Revistamurro 11

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INVISÍVEIS À LEI Gal Oppido Hélvio Tamoio Jornalistas Livres Juca Ferreira Kisso Odilon Roble Chinita Ullman Lennie Dale

AGO/2015


ÍNDICE/ MURRO#11

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11 Foto de capa: Gal Oppido Intérprete: Roberto Alencar

04/ARTIGO DEFINIDO Por Odilon Roble 06/TRANSGRESSÃO Nº21 Chinita Ullman 08/TRANSGRESSÃO Nº22 Lennie Dale 10/POLÍTICAS PÚBLICAS Por Alan Santiago 12/ENTREVISTA Com Juca Ferreira 14/CAPA: INVISÍVEIS À LEI Por Iara Biderman 24/INTERSECÇÃO Por Jornalistas Livres 26/DIAFRAGMA Por Gal Oppido 32/OUTRA MARGEM Por Hélvio Tamoio 34/BIBLIOTECA

EDITOR DE ARTE Gustavo Domingues

Revista Murro em Ponta de Faca Rua Sousa Lima, 300B, Barra Funda, São Paulo/SP, CEP 01153-020 +55 11 3666 7238

REPORTAGEM Alan Santiago Amanda Queirós Iara Biderman REVISÃO Daniel Japiassu

Esta publicação o projeto “Artista Fomento à Dançaintegra da Cidade de São Paulo, da Fome”, contemplado pela 13ª Edição uma conquista dos trabalhadores da Dança do Programa de Fomento à Dança / 2012.

PRODUÇÃO EDITORIAL Júnior Cecon Veja também a versão on-line da Revista Murro em Ponta de Faca:

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ASSISTENTE DE ARTE Gabriel Borelli

Por Kisso

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EDITORA Amanda Queirós

AGRADECIMENTOS Viação Santa Brígida, Restaurante Estrela da São João e Riviar Miudezas

COLABORADORES Gal Oppido Hélvio Tamoio Jornalistas Livres Kisso Odilon Roble

35/EPÍLOGO

Produção:

CONSELHO EDITORIAL Amanda Queirós Gustavo Domingues Júnior Cecon Sandro Borelli

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EDITORIAL/ MURRO#11

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EM BUSCA DE DIGNIDADE CANSADO de não ser reconhecido como artista da dança, Vaslav – o personagem que mais uma vez figura nas páginas desta revista – partiu para outra. Após suar litros em formação específica na área, nosso Nijinsky dos Trópicos decidiu experimentar como é “trabalhar de verdade”. Em qualquer um dos ofícios testados aqui, o profissional em questão tem jornada registrada em carteira, tempo de aposentadoria contabilizado, férias asseguradas e licença-saúde garantida, para citar alguns exemplos de direitos adquiridos. E como fica o profissional da dança? Criada em 1978, a Lei 6.533, também conhecida como Lei do Artista, não conseguiu acompanhar a evolução deste que é um dos incontáveis campos presentes sob seu guarda-chuva. Isso ficou evidente no início dos anos 2000, quando o Conselho Federal de

Educação Física tentou se impor como regulador da área. Além disso, o surgimento de novas atividades em torno da dança tornou mais difícil sua categorização. Em paralelo, o número de cursos superiores nessa linguagem passou de 10 para mais de 30 apenas entre 2001 e 2010, enquanto um levantamento de 2007 do IBGE revela que a dança é a segunda atividade artística mais realizada no País, apontando ainda que 56% dos municípios do País contam com grupos de dança. Dados como esses sugerem já ter passado da hora de contornar tal invisibilidade legal. E isso se faz apenas com muita discussão – como a proposta das páginas a seguir – e uma boa dose de sangue nos olhos para fazer a regulamentação da dança acontecer no Congresso Nacional. Essa busca por dignidade é a mesma que

norteia o surgimento do coletivo Jornalistas Livres. Diante da crise do mercado de notícias no País, o grupo – formado por alguns dos mais tarimbados profissionais da área – se reuniu para produzir contranarrativas, ou seja, histórias que precisam ser contadas mas são esquecidas ou abafadas porque não interessam às narrativas engessadas próprias dos grandes veículos de comunicação. A iniciativa não nasce isolada. Surgidas pouco antes, a Agência Pública e a Ponte Jornalismo compartilham muitos dos princípios que norteiam os Jornalistas Livres, demonstrando uma tendência resultante da tomada de consciência do que é possível alcançar quando se faz uso da própria voz. Nós, da Murro em Ponta de Faca, também dividimos esse mesmo desafio, na certeza de que qualquer aceno de mudança precisa, antes de tudo, de protagonismo.


ARTIGO DEFINIDO/ MURRO#11

POR/ ODILON ROBLE

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O CONTEMPORÂNEO

NEXOS DE UMA APROXIMAÇÃO ESTÉTICO-FILOSÓFICA Longe de dar explicações, professor propõe explorar, a partir da lógica, o conceito que rege boa parte das produções artísticas independentes e autorais feitas hoje

PODEMOS PROPOR um conceito de contemporâneo a partir de vários pontos de referência. Contudo, se o contemporâneo corresponde àquilo que estamos vivendo, não temos uma visão suficientemente completa para defini-lo. Definir é dar-lhe cabo, o que, de certo modo, eliminaria sua contemporaneidade. Nesse sentido, as definições do contemporâneo falam mais sobre as referências tomadas como ponto de partida do que sobre o ponto de chegada. Se, por exemplo, o argumento diferencia o moderno do contemporâneo, o que está mais em evidência é o próprio moderno, sendo que o contemporâneo acaba funcionando como uma espécie de espelho curvo, refletindo o objeto original com aparências distorcidas. Não é de se estranhar, portanto, que alguns definam o contemporâneo com tanta incisividade e finitude quanto lhe será subsequente sentir-se dono do conceito e, por extensão, do próprio contemporâneo. Asseverar

sobre o contemporâneo é ocupar um papel de vidente às avessas: em vez daquele que vê o futuro, um profeta do hoje que enxerga a realidade que nos rodeia e, assim, supõe poder guiar o rebanho. Não é essa a minha perspectiva neste texto. O que pretendo aqui é criar nexos de inteligibilidade. Em termos simples, extrair uma certa lógica daquilo que percebemos como contemporâneo. Diferentemente da perspectiva que condenei acima, essa outra propõe sentidos evidentemente efêmeros mas, mesmo assim, provisoriamente encarnados no cotidiano, numa espécie de avaliação prática da vida, como queria a filosofia grega antiga antes que a tara do racionalismo abrisse as portas da abstração ensimesmada. Mas por que preocupar-se com tais nexos de inteligibilidade em um campo da linguagem artística? Não obstante a importância da discussão estético-filosófica em si, por-


05 que temos um inconveniente a discutir, qual seja, uma tal de “dança contemporânea”. Para Aristóteles, somos “animais racionais”. Nessa concepção, “animal” ocupa o papel de “gênero comum” e “racional”, de diferença específica. Ou seja, aquilo que realmente nos faz diferentes dos outros animais é a nossa capacidade de produzir razão (se isso nos faz superiores a eles é um julgamento completamente outro). Por extensão, “dança contemporânea” tem como gênero comum ser uma dança como várias outras (e não uma ginástica, por exemplo), mas tem como diferença específica ser “contemporânea”. É isso que a faz ser alguma coisa supostamente distinta de todas as demais danças. Portanto, não basta apenas que ela seja uma dança praticada hoje, ela tem de dialogar, intencionalmente, com o que se entende por contemporâneo, mesmo que isso seja impreciso. Claro que alguns podem olhar para a epiderme daquilo que se expressa como dança contemporânea, inferir alguns princípios, copiar alguns padrões e propor uma espécie de “não sei o que é isso, mas sei reproduzir bem isso”. De certa maneira, essa é uma dobra interessante que me permite iniciar a construção dos nexos de inteligibilidade que me propus. Pelo exposto, parece possível entendermos que ir além dessa abordagem meramente epidérmica é encontrar uma potência que não exista unicamente em função do ato. Em algumas expressões da dança, o virtuosismo fala por si, pois corresponde ao produto final, ao ato oriundo de diversas potências (técnicas, energéticas, expressivas). Para uma dança com a diferença específica de ser e estar no contemporâneo, o ato como produto definitivo perde sentido, como argumentei acima. Em vez disso, talvez seja mais adequado que essa seja uma dança da potência. O contemporâneo, por estar acontecendo, é produtor de potências. Eis um dos nexos de inteligibilidade que me parecem mais nítidos: a dança contemporânea é aquela que quer expressar potências e não um produto com formas e conteúdos definitivos. Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século 19, nos ajuda nessa compreensão quando nos lembramos de sua posição estética sobre o princípio de razão. Para ele, a obra de arte potente consegue expressar conteúdos suprassensíveis que não se subjugam

ao princípio de razão. Esses conteúdos suprassensíveis também estabelecem nexos de inteligibilidade, mas não são cooptados pela “explicação”, enfim, pelo princípio de razão. Como força cognitiva elementar, o princípio de razão não cessa de procurar e atuará na nossa percepção da obra após sua execução ou mesmo após seu momento histórico, ou seja, a dança contemporânea poderá ser chamada de alguma outra coisa daqui a algum tempo, quando nosso princípio de razão a encaixar, convenientemente, em nexos suficientemente estáveis, para os quais o que anunciei aqui como potências serão tomadas, em conjuntos coerentes, como marcas de uma época. Talvez por sensibilidade a isso a dança contemporânea costume fugir de um exibicionismo técnico vazio, mas, com certa frequência, desemboque em um emaranhado de conceitos poético-existenciais minuciosamente presentes nos espetáculos ou, ao menos, nos textos que os descrevem. Como filósofo, ser-me-ia especialmente conveniente defender essa tendência, colocando-me à disposição como faroleiro conceitual. Sem dúvida, o trânsito entre a filosofia, o contemporâneo e a dança é intenso e profícuo, mas a estratégia de elucidação de enigmas é parte daquilo que Ernst Gombrich em sua História da Arte considerou um modo de esmagar artistas ou estabelecer grupos seletos a partir da adequação a profundidades conceituais preestabelecidas. A obra contemporânea potente não é, assim, meramente enigmática, mas aquela que mobiliza disposições do sujeito de modo que sua energia volitiva encontre uma parceira. O contemporâneo como expressão de potência ou energia volitiva está, de certo modo, coadunado com o declínio da visão de mundo newtoniana, na qual os efeitos derivavam das causas mecanicamente. O sentido interpretativo de “o que você quis dizer com isso?” vai sendo substituído por como a obra me mobiliza e me coloca em contato com o cotidiano no que isso tem de estético, de político e de existencial. Jean-Paul Sartre parece já ter resumido essa tendência quando afirmara que “importa menos o que a vida fez de mim do que o que vou fazer com o que a vida fez de mim”. Tenho notado em minhas aulas sobre Mitologia Grega e Estética um interesse cada vez mais intenso no tema por parte dos alunos que pesquisam artes da cena e até de um pú-

blico geral ou de audiências não especializadas. Parece existir aí mais um nexo de inteligibilidade com o contemporâneo. Na Mitologia Grega, a predestinação de sistemas de crenças posteriores não existia. No mythós, o homem assume uma interlocução intensa com o destino e com os deuses. Esse tipo de magia integrativa, que flexibiliza a relação causal, é outra face dessa posição protagonista sartriana (“o que vou fazer com o que a vida fez de mim”), nada está pronto, tudo está em potência. Édipo não estava predestinado ao incesto com Jocasta, esse era seu destino em potencial, o que faz com que os dados rolem tanto para o amor e para o sexo como para o político. A banca tem sempre as maiores chances, mas isso não demove o espírito do jogador. Em outras palavras, o sujeito contemporâneo parece sentir um fascínio com essas histórias em que homens e deuses interagem e, no teatro, no cinema, nas festas ou nas efervescências sociais, reaquece seu desejo de sentir-em-comum, como aponta Michel Maffesoli, para quem Dionísio, o deus grego do vinho e do teatro, está cada vez mais vivo no presente, no contemporâneo. Evidentemente, propor nexos como o sentido de potência ou de uma visão de mundo dionisíaca para o contemporâneo é um esforço meramente introdutório, como já anunciei de partida nesse texto. Porém, são movimentos suficientemente provocativos para se pensar o contemporâneo e alguns termos que ele qualifica (dança contemporânea, arte contemporânea etc.). Uma forma de posição antes estética e política do que epistemológica. Como disse Santo Agostinho sobre o tempo (matriz do contemporâneo): “Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada”. Por essa razão, o que propus foram nexos e não explicações. Meus contemporâneos, que inferirem lógicas próximas a estas, talvez vejam valor neste ensaio e, assim, me acompanhem nestas modestas reflexões. E os que leram até aqui esperando encontrar a causa para um efeito, o bem e o mal do dado estético, certamente me odiarão por ser esta a última linha.

Odilon Roble é filósofo e doutor em Educação. Professor da Unicamp no Programa de Pósgraduação em Artes da Cena.


TRANSGRESSÃO Nº21/ MURRO#11

POR/ ALAN SANTIAGO

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CHINITA ULLMAN

À FRENTE DO TEMPO Pupila da expressionista Mary Wigman, Chinita Ullman se opôs à resistência da sociedade paulistana dos anos 1930 e buscou o sustento ao lado de sua parceira com a abertura da primeira escola de dança moderna da cidade

A REVOLUÇÃO Constitucionalista de 1932 impôs à bailarina porto-alegrense Chinita Ullman uma decisão que acabaria se mostrando acertada: em meio a tropas federais que cercavam São Paulo e grupos rebeldes que defendiam o Estado, ela foi levada a ficar mais tempo no Brasil do que gostaria a princípio. Seu nome já estava ligado à dança, indissociavelmente, após uma turnê bem-sucedida e celebrada que atravessou Europa e Américas, com o também bailarino Carletto Thieben. Era a tentativa dela de expressar-se mais intimamente e seguir cada vez mais independente de sua mestra, a alemã Mary

Wigman (1886-1973), em cuja academia começou a estudar e integrou a primeira formação, entre 1925 e 1927. Wigman foi um divisor de águas para Ullman. A alemã era amiga dos maiores modernistas da época. Introdutor do abstracionismo na pintura, Wassily Kandinsky (18661944), por exemplo, tinha trânsito livre com Wigman. Esse ambiente ajudava a fomentar as ideias expressionistas que contaminaram a brasileira – filha de família alemã –, que viajou àquele país com apenas 15 anos para estudar música, pintura e dança. Nesse período de experimentação e rup-

tura, a dança vai, cada vez mais, se desvincular “da pantomima, da ilustração musical, do virtuosismo acrobático, da ideia de escultura em movimento e da geometria do espaço”, como escreve Marcia Regina Bozon de Campos no trabalho Uma Arqueologia da Dança: Releitura Coreográfica de Chinita Ullman, apresentado em 1995 na Unicamp. “A dança mergulhou na abstração, e o corpo passou a ser o instrumento expressivo da vida interior do coreógrafo”, completa. Com Wigman, Ullman aprendeu que “a possibilidade de comunicar sensações recorrendo a domínios não-intelectuais (imbuía)


07 “Havia sempre algo em comum nas coreografias de Chinita Ullman: era qualquer coisa de profundamente doloroso, como uma ansiedade em relação ao inatingível, uma sede de vida exaltada em arte” Marcia Regina Bozon de Campos

de magnitude a dança enquanto arte moderna”. A partir dali, realizaria uma trajetória que propunha pensar a intersecção entre dança e as outras artes: “As figuras coreográficas obedecem a linhas arquitetônicas, a música é envolvida na sagração de todos os ritmos, a escultura nas formas plásticas, a pintura nas cores da indumentária e a poesia na eurritmia do movimento”, destaca Campos. Por seu trabalho com Thieben, é incensada nos jornais europeus. Ainda de acordo com Campos, o periódico alemão Der Tag, de Berlim, chega a dizer que Ullman leva aos palcos “cadências livres, panos largos e alegria pagã”. Seu caminho já estava pavimentado para onde ela quisesse ir. Quando chega a São Paulo, em 1932, vem acompanhada da também bailarina Kitty Bodenheim (1912-2003), que, uma vez sua aluna, se torna parceira de vida e de trabalho. Diante da crise financeira, política e bélica pela qual o mundo passava — a Segunda Guerra Mundial acabaria apenas em 1945 —, as duas decidem fundar uma escola de dança moderna para conseguir se sustentar. Chamava-se Academia do Bailado e ganhou sede na Rua Maranhão. “Como Chinita começa a perceber que a escola não tem tanta procura por dança moderna, então inicia um trabalho com balé clássico. Ela nunca apreciou o clássico, mas havia uma necessidade. Poucas pessoas trabalhavam com o gênero, porque a primeira escola aqui no País havia sido em 1927. Ela se vê obrigada a misturar as duas”, afirma Maria Claudia Alves Guimarães, professora de História e Teoria da Dança na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Guimarães é autora do trabalho Chinita Ullman e os primórdios da dança moderna em São Paulo. Nesse momento, a bailarina trazia para seus alunos um jeito de pensar a dança muito mais multifacetado e influenciado por diferentes fontes, que a consagrou como coreógrafa à frente de seu tempo, uma

figura de fato transgressora em meio a um ambiente artístico ainda bastante ligado a formas tradicionais. Segundo a professora, a decisão de estabilizar-se estreitará ainda mais seus laços com os modernistas locais. “É uma época em que estão se organizando os museus de arte e os bailes da SPAM (Sociedade Pró-Arte Moderna, criada em 1932). Quem fomenta esse ambiente são artistas modernistas como Mário de Andrade (1893-1945) e Lasar Segall (1891-1957). É com quem ela vai dialogar. Ela vai defender Flávio de Carvalho (1889-1973) em polêmicas, por exemplo”, pontua. As trocas com Mário, inclusive, irão contribuir para que a gaúcha com forte influência alemã se volte cada vez mais para um País que só conhecia de longe. “Chinita casa as ideias expressionistas, que reveem o nacional e o primitivo, com a curiosidade de conhecer o País, com o qual ela tem um entendimento como estrangeira. Aqui, escreve sobre índios, sobre lendas brasileiras”, avalia. Mais do que apenas escrever, a coreógrafa elabora espetáculos baseados nessas referências. É o caso dos Quadros Amazônicos, em que interpreta lendas da Yara, do Saci, do Boitatá e da Caipora. De acordo com Campos, seu “estilo brasileiro” é “repleto de movimentos ondulantes e flexíveis, carregados de sensualidade e vigor”. Nos anos 1960, faz turnês que devassam o Brasil de Norte a Sul — suas apresentações chegam a Manaus. Com todo esse trabalho, Ullman se torna uma referência da dança expressionista no Brasil. Para Campos, “apesar da extensa pesquisa de movimento e variação temática, havia sempre algo em comum nas coreografias de Chinita Ullman: era qualquer coisa de profundamente doloroso, como uma ansiedade em relação ao inatingível, uma sede de vida exaltada em arte”. Essa assinatura artística ela transplanta também para o teatro, onde tem atuação intensa na formação

das primeiras turmas da EAD (Escola de Arte Dramática) da USP. Ullman ajuda a fundar a Escola, com o dramaturgo Alfredo Mesquita, em 1948. “É a primeira professora de expressão corporal, trabalhando com dinâmicas, o espaço, toda a consciência do movimento”, pontua Guimarães. Mais próximos, alunos se lembram de como Ullman era figura carismática e querida. “Era uma pessoa extraordinária, delicadíssima, com alma”, conta a crítica teatral Ilka Marinho Zanotto, que estudou com ela no fim dos anos 1950. “Tínhamos aula de expressão corporal com percussão. A gente improvisava uma dança. Era a aula de que eu mais gostava, porque, na hora em que começava o som da percussão, a gente se soltava e fazia coisas que nem pensava que podia. Chinita liberava nossas forças criativas. Era algo muito moderno.” Mas os impulsos criativos de Ullman foram arrefecendo com o tempo. Já na década de 1950, deixa de lado o trabalho como coreógrafa; é também quando se separa de Bodenheim — que, ao contrário de Ullman, ainda manteve durante muito tempo uma academia de dança com seu nome, nos Jardins, em São Paulo. No livro A Dança Teatral no Brasil, o autor Eduardo Sucena destaca que Ullman encerra definitivamente atividades como bailarina e professora em favor de seu sítio, onde gostava de cultivar orquídeas. “Quem teve seu nome vinculado à beleza, que melhor passatempo poderia ter escolhido?”, questiona-se Sucena, retoricamente. Mas, no trabalho Ballet ou Dança Moderna? Uma Questão de Gênero, a autora Marília Vieira Soares afirma que o fim de Ullman é menos cheio de flores do que parece: ela terminou a vida com dificuldades financeiras e foi vitimada por um infarte em 1977, aos 73 anos. “Ela é figura importantíssima para a dança e para o teatro brasileiros. Está na memória de todos nós que estivemos no EAD naquela época”, lembra Zanotto.


TRANSGRESSÃO Nº22/ MURRO#11

POR/ IARA BIDERMAN

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LENNIE DALE

REVOLUÇÃO NOS PALCOS

Liberdade e libertinagem se misturam na trajetória do americano Lennie Dale, que desafiou a ditadura militar brasileira com o barulhento grupo Dzi Croquettes e foi um dos responsáveis pela explosão da jazz dance no Brasil UM DANÇARINO AMERICANO chegou ao Rio em 1960 e procurou a bailarina de origem russa Tatiana Leskova. “Ele começou a fazer aula comigo. Depois, soube que tinha dançado em um musical famoso”, conta Leskova, 92. Assim como ela havia deixado uma carreira em ascensão no balé russo por um show no Copacabana Palace, o americano do Brooklyn, em Nova York, deixou a Broadway para fazer história no lado de baixo do Equador. Seu nome: Leonardo la Ponzina. Mas pode chamar de Lennie Dale. “Ele saiu de lá porque era bom demais: arrasava nos papéis secundários, e os diretores pediam para ele baixar a bola. Então, se revoltou e começou a dançar sozinho em shows de cassinos no México e em Las Vegas”, conta o bailarino Ciro Barcelos, que foi aluno, amigo e parceiro de palco de Lennie no grupo Dzi Croquettes. “Descoberto” por Carlos Machado (19081992) em uma dessas apresentações, foi convidado pelo empresário para fazer um show no Brasil. Foi a estrela em um espetáculo em que as coristas atendiam por nomes como Norma Bengell (1935-2013) e Odete Lara (1929-2015), para ficar só em algumas. O


“O Nureyev disse que ele não era um bailarino, era a própria dança personificada” Ciro Barcelos

dançarino pegou gosto pelo País e começou a estender suas temporadas por aqui até se estabelecer no Rio. Na academia de Leskova, Lennie estudava balé clássico todos os dias. Em certo momento, pediu à mestra para dar aulas. Foi um dos primeiros a ensinar jazz no País. “Na época, os bailarinos homens estavam confinados nas muralhas do erudito, o preconceito era enorme”, diz Barcelos. Mas a figura atlética e a qualidade técnica fizeram o professor estourar. Segundo Barcelos, foi ele quem introduziu o jazz nas academias de dança do Rio, que, até então, “tinham, no máximo, aulas de dança moderna”. “O jazz sempre foi muito marginalizado, considerado uma dança de segunda linha. Daí o Lennie chegou, com sua dança sensual, para cima, e o colocou em outro patamar”, afirma a bailarina e professora Helô Gouvêa, assistente do bailarino em São Paulo. Ele ensinou uma geração a dançar, incluindo artistas que ficaram famosos em outras áreas, como a atriz Betty Faria e a cantora Elis Regina (1945-1982). O Seu estilo também ganhou fama. Lennie inseriu o jazz nos ritmos brasileiros – ou vice-versa. Fez na dança o que a Bossa Nova fez na música brasileira. Além disso, criava também sob a influência da salsa e da rumba desde o tempo em que frequentava os clubes latinos de Nova York. O jeito diferente de dançar, combinado com a técnica e o carisma, encantou celebridades internacionais como Liza Minelli, que o convidou para coreografar um show seu e subir ao palco com ela. Barcelos conta que até o mito Rudolf Nureyev (1938-1993) se ajoelhou para Lennie após assistir a uma apresentação do americano abrasileirado em Paris. “O Nureyev disse que ele não era um bailarino, era a própria dança personificada”, afirma. É uma boa definição para quem se levantava e se deitava dançando. “Ele podia ir dormir às 4h, mas acordava às 7h para dar aulas”, continua Barcelos. Dormir às 4h não é força

de expressão. Como sabia toda a torcida do Flamengo (e o povo do Leme ao Leblon), ele acabava o show e ia para as baladas dançar. Já a aula podia durar de uma hora e meia a quatro horas, sem descanso, e enlouquecia os alunos. “Ele vinha com aqueles movimentos inovadores, aquele jogo de quadril e chegava no aluno dizendo ‘oh baby, I want you’. Ele fascinava homens e mulheres”, lembra Helô Gouvêa. Nos shows não era diferente. Segundo Barcelos, ele chegava ao teatro pelo menos quatro horas antes do espetáculo e colocava os artistas para fazer duas horas de exercícios – só para esquentar. Mesmo com todo esse treino rígido, Lennie conseguia fazer seus discípulos descobrirem uma dança livre e libertária. Assim como misturou o jazz com a música brasileira, ele embaralhou o teatro de revista com o desafio “à moral e aos bons costumes” e tocou na ferida da questão de gênero ao montar, no início dos anos 1970, o grupo Dzi Croquettes com 13 homenzarrões, de corpo malhado e pernas peludas, vestidos de mulher. “Ele tinha uma liberdade que chegava a ser libertinagem. Era a época da repressão no Brasil, e ele resolveu ‘subir no salto’ e escancarar. Aí, estourou a boca do balão”, diz Helô. Se hoje o que ele fazia não significa nada de mais, era uma afronta aos censores da ditadura militar então vigente. Sim, Lennie desafiava o poder estabelecido, mas também se divertia muito e aprontava nas festas “cada vez mais down da high society” da época. Apesar do caráter transgressor dos Dzi Croquettes, eles eram convidados para divertir a burguesia carioca. “Era aquela coisa meio de bobo da corte”, conta Barcelos. Como de bobo Lennie não tinha nada, subvertia a festa. Se o pessoal estava muito paradão, ele gritava “apaga a luz e pau pra fora!”, desligando de fato o interruptor. Quando não tinha jeito, mesmo, de o pessoal se jogar, ele colocava um ácido no ponche da burguesia.

O bailarino sempre esteve envolvido com toda a piração dos anos 1970, e o motivo (pelo menos oficial) que o levou à prisão foram as drogas. Pego em flagrante com cigarros de maconha, passou quase um ano encarcerado e, durante esse tempo, conseguiu transformar o lugar de contenção e repressão em palco de sua dança libertadora. “Um dia, o chefe do presídio me ligou e disse: ‘Não sei mais o que fazer, o Lennie vai montar uma coreografia para o fim do ano e está fazendo aula de barra no meu escritório, não dá. Ele pode fazer aula na sua escola?’”, conta Leskova. De volta à prisão, devolvia um pouco do que a dança lhe dava. “Tive permissão para dar aulas de dança no Presídio Lemos de Brito. A experiência foi fascinante, porque despertava nos presos muitas emoções adormecidas”, disse Lennie em uma entrevista de 1978 à revista Fatos e Fotos. Depois disso e, também, por causa da pressão do regime militar, o grupo Dzi Croquettes foi desfeito e Lennie e seus colegas passaram uma temporada de autoexílio na Europa. Na volta ao Brasil, o bailarino e coreógrafo montou, com Marilena Ansaldi, um musical autobiográfico. “Achei que poderia, neste espetáculo, pôr para fora tudo o que havia dentro de mim: muita mágoa, muitas saudades do Brasil”, disse ele à Fatos e Fotos. Ao descobrir que estava contaminado pelo vírus da Aids, Lennie procurou Barcelos, que perguntou o que ele iria fazer. “Ele me respondeu: ‘Quero dançar até morrer’.” Não foi exatamente isso, mas chegou perto. Em 1990, os dois remontaram o Dzi Croquettes e se apresentaram no Scalla, no Rio. Mesmo doente, “ele ainda dançava para caramba”, conta Barcelos. Mas, em uma época na qual os coquetéis de medicamentos ainda estavam em fase de testes, foi o último show em que Lennie causou e brilhou. Ele morreu em agosto de 1994, em Nova York, aos 57 anos, em decorrência da Aids.

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POLÍTICAS PÚBLICAS/ MURRO#11

POR/ ALAN SANTIAGO

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QUEM FICA COM O BOLO? Concentração de recursos pela Lei Rouanet volta a ser alvo de críticas e discussões por parte de artistas e do Ministério da Cultura, que pretende ampliar o volume de investimento direto da iniciativa privada em projetos pelo País UM DOS MAIS IMPORTANTES mecanismos de incentivo cultural no Brasil, a Lei Rouanet voltou a ser foco de discussões depois que o próprio ministro da Cultura, Juca Ferreira, em entrevistas recentes, referendou e ampliou as mudanças que estão sendo propostas para ela. A ideia do ministro é conseguir aprovar no Senado o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (ProCultura), projeto que irá pôr abaixo a legislação vigente – alvo de constantes críticas desde que foi promulgada, em dezembro de 1991. Como está desenhado, o ProCultura ataca alguns dos principais problemas da lei atual: a concentração de recursos nas regiões já mais privilegiadas do País, a decisão do que financiar apenas nas mãos das empresas e a dificuldade que alguns artistas e produtores têm na hora de financiar seus projetos. Como isso será feito? Por meio do Fundo Nacional de Cultura (FNC).


Pelos Estados do Brasil onde participa de eventos e em entrevistas na imprensa, o tom do ministro Juca Ferreira é agressivo contra a legislação atual: “A Lei Rouanet não interessa ao povo brasileiro”.

Quando criada, a Lei Rouanet instituía não apenas o mecenato (renúncia fiscal de empresas financiadoras de produtos culturais), mas também o FNC. Abastecido com recursos do Tesouro Nacional, de doações ou provenientes de aplicações em títulos públicos, esse Fundo serviria de contrapeso aos investimentos da iniciativa privada por subsidiar ou emprestar recursos a projetos culturais. Mas os números mostram como o FNC acabou perdendo a queda de braço para o mecenato. Atualmente, o MinC tem por volta de R$ 300 milhões para investir pelo FNC, enquanto o mecenato movimentou R$ 1,3 bilhão no ano passado – valor que se perpetua desde 2011 pelo menos. Foram, ao todo, 3.273 projetos apoiados por empresas em 2014. Também de acordo com dados do ministério, cerca de 80% dos recursos captados via renúncia fiscal ficam atualmente na região Sudeste. Além disso, apenas 3% dos projetos abocanham 50% de todo esse dinheiro, que é público. Uma mudança importante no ProCultura acontece justamente nesse meio. De acordo com o novo texto, cada região do País deverá ganhar 10% do montante do FNC. Os outros 50% serão destinados a fundos estaduais e municipais. Atualmente, não há regra específica para a destinação desse montante. Para que também não haja descompasso entre mecenato e FNC, a lei estipula que o valor liberado para captação nunca deverá ultrapassar o recurso do total destinado ao Fundo. “Considerando os cortes que a Cultura vem sofrendo nos anos de dificuldade, seria muito fácil (para o governo) deixar R$ 800 milhões para o incentivo e R$ 800 milhões para o FNC, mantendo o mesmo R$ 1,6 bilhão. Como os recursos do FNC sempre são contingenciados, perderíamos grandes valores nessa arquitetura proposta entre os dois mecanismos”, avalia Henilton Menezes, secretário de fomento no ministério entre janeiro de 2010 e dezembro de 2013.

Mas o novo inimigo que o ministro insiste em combater são os meandros da isenção fiscal. Ferreira pretende que o projeto, proposto pelo governo em 2010 e atualmente na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, altere o mecanismo: ele quer que, em vez dos 100% de abatimento no imposto de renda permitidos pela modalidade doação (para os projetos enquadrados no artigo 18 da Lei Rouanet), as empresas passem a efetivar o apoio com 80% de renúncia fiscal e 20% de recursos próprios. Esses 20% iriam incrementar o bolo do FNC. A proposta gerou polêmica no meio, com alguns artistas e produtores temendo que a alteração desincentive ainda mais a participação de pessoas jurídicas. Entre tantas alternativas à Lei Rouanet, Menezes pontua que ainda é necessária uma avaliação mais acurada do alcance da lei para compreendê-la. “A concentração no eixo Rio-São Paulo, por exemplo, é tratada como se fosse um problema da Lei e não é”, destaca, acrescentando que o Sudeste tem as maiores empresas e também a maior população. Para ele, os dados da concentração são enganosos também por outros motivos: há proponentes de um Estado que realizam atividades em outro, mas o ministério computa o projeto como do Estado de quem fez a proposta. Ainda assim, ele avalia que o ProCultura, se reformar a Lei Rouanet em vez de revogá-la, pode ser um passo adiante, porque abre a “possibilidade de tratarmos projetos, proponentes e investidores distintos de forma distinta, como deve ser”. Pelos Estados do Brasil onde participa de eventos e em entrevistas na imprensa, o tom do ministro é agressivo contra a legislação atual: “A Lei Rouanet não interessa ao povo brasileiro”, disse, no início de julho, em São Paulo, diante de lideranças indígenas e participantes de movimentos sociais da periferia da cidade. A indignação de Ferreira ecoa também as reclamações de muitos artistas. Princi-

palmente os de apelo menos espetacular. Ana Bottosso, coreógrafa da Companhia de Danças de Diadema, que tem um trabalho com 600 crianças da cidade, reverbera a afirmação de Menezes. “Falta um mecanismo para olhar esses pequenos e médios artistas, como nós. O público de dança, por exemplo, não é de 8.000 pessoas como é o de um show. A gente não pode ser balizado pela quantidade.” Bottosso afirma que dois dos quatro projetos com os quais conseguiu aprovação para captação no MinC não chegaram a ser executados porque não despertaram interesse das empresas. “Até contratamos captadores, que não conseguiram reunir apoio. As empresas já abatiam o imposto de outras formas ou estavam interessadas em grandes nomes, que dessem visibilidade.” Mesmo grandes nomes têm de ter jogo de cintura para conseguir utilizar a lei. “A aprovação do projeto no ministério não é fácil, porque é cheio de nuances. Não há grande uniformidade de critérios para aprovar”, avalia Marcello Claudio Teixeira, administrador do Grupo Corpo, que atua no País desde 1975. Mesmo com patrocínio fixo da Petrobras, o grupo teve de diversificar os apoiadores com a queda nos recursos vindos da empresa, segundo Teixeira. Ainda assim, ele é entusiasta da lei. “Sem isso, o Grupo Corpo fecha. Porque é impossível se sustentar só com bilheteria.” Segundo o advogado Evaristo Martins de Azevedo, especialista em prestações de conta da Lei Rouanet, outro ponto na legislação que demanda atenção são as contrapartidas culturais. “Penso que a Lei Rouanet poderia ser mais rigorosa e criteriosa com a obrigação de o proponente oferecer contrapartidas consistentes em seus projetos. Se esses critérios fossem claramente estabelecidos e rigorosamente observados, as finalidades da Lei certamente seriam, hoje, mais bem atendidas”, analisa.

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ENTREVISTA/ MURRO#11

POR/ ALAN SANTIAGO

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“NÃO HÁ UM ASPECTO JUSTO NA LEI ROUANET” Confiante na aprovação integral do texto que substitui a atual legislação, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, atira sem dó contra mecanismo de isenção fiscal e sentencia: “Já deu o que tinha de dar” “TODOS OS ASPECTOS da Lei Rouanet são ruins.” A frase poderia ter saído da boca de muitos dos artistas e produtores que se sentiram ludibriados com a possibilidade de financiar seus projetos por meio de renúncia fiscal, mas que acabaram vendo suas ideias voltarem para o fundo das gavetas. O fato é que a crítica parte do ministro da Cultura, Juca Ferreira, no início de seu segundo mandato à frente do ministério.

Como uma das vozes mais ativas contra a Lei Rouanet, que vigora desde 1991, Ferreira tornou a mudança na legislação uma de suas prioridades na gestão da pasta. No lançamento dos primeiros editais do MinC, em São Paulo, no início de julho, ele conversou com a revista Murro em Ponta de Faca sobre os pontos polêmicos do ProCultura — texto que irá substituir a lei atual caso seja aprovado no Congresso.

MURRO - Como está a relação com o Congresso para a aprovação do ProCultura? JUCA - Está indo bem. Temos conversado com os senadores. Há uma opinião generalizada de que a Lei Rouanet já deu o que tinha de dar e agora está estimulando desigualdades e discriminações na área da cultura. Com a mudança do ProCultura, a gente vai ter uma quantidade de recursos bem maior do que temos hoje para aplicar nas políticas públicas.


“Quem pode dar esse retorno? O artista que já é consagrado. Então, eles deixam de apoiar o artista popular, o artista inovador, o artista cujo principal público é pobre, o artista que não está no Rio e em São Paulo.” MURRO - Já há previsão de quando ela deve ser apreciada pelos senadores? JUCA - Não. Tem um trabalho na Comissão de Constituição e Justiça e, depois, vai para a Comissão de Educação e Cultura. MURRO - Nas Comissões, o senhor está tentando mudar o teto da isenção de 100% para 80%? JUCA - É toda a lei. Não vai ter problema jurídico, porque não tem nenhuma ilegalidade. É uma mudança de paradigma. MURRO - O ProCultura propõe que Fundo Nacional de Cultura e renúncia fiscal tenham equivalência... JUCA - É mais do que isso. É que o Fundo Nacional de Cultura seja o principal instrumento de fomento à cultura no Brasil. E a renúncia fiscal, ou seja, a parceria público-privada só acontecerá se o lado privado colocar no mínimo 20% (de recursos próprios). Porque fazer parceria em que tudo é dinheiro público e quem define como esse dinheiro vai ser usado é o departamento de marketing da empresa não é legal. Isso tem acentuado muitas distorções. E, na verdade, esse dinheiro corresponde a 80% do que o governo tem para aplicar na cultura. MURRO - Mas já há reclamações de que pode haver diminuição do dinheiro tanto do Fundo quanto da renúncia por causa dessa equivalência. JUCA - Quem está reclamando? Deixa eu dizer uma coisa: vamos supor que o empresariado fique chateado comigo e não queira mais fazer parceria com o Ministério da Cultura. Se eles não botam nada, zero menos zero é igual a quanto? Não afeta. [Em nota, o ministério diz que a empresa que tiver interesse em associar a sua marca a um projeto aprovado pelo ProCultura deverá investir 20% do total em recursos próprios, o que traz dinheiro novo para a cultura. No caso da renúncia fiscal de 100%, o empresário não investe nada.

Todo o investimento é governamental, com a chancela do governo. Portanto, se o empresário deixar de investir, não se perde, pois, na verdade, ele nunca investiu nada.] MURRO - Mas que tipo de cultura o Brasil e o ministério têm interesse em financiar com o fortalecimento do FNC? JUCA - Todas. Quando o departamento de marketing define — não estou criticando o departamento de marketing, critico a lei —, ele vai buscar quem pode dar retorno de imagem. Quem pode dar esse retorno? O artista que já é consagrado. Então, eles deixam de apoiar o artista popular, o artista inovador, o artista cujo principal público é pobre, o artista que não está no Rio e em São Paulo. Acentuam as distorções culturais e sociais do Brasil. Eles fazem dinheiro em cima de um investimento público. Isso é injusto. Não há um aspecto justo na lei. MURRO - Alguns produtores dizem que essa ideia de concentração é enganosa, porque não se tem real dimensão de onde e como esse investimento de fato aconteceu. JUCA - Diga a esses produtores que eles são muito simpáticos, mas o argumento é falacioso. Porque há uma produção ou outra que circula, mas os artistas empregados ali, o cenógrafo, o iluminador são do Rio e de São Paulo. Até o CNPJ é do Rio e de São Paulo. Todo o País tem produtores culturais, artistas, técnicos que querem ter acesso a recurso público para desenvolver cultura em todo o País. Essa argumentação é muito falaciosa, como se eles levassem a cultura para outros Estados. É ótimo que os produtos culturais circulem, mas é melhor ainda que todos os produtos culturais de todas as regiões possam ser produzidos e circular e que o Estado fomente a diversidade. MURRO - O senhor tem certeza de que o ProCultura conseguirá ser aprovado do jeito que está?

JUCA - Certeza absoluta. Fui discutir no Congresso. Senadores da oposição e da base do governo que estavam presentes, todos diziam que iam apoiar. Um senador da oposição me perguntou: “Quanto é que meu Estado tem acesso aí (a recursos da Lei Rouanet)?”. Respondi: “0,0”. Eu estava com as estatísticas na mão. Em outro era 0,3, em outro era 0,4. Fica evidente que é uma injustiça, que é um uso indevido do dinheiro público. É uma concentração, que não é só regional. Só quem consegue são sempre os mesmos. Não há disponibilização para a cultura de Rio e São Paulo. Se fosse, diríamos: “Pelo menos está beneficiando a cultura desses Estados”. Mas não há variedade, nem diversidade, nem republicanismo. Todos os aspectos da lei são ruins. MURRO - Os congressistas também são simpáticos à PEC que visa aumentar para 2% do PIB o orçamento do Ministério da Cultura, que atualmente não chega a 1%? JUCA - Sim. Foi aprovada agora na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. É o primeiro passo. O Brasil está tomando consciência de que o Estado tem obrigação de investir um mínimo na cultura. Não dá para manter a população sem acesso aos bens culturais — tanto no sentido de expressão quanto no sentido de fruição. Então, o Brasil está caminhando para tomar essa consciência. MURRO - Como é que fica, nesse momento de crise, o investimento na cultura, em especial no caso de áreas que demandam mais atenção, como a dança e as artes visuais? JUCA - O ministério vai continuar procurando fazer uma política republicana. Mas reduziu por volta de 20% o orçamento. É contingenciamento, na verdade. A gente ainda está na disputa de recuperar esse dinheiro. MURRO - A engrenagem consegue continuar? JUCA - Consegue. É de 20% só a redução.

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POR/ IARA BIDERMAN

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INVISÍVEIS À LEI

Ainda sem legitimação jurídica específica no País, artistas da dança discutem projeto que prevê regulamentação capaz de garantir direitos e reconhecimento aos profissionais da área

HÁ ALGUNS ANOS, a pernambucana Marilia Rameh foi trabalhar em uma escola dando aulas de dança. Mas foi contratada como profissional de educação (ela tinha magistério). “O combinado era um trabalho específico de dança, mas o contrato dava margem para fazer outras coisas que não eram da minha área. Em certo momento, pediram justamente isso, com o argumento de que não fui contratada como profissional de dança. Mas disse que não podia, faria o que foi combinado”, conta Marília, que é diretora da Cia. de Dança Artefolia. Ela largou o emprego, mas fortaleceu a convicção de que é fundamental uma legislação capaz de reconhecer a dança como uma profissão específica. É essa a proposta em pauta na discussão pela criação da Lei da Dança, que regularizaria a atuação dos envolvidos na área. A regulamentação da profissão da dança tem, na ala de frente, o objetivo de garantir direitos trabalhistas já usufruídos por várias categorias profissionais, mas de acordo com as especificidades desse campo de atuação. A demanda da classe é ter uma legislação que determine questões como jornada de trabalho e aposentadoria e estabeleça critérios para o registro profissional. Mas não é só isso. O problema de fundo, segundo a mineira Suely Machado, diretora da companhia Primeiro Ato, é que o profissional não tem como legitimar seu trabalho se sua profissão não tem existência própria. “Muita gente quer colocar seus filhos para fazer aula de dança, mas a maioria sonha que ele se forme no que chama uma profissão ‘de verdade’, que não é a dança”, aponta Marília Rameh.

Segundo a cearense Rosa Primo, pesquisadora, bailarina e professora de dança da Universidade Federal do Ceará, o debate não tem a ver apenas com a legítima defesa dos direitos trabalhistas de uma classe, mas com o reconhecimento de uma situação que mudou muito em poucos anos. “De 2001 para 2010, os cursos superiores em dança passaram de 10 para mais de 30. É um crescimento enorme, e as leis que tratam desse profissional não dão mais conta”, diz ela. E não é só na academia propriamente dita. Como sempre aconteceu, bailarinos são formados nas salas de aula dos chamados cursos livres, talentos para a dança aprendem e treinam na rua e gerações se formam na prática e na luta do dia a dia. “O Brasil exporta excelentes bailarinos para o mundo todo. Temos o maior festival de dança do mundo [Joinville], segundo o Guinness. O número de pessoas que dançam no Brasil é surpreendente, não se justifica mais essa invisibilidade legal. Como incentivar novos talentos a exercer uma profissão que não existe legalmente?”, pergunta Suely. Mesmo sem incentivo, os artistas continuam dando murro em ponta de faca (o trocadilho com o nome desta revista é inevitável). Um levantamento de 2007 do IBGE mostrou que a dança é a segunda atividade artística mais realizada no País, perdendo só para o artesanato. O mesmo estudo identificou ainda que 56% dos municípios do País têm grupos de dança. “Só por esses dados já fica claro que a dança não é e nem pode ser tratada como prima pobre do teatro”, diz a gaúcha Marise Siqueira, que, além de artista da área, é advogada.

Para reafirmar isso, ela acrescenta que parte desse contingente vive de danças populares, urbanas ou outras modalidades que não são atendidas por nada. Segundo o artigo 2º da Lei do Artista (Lei 6.533), que atualmente rege quem trabalha na área, é considerado artista “o profissional que cria, interpreta ou executa obra de caráter cultural de qualquer natureza, para efeito de exibição ou divulgação pública, através de meios de comunicação de massa ou em locais onde se realizam espetáculos de diversão pública”. Há também o “buraco negro” do ensino de dança, que responde pela principal fonte de renda de 90% dos profissionais do campo e não está previsto na Lei do Artista, como aponta Denise Acquarone, integrante do Colegiado Setorial de Dança e do Sindicato dos Profissionais de Dança do Estado do Rio de Janeiro. “O ensino formal (escolas técnicas, faculdades, bacharelado) é regulado e fiscalizado pela área de educação. Mas não há um órgão responsável pelo ensino não formal, o dos cursos livres, o maior mercado de trabalho para o profissional da dança”, diz ela. A legitimação jurídica também garante a autonomia da dança em todas as instâncias, segundo Rosa Coimbra, integrante da diretoria do Fórum Nacional da Dança. Nesse aspecto, contribui para outras lutas da classe, como a criação de editais específicos e cadeiras próprias em órgãos federais. Ao mesmo tempo, pode deixar mais transparente à sociedade como um todo os direitos e deveres de profissionais que, digamos, “prestam serviços” a essa sociedade, educando, formando ou entretendo o cidadão, entre outras coisas.


“A dança é uma arte efêmera, mas que pode mudar a consciência e a qualidade de vida dos indivíduos” Suely Machado

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17 “Claro que a Lei do Artista precisa ser revista e melhorada, ela foi feita há quase 30 anos, a realidade da dança hoje é outra. Para alguns, ela já deu o que tinha de dar, é preciso escrever uma nova. Por outro lado, se forem feitas modificações no anexo existente, já seria um avanço” Denise Acquarone

Histórico A questão é antiga. Remonta à França absolutista de Luís 14 (1638-1715). Foi nessa época que a dança da corte entrou para a Academia de Belas Artes e o dançarino, para o panteão dos artistas, com uma linguagem própria entre os diversos gêneros de arte acadêmica. O Brasil nunca teve monarcas benfeitores das artes, mas um ditador populista pode ser o ponto de partida para se pensar as origens das demandas por uma regulamentação da profissão, já que isso está ligado à Consolidação das Leis do Trabalho, sancionada em 1943 por Getúlio Vargas (1882-1954) durante o Estado Novo. Desde a sua criação, a CLT vem definindo várias categorias de trabalhadores , mas a dança sempre ficou de escanteio junto com outras categorias artísticas. Predominava a lógica do “artista transcendente”, acima e à parte do cidadão trabalhador. Só em 1978 esses seres que, embora transcendentes, também precisam viver à custa do suor de seu trabalho, conquistaram algum tipo de regulamentação para sua profissão. É desse ano a Lei 6.533, que cria a profissão de Artista e do Técnico em Espetáculos de Diversões.

LEI GUARDA-CHUVA Em termos gerais e trabalhistas, o profissional da dança está hoje abrigado nesse grande guarda-chuva da Lei do Artista que junta muitas categorias diferentes. Mas, de certa forma, ele continua meio de escanteio, já que a área não entra no corpo da lei, mas só no anexo. “A dança já está regulamentada aí. Claro que a lei precisa ser revista e melhorada, ela foi feita há quase 30 anos, a realidade da dança hoje é outra. Para alguns, ela já deu o que tinha de dar, é preciso escrever uma nova. Por outro lado, se forem feitas modificações no anexo existente, já seria um avanço”, diz Denise Acquarone. Fato é que a condição de “apêndice” da lei implica certa fragilidade, como ficou claro no início dos anos 2000, quando o Conselho Federal de Educação Física (Confef) fez as primeiras tentativas de ingerência na atuação do profissional de dança. “A partir daí, ficou claro que tínhamos de nos defender com uma legislação mais específica”, diz Dulce Aquino, diretora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Foi nessa época que se organizou o Fórum Nacional de Dança, do qual Aquino faz parte. “Para defender a classe de arbitrariedades, pensou-se em uma regulamentação mais específica. A lei de 1978 não atendia mais às necessidades da época, até porque o

profissional da dança já atuava em funções inimagináveis quando a lei foi criada”, afirma Rosa Coimbra. No meio desse imbróglio, foi feita, em 2002, a atualização da CBO (Classificação Brasileira de Ocupações). Segundo Marise Siqueira, profissionais de todo o Brasil foram ouvidos para que suas funções fossem revistas e ampliadas. Novas áreas de atuação, como pesquisa e dramaturgia, foram agregadas às funções exercidas pelo profissional da dança. Em parte por causa do Confef, em parte pelas rápidas transformações no fazer artístico, a ideia de criar uma Lei da Dança ganhou força nessa época. Mas, por questões que vão da diversidade de realidades no País à própria diversidade da dança, uma proposta concreta não avançou.

A BRIGA COM O CONFEF Em 2000, o deputado federal Pedro Pedrossian (PPB-MS) levou à Câmara o Projeto de Lei 2.939. O texto determinava que os professores de dança deviam se submeter à fiscalização do Confef. “Determinaram que só poderia dar aula de dança em curso livre quem tivesse carteirinha do órgão. Pareceu reserva de mercado. Os profissionais da dança não aceitaram, há o enten


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dimento de que a linguagem das artes não é a da Educação Física”, diz Marise Siqueira. À época, por meio dos Conselhos Regionais, o Confef começou a fiscalizar escolas, academias e estúdios de dança, exigindo a presença de profissionais de educação física nesses locais de trabalho. Segundo o Fórum Nacional de Dança, o órgão passou a coagir professores de dança a se filiarem ao Conselho e se capacitarem em cursos oferecidos por ele próprio. A partir daí, organizações da dança em todo o País entraram com ações na Justiça para impedir a ingerência da Educação Física na área. A mobilização dos profissionais resultou em uma audiência pública com a Comissão de Educação, Cultura e Desporto, contando com a participação da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público, na Câmara dos Deputados, em Brasília, em 2001. Pedrossian não compareceu. Porém, um mês após o evento, solicitou o arquivamento do projeto. Mesmo assim, regionais do Conselho de Educação Física fazem, até hoje, tentativas para enquadrar o profissional da dança sob sua jurisdição.“Volta e meia somos consultados sobre alguma ação na Justiça contra o Confef”, diz Rosa Coimbra.

A MINUTA DA LEI DA DANÇA Segundo Rosa, durante esses anos o Fórum Nacional da Dança continuou na luta pela regulamentação, recolhendo sugestões de profissionais, grupos e associações de todo o País para criar uma minuta da Lei da Dança. “Usamos a Lei do Artista como base, juntamos as sugestões que recolhemos e encaminhamos para um assessor parlamentar. Junto com ele estamos tentando encontrar um caminho viável para transformar a minuta em uma proposta de lei”, conta ela. O fórum está em contato com o gabinete do senador Walter Pinheiro (PT-BA). A ideia é colocar a minuta no formato de um projeto de lei para que, já neste semestre, o congressista peça uma audiência pública na casa para avaliação do texto. Se a ideia se concretizar, a classe poderá viver um “momento histórico da dança no Brasil”, segundo Sandro Borelli, presidente da Cooperativa Paulista de Dança.

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Além de dar visibilidade “federal” ao setor, o evento será uma oportunidade para reunir todos os interessados para discutir, além da regulamentação, a criação de um Conselho Nacional da Dança e também para instruir os parlamentares que vão votar. Depois, é preciso encaminhar o projeto de lei para comissões que estão envolvidas com a questão. A regulamentação da profissão é uma das bandeiras da Cooperativa que, em São Paulo, tem discutido a questão em reuniões com a classe. Um desses encontros teve a participação do deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP). “Entregamos as reivindicações a ele, que disse que nos apoiaria”, conta Borelli. O problema é que, apesar de envolver sugestões de vários grupos ou organizações da classe no País, a minuta criada pelo Fórum é desconhecida por outros tantos – provavelmente em número maior do que os que conhecem o texto –, reforçando a necessidade de discussão antes do encaminhamento do texto, como lembra Denise Acquarone. “A maioria dos profissionais da dança não tem nem conhecimento da lei e da questão. É preciso, primeiro, ter informação, para então começar o debate”, diz ela.

“Usamos a Lei do Artista como base, juntamos as sugestões que recolhemos e encaminhamos para um assessor parlamentar. Junto com ele estamos tentando encontrar um caminho viável para transformar a minuta em uma proposta de lei” Rosa Coimbra


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QUEM FISCALIZA

QUEM É QUE DANÇA Se todos os trâmites jurídicos, institucionais e burocráticos já colocam uma montanha de pedras a serem quebradas, as nuances da própria carreira são outra pedreira no caminho. Quem é esse profissional do qual estamos falando neste século em que as plataformas de criação e difusão se multiplicaram e as fronteiras entre as artes se embaralharam? A resposta fica mais difícil de ser dada no Brasil, afirma Dulce Aquino. “Aqui, a dança tem essa forma de estar presente na sociedade de forma cotidiana, não é fácil delimitar o campo do que poderia ou não ser definido como profissional”, diz. A minuta da Lei da Dança tenta identificar as várias facetas desse profissional, elencando suas funções ou áreas de atuação. A tarefa é árdua. Assistente de Coreógrafo. Bailarino, Dançarino ou Intérprete-criador. Coreógrafo. Curador de Dança. Crítico de Dança. Dançarino estagiário. Diretor de Dança. Diretor de ensaio. Diretor de Movimento.Dramaturgo de Dança. Ensaiador de Dança. Instrutor de Curso Livre de Dança. Maïtre de Ballet. Pesquisador. Produtor de Dança. Professor de Curso Livre de Dança. Estas são funções contempladas pela

minuta. Respire: a lista poderia (e pode) ser maior – nuances da carreira talvez não estejam representadas aí. “Nem tudo [da minuta] precisa estar no projeto de lei. Por exemplo, as diversas funções do artista da dança talvez não precisem estar no corpo, mas em um decreto, pois é mais fácil mudá-lo do que uma lei”, diz Rosa. Assim, acréscimos e alterações podem ser feitos sem precisar passar por toda a Via Crúcis de uma votação na Câmara. A formalização dessa atividade também pode ajudar a pensar quais seriam as obrigações e os ganhos desse profissional. Entre seus direitos estariam o livre exercício da profissão, jornada de trabalho e garantia de representação jurídica e à aposentadoria em um tempo compatível com o desgaste inerente a essa atividade, a defesa de seus direitos autorais, a formalização de sua atividade no registro em carteira. Entre os deveres estariam o compromisso em se preparar para desenvolver um trabalho coerente, qualificar-se adequadamente para a área específica de atuação, preservar a qualidade de produto artístico realizado, respeitar e valorizar a diversidade das manifestações de dança.

A formalização legal de uma profissão carrega consigo uma questão inescapável: como garantir que a lei seja cumprida? “Alguns acham que a resposta não seria a criação de um conselho, outros, que isso é um mal necessário. Quem é contra argumenta que conselho é algo cartorial, mas, em contrapartida, se não houver esse órgão, quem fiscaliza?”, pondera Rosa Coimbra. O ponto é polêmico. “É preciso discutir bem isso, porque a atuação de um conselho pode ser vista como reserva de mercado, que delimita o espaço para os profissionais”, diz Aquino. Marise Siqueira, que, como Dulce e Rosa, faz parte da diretoria do Fórum Nacional da Dança, declara-se “particularmente contra a criação de um conselho” nos moldes, por exemplo, do de Educação Física. “Sou contra órgão fiscalizador na área das artes, tolhe o livre exercício da cultura. A fiscalização deveria ser função do Ministério do Trabalho”, afirma Marise. Segundo Sandro Borelli, a Cooperativa Paulista de Dança estuda três questões que considera fundamentais para a defesa da classe: a regulamentação em geral, a questão da aposentadoria em particular e a formação de um conselho federal. De qualquer forma, a Lei da Dança e um conselho federal seguem caminhos oficiais diferentes. Enquanto a regulamentação é da alçada do Legislativo, a criação do conselho é da competência do Executivo, segundo Marise. Mais importante, essa discussão sobre a validade de se ter ou não um conselho de dança só tem sentido depois de aprovada a regulamentação da profissão. “O que precisamos agora é ter o documento do projeto de lei para seguir os trâmites do Congresso”, diz Borelli. E, claro, envolver a classe para garantir sua aprovação. “Se não for por meio de mobilização não muda. Não podemos ser ingênuos e esperar a boa vontade dos outros. Tem de ter pressão e, nesse momento, é importante passar adiante a importância da regulamentação”, afirma Marília Rameh.


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ISSO MACHUCA A mineira Suely Machado é formada em psicologia e dança. Vive desta última há 35 anos. “É inacreditável saber que não tenho direito a aposentadoria como uma profissional da dança, que é a área na qual atuo”, diz. Não é só questão de ter um nome específico escrito na carteira. “A ferramenta de trabalho do profissional da dança é o corpo, que é perecível, adoece, se machuca. A lei da gravidade que puxa tudo para baixo, a necessidade de treino diário, todo esse esforço constante faz com que seja uma profissão de risco”, diz Suely. A condição transcende gêneros e fronteiras. Como disse a britânica Teneisha Bonner, formada em danças contemporânea, moderna e urbana e que atua tanto nos palcos como no cinema e na TV:

“Quem está interessado em fazer dança profissionalmente tem de entender: isso machuca. Qualquer que seja a sua abordagem, o denominador comum é a dor”, declarou ela ao jornal britânico The Guardian. Isso mostra que, mesmo em uma realidade diferente, tanto em relação ao mercado de trabalho quanto às condições de seguridade e bem-estar social, há uma especificidade da dança que pede medidas de proteção diferenciadas. “Profissões mais penosas têm de ter algum benefício. De todas as questões levantadas pela discussão da regulamentação, acho que uma das mais importantes é a da aposentadoria”, diz Vanessa Macedo, que integra o movimento A Dança Se Move. O objetivo de organizações como essa, além do Fórum Nacional de Dança e da Co-

operativa Paulista de Dança, é colocar a profissão como uma categoria especial, como a dos professores. A questão é também “um caroço de angu”, na visão de Denise Acquarone. Em uma realidade política e econômica em que o próprio sistema de previdência social está sendo bombardeado, com novas regras que visam aumentar o tempo de contribuição para ter o direito ao benefício, diminuem as chances de a demanda por uma aposentadoria especial ser atendida. Caso seja, o profissional da dança poderia pedir aposentadoria após 25 anos de contribuição. “Se a gente conseguir isso, vai ser uma vitória estrondosa para as novas gerações”, afirma Sandro Borelli. Porém, como lembra Marise Siqueira, a possibilidade de ter aposentadoria especial só existe para profissões regulamentadas – e isso faz dessa a questão da vez, que, por seu turno, também deve ser debatida, criticada, revista ou melhorada, como toda a pauta que se preze.

“A ferramenta de trabalho do profissional da dança é o corpo, que é perecível, adoece, se machuca. A lei da gravidade que puxa tudo para baixo, a necessidade de treino diário, todo esse esforço constante faz com que seja uma profissão de risco” Suely Machado


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INTERSECÇÃO/ MURRO#11

POR/ JORNALISTAS LIVRES

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QUEM SOMOS NÓS?

Crise no mercado de notícias leva profissionais da reportagem a se aliar a artistas independentes e movimentos sociais. Missão? Usar seus textos a favor dos direitos humanos em iniciativas financiadas via crowdfunding

O FILÓSOFO comunista Antonio Gramsci (1891-1937) escreveu nos seus Cadernos do Cárcere que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Falava sobre a situação revolucionária típica, mas bem poderia estar se referindo ao que se passa hoje no mundo da mídia e das comunicações no Brasil. Jornalões perdem relevância, audiência e credibilidade. Anunciantes caem fora. As vendas desabam. O modelo de negócios vai para o brejo. Jornalistas são defenestrados

às centenas das redações em passaralhos sinistros. Fecham-se sucursais espalhadas dentro e fora do País. Em tempos de hiperconectividade liquefazendo fronteiras, os jornais se tornam mais e mais provincianos e locais. Apelam, exacerbam o que lhes é caro, invisibilizam o que não é. Mentem em nome da verdade, adotam facciosismos. Partidarizam-se radicalmente, embora se digam independentes, pluralistas e apartidários. Em junho de 2013 e nos meses subsequentes, marcados por mobilização de massas gigantesca, que chacoalhou o País inteiro pelo congelamento das tarifas de ônibus e outras

bandeiras, o velho trincou de vez. Nas manifestações, gritavam-se slogans contra a Rede Globo, seus repórteres eram abertamente hostilizados, carros de empresas de comunicação foram queimados, jornalistas ocultavam seus crachás e identificações profissionais. Simbolicamente – por que não proposital, ressalte-se –, a única vítima fatal daquelas jornadas violentas, marcadas pela repressão policial atroz, pela ação direta, pelo fogo, pela depredação, foi o repórter cinematográfico Santiago Andrade, a serviço do jornalismo da TV Bandeirantes. Uma tragédia. O velho agonizante, o novo sem ainda ter


Em tempos de hiperconectividade liquefazendo fronteiras, os jornais se tornam mais e mais provincianos e locais. Apelam, exacerbam o que lhes é caro, invisibilizam o que não é. Mentem em nome da verdade, adotam facciosismos. Partidarizam-se radicalmente, embora se digam independentes, pluralistas e apartidários.

nascido, e chegamos ao dia 12 de março de 2015. Há apenas cinco meses. Foi nessa data que dezenas de jornalistas, ativistas, palhaços, atores, poetas, gente do funk e do hip hop reuniram-se em uma casa no bairro paulistano do Bixiga, um antigo quilombo, para tentar enfrentar a escalada da narrativa de ódio à democracia, aos direitos humanos e sociais. No fim de semana anterior, os quarteirões endinheirados da cidade haviam promovido um ruidoso protesto contra a presidente Dilma Rousseff. Das varandas gourmet elevavam-se xingamentos de caráter misógino e uma expressiva bateção de panelas. Mesma turma estava envolvida no chamamento pelas redes sociais de um grande ato público no dia 15 – a mídia tradicional logo começaria a também convocar a manifestação, incensando-a como grande protesto democrático. Era preciso fazer a contranarrativa. As contranarrativas. Mostrar o que de fato se escondia por detrás da brilhante fachada cenográfica montada peça Rede Globo, Veja, Folha e outros. E o que se viu foi feio: torturadores a serviço da ditadura militar, como Carlos Alberto Augusto, conhecido nos anos 1970 como “Carlinhos Metralha”, sendo homenageados como “heróis do povo brasileiro”; carros alegóricos enaltecendo a “Intervenção Militar Já!”; mais gritos e xingamentos. “Ei, Dilma, Vai Tomar no Cu!” foi um dos hits. Em sentido contrário, a ideia-força dos Jornalistas Livres, desde o primeiro momento, foi a da colaboração entre todos os comunicadores que defendem e lutam pela ampliação da democracia brasileira, bem como dos direitos humanos e sociais conquistados a duras penas pelas camadas mais vulneráveis da população. E aqui muda-se o narrador, que passa da terceira pessoa para a primeira pessoa. Em vez da narrativa com aparência de isenção, a opção pela transparência da subjetividade. Somos

personagens da história que se contará. Logo na primeira reunião, pactuamos como funcionaríamos. Ficou assim: – Atuamos única e exclusivamente em nome da paixão que nutrimos pelo jornalismo e seu gênero mais nobre, a reportagem. Não somos remunerados como Jornalistas Livres. – Entre nós não pode existir a competição. Sabemos que, juntos, compartilhando uns com os outros, podemos chegar mais longe, atingir públicos mais amplos, levar informações honestas e de qualidade. – Queremos incluir as vozes, os sotaques, os modos de expressão, as histórias de vida, as alegrias e os lamentos de toda a imensa variedade de formas de vida e sociabilidade humanas que se encontram neste País. – Não almejamos a “fala correta”, não seguimos manuais de redação homogeneizadores e excludentes da diferença e diversidade. Como rede inclusiva contra a exclusão, somos, por isso, bem diferentes da mídia corporativa, para a qual o ideal de Brasil cabe em um comercial de margarina: branco, hétero, cisgênero, urbano, rico. – Nosso desafio é constituir uma mídia independente, apartidária, inclusiva, crítica, pluralista de verdade, desafiadora dos clichês e preconceitos alimentados pela mídia tradicional a serviço dos grandes e poderosos. Uma imprensa verdadeiramente livre, que, por isso mesmo, nunca seria financiada por multinacionais, concessionárias de veículos ou empreiteiras que vivem da especulação imobiliária. – Entre a defesa dos apartamentos de luxo cercados por seguranças e o lado dos movimentos de moradia, não temos dúvida: estamos com os movimentos de moradia. Cinco meses se passaram desde aquele dia 12 de março. Meses de grande experimentação, de testes, de aproximação com os mais importantes movimentos sociais. Filmando, fotografando, escrevendo, estivemos ao lado dos sem-teto em ocupações de

imóveis vazios; dos índios em seus protestos no Congresso Nacional; na Marcha da Maconha; com os coletivos LGBTT. Desvelamos a tortura da transexual Verônica Bolina em uma delegacia paulistana; ajudamos a jogar luz sobre a proposta de redução da maioridade penal, mostrando a falácia do argumento conservador e encarcerador. Estivemos ao lado dos sindicatos contra o ajuste fiscal e o projeto de terceirização. Com os professores. Atuando em rede, já alcançamos mais de 4 milhões de pessoas em um só dia – foi na cobertura do massacre dos professores paranaenses, promovido pela Polícia Militar do governador Beto Richa, no dia 28 de abril. E seguimos crescendo, com a abertura de núcleos dos Jornalistas Livres em Minas Gerais e no Paraná. Em breve, novos núcleos serão criados no Rio de Janeiro e no Distrito Federal. O propósito é criar sucursais em todos os Estados brasileiros. Para viabilizar essa expansão, acabamos de fechar um período de 45 dias de campanha de financiamento coletivo – em vez de procurar os anunciantes tradicionais, fomos atrás dos leitores, pedindo-lhes que ajudassem na arrecadação de R$ 100 mil. Concluímos a campanha com a arrecadação de mais de R$ 140 mil, que serão gastos no aluguel de uma sede em São Paulo, na construção de um grande portal dos coletivos que compõem a Rede Jornalistas Livres, na aquisição de equipamentos básicos (computadores e câmeras) e de vouchers de viagem para viabilizar coberturas em cidades onde ainda não tenhamos estruturado sucursais. Sabemos que a velha mídia ainda não morreu – apesar dos terríveis miasmas que exala. E que a nova mídia – democrática, inclusiva, representativa e pluralista de verdade – ainda não nasceu. Precisamos, entre outras coisas, de um novo marco legal, que acabe com o domínio oligopolizado dos meios. Mas estamos certos de que fazemos parte da gestação dessa novidade. Ela nascerá.

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POR/ GAL OPPIDO

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OFICÍO SOBRE VIVER A primeira condição de um corpo para sustentar seu organismo/intelecto é acesso ao trabalho e, para tanto, existe o Estado, que reconhece e oficializa seu fazer social produtivo, criando as condições mínimas para este corpo/cidadão dar vazão às suas virtudes. Temos um Estado pródigo na geração de leis e moroso no reconhecimento de profissões seculares, fazendo com que este cidadão produtivo fique à mercê de horizontes plúmbeos. Essa correção de rota pelo Estado cria aberrações como o não reconhecimento daquele que vive de pensar o corpo enquanto célula vital da sociedade. Desde o início das comunidades humanas, ritos corporais agem como verdadeiras crônicas destas, tanto celebrando colheitas como alegorizando seus temores e sucessos como forma de refletir sobre seus destinos. As danças que evocam a fertilidade estão coladas à existência humana, pois que declaram seu voto de continuidade desta aventura... O Corpo é Início e Fim, e o ofício que trata de dar texto ao seu passado, presente e futuro é marginalizado por um Estado incapaz de perceber quais as partes que movem seu próprio corpo.






OUTRA MARGEM/ MURRO#11

POR/ HÉLVIO TAMOIO

UM OUTRO MODELO POSSÍVEL Um ano após sua instalação em prédio histórico de São Paulo, Centro de Referência reflete sobre participação direta, efetiva e democrática inaugurada a partir de experiência de gestão compartilhada - celebrada entre a Cooperativa Paulista de Dança e a Secretaria Municipal de Cultura

Detalhe de The Promenade, 1917 / Marc Chagall

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Com a casa arrumada e algumas ações estabelecidas, o segundo tempo veio com a necessidade de ocupação em avalanche. O espaço onde cabiam 12 se transformou em abrigo para cerca de 60 grupos.

A AUSÊNCIA de políticas públicas efetivas para o setor artístico e da cultura em geral é de uma ordem tão ameaçadora para quem quer ser profissional da área que, muitas vezes, acaba reforçando o desespero dos pais quando um filho anuncia sua opção, no vestibular, para as artes. A inconstância é tanta que se revela em uma pesquisa breve sobre os recursos aplicados no setor pelos diferentes matizes das administrações municipais, estaduais ou federal. Uma ilustração de como esse quadro pode começar a ser revertido está na recente parceria entre a Cooperativa Paulista de Dança (CPD) e a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo na implantação de um Centro de Referência da Dança na antiga Escola Municipal de Bailados – que, no fim de 2013, deixou as instalações sob o Viaduto do Chá e transferiu seus alunos e professores para as modernas salas de um prédio de arquitetura duvidosa construído aos pés da Avenida São João. Tal parceria era necessária, pois, estando às moscas, o antigo prédio foi ocupado por artistas e moradores sem teto, forçando uma tomada de posição do poder público, que, naquele momento, não ia além de indicativas. Essa condição levou a atual direção da CPD a se posicionar no sentido de defender e garantir um espaço histórico para a dança, visto que, mapeada a cidade, não encontraríamos outro com tamanha importância. Acordos estabelecidos para a primeira etapa, entre agosto e dezembro de 2014, e a segunda, de janeiro a julho de 2015, a proposta inicial foi reestruturar fisicamente o espaço que há tempos não passava por uma reforma e, consequentemente, estabelecer ali algumas ações que pudessem, de forma heterogênea, proporcionar variadas trocas no sentido de dialogar com as múltiplas manifestações da dança.

O primeiro passo para o encaminhamento coletivo se deu com a aproximação de profissionais identificados com uma diretriz minimamente cooperativa ou que tivessem contato, direta ou indiretamente, com programas ligados ao pensamento e práticas de gestões públicas democráticas experimentadas na cidade a partir de 1989 – entre eles os pensados e articulados na gestão da professora Marilena Chauí à frente da Secretaria de Cultura, momento em que se buscava estruturar práticas para alicerçar as bases de uma cidadania cultural, inserindo o setor cultural nas prioridades de governo e a população organizada como elo estrutural nos encaminhamentos. Com a casa arrumada e algumas ações estabelecidas, o segundo tempo veio com a necessidade de ocupação em avalanche. O espaço onde cabiam 12 se transformou em abrigo para cerca de 60 grupos. Foi justamente a dificuldade de fazê-lo que norteou a parceria institucional com a Secretaria a partir daquilo que entendemos como participação direta, efetiva e democrática. Ou seja, grupos inscritos não só se ajustaram à realidade de uma agenda capaz de atender à grande demanda como também passaram a cuidar dos detalhamentos da convivência multifacetada ali estabelecida. Da faxina das salas nas trocas de horários dos grupos aos intercâmbios conceituais e estéticos, o cotidiano passou a se estabelecer num ritmo no qual o gestor só aparecia para o ajustamento de acordos quando havia necessidade. Outro elemento importante foi a ampliação de ações de conscientização profissional dos agentes ali presentes, de forma a vivenciarem intervenções das mais variadas vertentes tanto no campo estético, em suas diretrizes investigativas, quanto no debate político, pautando necessidades ou apontando caminhos para as demandas existentes.

Esses momentos exigiram uma maior articulação dos representantes da Cooperativa Paulista de Dança envolvidos no projeto em relação à mediação com o poder público e com alguns segmentos da categoria, principalmente aqueles que precisavam de respostas mais imediatas. Nesse caso, a importância da presença da CPD na implantação de um Centro de Referência, com o apoio estratégico na relação institucional da Secretaria em parcerias e articulação com outros setores, foi a de ter como eixo o apontamento de que uma parceria público-privada pode e tem condições efetivas de ser pautada num modelo de gestão direta, participativa e democrática, ao contrário daquilo que se estabelece como regra nos municípios e Estados, nos quais a privatização da administração pública via organizações sociais é tida como mais eficiente, funcional e competente. Em suma, não foram solucionadas as demandas na relação da dança com o poder público, como, por exemplo, a constituição de uma política pública para o setor coerente nos orçamentos estabelecidos como prioridade de governo ou em ações permanentes que possibilitem um fazimento artístico que vá além das sazonalidades dos editais. No entanto, alternativas e caminhos foram e podem ser apontados. Cabe-nos, a partir deles, a ampliação dos debates e das práticas no sentido de não só garantir os passos dados, mas aprofundar diretrizes que estabeleçam a arte e a cultura como prioridades permanentes de governo e política estável de Estado.

Hélvio Tamoio é coordenador ceral do Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo, vice-presidente da Cooperativa Paulista de Dança e produtor e apresentador do programa Paracatuzum.

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BIBLIOTECA/ MURRO#11

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DANÇA NAS LETRAS XI DANÇA E POLÍTICA Estudos e Práticas

MARILA VELLOSO E RAFAEL GUARATO (ORG.) INDEPENDENTE

Viabilizado com apoio do Fundo de Cultura de Goiás, o livro reúne artigos científicos e relatos de pesquisadores, artistas e produtores da cena da dança, entre os quais Vera Bicalho, Leonardo Taques, Valéria Figueiredo e Kleber Damaso, que fazem um panorama da produção dessa linguagem no País de hoje, questionando desde os mecanismos de fomento à relação entre arte e política, que se acentuou nos últimos dez anos. Com distribuição gratuita, a publicação está disponível em escolas, bibliotecas públicas e cursos de dança.

GRUPO CENA 11 Dançar é Conhecer

JUSSARA XAVIER (ORG.) ANNABLUME

Uma das mais expressivas e instigantes companhias de dança contemporânea do País, a catarinense Cena 11 tem sua trajetória de mais de 20 anos revista neste volume, que se dedica não só a catalogar informações acerca do grupo – como ficha técnica de programas, trechos de críticas jornalísticas e depoimentos –, mas também a reunir textos de nomes como Anderson do Carmo, Elke Siedler, Fabiana Dultra Britto, Jussara Belchior, Maria Carolina Vieira e Sandra Torres, para refletir sobre questões estéticas e filosóficas acerca das pesquisas do coreógrafo Alejandro Ahmed e de seus bailarinos.

CAMINHOS CRUZADOS

Teatro de Dança Galpão 1974-1981

INÊS BOGÉA

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

A diretora artística da São Paulo Companhia de Dança mergulhou em arquivos públicos, jornais, programas, fotografias e depoimentos para investigar a trajetória do icônico Teatro Galpão, em São Paulo. Coordenada por Marilena Ansaldi em plena ditadura militar, a iniciativa contribuiu para o fomento de um pensamento estético nacional mais próximo da dança-teatro – que revolucionou a atuação nos palcos de toda uma geração formada por gente como Ruth Rachou, Célia Gouvêa, Ismael Ivo, J.C. Violla e Sonia Mota.

BALA PERDIDA

A Violência Policial no Brasil e os Desafios para sua Superação VÁRIOS AUTORES BOITEMPO EDITORIAL

Uma sociedade que apoia um personagem controverso como o Capitão Nascimento do filme Tropa de Elite (2007) merece, no mínimo, uma avaliação. Os 16 artigos desta coletânea, que mesclam o viés jornalístico com o científico, se dedicam justamente a pensar sobre o papel cada vez mais presente da polícia no cotidiano brasileiro e a falta de democracia real que se apresenta em um momento em que a violência de suas ações fica cada vez mais escancarada, como evidenciado a partir da repressão das manifestações de junho de 2013.


EPÍLOGO/ MURRO#11 POR/ KISSO


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INVISÍVEIS À LEI / Pelo direito de trabalhar

ODILON ROBLE / Em (eterna) questão, o contemporâneo

LENNIE DALE / A revolução que veio do salto alto

CHINITA ULLMAN / Modernista avant garde na SP dos anos 1930

POLÍTICAS PÚBLICAS / Lei Rouanet na berlinda

JUCA FERREIRA / Ministro fecha cerco contra isenção fiscal

JORNALISTAS LIVRES / A hora e a vez dos movimentos sociais

GAL OPPIDO / Oficío sobre viver

HÉLVIO TAMOIO / Sai organização social, entra gestão compartilhada

KISSO / Miquinhos amestrados?


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