PROGRAMAÇÃO ASSOCIAÇÃO “OS FILHOS DE LUMIÈRE” AUDITÓRIO Organização e Produção Cristina Grande Pedro Rocha Ana Conde
PRÓXIMA SESSÃO
17 MAR 2013
A Imitação, Saguenail, 26’, 2003, Portugal Notas para uma Oresteia Africana, Pier Paolo Pasolini, 65’, 1970, Itália
Coordenação Técnica e Som Nuno Aragão Luz Rui Barbosa Cinema/Vídeo Carla Pinto
Momento XXIII
CICLO O SABOR DO CINEMA 27 JAN – 21 ABR 2013 Auditório
03 MAR 2013 (Dom), 16h00
Apoio Institucional
Apoio
AURELIA STEINER/MELBOURNE Marguerite Duras, 28’, 1979, França QUEI LORO INCONTRI Straub/Huillet, 68’, 2006, França
Os filmes em língua estrangeira são legendados em português.
Fundação de Serralves / Rua D. João de Castro, 210 / 4150-417 Porto / www.serralves.pt / www.facebook.com/fundacaoserralves Informações: 808 200 543 / Reserva Bilhetes: 226 156 584 / Geral: 226 156 584
Não há onde ir rezar. Ou chamar… Pode-se chamar nos rios ou nas estradas Nos rios. Nas capitais. A escrita são esses chamamentos. Marguerite Duras AURÉLIA STEINER/MELBOURNE Realização, Texto, Voz: Marguerite Duras Fotografia: Pierre Lhomme e Eric Dumage Som: Michel Vionnet e Jean-Paul Loublier Montagem: Geneviève Dufour Produção: Paris Audiovisuel, Henri Chapier FRANÇA 1979
AURÉLIA STEINER é uma narrativa sob a forma de «canto» em três partes, respetivamente «Melbourne», «Vancouver» e «Paris». As duas primeiras secções deram origem a dois filmes. Aurélia Steiner, a protagonista da obra, apresentase-nos como uma figura múltipla: uma mulher morta numa câmara de gás, a filha dessa mesma mulher nascida num campo de extermínio, uma menina de sete anos que vive com uma senhora idosa no lugar onde sua mãe foi presa pela polícia, uma rapariga que vive em Melbourne ou em Vancouver ou ainda a própria autora dando largas à mágoa de perder uma criança, um irmão e amigos da resistência desaparecidos nos campos nazis. Em AURÉLIA STEINER/MELBOURNE, sobre imagens, crepusculares ou noturnas, ouvimos a leitura de uma carta. A câmara, colocada dentro de uma embarcação nunca visualizada (ponto de vista instável), desce o rio Sena, de Paris a Boulogne-Billancourt, detendo-se sobre os pesados arcos e os pilares das pontes, observando à distância espetrais transeuntes, buscando jogos de luz e reflexos no caudal… A proximidade «espacial» da voz legente investe toda a memória do mundo no tom de neutralidade com que se exprime – carregada de emoção contida, essa voz perturba tanto mais o espectador-ouvinte quanto aquilo que narra é fragmentário, extremo, eivado de histórias não contadas, vividas ou talvez não. Assumindo e sublinhando por todos os meios a indecisão (que se revela compatível com a radicalidade), a leitora Marguerite Duras profere farrapos de uma epístola, supostamente escrita de Melbourne, pela personagem Aurélia Steiner, aos 18 anos. A partir da evocação do local donde a escrita brota – um palco de intimidade (ponto de vista que se poderia supor estável), frente a um jardim, com um gato esfomeado a gritar de agonia –, uma voz lança-se em busca da pessoa amada, possivelmente estrangeira, porventura mesmo desconhecida, mas perdidamente amada. Nem amor, nem pessoa amante, nem pessoa amada são figuráveis. Embora o pretenso local onde a escrita é cometida – diante de uma vidraça que dá para o tal jardim assombrado por um felino canto de morte – nada tenha a ver com o cenário do rio Sena, por vezes a voz off (e contudo tão intensamente IN!!!) estabelece uma ponte entre o que relata e o que as imagens, em paralelo, nos vão dando a ver; essas poucas zonas de contacto tornam a narrativa ainda mais explosivamente desconcertante e quebram sem peias qualquer resquício de ilusão acerca da «lei» do ponto de vista. À «heure exquise» da jovem «viúva» somam-se camadas e mais camadas do que é indizível mas queima a boca, do que é infixável mas está sempre por perto, do que é impronunciável mas desperta memórias coletivas e individuais, do que é indeciso mas grita. A prática cinematográfica de Duras obriga-nos a uma OUTRA experiência do cinema. Porque a delicada audácia da autora não deixa pedra sobre pedra: questiona-se a noção de personagem, a figura do destinatário, a ideia de que o cinema é prioritariamente visual, o casamento e o desfasamento entre imagens e sons, etc. etc. etc. Atordoados que ficamos com esse terramoto, a companhia da voz de Duras oferece-se-nos como uma espécie de absoluto – porém ela força o espectador a sentir-se totalmente entregue a si próprio. Como nos diz essa TAL voz cujo timbre continua longamente a ecoar: «Ouça, eu não o separo do seu corpo. Nunca.»
É belo escrever porque assim se juntam duas alegrias: falar sozinho e falar a uma multidão. Cesare Pavese QUEI LORO INCONTRI Realização e Montagem: Jean-Marie Straub e Danièle Huillet Texto: Cesare Pavese Fotografia: Renato Berta, Marion Befve, Jean-Paul Toraille Som: Jean-Pierre Duret, Dimitri Haulet, Jean-Pierre Laforce Produção: Chistian Châtel, Marcello Landi, Jean-Pierre Lorand, Martine Marignac, Frédéric Papon, Blandine Tourneux, Jean-Marie Straub, Danièle Huillet Interpretação: Angela Nugara, Vittorio Vigneri, Grazia, Romano Guelfi, Angela Durantini, Enrico Achilli, Giovanna Daddi, Dario Marconcini, Andrea Bacci, Andrea Balducci ITÁLIA 2006
Derradeiro filme co-assinado pelo casal Straub Huillet (Danièle Huillet viria a falecer a 10 de Outubro de 2006), QUEI LORO INCONTRI em tudo confirma, prolonga , expande e engrandece as propostas a que o seu cinema nos habituou: produção artesanal (criação de um produto «cosido à mão»), osmose do político e do cinematográfico (à luz de uma conceção poética da escrita fílmica), prática sistemática da «adaptação» literária (segundo uma perspetiva que privilegia a distanciação brechtiana), preferência pelos atores não profissionais (cujo trabalho não passa pelo ato de encarnar os textos, mas de os citar, de os dar a ouvir imprimindo-lhes uma estranheza de novidade e uma modulação musical), gosto pronunciado pelo plano fixo e pelo plano sequência (explorando a tensão do estático por forma a potenciar a expressividade de cada acontecimento), utilização do som direto (fazendo vibrar todas as cordas do vocal e do local), adoção de uma estética de resistência (não apenas contra os ditames da indústria cinematográficas, mas também – talvez sobretudo – jogando no e com o atrito, ou seja, encenando a resistência dos materiais). Já em 1978 Straub-Huillet haviam levado textos de Cesare Pavese à tela: em DALLA NUBE ALLA RESISTENZA, os cineastas estabeleciam um paralelo entre as relações dos humanos com os deuses no mundo antigo e a resistência contra o capitalismo na Itália moderna. Mais recentemente, Jean-Marie Straub voltou aos diálogos do autor italiano, adaptando «La Belva» (1947) no seu IL GINOCCHIO DI ARTEMIDE, encenação de um frente a frente entre dois homens que discorrem acerca do sonho, do espetral e da morte. Na verdade, a leitura dos «Diálogos com Leuco» – que o filme QUEI LORO INCONTRI grandemente adensa e aproxima do ouvido, do coração e do pensamento do espectador, graças a um entendimento rigoroso (o que é raro…) do efeito brechtiano de distanciação – transforma-se rapidamente numa experiência arrebatadora, não apenas pelo modo como Pavese declina a memória da criação dos criadores, desdobrando-a numa coleção de instantes sublimes (no sentido latino de sublimis, «que se eleva» ou «que se mantém a pairar no ar»), mas também pela maneira como os atores encarnam não o texto do poeta italiano mas a própria inextricabilidade dos elos que ligam os deuses e os homens, num jogo de causas primeiras que não obedece à lógica das consequências. Trata-se de filiações e ascendências que transpiram os pesos do passado – fisicamente «sublimado» na eternidade de cada instante – mas também uma espécie de nostalgia de uma fraternidade futura, sendo a morte, enquanto possibilidade ou impossibilidade, o elo que separa e une os deuses e os homens, os primeiros por ela fascinados, os segundos constituídos pela consciência da sua inevitabilidade. No entanto, o que mais profundamente nos toca no discurso dos actores hieráticos que parecem brotar dos cenários mediterrânicos são porventura as palavras que introduzem historicidade no que é imortal, e eternidade no que é efémero. Este não é filme de verbo de encher mas filme é de muitas palavras. No entanto, a importância dos silêncios e a sua qualidade fazem com que nos tornemos particularmente sensíveis a todos os murmúrios, sussurros, marulhos, zumbidos, gorjeios que povoam o ar desse tempo singular instalado pelo filme. E é como se o despojamento deste mundo subitamente habitado por divindades cuja porta se entreabre nos desnudasse também a nós e nos convidasse a ocupar um lugar nas pequenas fissuras rasgadas pelos sons. Ali algures um lugar, no avesso da contemplação.