SET/2013
VEM PRA RUA! GAL OPPIDO / GIL GROSSI / HÉLVIO TAMOIO / JÚLIO VIEIRA / MARCOS ABRANCHES / PATRÍCIA RODRIGUES / ZÉ DO CAIXÃO / TOM ZÉ /
ÍNDICE/ MURRO#08
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Foto capa: Gal Oppido Intérprete: Roberto Alencar
04/ARTIGO DEFINIDO Por Patrícia Rodrigues 06/TRANSGRESSÃO Nº15 Zé do Caixão 08/TRANSGRESSÃO Nº16
Revista Murro em Ponta de Faca Rua Sousa Lima, 300B, Santa Cecília, São Paulo/SP, CEP 01153-020 +55 11 3666 7238 - 99290 3037
Tom Zé 10/POLÍTICAS PÚBLICAS Conselho da Cidade 12/CAPA: Vem pra rua! Por Fausto Salvadori Filho 20/ENTREVISTA Marcos Abranches 24/INTERSECÇÃO Por Gil Grossi 26/DIAFRAGMA Por Gal Oppido 32/OUTRA MARGEM Por Hélvio Tamoio 34/BIBLIOTECA 35/EPÍLOGO Por Júlio Vieira
CONSELHO EDITORIAL Gustavo Domingues Márcia Marques Sandro Borelli EDITORA Márcia Marques EDITOR DE ARTE Gustavo Domingues ASSISTENTE DE ARTE Gabriel Borelli REPORTAGEM Márcia Marques Fausto Salvadori Filho Francine de Mendonça Leopoldo Tauffenbach REVISÃO Andrea Marques Camargo COLABORADORES Gal Oppido Gil Grossi Hélvio Tamoio Júlio Vieira Patrícia Rodrigues PRODUÇÃO EDITORIAL Cristiane Klein
Esta publicação integra o projeto “Artista da Fome”, contemplado pela 13ª Edição do Programa de Fomento à Dança / 2012.
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EDITORIAL/ MURRO#08
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SOMOS UM, SOMOS MUITOS AS MOVIMENTAÇÕES pelo país, contra o aumento nos transportes, começaram em 2012. Natal, capital do Rio Grande do Norte, não se conformou com o acréscimo de 20 centavos no valor das passagens de ônibus. E reuniu, em agosto de 2012, duas mil pessoas contra o aumento. Reprimidas com força policial, as pessoas voltaram às ruas da cidade no dia seguinte, agora sem repressões. E a passagem voltou ao valor anterior. Mas em maio de 2013 voltaram a subir e de novo o povo saiu às ruas. O percurso da indignação dos cidadãos de Natal pode ser um filme que o povo de São Paulo (e do Brasil) veria meses depois, de modo ampliado e com cores mais fortes. Em junho de 2013, o país assistiu à mobilização de dois milhões de pessoas em 438 cidades, e as queixas dos manifestan-
tes eram sim pela redução da tarifa, mas no decorrer dos dias e das passeatas, os motivos variaram. Para quem estava nas cidades no período de 17 a 21 de junho sabe que houve manifestações todos os dias, para todos os gostos, para todas as demandas represadas. Mas a pergunta que fica é: onde estava a dança nas manifestações em São Paulo, nas cidades, pelo país? A Revista Murro em Ponta de Faca coloca nessa edição, em sua capa, a resposta da pergunta com um Vaslav absorto, pensando talvez em um novo projeto para participar de algum edital. Vaslav não foi às passeatas, não levantou bandeira nenhuma. A cultura não se manifestou. A dança se calou. A máscara contra gás lacrimogênio do Vaslav virou figurino. Eram tantas as solicitações
da população por transporte, educação e saúde, que o nosso personagem pegou sua Coca-Cola e seu figurino de “máscara para passeatas” e só fez carão. Bailarinos, atores, diretores e coreógrafos estavam nas ruas, mas não enxergaram que podiam se manifestar pela cultura. Os artistas, que já foram vanguarda no quesito indignação, revolta, movimento, passeata, reivindicação, ficaram para trás no protagonismo das ruas em 2013. Vaslav ficou em casa de chinelão, ninguém sentiu sua falta. Mas se as ruas não estão tomadas por bandeiras que pedem o foco dos governos na cultura, talvez o caminho seja o dos gabinetes de políticos, de vereadores, de lideranças. E que o termo “gabinete” não soe aqui como aquela sala com reuniões feitas com portas fechadas, que inclui benefícios somente para alguns. O termo se refere ao caminho que a classe artística, cada vez mais engajada por uma política pública decente e real, deve fazer. As bandeiras funcionam para comover a população e os políticos sobre determinadas necessidades, mas a negociação de melhorias, referendadas por leis, se fazem na casa do povo, ou seja, nas Câmaras das diversas instâncias: municipal, estadual e federal. O Conselho da Cidade foi inaugurado este ano pelo prefeito Fernando Haddad e a dança paulistana estava representada, neste Conselho, pela bailarina e coreógrafa Deborah Colker, artista carioca que viaja o mundo com sua companhia de dança. Indignações não faltaram e o prefeito teve de abrir mais uma vaga no Conselho para que as entidades pudessem indicar, de fato, um nome referendado pela dança paulistana. De modo democrático, integra, hoje, o Conselho da Cidade, o artista Daniel Kairoz. Urge que o vigor e a intenção de mudanças no país, exibidos nas ruas em junho de 2013, se mostrem comprometidos com um fazer político que vai além das passeatas, que vai além da comoção televisiva, mas que produza benfeitorias reais e validadas por lei, para que governos futuros mantenham a luta legitimada.
ARTIGO DEFINIDO/ MURRO#08
POR/ PATRICIA RODRIGUES
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TRABALHO, CIDADANIA, POLÍTICA: Uma questão de gênero A NOÇÃO MODERNA de trabalho foi dada pela economia política clássica e nos leva a duas definições. A primeira remete a uma discussão antropológica de trabalho como característica da ação humana. Para Karl Marx (1818-1883) o trabalho é um ato que se passa entre homem e natureza, onde o homem coloca em movimento sua inteligência e força a fim de transformar as matérias da natureza, dando-lhes uma forma útil. Ao mesmo tempo em que age sobre a natureza exterior modificando-a, ele transforma sua própria natureza desenvolvendo suas faculdades. A segunda nos remete ao caráter histórico/social do trabalho, que parte do fato de que as trocas entre homem e natureza se produzem em determinadas condições sociais que definem o modo de produção no tempo histórico. É sobre a perspectiva histórico/social que quero abordar a questão do gênero feminino, a partir da noção de trabalho assalariado. Problematizo aqui o conceito de “divisão sexual do trabalho” como um dos entraves da participação da mulher na vida pública, política, profissional e como sujeito de direitos. A forma como se dá a divisão sexual do trabalho decorre das relações sociais, adaptadas historicamente em cada sociedade, e que têm como característica a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva das mulheres à esfera reprodutiva.
O atual modelo de produção se baseia na negação do trabalho reprodutivo ou doméstico como trabalho produtivo e o nosso sistema se equilibra invisibilizando as atividades que sustentam esse tipo de trabalho – cuidados com as roupas, alimentação, apoio emocional etc. A dicotomia trabalho produtivo/trabalho reprodutivo está na raiz da desigualdade entre homens e mulheres e produz a separação entre o que é esfera pública e privada. Os afazeres domésticos ficam caracterizados como de âmbito privado, cabendo à mulher sua realização. Aos homens cabem os trabalhos do mundo produtivo, da política e o reforço do gênero masculino como provedor. As relações sociais de sexo ou o conceito de divisão sexual do trabalho permitem, dessa forma, esclarecer que o tempo do trabalho assalariado ou remunerado é condicionado pelo tempo do trabalho doméstico e de cuidados não remunerados. Desse modo, as questões que se relacionam à ocupação dos espaços públicos e políticos pelas mulheres não podem estar apartadas da discussão sobre a divisão sexual do trabalho que não se resume na separação entre esfera reprodutiva versus esfera produtiva, posto que dentro da própria esfera produtiva há divisão do trabalho entre as tarefas femininas e masculinas. Mas a divisão sexual do trabalho também não pode ser considerada mera divisão de
funções sociais, uma vez que está estruturada sobre um sistema de opressão, desigualdade e de relação de poder, fatores que tem implicações na construção e na forma de organização espaços públicos bem como na constituição da própria noção de cidadania nos Estados modernos, formados com base nessas relações assimétricas. Relacionando isso à formação dos Estados de bem-estar-social, percebemos uma verdadeira assimetria de gênero desde sua constituição porque é constituída com base no modelo de trabalho produtivo feito pelos homens, portanto homens disponíveis ao trabalho assalariado e delegava às mulheres a maior parte do trabalho reprodutivo. Não se trata somente de garantia ou não de direitos aos trabalhadores, mas o fato de que a constituição da própria cidadania nos estados de bem-estar-social é “frágil” e limitada porque constituída com base em um modelo que reforça as desigualdades a partir da reafirmação da divisão sexual do trabalho. Em muitos países, como no Brasil, a entrada das mulheres no mercado de trabalho não só não resolveu as desigualdades entre homens e mulheres como reforçou a divisão sexual do trabalho, mantendo o padrão de desigualdade em relação à remuneração e aos postos ocupados por elas, e ao entrarem massivamente no mercado de trabalho, as mulheres continuam cumprindo as funções
Em muitos países, como no Brasil, a entrada das mulheres no mercado de trabalho não só não resolveu as desigualdades entre homens e mulheres como reforçou a divisão sexual do trabalho, mantendo o padrão de desigualdade em relação a remuneração e aos postos ocupados por elas
do trabalho produtivo e reprodutivo de modo simultâneo, sem que necessariamente haja compartilhamento das funções domésticas. Um estudo realizado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) revela que a jornada de trabalho média dos homens é de 43,4 horas por semana, enquanto a das mulheres é de 36 horas. Ao todo, durante a semana, a jornada de trabalho feminina chega a 58 horas, enquanto a masculina atinge 52,9 horas. Ao somar o tempo que elas dispendem para o cuidado dos filhos e das tarefas domésticas, o tempo de trabalho das mulheres supera o dos homens em cinco horas por semana, o que significa dizer que as mulheres trabalham dez dias a mais por ano que os homens. Com o aumento da renda das famílias, aumentou a demanda pelos serviços da trabalhadora doméstica, esse setor hoje emprega mais de 6,7 milhões de mulheres contra 500 mil homens, o que coloca o Brasil como o maior mercado de mão de obra doméstica do planeta. Há como agravante o fato de nossos espaços e serviços públicos não responderem à necessidade de compartilhar o trabalho reprodutivo, há um déficit de equipamentos como creches, escolas em período integral como em serviços de saúde e apoio a idosos, restaurantes e lavanderias coletivas. Um avanço importante nesse sentido foi a aprovação da Emenda Constitucional 72/2013, conhecida como PEC das Domésticas, que garante os mesmos direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas. Um dos argumentos que aparecem tanto do lado de quem critica como de quem defende a PEC é a alegação de que o espaço doméstico não é produtivo, não gera riquezas. Outras pessoas afirmam que com a aprovação da PEC haverá milhares de demissões, gerando uma “crise do cuidado”. A crise do cuidado é o termo que vem sendo utilizada para tratar de uma série de temas que têm como consequência a recusa feminina em trabalhar de graça. A aprovação da PEC na verdade coloca em pauta a estrutura e dinâmica do trabalho doméstico na nossa sociedade e permitem
romper o ciclo que transfere a sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidados sempre para as mulheres. A equidade de direitos entre trabalho doméstico e outras formas de trabalho é um passo importante na conquista de diretos e equiparação das trabalhadoras aos trabalhadores, tendo em vista que as mulheres continuam trabalhando mais e ganhando menos. Isso nos remete à pergunta fundamental sobre a relação entre cidadania e a esfera pública. Tradicionalmente supunha-se que a cidadania fosse associada à esfera pública, tanto nos direitos quanto nos deveres. Mas muitas mulheres ainda vivem grande parte de sua vida dentro de esferas privadas, domésticas, e não públicas e algumas perguntas se interpõem. O trabalho não remunerado de cuidados é compatível com a plena cidadania da mulher nos espaços públicos? A noção tradicional de cidadania política se concentra na prática de eleições livres como meio de alcançar a democracia. Mas a presença de mulheres seria importante ou somente seu direito de votar? No Brasil, a luta pelo direito de as mulheres votarem teve início ainda no século XIX mas constitucionalmente as mulheres conquistaram o direito ao voto em 1932 e somente em 2010 elegemos a primeira mulher ao posto mais alto da República. A concorrência das mulheres em cargos políticos é, portanto, um processo muito recente na vida da democracia brasileira, que sempre contemplou um número muito maior de homens concorrendo a cargos políticos. O Brasil ocupa hoje o 120° lugar na proporção de mulheres nos Parlamentos e, se considerarmos nossa participação nos executivos, esse ranking despenca mais ainda, tendo em vista que ainda não é obrigatório o registro na chapa de mulheres para disputa dos postos executivos. O avanço, nesse sentido, depende de que, além de concorrem às eleições, essas mulheres tenham condições reais de disputar e ganhar. Apesar do crescimento nos últimos anos,
o percentual de mulheres na política continua sub-representado, tendo em vista que apenas 8,7% de mulheres foram eleitas para os postos do legislativo na última eleição e embora representem 51,7% dos eleitores brasileiros, a participação das mulheres na Câmara dos Deputados é de 9%, número semelhante aos 10% registrados no Senado. No Poder Executivo, a situação não é diferente: das 26 capitais, somente uma têm mulher como Prefeita. As políticas de ação afirmativas - seja por meio de estabelecimento de cotas que garantam mecanismos partidários de mais mulheres na direção, seja por meio de ações que obrigam que pelo menos 30% de mulheres estejam registradas nas chapas de disputa para cargos legislativos - são políticas que disputam a correlação de forças da nossa sociedade e permitem que avancemos por uma maior participação na vida política/pública, e mais do que isso, com condições de efetivar esses mecanismos e de realmente ocuparmos esses espaços de maneira paritária. Há estudos que demonstram que as políticas relevantes, para as mulheres, são mais frequentemente implementadas pelos governos quando as mulheres estão presentes nos espaços de decisão, o que demonstra que somente eleições livres por si só não garantem a democracia plena e que as mulheres estejam presentes nos espaços políticos fundamentais. Assim a presença cada vez maior das mulheres nesses espaços implica a necessidade de reestruturar completamente as relações sociais pautadas na divisão sexual do trabalho com base na reformulação e ampliação dos direitos e na constituição da cidadania feminina.
Patricia Rodrigues é Cientista Social formada pela USP, coordenadora do MOSCA (Movimento Social Cidadania Ativa), militante da Marcha Mundial das Mulheres e Conselheira Municipal de Juventude da Cidade de São Paulo.
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TRANSGRESSÃO Nº15/ MURRO#08
POR/ LEOPOLDO TAUFFENBACH
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ZÉ DO CAIXÃO
O ESTRANHO MUNDO DE ZÉ DO CAIXÃO A HISTÓRIA ESTÁ REPLETA de casos em que as criaturas se tornam maiores que seus criadores. Personagens que vão além das expectativas que lhes foram dadas, para o bem e para o mal. O monstro do Dr. Frankenstein é o exemplo mais emblemático da “obra” que ganha vida própria e se recusa a obedecer aos limites impostos pelo criador. Dentro do imaginário cristão, Adão e Eva discordaram do Senhor Criador e por Ele são punidos. Submissão e criação se opõem. A submissão é característica dos que não sabem criar. Não a submissão imposta, seja pela força ou pelo afago da mão gentil de um dominador, mas a livre submissão, nascida do conformismo, de um olhar profano em relação ao mundo. As criaturas que abandonam essa condição o fazem para se tornarem, também, criadores. No cinema, na literatura ou na tradição muitos personagens – invenções, portanto – conseguem se desdobrar para além dos limites do espaço ficcional para transbordarem a esta realidade. Adquirem uma materialidade estranha e de difícil compreensão. Não à toa, até hoje poucos entendem o conceito de arquétipo proposto por Carl Gustav Jung. Como pode uma entidade psíquica e sem forma material interferir em nossas existências físicas? É notória a história de como Zé do Caixão adentrou este mundo. Surgiu em um sonho do cineasta José Mojica Marins, arrastando-o para o inferno. E Mojica logo deu-lhe forma para que protagonizasse o filme À meia-noite levarei sua alma, de 1963. Josefel Zanatas, coveiro de uma cidade do interior, representa uma ameaça aos moradores daquele local por lidar com tudo aquilo que os outros não querem encarar: lida com a morte física e propaga a ideia de uma vida sem Deus, que pode ser vista como a morte espiritual. Defende o san-
O maior legado de José Mojica Marins é ter cravado no imaginário coletivo uma entidade que assume a forma das nossas preocupações mais vitais. A morte, o propósito da vida, o medo instintivo e o sobrenatural: tudo aquilo que vai além daquilo que nossa condição humana permite lidar gue, e nada mais além do sangue, como razão da existência, ao longo do tempo decantado e purificado para dar origem a uma forma de vida superior. Ao dar forma àquela entidade que lhe aparecera em sonho, Mojica lhe dá passagem e autorização para habitar esta realidade, como nos inúmeros contos de evocações dos povos primitivos. No filme seguinte, Esta noite encarnarei no teu cadáver, Mojica recria e revive o sonho que teve com Zé do Caixão. O inferno em cores vivas, anuncia o cartaz do filme. Não se trata mais de uma obra de ficção, mas de uma experiência real. Mojica assim a teve e quer que o espectador também tenha. Zé do Caixão e Mojica são agora uma coisa só. O público tem dificuldades em separar os dois, como confirma o cineasta em entrevista ao pesquisador Eugênio Puppo: “O pessoal me confundia com o Zé do Caixão e meus filhos pagaram muito por isso – na escola era um desprezo, uma gozação. O pessoal, quando me via, me xingava de ateu; os caras falavam que eu não acreditava em nada. E eu respondia que acreditava, quem não acreditava era o Zé”. Em 1968 estreia o filme O estranho mundo de Zé do Caixão, que aparentemente não tem Zé do Caixão, mas sugere um universo, muito semelhante ao nosso, onde coisas terríveis e improváveis acontecem. Mojica não quer ser Zé do Caixão, mas encarna um professor enlouquecido chamado Oaxiac Odez. Em 1969 apresenta o icônico O despertar da besta / O ritual dos sádicos, em que um psiquiatra fornece LSD a um grupo de pessoas e as submete a imagens de Zé do Caixão. No filme está Mojica, interpretando Mojica, questionando o fato de Zé do Caixão ser uma suposta ameaça à sociedade. Aliás, do lado de cá da tela, houve quem julgasse que
isso fosse verdade. Se não há mais diferença entre o criador e sua criação, como haverá diferença entre os filmes e a realidade? Mojica paga pelos pecados de Zé do Caixão. Exorcismo Negro, de 1974, coloca Mojica e Zé do Caixão em um ajuste de contas. Nesta obra, Mojica vai até a casa de amigos para passar férias e aproveitar para escrever seu próximo roteiro, mas uma força sobrenatural começa a perturbar a harmonia da família e coloca seus membros em estado de possessão maligna. Uma bruxa parece estar por trás de tudo isso: vemos por ela a realização de rituais que envolvem imagens de exus e pombagiras, junto com a imagem de Zé do Caixão. Finalmente, o personagem é colocado como membro de um panteão do imaginário fantástico brasileiro. Está lado a lado com exus e pombagiras. Ou acima. Em 1980, Zé do Caixão apareceu cercando o cantor Zé Ramalho na capa do disco A peleja do diabo com o dono do céu, não mais como o coveiro de outros filmes, nem como o personagem criado por Mojica, mas como uma entidade sobrenatural com vida própria. “Exu de barba e capote, e unhas para agarrar”, escreve Zé Ramalho. Mas o mundo dá voltas, e nem sempre é justo, e por isso muitas vezes as lendas se tornam desacreditadas. Quem tem medo do Conde Drácula quando se tem Jason Voorhes, da série Sexta-feira 13? E quem ainda acreditará em Jason Voorhes diante dos horrores do noticiário policial da TV? E Zé do Caixão, ao adentrar o novo milênio, vem trazendo uma nova alcunha: a de ícone “trash”. Eu tenho de confessar que custo a entender “trash” como uma palavra elogiosa, ao contrário: há alguns anos venho me debruçando sobre as implicações que o termo carrega e notei que grande parte dos indivíduos que a utiliza o faz para
designar algo que se distancia de sua realidade de tal maneira que não há o menor esforço para tentar entender. E minhas suspeitas têm se confirmado: sempre que alguém usa o termo para falar de Mojica ou de Zé do Caixão eu confronto perguntando quais filmes do criador – ou criatura – foram vistos para emitir aquele parecer. A resposta não mais surpreende: em geral o espectador limita-se ao recente Encarnação do Demônio ou então não possui o registro de nenhuma das obras do mestre. Entretanto, mesmo sem ter visto uma obra sequer de José Mojica Marins, as pessoas o conhecem a ponto de chamá-lo de “trash”. Não sabem direito de onde, mas o conhecem. Já o viram na TV, talvez. Ou até mesmo na rua, principalmente se for pelas cercanias do bairro da Santa Cecília. Sempre há alguém que já falou com ele ou até tirou foto. Eu mesmo gosto de contar uma história em que jantei com ele certa vez. Mas não garanto que tudo que narro no conto seja verdade. E como poderia ser? Ao falar “jantei com Zé do Caixão” não seria o mesmo que dizer “almocei com Darth Vader”? O maior legado de José Mojica Marins não é sua vasta e gloriosa filmografia, mas ter realizado uma proeza limitada a poucos outros seres humanos na história: ter cravado – ou feito emergir – no imaginário coletivo uma entidade que assume a forma das nossas preocupações mais vitais. A morte, o propósito da vida, o medo instintivo e o sobrenatural: tudo aquilo que vai além daquilo que nossa condição humana permite lidar. Mojica transgrediu os limites entre a ficção e a realidade, de modo extremamente elegante e assustador: trajando capa, cartola e cultivando imensas unhas.
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TRANSGRESSÃO Nº15/ MURRO#08
POR/ FRANCINE MENDONÇA
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TOM ZÉ
O PATINHO FEIO DA MÚSICA A MANEIRA com que Tom Zé escuta música pode ser enxergada como transgressora: segundo o produtor Kid Vinil, o músico já gravou sons de enceradeira e marcenaria para usá-los como parte de suas músicas. Ele percebe a música como poucos. O cantor age como se a música estivesse não só em canções, mas também em ruídos que passam despercebidos em maior parte. No documentário Fabricando Tom Zé, ele e um parceiro são vistos de capacetes verde e amarelo se martelando e cantando que o “verde fodia o amarelo”. É, depois de assistir ao filme se aprende mais sobre Tom Zé, e o que é considerado barulho nunca mais será ouvido da mesma maneira. Pelo histórico dele, a música e a dança caminham lado a lado, como no Oriente: o Grupo Corpo, que já teve apresentações musicadas pelo cantor, demonstra no filme que repensava sua coreografia a partir dos sons que vinham de Tom Zé. O guitarrista Sergio Carvalho revela que o show pode até ter um roteiro, mas ele pode mudar a qualquer momento. E não é só na frente do público que sua forma de trabalhar é única. Durante a passagem de som ele está... Compondo! A TV Cultura já presenciou as plateias internacionais acompanharem a música dele nos shows. Tom, quando se apresenta fora do Brasil, sempre procura escrever algo no idioma local, dialogar com o público. No primeiro país não funcionou: Neusa Martins, esposa e produtora, diagnosticou que o francês do músico não estava bom e isso indignou a plateia da França. Já os italianos pareceram se divertir quando o músico dizia que não entendia o público com as cabeças desprotegidas em época de atentados terroristas, e brincava que se pudesse emprestava capacetes para os espectadores.
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Quando era rapaz, o cantor inventava modulações. Em sua lista de suas inovações, nem o “nã nã” dos seus vídeos é comum. Ele também lapida suas criações de forma pouco usual: as grava em fitas K7, consideradas por colegas da área como o “Pro tools de Tom Zé”. Será por isso que o músico pareça tão jovem quando se apresenta? Tom é exigente com suas criações, diz que não pode fazer música com o que já existe e se considera “patinho feito da música”. O que os outros fazem ele não sabe cantar. Brinca com abridores de garrafa e clipes. A música para ele está onde menos se imagina. O cantor brinca que há uma distância curta entre tocar piano e enceradeira e como ele é o único a tocar o último, ficou famoso. Sua crítica ao que cria é tão pesada que uma vez Caetano “surrupiou” a música Astronauta Libertário e voltou com ela cantada por Rita Lee. Tom ficou conhecido por “causar” no Festival de Montreaux, na Suíça, onde ele brigou até com o tradutor, pois a mesa de som não se ajustava ao que a banda precisava e sentiu que tratavam mal os músicos por serem pobres e negros. “Eles são bonitos, com pele boa, e estão trazendo artistas feios, com pele ruim para tocar, por não criar o que produzimos. Então não sejam vis conosco”, justificou sua ira. Ele entra num trabalho que leva um ano para concluir, tem dor de estômago e confes-
sa tratar Neusa mal. Os dois se conheceram numa entrevista e ela deixou a carreira para apoiá-lo. Tom brinca com uma contradição para reconhecer o empenho dela: “Abdicou da carreira de escritora para trabalhar comigo. Ela me diz o que acontecerá nos shows. Minha vida é fazer com que se sinta bem. É como se fosse uma sombra minha, mas que vai à minha frente”. Para o músico, estar seguro com ela é uma forma de amor. Numa das cenas do filme constata-se o que diz e como valoriza o público comum: num show internacional ela diz que as primeiras cadeiras estão destinadas à Embaixada, ele reclama que ela nunca vem e orienta para que sejam liberadas aos espectadores da apresentação. Neusa brinca que ele nunca saiu da cidade natal Irará. O encantamento dele com loja cheia em megalópole confirma: o cantor lembra da loja do pai no interior da Bahia. Tom acha que os pais eram maravilhosos, mas as diferenças entre eles foram prejudiciais aos filhos, embora como primogênito admita ter se beneficiado da simplicidade das famílias. “Ao entrar em contato com os livros da casa, já ouvia tanto deles sobre os escritos que era como se já os tivesse lido.” Para Tom, a censura podou sua criatividade. Reclama que ao trocar arroto por assopro em uma de suas músicas – a censora achava a primeira palavra feia – a canção ficou “com jeito de ser feita por moço engravatado de escola tradicional”. Nem sua maneira de burlar a censura ditatorial foi convencional: seguindo ideia do poeta Décio Pignatari, em 1973 fotografaram o ânus de uma modelo com uma bola de gude em foco fechado para o disco Todos os Olhos, muito antes dos recursos de computador e a capa não só passou à censura como esteve nas vitrines das lojas... Toda sua originalidade não foi o suficiente para evitar que sofresse ostracismo nos anos 1970 e aparentemente fosse deixado de escanteio na Tropicália. Um Carnaval baiano com o tema deste grupo musical tinha foto de todos os artistas nos carros alegóricos, mas dele não. O músico adoeceu, ficou inseguro, não teve energia para levantar a mão. “Não ter energia é uma experiência fantástica”, o músico analisou inesperadamente. Só
Para Tom, a censura podou sua criatividade. Reclama que ao trocar arroto por assopro em uma de suas músicas a canção ficou “com jeito de ser feita por moço engravatado de escola tradicional”
saía da cama para “enganar Neusa”. O editor Arthur Nestrovski não acredita que tenham tirado nada dele: “só não estava pronto para exigir o que era, moralmente, dele.” O músico Kid Vinil acha que as gravadoras não deram condições de ele se manter fazendo sua música única. Foram anos à margem do reconhecimento que Tom merecia, até que o produtor David Byrne se encantasse com o disco Estudando Samba e desse ao músico o devido crédito: “América e Europa se maravilharam. Perguntavam-me por que ele e não os músicos mais conhecidos, mas achava que estes tinham mais oportunidades”. Estavam abertas as portas para se apresentar fora do País e voltar consagrado, como é típica de nossa atitude tupiniquim, que precisa de um aval de fora para reconhecer seus talentos brasileiros. Para Caetano, o esquecimento dele foi por causa da singularidade de sua genialidade. E a despeito da sofisticação de seu trabalho, Tom tem hobbies simples. É apaixonado por jardinagem e onde mora seu talento com a terra foi tão reconhecido que até ganha para mexer com a terra. O artista brincou numa entrevista à Rádio Sucesso que fará mais sucesso como jardineiro. Pelo visto, para o cantor, o que interessa é estar em atividade: “o trabalho é a coisa mais maravilhosa.”
POLÍTICAS PÚBLICAS/ MURRO#08
POR/ MÁRCIA MARQUES
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COMO SAMBAR MIUDINHO EM MARÇO DE 2013, a cidade de São Paulo ganhou o Conselho da Cidade e, conforme o site da prefeitura anuncia, é um “novo canal de diálogo entre a administração municipal e a sociedade”. Os 138 conselheiros convidados pelo prefeito Fernando Haddad são, ou deveriam ser, “representantes dos movimentos sociais, entidades de classe, empresários, cientistas e pesquisadores, artistas e lideranças religiosas”. Para estabelecer esse canal de contato com a instância pública municipal, esses representantes reunir-se-ão quatro vezes ao ano para “expressar seus pensamentos e sentimentos a respeito de São Paulo, ajudar a desenhar seu futuro, a encurtar os caminhos de superação das dificuldades”. Assim posto, um avanço e tanto. E de fato é, pois coloca em um mesmo plenário, com a mesma oportunidade de interação
com o prefeito, representantes como Ana Helena de Moraes Vicintin, vice-presidenta do Instituto Votorantim e Anderson Lopes Miranda, coordenador nacional do Movimento da População em Situação de Rua. Quantos governos se dignaram a ouvir representantes da sociedade, de uma forma oficial e constante (ainda que só quatro vezes ao ano)? A lista dos “eleitos” pelo prefeito junta nomes como Emerson Fittipaldi, Ana Moser, Dom Odilo Scherer, Raí Oliveira, Luiz Carlos Bresser Pereira, Viviane Senna e Luiza Helena Trajano (Magazine Luiza), além de tantos outros com atuação forte na cidade, seja em projetos sociais ou em instituições econômicas ou culturais que se relacionam com São Paulo. Várias das áreas abrangidas pela lista contam com dois ou mais representantes, caso da mú-
O que pensar de um Conselho da Cidade que tem apenas UM representante da dança paulistana? E quando esse único representante da dança, por “ironia do destino”, é carioca?
As entidades constituídas pela dança paulistana como ponte com o poder público não foram consultadas sobre o nome a ser indicado para o Conselho, tampouco os movimentos de classe foram acionados na tentativa de sinalização quanto ao nome escolhido como “canal de comunicação entre a dança e o poder público municipal”
sica, que traz nomes como Arnaldo Antunes, José Wisnik e Antonio Nóbrega. O Conselho da Cidade ainda contempla 13 representantes de religiões diversas, de muçulmanos a evangélicos, passando por católicos e umbandistas. Mas o que pensar de um Conselho da Cidade que tem apenas UM representante da dança paulistana? E quando esse único representante da dança, por “ironia do destino”, é carioca? O fato se assemelha ao síndico que quer representar os condôminos, mas não mora no prédio. Ou ainda, uma festa organizada na sua casa, mas desista! Você não foi convidado. Pois assim foi o sentimento da classe artística paulistana quando se deparou com o nome de Deborah Colker, coreógrafa carioca com produção artística que viaja o mundo, como representante da dança de São Paulo no Conselho da Cidade. As entidades constituídas pela dança paulistana como ponte com o poder público não foram consultadas sobre o nome a ser indicado para o Conselho, tampouco os movimentos de classe foram acionados na tentativa de sinalização quanto ao nome escolhido como “canal de comunicação entre a dança e o poder público municipal”. Os produtores de dança, assim como bailarinos e coreógrafos, se indignaram diante da indicação da coreógrafa carioca. E, articulados pela Cooperativa Paulista de Dança, pediram ao prefeito que revisasse sua decisão e consultasse organismos da classe, para que o nome do representante tivesse, de fato, respaldo de quem representa. Indignações à flor da pele geraram reuniões e debates entre bailarinos, diretores, produtores, coreógrafos, programadores e pessoas articuladas politicamente com o poder público. Em 3 de agosto, a classe se reuniu no Kasulo Espaço de Cultura e Arte, em São Paulo e decidiu sugerir ao prefeito não apenas um nome para representá-la,
Reunião dos profissionais de dança no Espaço Kasulo, em 3 de agosto
mas três. Importante ressaltar que a reunião no dia 3 não se pautou apenas pelo assunto Conselho da Cidade, mas por outros tantos que a dança vê como mais prementes: mudanças na Lei de Fomento, o edital Klauss Vianna, melhorias na Galeria Olido, busca de pautas em teatros e espaços municipais, a criação de três novos programas, entre tantos. A dança paulistana compareceu em peso, no dia 12 de agosto, no saguão da Galeria Olido, no centro de São Paulo para referendar ao prefeito quem ocuparia a segunda vaga criada para um representante no Conselho da Cidade. Nesse dia, mais de 180 participantes convocados pela Cooperativa Paulista de Dança puderam optar, agora sim, democraticamente, entre Sandro Borelli, presidente da CPD, Sofia Cavalcan-
te, do Mobilização Dança (Fórum permanente) e Daniel Kairoz, artista. Mas ainda assim, com toda mobilização em torno da questão, o secretário de cultura de São Paulo e o prefeito Fernando Haddad não haviam procurado qualquer uma das entidades representativas da dança e tentado dialogar. Os artistas foram se manifestando porque se indignaram, mas não significou, em um primeiro momento, que a prefeitura estivesse interessada em ouvi-los. A classe artística, a dança em especial, não se importou com a pouca interlocução, nesse início de mandato, com o prefeito Fernando Haddad. Articulou-se, reuniu pessoas, juntou entidades representativas e juntas conseguiram o objetivo de ter um legítimo representante da dança paulistana no Conselho da Cidade.
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CAPA/ MURRO#08
POR/ FAUSTO SALVADORI FILHO
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CORPOS NA RUA Na maior onda de protestos que encheram as ruas do país desde a redemocratização, os artistas já não são protagonistas nem vanguarda dos movimentos. Qual é o lugar da cultura nesta história?
OS MANIFESTANTES que protestavam contra a ditadura em 1968 saíam pelas ruas caminhando e cantando ao som de Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré. O movimento pela Anistia dançou na corda bamba de sombrinha com O bêbado e a equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. As manifestações de junho de 2013, que começaram com o Movimento Passe Livre pedindo a redução das tarifas de ônibus e depois se espalharam pelo país, chegando a mobilizar 2 milhões de pessoas em 438 cidades (segundo a Confederação Nacional de Municípios), multiplicando seus atores e suas bandeiras, não tiveram sua canção-tema. Houve quem cantasse por aí um jingle da Copa, e músicos como Latino bem que tentaram emplacar um hit para os protestos, mas a trilha sonora da gente que vem desde junho caminhando na rua com seus cartazes acabou sendo feita, mesmo, das palavras de ordem criadas pela multidão, como “Vem para a rua, vem, contra o aumento” e “Ô, ô, ô, o povo acordou”, ou “Olha que legal, o Brasil parou e nem é Carnaval”. No carnaval fora de época dos novos protestos de rua, as canções e seus cantores ainda buscam descobrir qual é o seu espaço – o espaço da cultura em meio à maior onda de manifestações que mobilizou os brasileiros desde a redemocratização. Artistas, intelectuais e agentes da cultura já não têm o papel de apontar caminhos e segurar bandeiras à frente das multidões, como tiveram com a contracultura, nos anos 60 e 70, ou nas lutas pelas Diretas Já, nos 80. Se os artistas já não são protagonistas das manifestações, a própria cultura também não aparece como bandeira dos manifestantes. Os cartazes carregados pelas multidões traziam reivindicações que contemplavam de tudo: o passe
livre, o fim da corrupção e da PEC 37, o fora Feliciano e a redução do preço do Kinder Ovo. Mas as causas ligadas à cultura e à arte estavam quase ausentes. Como estiveram ausentes do centro do debate político: ao tentar responder aos protestos, a presidenta Dilma Roussef propôs usar os royalties do pré-sal para financiar a educação, sem mencionar a cultura, essa esquecida. “O teatro sempre foi vanguarda de todos os movimentos que este país teve enquanto tive consciência dele. Para minha surpresa, o teatro dessa vez não foi vanguarda. Foi preciso o Movimento Passe Livre para levantar o Brasil”, reconheceu o dramaturgo Lauro César Muniz, diante de centenas de dançarinos, atores, músicos, escritores, diretores e outros artistas reunidos no Teatro Oficina, em 8 de julho, durante o evento Cultura Atravessa, que discutiu o papel da arte nos protestos. Em vários dos olhares que se espalhavam pelas estruturas do teatro criadas por Lina Bo Bardi e nas vozes que se manifestaram ao microfone, havia a mesma perplexidade e o desejo de encontrar o lugar da arte em tempos de busca por um novo jeito de viver em sociedade. “A gente tem de ter a humildade de reconhecer que essa juventude está na vanguarda”, reconheceu o ator Ney Piacentini, integrante da Companhia do Latão e presidente do Centro ITI Brasil - International Theater Institute, ligado à UNESCO, durante o mesmo evento. “Os jovens estão propondo horizontalidade, estão construindo a pauta caminhando. As lideranças são mais diversas. Quem sabe não estão dando exemplo para nós de uma nova forma de fazer política?” De fato, os protestos de junho desafiam as formas e conteúdos do jeito tradicional de fazer política. Semelhantes a outras ma-
nifestações de jovens desenrolados pelo mundo, como a Primavera Árabe, o “Occupy Wall Street”, nos EUA, e o espanhol “Los Indignados”, são passeatas em que não há uma organização centralizada, comandada por um partido ou um movimento social, nem personalidades carismáticas assumindo o papel de líderes. Organizados de modo horizontal e fluido, os movimentos se propagam como vírus, aproveitando a força das mídias sociais, especialmente o Facebook. Comparando os protestos brasileiros com o Occupy Wall Street, reportagem da BBC afirmava que, em ambos, “se ofereciam dezenas de mensagens, das mais variadas, contra a ordem estabelecida”, sendo notável “a sensação de que a mensagem genérica valia mais que o conteúdo específico – que a visão expressada pelo movimento suplantava a importância das reivindicações concretas dele”. Essa fluidez tanto pode ser a força como a fraqueza deste tipo de movimentação. No Brasil, por exemplo, os protestos começaram com o Movimento Passe Livre, criado no Fórum Social Mundial de 2005, que, mesmo organizado como uma entidade autônoma, horizontal e apartidária, tinha uma clara afinidade com os partidos de esquerda, pois sempre se colocou como um grupo anticapitalista. Quando os protestos ganharam mais força e apoio da mídia, passaram a atrair para as ruas grupos de pensamentos bem diferentes, que chegaram a espancar militantes de esquerda e queimar suas bandeiras, além de defenderem causas típicas do outro extremo do espectro ideológico, como a redução da maioridade penal ou a proibição do aborto – levando o próprio MPL anunciar uma temporária (e estratégica) saída das ruas.
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FIM DOS PROTAGONISMOS
NÃO FORAM APENAS os artistas que tiveram de repensar seu papel social em meio ao furacão das passeatas. Procurando desmanchar no ar tudo o que parecia sólido, os manifestantes também questionaram as funções da política partidária, da mídia, da polícia e de outras instituições, buscando formas de se tornarem, cada qual, um protagonista da sua história, e da História. “Os discursos foram todos democratizados. Todo mundo hoje pode usar a inter-
net e as mídias sociais para analisar o que está acontecendo”, afirmou a atriz Adriana Schneider, do grupo ativista carioca Reage Artista, durante o Cultura Atravessa (veja entrevista com Adriana na pág. 18). Segundo Marcelo Gabriel, da Companhia de Dança Burra, de Belo Horizonte (MG), não precisamos mais do vanguardismo ou do protagonismo de artistas, intelectuais ou de qualquer outro grupo porque “a sociedade civil está se fortalecendo e os jovens estão
começando a se enxergar enquanto cidadãos sem depender de mediações e representações”. O bailarino, que participou das mobilizações em Minas Gerais “como um cidadão qualquer”, acredita que “a força destes protestos consiste em ser um movimento cidadão independente”. “O protagonismo agora é coletivo. Artistas e intelectuais participam dos protestos iguais a outras pessoas”, afirma Wellington Duarte, bailarino de São Paulo. Para ele, os
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“Os artistas que participavam não se posicionavam como ‘indivíduos’, mas integrantes ou influenciados de alguma forma pelas organizações de esquerda, e essas sim eram a vanguarda.” Dorberto Carvalho protestos foram “um movimento de dança muito complexo” no qual forças muito diferentes umas das outras, incluindo grupos revolucionários e reacionários, foram à rua exigir mudanças nas instituições arcaicas que a sociedade alimenta, especialmente “nessa política mesquinha, que se afastou do mundo real”. “As manifestações provocaram um sangrar que faz bem. Percebemos que estamos vivos. E..? A gente se pergunta. Não tenho as respostas. A gente não sabe para onde. É OK não saber.” Nessa busca pelo novo, que segue em frente sem saber exatamente como, os protestos conseguiram a proeza de resgatar um espírito crítico que teria saído de moda há vinte anos, segundo o crítico literário Roberto Schwarz. Num texto enviado para o evento Cultura Atravessa (Schwarz não compareceu por causa de uma gripe e sua contribuição foi lida por Ney Piacentini), o autor de Ao vencedor as batatas afirma que, com as manifestações, “o espírito crítico, que esteve fora de moda, para não dizer excluído da pauta, tem agora a oportunidade para renascer. O nosso espírito crítico foi posto para dormir há mais ou menos vinte anos, no início dos anos 90, quando o Brasil entrou para a era da globalização e tomou conhecimento da hegemonia do capital. A crítica não encontrava ressonância e ficava parecendo ranhetice”, afirma. Segundo ele, o país passou duas décadas mergulhado no otimismo em relação à nova ordem capitalista, “a qual lhe permitiu de fato avançar muito, ao mesmo tempo em que criava problemas imensos aqui e mundo afora. A cegueira para essas contradições, alimentada pela ideologia marqueteira oficial, pesava como um tapa-olho sobre a inteligência do país, que perdeu o contato com o avesso das coisas, sem o qual não existe vida do espírito”, afirma o crítico. E conclui: “A energia dos protestos recentes suspendeu o véu e reequilibrou o jogo. Talvez ela devolva à nossa cultura o senso de realidade, o nervo crítico e o humor, que nos momentos altos
nunca deixou de estar presente”. O resgate desse tal nervo crítico exige uma mudança na mentalidade adotada por toda uma geração de artistas, que trocou as grandes pautas coletivas pelas lutas dos seus nichos de mercado. “Os artistas de hoje tendem a se organizar e reivindicar de forma mais setorizada: os bailarinos brigam pela dança, os atores pelo teatro e pelo cinema, e por aí vai. Não existe uma organização, um movimento forte em torno das questões gerais da cultura e seu papel em relação à política”, afirma o bailarino Wilhelm Araújo da Silva, natural de Natal (RN), onde as manifestações foram, segundo ele, “uma coisa apagada e sem quórum” (embora a capital tenha registrado alguns dos primeiros grandes protestos do Movimento Passe Livre, em agosto de 2012). “Penso que a participação dos artistas, em sua maioria, foi discreta e cuidadosa, talvez por falta de uma empatia mais forte com todo esse movimento”, afirma. O professor de teatro, produtor e dramaturgo Dorberto Carvalho, vice-secretário do conselho administrativo da Cooperativa Paulista de Teatro, acredita que os artistas não abriram mão de ser vanguarda, mas simplesmente nunca foram vanguarda em ações políticas. Pelo menos, não enquanto artistas agindo individualmente. Na luta contra a ditadura, segundo Carvalho, “os artistas que participavam não se posicionavam como ‘indivíduos’, mas integrantes ou influenciados de alguma forma pelas organizações de esquerda, e essas sim eram a vanguarda”. O mesmo teria ocorrido nas Diretas-Já. Os artistas que se destacavam nas manifestações eram filiados e militantes do PT, essa sim a força que seguia à frente dos protestos. Quanto às bandeiras dos artistas, que “um dia foram as bandeiras dos partidos e das organizações de esquerda”, foram deixadas de lado porque grande parte dos artistas deixou de querer apoiar causas políticas – por não acreditar mais nelas. Na visão de Carvalho, essa descrença na política, que é não só dos artistas, mas de
toda a população, é uma peça conduzida por quatro atores. Em primeiro lugar, os próprios partidos e entidades de esquerda, que “supervalorizam a via institucional em detrimento da organização política da luta nas ruas”, produzindo “uma militância comissionada, de gabinete” que “hoje é claramente identificada pela população”. Em seguida, os movimentos sociais, “cooptados pelo poder de persuasão das instituições democráticas”. Como terceira parte nessa máquina de fazer o povo desacreditar na política, entra a mídia, por ter montado “uma caricatura da política partidária no Brasil, com vistas a diluir as posições ideológicas anticapitalistas afirmando que ‘todos são iguais’”. E, por fim, a velha e boa direita, que “surfa na desinformação e ocupa o espaço de terra arrasada deixado pelos meios de comunicação”. Carvalho acompanhou todos os protestos que pode, e não gostou muito do que viu. “Todos tinham algum motivo para estarem lá, mas ninguém sabia exatamente o por quê”, aponta. “Não há nada nessas manifestações (forma e conteúdo) que aponte para alguma ruptura estrutural, e, assim, elas mais se revelam com uma espécie ‘zona autônoma temporária’ dentro da ordem capitalista”. De tão pacíficos e ordeiros, tais protestos não teriam nada a ver com o território da arte, um território que Carvalho, citando o cineasta francês Jean-Luc Godard, acredita estar no campo da exceção e do rompimento de padrões consolidados. “Eu diria que a arte está mais perto do 11 de Setembro e muito distante das manifestações ocorridas no Brasil”, afirma. “As manifestações dentro dos padrões suportáveis e absorvíveis pelo sistema estão longe de se constituir como exceção, elas são o que a mídia e os poderosos esperam de nós, e somos tão bem comportados quanto desqualificados.” E arrisca uma previsão: “Os recentes protestos não mudarão o Brasil, mas podem abrir caminho para percebermos, na sua impotência, a necessidade da sua superação”.
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ARTISTAS ADESTRADOS A PRODUTORA CULTURAL Solange Borelli, de São Paulo, também tem uma visão pouco otimista tanto do papel político dos artistas como do alcance real dos protestos de junho. Segundo ela, a maioria dos artistas ainda está num estágio embrionário de consciência política e só consegue se mobilizar por questões individuais. “Em geral, o artista tem dificuldade de pensar no coletivo, porque ainda vive em função do seu próprio umbigo”, afirma. Para Solange, “os artistas têm dificuldade de conviver com pontos de vista diferentes do seu, então se agregam em pequenos guetos que enfraquecem a própria categoria”. Solange não participou dos protestos de junho, por considerá-los “ingênuos” e “sem foco”, “uma grande festa onde se pleiteava não se sabia muito bem o quê nem por que, nem como”. “Boa parte ali era massa de manobra de um sistema querendo romper com a democracia que ainda engatinha em nosso país”, afirma. Exercer um papel político crítico ficou mais difícil nos últimos anos, graças às políticas culturais que muitas vezes colocam os artistas nas mãos do Estado, de empresas ou de seus atravessadores. “O artista, especialmente o da dança, caiu numa armadilha criada por ele mesmo: a dependência de subvenção financeira via editais para poder criar suas obras ou manter a cumplicidade com seus núcleos artísticos”, critica Solange. “A única bandeira que o artista consegue levantar é a de reivindicar mais aportes financeiros para este ou aquele edital.”
E mão que segura pires não segura bandeira. Num país que ainda guarda vários armários repletos de esqueletos do autoritarismo, a subvenção estatal corre o risco de se transformar na forma mais eficiente de adestramento de artistas. Em Pernambuco, o jornalista Marcos Vale – que trabalha com a criação de redes de coletivos de cultura e intervenção social no bairro popular do Coque, no Recife – conta que muitos artistas têm receio de criticar o governo e perder acesso ao fundo público de cultura local, que chega a R$ 33 milhões e é responsável por quase todo o fomento à produção artística no estado. “Os artistas estavam na rua se manifestando, mas, com certeza, muitos tinham medo de se pronunciar abertamente com receio de sofrerem represálias”, afirma Vale. Um medo que não deveria existir, já que o fundo é gerenciado em parceria com a sociedade civil. “Mas ainda somos uma província com grandes rastros de coronelismo e receios ligados a isso não são coisa de outro mundo”, diz. Ao falar da atuação política dos artistas, Vale enxerga palcos bastante diversificados. Muitos dos que têm dificuldade de se posicionar politicamente hoje, segundo ele, são aqueles que apoiaram a criação do PT, no início dos anos 80, acreditando num partido de esquerda que seria capaz de realizar os sonhos da sua geração. Vários desses artistas se tornaram mainstream, como o próprio PT, que conseguiu chegar à Presidência da República. “Esses artistas estão atônitos, porque viram as dificuldades desse governo,
“Oposto ao que muitos pensam, percebo que esta juventude está articulada e bemrepresentada, e sabe para que fim está lutando.” Mitzi Mendonça
Mão que segura pires não segura bandeira. Num país que ainda guarda vários armários repletos de esqueletos do autoritarismo, a subvenção estatal corre o risco de se transformar na forma mais eficiente de adestramento de artistas
que fala em nome deles, de implementar os direitos dos homossexuais ou de lutar a favor dos indígenas e não contra eles.” Diante dessa situação, “parte desses artistas fica sem ação e sem ter o que dizer”. Um silêncio que, segundo Vale, não existiria na boca de vários outros artistas, que comem pelas beiradas da indústria cultural. “Há toda uma geração explosiva de artistas que vem falando com uma visão crítica, só que estão sem holofotes e são mais subterrâneos, como o cinema de Pernambuco, os artistas do rap ou as formas de vida que criaram uma terra própria, como o Teatro Oficina, em São Paulo”, enumera. Nos protestos, era possível perceber que, para muitos participantes, colocar seus corpos fora de casa e redescobrir a rua como um espaço de encontro eram a sua principal manifestação política, a ponto de alguns deixarem em segundo plano as reivindicações escritas em seus cartazes. Em São Paulo, por exemplo, um dos estopins que fez explodir a quantidade de pessoas nas ruas foi a ação violenta da Polícia Militar, que na noite de 13 de junho comportou-se no centro da cidade com a mesma violência que geralmente reserva apenas aos bairros de periferia, espancando manifestantes desarmados, atirando balas de borracha em olhos de jornalistas e prendendo ilegalmente pessoas que portavam vinagre – tudo isso para impedir que as ruas fossem ocupadas por corpos humanos. Nas noites seguintes, as manifestações conseguiram a adesão de muitas pessoas que nunca haviam participado de uma passeata, mas sentiam que precisavam colocar o pé na rua para transformá-la num espaço seu. Foi quando os protestos conseguiram desafiar o grande tabu de fechar a avenida Paulista para os carros e torna-la, por algumas noites, um espaço para gente – para gente andar, deitar na rua, dançar. Assim, mesmo que a bandeira da arte estivesse ausente, esta qualidade das mani-
festações, de usar os corpos como universos de descoberta da realidade e encontro com o outro, pode acabar aproximando os protestos de acontecimentos artísticos, especialmente da dança. O bailarino Eduardo Severino mora em Porto Alegre, cidade onde começou a onda de manifestações do Movimento Passe Livre deste ano, mas participou apenas de um protesto, preferindo acompanhar os demais à distância. “Tenho fobia a grande aglomerado de pessoas”, explica. Mesmo de longe, emocionou-se ao ver as passeatas. “Sinto uma emoção profunda quando vejo uma multidão lutando por algo.” No seu encontro com a multidão, o artista se arrepiou. “É muito bom observar os corpos, as pessoas, a energia positiva que emanam, é do caralho. Corpos/ pessoas políticas e livres gritando em coro segurando seus cartazes criativos e inteligentes. Corpos muito presentes e dançando.” Nesse encontro, o bailarino percebeu muito em comum entre a ação política das passeatas e o seu próprio fazer artístico. “Recorrentemente tenho protestado com minha dança. A falta de bom senso, a injustiça e a caretice me colocam em movimento”, diz. “Como artista, no momento que estive participando do movimento, eu consegui ver tudo: poesia, dança, escultura, pintura, fotografia. Vi tudo nesse movimento dessa juventude que surpreendeu a todos”, narra Mitzi Mendonça, diretora e coreógrafa da Companhia de Dança Mítzi Marzzuti, de Vitória (ES). “Chorei todas as vezes que vi a terceira ponte do Espírito Santo com 100 mil pessoas que queriam parar o Brasil. Foi o maior espetáculo que já vi”, diz a artista. Ela conta que se comoveu ao ver os jovens se manifestando para mudar a realidade, como ela própria fez anos 60 e 70. “Oposto ao que muitos pensam, percebo que esta juventude está articulada e bem representada, e sabe para que fim está lutando.” Ela também vê pontos de afinidade entre arte e dança, mas ressalta que a arte tem
o seu próprio lugar. “A arte pode ter papel de protesto, mas dançar nem sempre tem esse fim, pois dançar é a vida em movimento. Há quem dance o prazer, há quem dance a dor, há quem dance a lembrança, mas sempre há quem dance”, afirma. Já Solange Borelli faz questão de delimitar as fronteiras entre arte e protesto. “Protestar não é fazer arte”, diz. “Num discurso artístico, sempre está naturalmente implícito ou mesmo explícito um protesto, uma reflexão, um questionamento. No entanto, quando isso vira bandeira, o discurso se perde, a arte se perde e o artista também.” Sejam o que forem e como forem, os protestos colocam novos desafios também para o fazer artístico. O diretor José Celso Martinez Corrêa, do Oficina, contou, durante o Cultura Atravessa, que estava fazendo modificações na sua nova peça sobre Cacilda Becker para dar conta das mudanças trazidas ao país pelas manifestações de junho. “Em duas semanas, o Brasil mudou”. Dias após o evento, Zé Celso retomou o tema em seu blog. Para o diretor, a gota d’água dos 20 centavos fez emergir uma energia que os “Poderes do Sistema Burocrático Financeiro” estavam represando há anos, fazendo emergir “todos os contentamentos destampados” e “chegar à prova dos Nove da Alegria nas Ruas do Brasil, com estratégias novas, inteligentes, baratinadoras”. Com a experiência de quem viveu 1968 na pele e na alma, Zé Celso lembra que, para não perder o seu poder de transformação, a vibração dos protestos precisa da cultura. É Zé quem avisa: “Se não houver investimentos na cultura livre e nas artes que criam com as contradições da liberdade, com o paradoxo humano animal, vegetal, com a poesia, beleza, práticas de acordo com a beleza da vida da natureza, estaremos repetindo eternamente as mesmas ‘palavras de ordem’, e o manifestante de hoje se torna o político canastrão de amanhã”.
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“NÃO DESCOBRIMOS NOSSA PAUTA DE 20 CENTAVOS”
“O grande exercício do Movimento Reage Artista foi o de pensar para além dos setores, expandindo para um pensamento sobre a cidade.” Adriana Schneider Alcure MUITOS BRASILEIROS descobriram a rua como lugar de manifestação política em junho deste ano, mas no Rio de Janeiro um grupo de artistas já havia acordado quatro meses antes. Criado em fevereiro, o Reage Artista surgiu como uma reação ao fechamento dos teatros, bibliotecas e outros equipamentos culturais do município que não tinham alvará, numa tentativa da prefeitura fluminense de mostrar preocupação social diante da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria (RS). O Reage criou um espaço para o debate político
dos trabalhadores da cultura que antecipou e por fim se somou à nova onda de protestos. Nessa entrevista, a atriz, diretora, escritora, pesquisadora de teatro Adriana Schneider Alcure, integrante do grupo Pedras, conta que, se quiser mobilizar a população, a cultura precisa descobrir a sua “pauta de 20 centavos”, uma bandeira capaz de articular os problemas do dia a dia com as questões maiores da sociedade. E precisa fazer os políticos, especialmente de esquerda, entenderem que cultura é tão importante quanto educação e saúde.
MURRO – Quando a gente pensa nas grandes manifestações contra a ditadura, é fácil lembrar dos artistas como vanguarda daquelas lutas. Nos atuais protestos, os artistas e intelectuais, bem como suas bandeiras, quase não aparecem. Por que você acha que isso acontece? ADRIANA SCHNEIDER ALCURE – As velhas ideologias, as antigas práticas não estão dando conta de pautas que transcenderam a macropolítica, conectando-a às microquestões que nos afetam no dia a dia em perspectiva mundial. Estamos na era da produção descentralizada de discursos e é por isso que estamos conseguindo tomar essas dimensões nas ruas. Os artistas não estão na “vanguarda” porque ainda não descobrimos a “nossa pauta de 20 centavos”! A pauta necessária, pois agencia múltiplos atravessamentos que determinam os modelos de cidades excludentes, o caos urbano quase sem solução em que estamos imersos, as relações entre o Estado e o empresariado, os acordos eleitorais, as políticas desiguais para os múltiplos territórios da cidade, a práxis e o pensamento de uma elite mal-educada, “Miamizada”, ignorante, individualista, e, mais uma vez, acionando a discussão central: a desigualdade social. Aqui no Rio de Janeiro, alguns artistas e agentes de cultura não perderam o bonde e estão, sim, nas ruas desde o início! Quando fomos surpreendidos pelas manifestações em junho, já havia uma organização, iniciada em fevereiro de 2013, em reação ao sucateamento dos teatros da rede pública que gerou o fechamento de dezenas de equipamentos culturais no Rio de Janeiro. O Movimento Reage Artista já vinha se reunindo todas as segundas-feiras para discutir e construir propostas que contribuam para a criação de políticas culturais
“Não há sentido em pensar a reforma da educação, sem compreender que a cultura está integrada. Não somos a cereja do bolo, a azeitona da empada, os animadores de auditório, os lúdicos, os engraçadinhos, os papagaios de pirata nas páginas de revistas.”
efetivas. Entretanto, antes da grande virada em junho, estávamos vivendo um impasse, ao constatar que os canais de diálogo com o poder público no campo da cultura estão engessados. Então não foi nada complicado aderir imediatamente ao que estava acontecendo nas ruas, e compreender que, sim, são muitos os protagonismos populares nesse momento! Nesse cenário, destacaria os estudantes, pois tenho minhas dúvidas a respeito deste vanguardismo político histórico dos artistas brasileiros... Os estudantes (por isso a importância central do pessoal do movimento Passe Livre) são sempre a vanguarda dos movimentos políticos. MURRO – Há uma tendência do artista a se fechar em determinados grupos e ignorar as questões maiores que afetam a sociedade? ADRIANA – No caso do Rio de Janeiro, exceto por pequenos grupos e indivíduos sempre atuantes, vínhamos de um vazio nas formas de organização coletivas de artistas e agentes da cultura, cujo último movimento contundente, o Fórum das Artes, datava de 2003-2004. Os modos de produção que nos pautaram nos últimos anos e, com eles, nossas relações com as formas de subvenção estatal (onde avanços foram também conquistados), geraram uma espécie de anestesia, onde a participação na construção de políticas passou a se confundir com atuar de “pires na mão”. O poder público no campo da cultura passou a nos pautar (com a nossa conivência) nos modos de construção de projetos e, consequentemente, em nossos modos de criação. Nós nos tornamos reféns de uma lógica produtiva bastante problemática, porque definidora de modelos estruturais que têm por finalidade um tipo de produto cultural limitado e determinado. O grande exercício do Movimento Reage Artista foi o de pensar para além dos setores, expandindo para um pensamento sobre a cidade.
MURRO – Como mudar a visão que os movimentos sociais e os partidos de esquerda têm a respeito do papel da cultura? ADRIANA – Nossos projetos, nossas utopias, a necessidade que temos pelo coletivo, só encontram campo nas esquerdas. Historicamente sempre foi assim. Por isso nem estou discutindo como isso acontece na direita, que se mostrou inviável em todos esses anos da nossa história. Mas os programas de governo de esquerda para a cultura, em sua imensa maioria, são velhos, limitados, balizados por entendimentos pouco ousados para o papel transformador que os projetos políticos destes segmentos deveriam ter. É comum em debates com políticos e militantes de esquerda, quando questionados, em termos de prioridade, sobre o que é mais fundamental – a realização, por exemplo, da reforma agrária ou o desenvolvimento de políticas culturais contundentes – a escolha é pela primeira opção. Quando, na verdade, não há prioridade de escolha. O que há ainda é um pensamento que destaca o fazer artístico e a cultura como estanques. A arte e a cultura perpassam todas as instâncias da vida social, porque lidam com valores humanos, porque atuam nos comportamentos, nas mentalidades, nos desejos, na formação inteira de um indivíduo, com aquilo que somos de fato. Não há sentido em pensar a reforma da educação, sem compreender que a cultura está integrada. Não somos a cereja do bolo, a azeitona da empada, os animadores de auditório, os lúdicos, os engraçadinhos, os papagaios de pirata nas páginas de revistas. Estamos em toda a parte. Essa é a disputa. MURRO – O impacto dos protestos veio da ação de colocar tantos corpos nas ruas. Como a gente pode relacionar isso com o papel da cultura? ADRIANA – Desde sempre me perguntava sobre o abismo entre a força das reclamações e do ativismo nas redes sociais e o esvaziamen-
to das ruas. A distância entre “corpo virtual” potente em seu meio digital e o esvaziamento dos corpos juntos em multidão nas ruas. Minha crise, e a de muitas pessoas, era o assombro diante da falta de conexão da insatisfação geral expressa nas redes sociais e a sensação de impotência real em se fazer ser ouvido, em efetivar mecanismos dialógicos democráticos de direito. Mas finalmente, nas ruas, cada cartaz empunhado, como um post fora das redes, revela a singularidade do indivíduo potencializada pelo encontro com outros, uma coletividade perigosa porque atrelada a cada subjetividade ali presente, passeatas para além da classe média, para além da assepsia da disputa político-ideológica. Diversidade, caos, contradição, as cidades reais, os cidadãos reais, em toda a sua complexidade provocada pela concretude dos corpos nas ruas, na presença destes corpos. Daí que acho equivocada a avaliação precipitada de alguns analistas de que toda a onda de estar na rua pela primeira vez e toda a suposta fragilidade de pautas são a “massa desgovernada, acéfala, de manobra”. Isso é reduzir a complexidade do momento. Também vejo claramente a tecnologia do carnaval nas ruas. Vejo isso na forma de organização das passeatas dentro da passeata; na irreverência dos cartazes; na forma como a marcha começa, como ela se dispersa (para além da ação da polícia); na ausência de vozes únicas; na falta de lideranças; na ausência de comícios; no tempo de liminaridade instaurado, onde o contrário da ordem estabelecida está “autorizado” a desafiar; na relação indivíduo-coletivo onde cada um é protagonista de si mesmo no palco das ruas, etc. A potência do carnaval, que é a potência do Corpo, sempre foi subestimada como alienação e subaproveitada pelos foliões. A potência das organizações dos blocos de carnaval finalmente pode ser muito mais do que já é. Arrisco dizer que o próximo carnaval será alguma coisa que jamais brincamos.
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ENTREVISTA/ MURRO#08
COM/ MARCOS ABRANCHES
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A DANÇA EM CÍRCULOS Marcos Abranches é bailarino e tem sua própria companhia, a Vidança. Há cinco anos, desenvolve trabalhos em DanceAbility, um método em dança que integra pessoas com as mais diversas habilidades e/ou deficiências. Depois de muitas experiências com alguns diretores e coreógrafos, criou sua própria visão e linguagem da arte com a dança. Abranches já participou da Opera de Berlim nos anos de 2008, 2010 e 2012 cujo tema era a vida de santa Joana D´Arc. Para ele, foi uma experiência muito grande, pois era o único dançarino brasileiro e com deficiência atuando na peça. Na Vidança, além do próprio Marcos, há uma bailarina cadeirante e com paralisia cerebral, Alessandra Bono Vox. Os dois trabalham há dois anos em um projeto chamado Forma de Ver e ensaiam todas as terças-feiras na Galeria Olido e às sextas-feiras em uma sala da ONG Casa do Todos, que fica no Brooklin, bairro paulistano e onde ministra aulas semanalmente. Atualmente, está em processo de criação de um trabalho solo, baseado no expressionismo alemão focado na obra do poeta e do grande pintor Francis Bacon.
MURRO: A cidade de São Paulo é capaz de conviver com deficientes dignamente? MARCOS: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” (Artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos). São Paulo já tem grandes estruturas para pessoas com deficiência, como por exemplo, a lei de cotas nas empresas. O que precisamos mudar é a educação do povo quando se trata de inclusão social, muitas vezes por falta até de conhecimento. Mas meu pensamento é positivo e forte com relação á inclusão de pessoas com deficiência na cidade. MURRO: Conte-nos uma dificuldade corriqueira. MARCOS: Quando vou a um restaurante e, despreparado, esqueço minha colher apropriada, tenho de improvisar uma, fazendo com que a inclinação entre a concha e a haste seja maior para que eu possa pegar a comida. Já tomei bronca de garçons e donos de restaurantes, já tive de pagar pela colher quebrada, já tive ajuda de pessoas que, em solidariedade, ajudaram a entortar, a ponto de aplicarem força demasiada e quebrarem a colher. Já saí com três colheres quebradas no bolso, sem o garçom entender por que eu pedia tanta colher e eu não podia explicar a ele que a liga de aço da colher era muito fraca. Situações hilárias aconteceram e acontecem comigo o tempo todo. MURRO: Qual a diferença entre estar no Brasil e estar na Europa ou EUA?
MARCOS: Vou dar um exemplo, um fato ocorrido comigo: estive por cinco vezes me apresentando na Alemanha como dançarino. Três vezes em Berlim. É certo que ia a restaurantes. Por questões de prática e tempo, costumava, sempre que possível, repetir o mesmo restaurante, próximo ao Deutsche Open Berlin, onde me apresentava. E sem nunca solicitar nada, e nem a mando de ninguém, e nem mesmo saberem o que eu fazia naquele país, quando me sentava à mesa de um restaurante, olhava para os talheres e lá estava a minha colher entortada, sobre um guardanapo de pano, reluzente, exatamente igualzinha à que havia deixado no primeiro dia que lá estive. Ah! O garfo também estava entortado (pois não sabiam se gostaria de usá-lo ou não), o canudinho no copo e a comida servida já cortada, dada minha dificuldade nos movimentos de pinça. Tudo isso agraciado com um Guth Nate Tanzer. E foram além, já sabiam que eu era um dançarino e não se espantaram em nada com isso. No Brasil, ao ser abordado, quase fui preso por um policial que achou que eu estava ironizando quando falei qual era a minha profissão: Tá me tirando cara, conta outra. Mas o que depreendo disso tudo? Olhar para a deficiência e olhar para a arte, ou juntas, a arte pelo deficiente, não está no simples olhar de ver. Está na grandeza, sem limites, do respeito e da alma das pessoas. Algumas conseguem mais, outras menos. MURRO: A dança é, por excelência, uma das áreas artísticas em que pouco se crê na finitude do corpo, do belo, da capacidade física. Como você vê essa questão?
ENTREVISTA/ MURRO#08
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MURRO: Dá para viver de dança? MARCOS: No começo de qualquer profissão é sempre difícil, pois precisamos lutar e trabalhar muito. MURRO: O que move você na criação dos espetáculos? MARCOS: A arte pode nos fazer tocar partes tão íntimas e especiais de nossas essências que verbalizar a sensação disso é quase impossível. O poder da arte é tão intenso e único que vem em forma de tsunamis e abraça a todos. A arte genuína não é excludente. Ano passado, fui ver um espetáculo de dança do Sandro Borelli e desde então fiquei fascinado pela poesia dos corpos em cena, coreografados por ele. É um artista contemporâneo da dança, que me faz refletir sobre nós mesmos enquanto seres humanos, cidadãos e como nos relacionamos com o mundo que habitamos. MARCOS: Trabalho para mostrar ao mundo que a deficiência não é um obstáculo para a criação e forma de expressão, ao contrário, a deficiência, para nós, é uma oportunidade de codificação da comunicação e expressão maior da igualdade. Acredito que, quando Deus colocou a dança para mim e para todos os dançarinos deficientes, esqueceu-se de perguntar, antes mesmo de nos identificarmos com ela, se a queríamos ou não, e sem mais, a adotamos. Vim para buscar e fazer dos movimentos a mais pura expressão do sentimento. Talvez pela minha deficiência. MURRO: Quais são suas maiores dificuldades na profissão? MARCOS: Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas com deficiências. MURRO: Em sua trajetória, há muitos coreógrafos estrangeiros. Há preconceitos dos profissionais brasileiros? MARCOS: Quando vou para fora do país,
sempre sou bem recebido e nunca percebi nenhum preconceito. Na Europa, já há uma postura diferente quando se trata de pessoas com deficiências e para nós, brasileiros, já estão nos tratando com muito mais educação. Recebi um convite de um grande diretor, Christoph Schligensielf, que assistiu à minha apresentação aqui no Brasil e logo me convidou para atuar na Ópera de Berlim, em um trabalho que ele está escrevendo e dirigindo e que tem como tema a vida de Joana D’Arc. Como dançarino performático e único brasileiro deficiente da peça, parecia um sonho, mas era pura realidade. A minha superação naquele momento chegou a 100% da minha vida, principalmente quando terminava a peça e sempre havia uma entrevista coletiva. Era só elogio de superação, foi muito gostoso escutar elogios do povo alemão, um povo sofrido quando o tema é “pessoas com deficiência”. Para mim é uma vitória. Também tive uma grande oportunidade de participar de um projeto com um coreógrafo americano, Alito Alessi, fundador da DanceAbility, que trabalha com pessoas com ou sem deficiência em geral. De cinco anos para cá, aqui no Brasil, estamos trabalhando com essa técnica e isso propiciou mais oportunidade para pessoas com deficiências.
MURRO: O que o bailarino Marcos Abranches espera de si mesmo? MARCOS: Entre frustrações e conquistas, nesse sentido, venho, há mais de dez anos, desde meu primeiro trabalho em Senhor dos Anjos, procurando fazer da minha dança um chamamento para a reflexão sobre o modo de agir, pensar e opinar das pessoas. Honestidade e integridade não são somente padrões que os outros enxergam em nós. Danço para que as pessoas possam interiorizar os seus verdadeiros valores de equivalência. Se estiverem vazias, por Deus, que a arte e a cultura as alimentem. MURRO: O que acha da atual política de editais do governo federal? MARCOS: Prefiro não responder. MURRO: O que é a dança para você? MARCOS: A dança é minha vida, minha fisioterapia e a minha arte. MURRO: O que acha que estará fazendo daqui a 20 anos? E daqui a 40 anos? MARCOS: Um vovô aposentado da dança e dos palcos, cheio de histórias da arte e da vida.
Trabalho para mostrar ao mundo que a deficiência não é um obstáculo para a criação e forma de expressão, ao contrário, a deficiência, para nós, é uma oportunidade de codificação da comunicação e expressão maior da igualdade
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INTERSECÇÃO/ MURRO#08
POR/ GIL GROSSI
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CONHECER O TEMPO
República da Dança - Mardito Mar - 1995
DIGITEI “GIL GROSSI” no Google e apareceram cerca de 225.000 resultados sobre fotografia de palco. Uma pergunta: como vim parar aqui? Meu namoro com a dança começou em meados dos anos 1980 quando uma amiga veio para São Paulo tomar conta do bar do Teatro Ventoforte. Lá aconteciam “performances”. Na época eu dava aulas de fotografia no SESC Pompéia, tirei fotos da performance Ora Bolas, voltei no dia seguinte e o pessoal gostou. E por sugestão de Ana Galmarino, propusemos ao SESC a Oficina de Foto-Dança com Ana, Thelma Bonavita e eu. Realizamos o mesmo curso também na Oficina Cultural Três Rios, atual Oswald de Andrade. Criamos o espetáculo Alma Nau em que eu fazia o cenário com projeções de slides e ficamos em cartaz no Madame Satã por seis meses. Gostei daquilo. Cheguei com uma camerazinha e já estava nos três lugares onde as coisas aconteciam em Sampa! Larguei um negócio familiar onde trabalhava e era sócio e assumi - Sou fotógrafo. No fim dos anos 1980 e início dos 1990, a dança contemporânea se apresentava em
eventos como: Inventores da Dança da pioneira Ruth Rachou, no Movimento de Dança do SESC Vila Nova e nas mostras do Centro Cultural São Paulo: O Feminino na Dança, O Masculino na Dança e Semanas de Dança. Fotografei quase tudo. Bebeto Cidra, Vera Sala, Sandro Borelli, Umberto da Silva e muitos outros. Época em que foto preto e branca tinha muita importância, com ela se conseguia espaço nos jornais. Desenvolvi um revelador que equalizava as luzes dando muita qualidade às minhas fotos; as pessoas as escolhiam numa folha de contato e eu passava a noite no banheiro ampliando. Sentado na privada, pois não tinha laboratório em casa, fazendo cinco de cada, horizontais e verticais que eram entregues pessoalmente nos jornais, cuidando para o jornalista não colocar na gaveta. Aprendi a reconhecer, respeitar e registrar as criações, sintetizando ideias em uma foto. A respeitar o público ficando “invisível”, com câmaras silenciosas e roupas escuras. A conhecer o tempo. Em 1990 Tica Lemos trouxe para São Paulo o Contato Improvisação. Ela me con-
vidou para fazer suas aulas no Espaço Viver dirigido por José Maria Carvalho e lá tive a felicidade de fazer aulas e acompanhar processos criativos de vários grupos. Passava o dia no estúdio vendo como eram construídas as criações de Mariana Muniz, Zélia Monteiro e Denilto Gomes. O Denilto sempre me dizia que “em uma cena lenta de dez minutos, a ação dura poucos segundos, o tempo leva embora a agilidade de um dançarino, mas deixa a intenção e a poesia, se você fizer um salto com intenção e poesia o público sempre vai ver um grande salto”. É isso que tento registrar. Em 1992, reaprendi a fotografar artes cênicas. A Folha e o Estadão estavam sendo impressos em cores; logo as fotos em preto e branco eram pouco publicadas. Tecnicamente tinham de ser tiradas com mais cuidado, tanto em composição quanto em fotometragem. Não dava mais para dar aquela “ajeitadinha” na ampliação. Levava um filme de 36 poses para o teatro, no máximo 42 e ali tinham de sair “aquelas” fotos. Em 1995, Tica Lemos, Adriana Grechi e
“A foto não existe mais, existe a imagem que pode ser transformada, replicada, picada, projetada. A edição ganhou tanta importância quanto fotografar. Desapego.”
Denilto Gomes - Serra dos Orgãos
Irmãs do Tempo - 1998
Lu Favoreto alugaram um salão no bairro do Bixiga e fundaram o Estúdio Nova Dança. Lá foi meu QG por muitos anos e um lugar no qual trabalhei e estudei, desde sua fundação ao seu fechamento, em 2007. Participei como criador-intérprete da criação Lembranças na Queda. Fiz, utilizando pela primeira vez o processamento digital, o cenário em projeção do espetáculo Bootstrap São Paulo, em 1999. Nesse ano, as câmeras digitais ainda eram precárias. Apesar de possuir uma Mavica com a “incrível” resolução de 570 × 490 pixels, eu fotografava com filme, mandava revelar, digitalizava os negativos, processava no computador e mandava um CD com as fotos para serem impressas. Na virada do milênio, eu e Luciana Bortoletto construímos a base do que viria ser o ...Avoa! Núcleo Artístico, integração entre dança contemporânea, fotografia e poesia, desenvolvendo trabalhos de improvisação em dança para espaços não convencionais. Dança e fotografia se misturaram, construindo um jogo cênico no qual dança e quadrado de luz transformaram a composição em uma “fotografia viva”. Criamos o espetáculo As Formas eram já mera Ilusão da Vista e com ele recebemos o prêmio SESI Dança/2007. Em 2011,
com Cláudia Vasconcelos, Neca Zarvos e Vera Bonilha, criamos a Cia. Teatro do Tempo e o espetáculo As Cegas. Nele atuei e pesquisei a utilização de vídeos e projeções ao vivo. Com a popularização da imagem digital, democratizou-se a fotografia. Ao comprarmos um celular, recebemos nele câmera e filmadora. Não é preciso mais ser “alquimista”. Nestes 25 anos me dedicando ao ofício de fotógrafo e professor da linguagem, vi pessoas sucumbirem diante da relação entre abertura do diafragma e velocidade de exposição. Recursos de manipulação e divulgação da imagem multiplicaram infinitamente as possibilidades de transformação da fotografia, mas o que parece ser uma época promissora se apresenta mais como uma crise. Afinal, qual o sentido da fotografia hoje, diante das transformações nos modos e meios de produção em Dança? Assim como antes existia a “dança de academia”, agora ganha força a dança que emerge do universo acadêmico. Autossuficiente, ela é seu próprio público e visivelmente depende mais de editais, uma conquista política que revela também um momento de burocratização dos processos artísticos. Comecei a perceber isso ao escutar: “não esqueça de fotografar os banners e o co-
quetel, pois preciso colocar no relatório”. Seria isso uma espécie de libertação? A foto não existe mais, existe a imagem que pode ser transformada, replicada, picada, projetada. A edição ganhou tanta importância quanto fotografar. Desapego. A foto que você tirou hoje pode estar em blogs, faces e o “diabo a quatro” amanhã (confesso que fico contente com isso). Como reinventar-se a cada mudança? Subprodutos da imagem. Sites, audiovisuais, projeções, monto trilha. Dou ideias, conceitos. Interessa-me continuar em trânsito dentro e fora de cena, conhecer o tempo de cada um desses espaços de atuação, descobrir novas ferramentas de trabalho, trabalhar com novos grupos ou consolidados, ser criador. E sou fotógrafo profissional, portanto cobro pelas fotos que faço. Isso é importante como demonstração de respeito pelo próprio trabalho e o de colegas de profissão. Mas isso não está no Google, logo não existe. Será?
Gil Grossi é fotógrafo e performer.
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DIAFRAGMA/ MURRO#08
POR/ GAL OPPIDO
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O CORPO COMO MANIFESTO Na gênese das representações humanas, o corpo aparece em registros de confronto violento, seja em cenas de caça ou luta que depois tiveram seus ritos sacramentados em arenas, tabas, salões, ringues etc. A MITOLOGIA SE VALE dos confrontos corporais para refletir sobre ética e estética como na disputa entre Zeus e Cronos assim como a passagem de Caim e Abel nos relatos bíblicos, ou seja, o combate corpo a corpo “emblematiza” e “panfletiza” uma ideia que pede lugar dentro de um corpo social para se fazer político. A cinética da luta percorre uma coreografia infinda nutrida pelas diversas culturas e ocupações da Terra pelo homem. Todas as lutas têm em comum um conhecimento complexo da mecânica do corpo visto que é item de sobrevivência... O Sumô e as explosivas contendas de mesclas de artes marciais (MMA) acusam suas multifacetadas origens em movimentações aéreas e de solo de extrema particularidade. Nesta edição, convidamos Wellington Duarte e Donizeti Mazonas para performarem a partir de seus trabalhos desenvolvidos, uma vez que conversam com os conteúdos aqui expostos, resultando, dessa forma, um ensaio foto/ coreográfico único para estas páginas.
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OUTRA MARGEM/ MURRO#08
POR/ HÉLVIO TAMOIO
ENTRE O NÃO DITO EO POPULAR
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Ao rascunhar escopos e maquetes para a montagem de uma possível representação da arte/cultura no corpo administrativo do Estado foi que percebemos que, de fato, não havia sequer recursos para as pinceladas iniciais do desenho
A PRIMEIRA INFORMAÇÃO sobre uma representação pública oficial da arte no aparelho estatal brasileiro veio quando, nos finais dos anos 1970, saímos em busca de livros relacionados ao fazer teatral. O projeto de montar um grupo surgiu depois de uma apresentação de Morte e Vida Severina por professores de um cursinho da cidade. No começo, queríamos mapear as origens dos moradores ali estabelecidos, tendo como provocativa algumas páginas perdidas encontradas nos fundos de uma sala atrás da igreja. Eram fragmentos de entrevistas e depoimentos de artistas em publicações em conjunto da Funarte, Serviço Nacional de Teatro, Ministério da Educação e Cultura. Pronto. Então tínhamos uma fundação, um ministério e, até mesmo, um serviço específico voltado ao teatro. Como acessá-los? Volta e meia, quando surgia a possibilidade de alguma montagem vinha junto o desejo de diálogo com os profissionais instalados nos tais órgãos e, com eles, melhores condições de trabalhos da pesquisa para a viabilização da montagem. A grande possibilidade de aproximação veio num interurbano, algo difícil na época, mas a atendente passou para outra e outros se sucederam até esgotar as fichas. Década adiante, já com acesso a um telefone da prefeitura, uma breve prosa trouxe-nos um envelope com duas revistas. Foi uma festa interna. Era a comprovação de que, de fato, as tais representações existiam. Cambaleando entre prestações de serviços para garantir o sustento, leituras de fotocópias revolucionárias e desenhando encontros na tentativa de manifestar a vida por meio da cena, acabamos amarrando os burros num planejamento regional de políticas públicas para a Cultura do centro paulista. Planos, pautas e demandas que, mais de uma década depois, foram bases para a constitui-
ção de um fórum de dirigentes culturais paulista que nos remeteu à coordenação paulista da citada fundação. Como em qualquer investida, logo na chegada, veio a necessidade de entender melhor o significado de cada sigla. O Serviço Nacional de Teatro, criado em 1937 nos alicerces do Estado Novo, poderia ser uma estratégia governamental eficaz de contato com os grupos de teatro amador e experimental que se expandia pelo país? A Fundação Nacional de Arte, fundada em 1975 na gestão militar de Geisel, não estaria na cesta de amenizações e abertura da política brasileira? E o Ministério da Cultura (1985) um acomodamento mineiro que não balançaria o “transatlântico encalhado ou fantasma” carioca? Perguntas. Sempre perguntas. Quantas perguntas. Aos poucos, as fichas (não telefônicas) começaram a cair, mas, numa velocidade intensa: onde estavam as parcerias com as prefeituras? E os jovens? Algum programa integrado entre a Fundação, o ensino médio e seus milhões de estudantes na possibilidade de, no mínimo, uma maior difusão das ações formativas e acessibilidades artísticas culturais? Enxugando gelo, a “ideia ideal” de existência foi derretendo, e a cada passo dado à luz de que cada salinha respondia pela necessidade corporativa de um determinado grupo ou de uma articulação política eleitoral miúda regional. Um criado para cooptar/acomodar artistas na velha ordem do poder fazer a revolução, antes que o povo fizesse; outra para responder ao surgimento de novos criadores e trazê-los ao grande centro, inserindo-os no staff da arte estabelecida e, por último, um ministério para preencher lacunas e acomodações partidárias na garantia de governabilidades. Ao rascunhar escopos e maquetes para a montagem de uma possível representação
da arte e cultura no corpo administrativo do Estado foi que percebemos que, de fato, não havia sequer recursos para as pinceladas iniciais do desenho. As iniciativas sazonais de criação de órgãos não iam além da exposição oportuna de personalidades e ou cooptação momentânea de grupos ou movimentos que, em determinado momento, pudessem incomodar a zona de conforto em que se instalam os ditos representantes. No entanto e apesar de abruptos abandonos, lembrávamos, ainda como criadores, a inspiração “pessoniana” de que sempre é tempo da travessia e se não ousássemos fazê-la, teríamos ficado para sempre à margem de nós mesmos. Nessa rima, e abrindo picadas para a possibilidade de colocar as investidas populares na pauta, acreditamos que o Estado pode ser o elo agregador nessa necessidade premente de uma organização permanente, enquanto fomento para a construção de uma identidade. Ainda mais se entendermos que o Estado não produz arte, cultura, portanto, pensamento. Oxalá estabeleça itinerários, diretrizes e articulações que viabilizem aos fazedores condições efetivas de criação, formação, produção e circulação de seus feitios. Condição essa jamais vivenciada nos 124 anos de República que nas tentativas, se repimpou em pseudorrepresentações e falsos embates. Isso posto e os dados continuam sendo jogados quais as reais representações da arte e da Cultura e em que porta do Estado irão bater? Até quando nos abundaremos em balcões, agrados e editais governamentais? Perguntas. Sempre perguntas. Quantas perguntas.
Hélvio Tamoio é produtor e apresentador do programa Paracatuzum.
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BIBLIOTECA/ MURRO#08
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DANÇA NAS LETRAS VIII
MARIGHELLA O GUERRILHEIRO QUE INCENDIOU O MUNDO MÁRIO MAGALHÃES
UM INSTANTE NA VIDA DO OUTRO MAURICE BEJART NOVA FRONTEIRA
COMPANHIA DAS LETRAS
O livro de Mário Magalhães revela outras facetas do fundador Ação Libertadora Nacional, o maior grupo armado de oposição à ditadura militar brasileira. Marighella, por exemplo, tinha uma queda pela poesia – no ginásio, ele usou versos para fazer uma prova de física e também escreveu poemas de amor – e é descrito como um homem irreverente e brincalhão. Jean-Paul Sartre chegou até mesmo a publicar artigos sobre Marighella na revista “Les Temps Modernes” após lê-lo. A biografia é obrigatória para quem se interessa pela história recente do país e por um dos maiores personagens surgidos no contexto da ditadura militar.
“E que seja perdido o dia em que não se dançou uma única vez! E que seja falsa para nós cada verdade perto da qual não tenha havido pelo menos uma gargalhada.” Nietzsche Assim, com essa citação, Maurice Béjart (1927-2007) abre seu livro de memórias.
EDUCAÇÃO SOMÁTICA E ARTES CÊNICAS PRINCÍPIOS E APLICAÇÕES ANA LÍGIA TRINDADE PAPIRUS
Essa obra examina o surgimento, a evolução e o desenvolvimento das técnicas corporais de educação somática no estado de São Paulo, a partir de 1950, buscando identificar os processos de aproximação, apropriação, transformação, distorção e invenção inerentes à transmissão de conhecimento no campo das artes corporais.
EPÍLOGO/ MURRO#08 POR/ JÚLIO VIEIRA
juliovieira.blogspot.com
CORPOS #NARUA / A classe artística não engajada na causa própria
POLÍTICAS PÚBLICAS / Conselho da Cidade: via de articulação entre a população e o poder público
PATRICIA RODRIGUES / Divisão sexual do trabalho e participação da mulher na vida política
JOSÉ MOJICA MARINS / Criador e criatura, metamorfoseados ao infinito
TOM ZÉ / Músico-lítero-astronauta-libertário
GIL GROSSI / Fotografia, dos banheiros aos pixels
GAL OPPIDO / A disponibilidade dos corpos no fazer político
HÉLVIO TAMOIO / A institucionalidade dos organismos oficiais e seus significados e eficácia
MARCOS ABRANCHES / A risível deficiência no suporte aos deficientes físicos