiz que não concorda com esse encaminhamento é mais uma reação conservadora que tem de ser cortada e negada”, diz Matilde Ribeiro, subsecretária adjunta da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Município de São Paulo.

Matilde, assim como a ministra, defende que criar editais para a produção cultural dos afrodescendentes é uma promoção da igualdade. “Se nós quisermos ter um país que seja cada vez mais forte e de cidadãos que querem que o Brasil dê certo, é necessário que possamos recuperar a nossa capacidade crítica e, com isso, reconhecer que os negros não tiveram as mesmas oportunidades que outros grupos raciais”, diz.

Ela que também já esteve no posto de ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, de 2003 a 2008, durante o governo Lula, rememora que as políticas públicas voltadas à população negra são muito recentes no Brasil, cerca de 30 anos. E, embora tardias, considerando que a luta para sua existência sempre foi colocada em cena pelos negros e sempre foram rechaçadas pelos setores que detêm o poder, o edital está contextualizado num avanço e caracteriza conquistas dessas décadas. “Nós em várias áreas, mas, sobretudo, também no sentido de os negros ocuparem um espaço de poder, porque quem faz as leis e realiza as políticas públicas são as pessoas em quem votamos e nós também precisamos ter negros nesses debates, por isso, por meio da política pública, podemos contribuir para a mudança de postura mais positiva”, diz. Em encontro com o Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, Juca Ferreira, no evento “Existe Diálogo em SP”, programa da Secretaria destinado à construção colaborati área da cultura para garantir, apoiar, fomentar e valorizar a produção cultural de origem africana. “A contribuição dos africanos, que vieram escravizados, e de seus descendentes, é parte estratégica da nossa identidade e do nosso patrimônio cultural. E, por força das desigualdades sociais, até hoje, a valorização desse patrimônio ainda não é no nível que necessita ser, ou seja, em pé de igualdade com as outras produções culturais de outras matrizes”, diz.

O Secretário, que também foi Ministro da Cultura entre 2008 e 2010, diz ser um equívoco proibir os editais, porque demonstra uma incompreensão da importância das iguais, onde todos tenham direitos e oportunidades semelhantes. E que quanto mais se perto de uma política que, de fato, una todos os brasileiros.

Na análise do Procurador do Ministério Público Federal, Sergio Suiama, responsável pelo Grupo de Combate aos Crimes Ciberné cismo e nos crimes de ódio, e para o americano Kendall Thomas, que possui estudos nas áreas de Direito Constitucional e Humanos, Teoria Feminista do Direito e Teoria Crítica Racial pela Universidade de Columbia, de Nova Iorque, no plano da cultura, a democracia racial brasileira tem sido associada - na esteira do pensamento de Gilberto Freyre (1900-1987) - à valorização do hibridismo, do mulato.

Para eles, o elogio da mestiçagem, contudo, não é incompatível com o reconhecimento da existência social de identidades raciais e da evidente contribuição dos negros para a formação da cultura nacional. Não há mar-se simultaneamente brasileiro e negro (ou branco ou indígena), já que a identidade nacional não é formada pela negação do plu lorização. “Acreditamos, desse modo, que a base para uma democracia racial é o pluralismo, e não o ‘assimilacionismo’ [corrente que preconiza a possibilidade de assimilação das culturas periféricas pela cultura dominante]

Suiama e Thomas apontam ainda outro aspecto. “O alto grau de miscigenação da popu da desigualdade racial menos em termos biológicos e mais em termos do reconhecimento de que os negros ocupam posições subalternas na estrutura social”. Ambos concordam com o o negro é antes um lugar social, instituído por diversas coordenadas, dentre as quais a cor da pele, a ancestralidade africana, a pobreza, a cultura compartilhada, a atribuição da identidade negra pelo outro, a assunção dessa identidade pela própria pessoa.

Tal perspectiva representa uma importante contribuição para a teoria crítica racial contemporânea e, para eles, é importante dar o devido destaque: a raça não é um elemen-

POR COMPACTUARMOS COM UM MUNDO QUE SEJA LIVRE DE TODO E QUALQUER PRECONCEITO, A CIA CARNE AGONIZANTE VEM A PÚBLICO INFORMAR A TODES QUE AS IMAGENS CONTIDAS NA CAPA E NO INTERIOR DESTA PUBLICAÇÃO NÃO CONDIZEM COM O PENSAMENTO DOS INTEGRANTES DO GRUPO E DOS RESPONSÁVEIS PELA REVISTA MURRO EM PONTA DE FACA. PORTANTO, FORAM RETIRADAS.

to inscrito na ordem natural das coisas, mas indicadores desse lugar social; porém, como acontece em outros casos, a situação de subordinação ou discriminação independe da parte de quem a enfrenta. Uma pessoa parda pode estar submetida a uma situação de de como branca”, explicam.

E concluem que, em termos de políticas denadas que colocam o candidato num pro sigualdade social, reconhecendo os padrões nada dos negros na sociedade brasileira, do que enveredar em discussões sobre quantas e quais identidades raciais devem ser reco dessa natureza.

No livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, há uma passagem que diz que dois camponeses deixaram de louvar Exu, o orixá mensageiro, aquele que estabelece a comunicação entre homens e deuses. Ele, que tanto havia dado chuva, terra e bom plantio, decidiu se vingar, passando disfarçado por eles com um boné, de um lado branco e do outro vermelho. O que desencadeou entre os homens uma discussão: um deles defendia piamente que a cor do boné era branca, enquanto o outro, vermelha. Branco, vermelho. Vermelho, branco. Branco, vermelho. Como não havia consenso, os camponeses travaram ali uma briga a golpes de inchada até a morte. Exu, também chamado de “trickster”, o pregador de peças, o dotado de ginga e improviso, estava então vingado. A metáfora, povo, não uma cor.

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